Apresentação

Presentation

Presentación

Anne C. Damásio Sobre o autor

O dossiê “Gênero, saúde e corporeidades” apresenta possibilidades infindas de unir artigos de horizontes teóricos distintos, com temáticas que se separam como em linhas de fuga, e confluem para um mesmo lugar temático, a saber: a necessidade de mobilizar discussões sobre gênero, sexualidade e corporeidades em Saúde Coletiva.

O artigo “Gênero e sexualidade em Saúde Coletiva: elementos para a discussão acerca da produção do cuidado integral ao usuário masculino”, dos autores Francisco Anderson Carvalho de Lima, Jonas Torres Medeiros, Túlio Batista Franco e Maria Salete Bessa Jorge, objetiva analisar a produção do cuidado ao paciente masculino por meio da investigação micropolítica dos processos de masculinidades. Para tanto, constrói uma cartografia de como os cuidados são produzidos, a partir do dispositivo do usuário-guia, pensado como um relato de produção do cuidado. O trabalho é realizado com um usuário-guia com câncer nas redes de atenção à saúde do município de Fortaleza, Ceará, acompanhado pelos autores no serviço de saúde. Fundamental compreender que o cuidado aqui mencionado não se restringe à lógica hermética do modelo biomédico, mas o transcende em muito, estando fundado na lógica dos sucessivos encontros entre os usuários, os trabalhadores de saúde e todos os outros que atravessam esse encontro central, fundado nas narrativas – compreendidas aqui “por meio de entrevistas, diálogos ou contato silencioso”, além da utilização da ferramenta etnográfica do diário de campo. O encontro será mobilizado como “ferramenta de produção de dados, na medida em que se opera uma inserção no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde no âmbito micropolítico.”

Na perspectiva dos autores utilizados para a construção desse trabalho fundado na dimensão cartográfica, enquanto referencial teórico-metodológico, tais como Deleuze e Guatarri, “esses encontros formam redes de conexões existenciais”, o que indica que o perfil do cuidado não é o lugar físico onde este se realiza, mas um “território existencial”, no qual o trabalhador irá se inserir como “sujeito ético-político”, deslizando com ele pelos espaços onde ele estiver operando seu processo de trabalho. A cartografia estaria assentada na preocupação com esses encontros e os afetos mobilizados. Uma cartografia de como o cuidado se produz em ato. Assim, explora-se claramente as diversas possibilidades abertas pela cartografia para a produção de conhecimento em saúde.

Outro aspecto a ser considerado no presente artigo é aquele relativo à masculinidade, sendo no corpo e pelo corpo que esta é experienciada e se faz matéria, sobretudo na construção das representações do corpo masculino como um corpo ativo, “inalcançável” à dor e ao processo de adoecimento, por ser fundado na perspectiva da força. Ou seja, a corporeidade surge em sua dimensão de representações e imaginários.

Por fim, observa-se que o usuário masculino – e aqui é importante salientar, assim como os autores, que “as masculinidades encontram-se engendradas no dispositivo da sexualidade humana”, e, enquanto tal, operam regimes de enunciabilidade, fazendo-se corpo e corporificadas no tecido social – requer uma produção de cuidado pautada no que eles denominam acertadamente de uma clínica da diferença, operando na lógica da integralidade.

No artigo “O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?”, observa-se que vida de mulheres e homens trans passam necessariamente pela dimensão da construção da corporeidade enquanto produção de si, em uma perspectiva clara de obter um corpo que se coadune ao gênero desejado. Dessa feita, um caminho possível seria compreender como as mudanças corporais empreendidas se relacionam com a construção das identidades de gênero. O que me leva a pensar os trans pesquisados no artigo a partir da noção de corporeidade, na medida em que apresentá-los remeteria inevitavelmente à constatação acerca de compleições físicas que fogem ao modelo da heteronormatividade, em função de uma mera “convergência genital”.

Os autores Pablo Cardozo Rocon, Alexsandro Rodrigues, Francis Sodré, Jésio Zamboni e Mateus Dias Pedrini afirmam que a vida das pessoas trans parece ter como base central a transformação com vistas à adequação desse corpo. Para tanto, diversas estratégias serão mobilizadas nesse processo, transformações corpóreas que variam do uso de hormônios, aplicação de silicone industrial, realização de cirurgias plásticas, histerectomias e mastectomias, além da transgenitalização, entre outros recursos.

O que se observa no trabalho é que, diante dessa mobilização de estratégias diversas e das “particularidades e singularidades” no que tange aos deslizamentos com vistas às modificações corporais, é urgente que o Estado e os serviços públicos de saúde operacionalizem “tratamentos diferenciados e atendimentos especializados”. Assim, o artigo em questão, na contramão da maioria dos trabalhos que pensam a promoção e proposição de ações sobre a saúde da população trans, apresenta “propostas, soluções e reivindicações apresentadas por pessoas trans aos seus atendimentos nos serviços de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde.”

Metodologicamente, a investigação foi realizada por meio de pesquisa qualitativa e aplicação de entrevistas semiestruturadas, além da utilização de diário de campo. Os entrevistados residiam em municípios da região metropolitana da grande Vitória, Estado do Espírito Santo, com idades que variavam entre vinte e 53 anos. A análise de conteúdo foi organizada em torno de dois eixos centrais, estruturantes para a compreensão do material apresentado: “O que esperam pessoas trans para o acesso à saúde?” e “O que esperam pessoas trans do Sistema de Saúde para a transformação de seus corpos?”

As narrativas transexuais apontam necessariamente para a centralidade no que tange às modificações corporais em suas vidas; no entanto, essas modificações, em se tratando de transexuais femininos, transexuais masculinos e travestis, vão divergir, claramente. No caso dos transexuais masculinos, observa-se uma demora na incorporação das demandas desses sujeitos pelo SUS, em um registro temporal que vai de 2008 a 2013, o que vai para além das questões práticas mencionadas pelos autores, tais como a justificativa do caráter experimental das cirurgias de transgenitalização para essa parcela da população. Temos ainda uma outra dimensão não explorada que aponta para uma espécie de descaso frente aos homens trans, em um desacordo no que tange à intervenção nos corpos em transição, o que gera uma inquietação teórica na compreensão do referido tema. Como apontam os autores, “a invisibilização da sexualidade e da identidade de gênero das mulheres que não vivenciam incompatibilidade entre genitália e sexo atribuído no nascimento desdobram-se na invisibilização dos homens transexuais com seus gêneros, corpos, sexualidades e desejos.” Os autores apontam também o número incipiente de trabalhos que tratam exclusivamente das transformações corporais realizadas pelos homens trans.

Por fim, ressaltamos que as resoluções e portarias apresentadas ao longo do artigo, que possibilitaram a organização de diversos serviços assistenciais multidisciplinares voltados para a população trans esbarram no modelo biomédico curativista, não sendo eficazes na resposta às demandas dessa população, o que torna urgente um repensar sobre o caráter universal, integral e pautado na justiça e participação social.

O artigo “Construção do estereótipo do ‘macho nordestino’ nas letras de forró no Nordeste brasileiro”, dos autores Aline Veras Morais Brilhante, Juliana Guimarães e Silva, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira, Nelson Filice de Barros e Ana Maria Fontenelle Catrib, discute a forma como os diferentes discursos presentes nas diversas “tecnologias sociais” são mobilizados na produção da masculinidade – e por conseguinte na produção da feminilidade – na medida em que pensa a dimensão da violência contra a mulher sendo adensada e tecida na urdidura de músicas de forró que constroem, quando interiorizadas, representações sobre o ser masculino.

Os autores apontam para uma relação – que se estrutura sobre um certo determinismo geográfico – na medida em que a imagem de um Nordeste “rude, áspero e violento” tende a estruturar a identidade do homem nordestino, quando estes “internalizam inteiramente as características da terra”, inclusive no reforço à dimensão da violência enquanto constituinte da lógica patriarcal vigente.

Dessa feita, a música surge como operadora de processos de subjetivação por meio da sua capacidade de ser interiorizada e, com isso, forjar identidades, sendo o forró – estilo musical extremamente difundido nas regiões Norte e Nordeste – uma dessas tecnologias que irão reproduzir fartamente, em sua vasta produção, representações hierárquicas de gênero. O artigo em questão visa claramente “compreender a construção e as modificações da identidade de gênero masculina na Região Nordeste, com base no estudo das letras de forró em suas diferentes fases e décadas”.

As músicas escolhidas e detidamente analisadas foram selecionadas e compreendidas enquanto um território semiótico, o que impôs a escolha de letras de representantes icônicos de cada período apresentado, a saber: o forró tradicional, o forró universitário e o forró eletrônico.

As categorias operacionalizadas na análise em questão privilegiaram a imagética masculina, a imagética feminina, a violência de gênero e a nordestinidade, sendo que, nesse artigo em especial, as categorias referendadas são a “imagética masculina” e a “nordestinidade”.

Diante desse passeio pelos meandros do artigo, algumas questões surgem direcionando o nosso olhar a partir das reflexões suscitadas. Que visão de mundo o forró oferece aos receptores que tende a reforçar relações de dominação em determinados contextos sociais? A música aparece no artigo como objeto de apreensão da lógica patriarcal vigente – e, por conseguinte, de expressões de violência – na medida em que banaliza outras formas de violência além da violência contra a mulher e da criação recorrente de estereótipos de gênero, o que faz com que as letras apresentadas venham de encontro à luta das mulheres, dentro do movimento feminista por igualdade de gênero e promoção de direitos humanos. Como referenciado pelos autores, “Os estereótipos hegemônicos de gênero que basilaram a construção da identidade regional e de gênero do nordestino não se arrefeceram com as conquistas feministas, adaptaram-se apenas.”

Outro aspecto a ser destacado no artigo é a análise da ação dos discursos modelando corpos e assujeitando-os a uma determinada representação do masculino e do feminino, o que reforça o caráter hierárquico de generização do humano, na medida em que as músicas funcionam operando sobre os corpos e, nesse caso, adensando a imagética masculina e feminina, produzindo formas de subjetivação. Assim, os autores trazem à tona os discursos hegemônicos presentes nas letras de forró, que tendem a sustentar uma clara assimetria na relação entre os gêneros – importante salientar que, na perspectiva apresentada, não existe lugar para o que estaria no meio caminho, para o fronteiriço, para a ambiguidade –, sendo causa da violência e legitimando-a. O aspecto fulcral da análise recai sobre as tecnologias sociais, sobretudo a tecnologia de gênero, operando na construção dos corpos-homens e corpos-mulheres.

O dossiê “Gênero, saúde e corporeidades” nos presenteia com análises pautadas em horizontes teóricos diversos, com aspectos metodológicos altamente pertinentes para as pesquisas qualitativas, sobretudo aquelas realizadas no entrecruzamento entre Ciências Sociais e Humanas e Saúde Coletiva, e aqui destacamos a cartografia como uma dessas possibilidades metodológicas apresentada em toda a sua riqueza. Fundamental aludir à dimensão do gênero e sua importância na construção de análises na área da saúde, confluindo para a produção de corporeidades enquanto fenômenos socais e culturais e motivos de representações e imaginários.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2017
  • Aceito
    25 Out 2017
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