A obra “As Ciências Sociais na educação médica” é fruto da experiência de ser professor de Ciências Sociais na graduação em Medicina. Nelson Filice de Barros é graduado em Ciências Sociais e tem mestrado e doutorado em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas, onde foi orientado pelo professor Dr. Everardo Duarte Nunes, um dos pioneiros nos estudos sobre os modelos utilizados no ensino de Ciências Sociais nas escolas médicas. Desde o início da década de 1970, Nunes tem realizado pesquisas sobre o que é estudado em Ciências Sociais em Saúde e como a disciplina foi incorporada na graduação em Medicina.
Tais desdobramentos permitiram que o autor seguisse, há cerca de 15 anos, os passos de seu orientador, tornando-se então professor da disciplina de Ciências Sociais em Saúde na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas para os cursos de Medicina, Enfermagem e Fonoaudiologia. Também foi professor nos cursos da área da Saúde na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e na Universidade Federal de Uberlândia. Paralelamente, Barros segue pesquisando e tem importantes artigos publicados na área de práticas alternativas e complementares em saúde, com ênfase em yoga, acupuntura, reiki, entre outras.
A vida profissional e o ofício de professor abriram terreno fértil para que Barros realizasse uma pesquisa detalhada sobre a história das Ciências Sociais e Saúde no Brasil no currículo médico, assim como sobre o papel das Ciências Sociais na educação médica. Parafraseando Antônio Nóvoa, na obra “Vida de professores”11. Nóvoa A . Vidas de professores . Porto : Porto Editora ; 1992 ., em razão da sua prática docente, Barros traz os saberes construídos no cotidiano de pertença ao pequeno grupo de professores de Ciências Sociais nas faculdades de Medicina ao assumir-se como investigador da sua própria prática em oposição a uma visão tecnicista que lhe reservaria o papel de mero transmissor de conhecimento No entanto, importa referir que a obra não apresenta um caráter autobiográfico, tampouco utiliza o recurso metodológico de história de vida. O que de fato apresenta são substratos extremamente relevantes para se pensar as singularidades e as agruras de um profissional que atua em uma área de caráter híbrido e fronteiriço. Isso significa dizer, utilizando-se o conceito trazido pelo próprio autor (ao citar Bhabha), que tal profissional está em uma ambivalência ou em um entre-lugar, em que o pertencimento “aos departamentos ou faculdades de Medicina” pode ser consensual ou conflituoso, gerando, por sua vez, angústias e invisibilidades.
O que me faz considerar que, de fato, há de se ter muita coragem para se tocar em um tema “escondido para debaixo do tapete”; afinal, pouco se fala sobre ensinar as “ciências soft” em uma área com amplo prestígio social e que detém o poder de prescrição e uma aplicabilidade quase imediata.
A obra em questão possui cinco capítulos, que podem ser lidos separadamente, uma vez que não formam uma sequência linear. Cada capítulo pode ser entendido isoladamente à semelhança de um artigo, e por esse motivo escolhi apresentar os artigos de forma aleatória, e não em ordem crescente, por exemplo.
Talvez muitos alunos, alunas e docentes das faculdades de Medicina se perguntem o porquê de se aprender e de se ensinar Ciências Sociais e Humanas nas graduações em Saúde. Na esteira dessa indagação, o autor, no quarto capítulo, examina a percepção de docentes e de discentes sobre o ensino das Ciências Sociais na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. No caminho das reformas curriculares promovidas no ensino médico, a universidade em questão propõe a participação do docente no Faimer (Foundation for Advancement of International Medical Education and Research), um programa de desenvolvimento docente para professores da área da Saúde, realizado em dois anos e que conta com a colaboração da Universidade Federal do Ceará e com o apoio dos Ministérios da Saúde e da Educação.
Nessa formação, o autor problematiza o conhecimento e o debate quase inexistentes sobre o ensino de Ciências Sociais nas escolas médicas. Nesse período, no ano de 2012, Barros cria um questionário eletrônico sobre a percepção a respeito do ensino de Ciências Sociais no curso médico. Observa, assim, que há um consenso positivo entre os docentes sobre ensinar Ciências Sociais na graduação médica, “porém, declararam desconhecer o conjunto de saberes das ciências sociais e a sua importância para a educação médica. O que suscita uma segregação e uma falta de diálogo entre ‘Nós’ da área da saúde, médicos, e ‘Eles’, cientistas sociais” (p. 78). Já os estudantes de Medicina, de acordo com o autor, têm uma percepção negativa sobre a participação das Ciências Sociais em sua formação, ao enxergar os conceitos como triviais e irrelevantes, bem como expõem a falta de diálogo entre os conteúdos. O alun@, ao revelar a sua percepção sobre a falta de interdisciplinaridade, traz uma questão cara para a educação: o currículo cartesiano fragmentado em disciplinas não favorece em nada a interdisciplinaridade, quiçá a transdisciplinaridade. Isso significa dizer que a integração do conhecimento e o diálogo entre os conteúdos no currículo caminham a passos lentíssimos.
Seguindo a discussão sobre o currículo, no terceiro capítulo, o autor faz uma rica análise sobre as mudanças curriculares na educação médica. Desde o relatório Flexner, de 1910, diversos movimentos de reformas dos currículos médicos aconteceram. Em 1991, por exemplo, a Cinaem (Comissão Institucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) iniciou os seus trabalhos tendo como objetivo uma mudança curricular para a formação de profissionais para que os futuros médic@s estivessem mais bem preparados para as demandas sociais. Em 2001, na direção das mudanças apontadas pela Cinaem, foram produzidas modificações nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para o curso de Medicina. Foi então que, a partir de uma análise minuciosa das DCNs, Barros apropria-se do referencial teórico do tipo ideal weberiano ao afirmar que:
[...] a participação das ciências sociais no ensino médico deveria ocorrer na formação do perfil de novos médicos e médicas na ampla compreensão do processo saúde-doença-cuidado, no seu treinamento em serviço, especialmente no âmbito da atenção primária em saúde que exige intensa interação social, na composição de diferentes cenários de prática como no ensino em serviço na comunidade e na construção de um cuidado autônomo e emancipador em detrimento de um cuidado reducionista e protocolar”22. Barros NF . As ciências sociais na educação médica . São Paulo : Hucitec ; 2016 .. (p. 56)
Já no quinto capítulo, o autor faz uma extensa revisão sistemática da literatura entre os anos de 2001 e 2011, tendo em conta o ensino das Ciências Sociais na Medicina, que, de acordo com Barros, passou de “nice to know” para “need to know” (p. 100). Barros analisou 44 artigos e notou que a Sociologia da Saúde tem buscado sair do isolamento e construir pontes de comunicação com públicos acadêmicos de diferentes categorias profissionais e ditos “não acadêmicos”. Os profissionais da Medicina, por exemplo, são altamente qualificados biomedicamente, mas, de acordo com o autor, a falta de informação sobre as ciências sociais e humanas pode limitar a visão desses profissionais na construção de uma agenda positiva para a Saúde e orientada para as necessidades e defesas da população.
Os artigos mostram que há poucos profissionais de Ciências Sociais nas escolas médicas. Na FCM/Unicamp, por exemplo, este número é representado por menos de 1%, o que, para o autor, cria uma dificuldade de manutenção de projetos, já que, muitas vezes, o trabalho é feito por não especialistas, resultando, assim, em uma certa distinção entre como deve ser estudado e ensinado o conteúdo. Em outras palavras, os profissionais não especialistas na área priorizam a necessidade de o conteúdo ter uma aplicação prática imediata, o que faz com que o processo educativo possa cair no tecnicismo ou no simples processo de treinamento e repetição. Consequentemente, a falta de conhecimento de base teórica pode acarretar a falta de reflexão crítica sobre a prática ou a falta de uma reflexão emancipadora sobre conceitos primordiais para a formação dos futuros médicos e médicas.
Neste ponto, nota-se, claramente, que há poucos espaços de diálogos para os profissionais de Ciências Sociais e Humanas em Saúde para se partilhar e construir conhecimento. Prova disso é que, acessando as páginas da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), com o objetivo de pesquisar os anais dos quatro últimos encontros, verifico que há dois trabalhos sobre ensino de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, e, coincidência ou não, os dois se encontram na área de Antropologia.
O Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde supre, com ressalvas, o espaço para se dialogar e divulgar conhecimentos na área. Diante deste panorama, levanto a seguinte questão: como criar uma cultura de união, e não uma relação “nós e eles”, se há poucas, quase ínfimas, pesquisas sobre o ensino das Ciências Sociais e Humanas em Saúde e minguados espaços para diálogos e trocas de conhecimento? Ampliar a cultura do diálogo e a união entre “nós” e “eles” perpassa pela produção de conhecimento sobre o ensino, o que me faz então compactuar com as conclusões do autor. Afinal, enquanto a contratação de um cientista social parecer uma perda de vaga para a escola médica e existir um movimento que considera o ensino de Ciências Sociais e Humanas em “fruitfall unreleated and irrelevant”, (p. 147) – já que não há estudos controlados que mostrem as evidências científicas da adição de mais Ciências Sociais no currículo –, o diálogo demorará para acontecer.
Barros não deixa de esmiuçar, no primeiro capítulo, como nasceram as Ciências Sociais em Saúde no Brasil. Assim, caracteriza as três gerações de cientistas sociais na Saúde: a primeira geração surge no fim dos anos 1960, que foi o momento do ingresso dos cientistas sociais nas escolas médicas brasileiras – muito embora já fizessem parte do rol de professores das escolas de Saúde Pública. Tais profissionais participaram ativamente do movimento de reforma sanitária, da fundação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) e da construção e formulação do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS). Como complementa Barros, “foram anos mais políticos que científicos, o que promoveu um ‘estilo’ de se fazer sociologia ‘engajada’, que procurava esclarecer os elos existentes entre os problemas privados e os desafios públicos da área da saúde” (p. 27). Para compreender esse fazer sociológico, Barros utilizou o referencial teórico da sociologia pública de Michael Brurawoy.
Já a segunda geração despontou nos anos 1980 e 1990 com pesquisas sobre os conceitos e as técnicas para o funcionamento e gerenciamento do SUS. Tais profissionais fizeram a formação em programas de pós-graduação em exatas ou humanas, mas com trabalhos de campo na área da Saúde. Por fim, a terceira geração ingressou no campo da Saúde após a instituição do SUS e lhes coube a tarefa de se discutir sobre o gerenciamento econômico, politico e técnico do sistema. Importa ainda referir que tal geração tem formação em pós-graduações em Saúde Coletiva.
No segundo capítulo, o autor elabora um quadro teórico baseado nos tipos ideais weberianos, utilizando, assim, os conceitos de “credencial” (características técnicas, culturais e simbólicas dos cientistas sociais inseridos no campo do ensino em Saúde) e de “conhecimento” (produção de conceitos, métodos e técnicas voltadas para a pesquisa em Saúde), sugerindo, assim, o tipo ideal de incorporação dos cientistas sociais na área da Saúde, sendo que estes deveriam ter uma credencial forte e muito conhecimento para criar uma matriz de pensamento, “portanto, muito conhecimento e forte credencial seriam os elementos da consagração dos cientistas sociais no campo da saúde em termos do complexo político-científico, porém esse lugar existe apenas no plano ideal”. (p. 43).
O ensino de graduação em Medicina conta com quase cinco décadas, e a pós-graduação em Saúde Coletiva, com pouco mais de três décadas. Mesmo contando com pouquíssimos profissionais, o curso em questão possui ampla produção de conhecimento na área da Saúde. No entanto, o autor problematiza o fato de ainda haver um forte sentimento de “desencaixe”, principalmente por parte de cientistas sociais que se inserem no campo da Saúde por meio do seu tema de pesquisa (tais profissionais, importa mencionar, muitas vezes desistem de lecionar na área de Saúde e voltam para seus departamentos originais). Por fim, posso afirmar, em jeito conclusivo, que os cientistas sociais pertencentes ao ensino da graduação médica são de fraca credencial, de inexpressiva participação em números absolutos, mas, em contrapartida, são responsáveis por vasta e significativa produção de conhecimento.
Portanto, a obra traz reflexões fulcrais para a reflexão em torno da melhoria do ensino médico e do ensino em Saúde. Reduzir o ensino a uma única dimensão – a biomédica – talvez não seja o melhor caminho. É necessário, portanto, construir pontes e diálogos entre os diversos conhecimentos e saberes.
Referências
- 1Nóvoa A . Vidas de professores . Porto : Porto Editora ; 1992 .
- 2Barros NF . As ciências sociais na educação médica . São Paulo : Hucitec ; 2016 .
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Abr 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
26 Abr 2017 - Aceito
11 Set 2017