“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; de todas as vezes fui detido por uma espécie de vergonha e de repulsa. Pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?” 11. Levi-Strauss C. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 10; 1955. (p. 11).
Até Lévi-Strauss demorou a superar a “vergonha” ou o “asco” de contar sobre suas expedições, mas, felizmente, o grande pensador acabou nos brindando com um clássico da antropologia. Citar esse trecho da grandiosa obra Tristes Trópicos11. Levi-Strauss C. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 10; 1955. para abrir essa resenha remonta a ideia de superar o silêncio e o medo, da contribuição de tantas vozes, icônicas ou não, para construir sentidos na vida e de que toda narrativa apresenta uma interpretação autoral, considerando miudezas e insignificâncias, proezas e fracassos, nesse habitar corpo-mundo. Na maioria das vezes, palavras escritas sobre os outros implicados em nós, na tentativa de interpretar o mundo e a nós mesmos.
O livro Existir e Não Pertencer: Notas Autoetnográficas de um Cientista Social no Campo da Saúde22. Barros NF. Existir e não pertencer: notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Campinas: Pontes Editores/Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2023., de Nelson Filice de Barros, atrai o leitor desde a sua proposta, explicitada nas notas introdutórias: apresentar uma autoetnografia em que o cientista social faz parte do próprio objeto da narrativa. Nesse caso, o livro apresenta uma autorreflexão, que Barros denomina de “prosa”, construída a respeito de uma trajetória de 25 anos como docente e pesquisador, sob o argumento central de “existir como cientista social no campo da saúde e não pertencer a ele” (p. 14).
Logo na introdução, o autor remete a autoras e autores, brasileiros e estrangeiros, com os quais dialogou intensamente, como Brah, Anzaldúa, Bauman, Hall, Williams, Hoggart, Thompson, Gilroy, Freire, Luz, Marsiglia e Nunes, que se destacaram como guias regulares no seu percurso em busca de “consensos lastreados nas diferenças”. A narrativa é construída em quatro capítulos: EU-DIASPÓRICO: Universidade como Espaço de Diáspora, em que aborda e problematiza a noção contemporânea de diáspora, associada a qualquer grupo que abandona seu lugar de origem; EU-ESTRANHO: Notas sobre a Construção Social de uma Identificação, tomando como referência um cientista social “estranho” no campo da saúde, em movimentos de medo e coragem em meio a microinvalidações, ataques e agressões, mecanismos ancestrais de controle e a edificação de seu modo de agir; EU-AMBIVALENTE: Notas sobre Existir entre Dualidades, em que discute a falta do “reino social” e o exercício classificatório de produzir leigos e não médicos no campo da saúde, que resultaram na necessidade de eliminar fronteiras para enfrentá-los; CONHECIMENTO DE FRONTEIRA: Ativos Sociais das Diferenças, em que discorre sobre como a saúde passou a ser a sua “casa-lar”, ainda que habitando a “terceira margem do rio”. E, por fim, CODA: A Minha Prosa Não é um “Identikit”, tendo como últimas palavras uma parte da letra da Canção do Novo Mundo.
Autoetnografia 33. Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural 2017; 24: 214-41. vem do grego a partir da junção dos termos auto, significando próprio, em si mesmo; ethnos, como nação, povo, grupo de pertencimento; e grafo, forma escrita, grafia. O texto problematiza o fazer, o estar e o pertencer ao campo da saúde de modo a descortinar impressões, reflexões e vivências do corpo-trabalhador, estranho, estranhado, como um ser diaspórico-ambivalente performando numa área que não é a sua. Tomando o seu próprio fazer e a forma de estar no mundo profissional e acadêmico, a escolha do tema e a perspectiva metodológica assumidos por parte do autor despertam o interesse de leitores, especialmente os da área da saúde, ainda pouco familiarizados a produções desse tipo, que colocam a possibilidade de construção de conhecimento baseado numa narrativa autorreferenciada. Desde o início, Barros esclarece o sentido de sua empreitada como “uma autoescavação que me aproxima de muitos outros corpos que se experimentam em lugares sociais que nunca foram plenamente seus e/ou que eles nunca quiseram pertencer” (p. 14).
Para Ellis et al. 44. Ellis C, Adams TE, Bochner AP. Autoetnografía: un panorama. In: Calva SMB, editora. Autoetnografía: una metodología cualitativa. Cidade do México: Universidad Autónoma de Aguascalientes; 2019. p. 17-41., a autoetnografia é uma abordagem de pesquisa e escrita que busca analisar a experiência pessoal para compreender a experiência cultural, como um ato político, socialmente justo e consciente. Considerada uma prática anti-hegemônica, está no rol de análises culturais fundamentadas na narrativa pessoal, desenvolvida com “lente crítica em uma práxis dentro↔fora, de modo a entender quem somos nas nossas comunidades” 55. Miranda CF. A autoetnografia como prática contra-hegemônica. Teoria e Cultura 2022; 17:70-8. (p. 71).
Historicamente inserida na tradição interacionista da Escola de Chicago (Estados Unidos) 33. Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural 2017; 24: 214-41., a autoetnografia foi atualizada. Segundo Maia & Batista 66. Maia S, Batista JS. Reflexões sobre a autoetnografia. Revista Prelúdios 2020; 9:240-6., o acolhimento do método no Brasil se deu mais recentemente, a partir da entrada, nos centros acadêmicos, de grupos previamente marginalizados devido a seu pertencimento racial, étnico, de identidade de gênero ou de orientação sexual. Incorporados e reconhecidos especialmente devido a políticas afirmativas e de inclusão, mulheres negras e homens negros, quilombolas, indígenas, pessoas LGBTQIA+, entre outras, são hoje uma parcela de pesquisadores encorajados a construir conhecimento de seus grupos sociais interiormente.
“...A autoetnografia tem a autorreflexão como elemento básico no estudo de grupos sociais em que o pesquisador faz parte de seu próprio objeto e universo de pesquisa. Sua atualidade e interesse resulta de uma transformação política e epistemológica, num contexto pós-colonial ou decolonial, quando indivíduos pertencentes a grupos sociais que antes se constituíam em ‘objetos’ de estudo se transformaram em sujeitos e produtores de conhecimento, gerando um profundo questionamento das bases do discurso científico sobre neutralidade e distanciamento social entre pesquisador e universo de pesquisa” 66. Maia S, Batista JS. Reflexões sobre a autoetnografia. Revista Prelúdios 2020; 9:240-6. (p. 240).
Barros recorre à autoetnografia performática 77. Raimondi GA, Moreira C, Brilhante AV, Barros NF. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des)encontros método+lógicos. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00095320. para contar sua trajetória e refletir sobre ela: uma abordagem teórica e metodológica que procura dar voz aos “autores das histórias”, vozes rotineiramente silenciadas e negligenciadas; um método que visa problematizar subjetividades subalternizadas, à margem dos poderes hegemônicos. Em tempos de fortes movimentos decoloniais e identitários, a autoetnografia performática é uma metodologia qualitativa que toma o corpo como lugar privilegiado para a produção de conhecimento:
“Considerando os pressupostos dos estudos de performance, que compreendem o corpo e suas performances como um local privilegiado para a produção de conhecimento, a autoetnografia performática, um dos tipos possíveis de autoetnografia, apresenta-se como uma estratégia ‘método+lógica’ que promove a quebra de silêncios individuais-coletivos relacionados a sistemas de relações e produção de conhecimento hegemônicos, eurocêntricos, brancos, patriarcais, machistas e cis-heterossexistas” 77. Raimondi GA, Moreira C, Brilhante AV, Barros NF. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des)encontros método+lógicos. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00095320. (p. 2).
Como o próprio Barros nos diz, suas anotações, suas lembranças, seus presentes, seus passados, vivos e mortos possibilitaram contar a história de um cientista social no campo da saúde em sua trajetória como ser diaspórico-estranho-ambivalente, num texto etnográfico transformado em ato performático: “vida, narrativa e melodrama sob os auspícios do capitalismo neoliberal tardio” 88. Denzin NK. Performance ethnography: critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2020. (p. 2). Norman Denzin é enfático ao defender a autoetnografia performática a partir de uma nova genealogia: “Não é analítico, nem é profundamente teórico. É mais do que escrita pessoal ou crítica cultural. É mais do que desempenho. Mas é performativo. É transgressor. É resistência. É dialógico. É ético. É político, pessoal, corporificado, colaborativo, imaginativo, artístico, criativo, uma forma de intervenção e um apelo à justiça social” 88. Denzin NK. Performance ethnography: critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2020. (p. 2).
Barros encontrará o seu público apoiado numa história instigante que não termina; pois, de fato, a cada leitor e a cada leitura, podem surgir novas interpretações. Muitos se reconhecerão (ou não), alguns serão estimulados a compartilhar suas próprias experiências e performar novos conhecimentos, muitos se identificarão e aceitarão o diálogo, embora não sejam cientistas sociais. Afinal, o mundo se move sem fronteiras, apesar da insistência na imposição de barreiras. E ainda que sejamos estranhos um ao outro, um com o outro, somos seres cada vez mais dependentes de compreensão e solidariedade.
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- 1Levi-Strauss C. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 10; 1955.
- 2Barros NF. Existir e não pertencer: notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Campinas: Pontes Editores/Porto Alegre: Editora Rede Unida; 2023.
- 3Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural 2017; 24: 214-41.
- 4Ellis C, Adams TE, Bochner AP. Autoetnografía: un panorama. In: Calva SMB, editora. Autoetnografía: una metodología cualitativa. Cidade do México: Universidad Autónoma de Aguascalientes; 2019. p. 17-41.
- 5Miranda CF. A autoetnografia como prática contra-hegemônica. Teoria e Cultura 2022; 17:70-8.
- 6Maia S, Batista JS. Reflexões sobre a autoetnografia. Revista Prelúdios 2020; 9:240-6.
- 7Raimondi GA, Moreira C, Brilhante AV, Barros NF. A autoetnografia performática e a pesquisa qualitativa na Saúde Coletiva: (des)encontros método+lógicos. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00095320.
- 8Denzin NK. Performance ethnography: critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks: SAGE Publications; 2020.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Fev 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
28 Dez 2023 - Aceito
09 Jan 2024