Resumos
Em uma pesquisa sobre a produção do cuidado nas redes de saúde, avaliou-se o papel dos colegiados de gestão em uma experiência de mudança no governo da saúde. Com metodologia qualitativa de abordagem cartográfica, observou-se que a ativação dos colegiados pela gestão visava uma dupla tarefa: por um lado, a democracia institucional, e por outro, a criação de governabilidade para a mudança proposta. No entanto, predominavam nesses colegiados pautas restritas aos agires técnicos ou profissionais, além de uma certa tensão junto com vários atores da rede. Por outro lado, também houve encontros nos quais se vivenciou novos pactos intra e entre-equipes, mediante relações simétricas e de coautoria: um analisador aqui denominado magia a-significante. Conclui-se como possível que os colegiados gestores configurem-se como cenários para uma mudança, e para tanto propõe-se o seu engravidamento com ferramentas de educação permanente em Saúde.
Cuidados integrais em Saúde; Educação permanente; Gestão em Saúde; Reforma do setor Saúde
En una investigación sobre la producción del cuidado en las redes de salud se evaluó el papel de los colegiados de gestión en una experiencia de cambio en el gobierno de la salud. Con metodología de abordaje cartográfico, se observó que la activación de los colegiados por la gestión tenía como objetivo una tarea doble: por un lado, la democracia institucional y, por el otro, crear gobernabilidad para el cambio propuesto. Sin embargo, predominaban en ellos las mismas pautas restringidas a las actuaciones técnicas o profesionales, además de una cierta tensión en relación a varios de los actores de la red. Por otro lado, también hubo encuentros en los cuales se experimentaron nuevos pactos intra y entre equipos, mediante relaciones simétricas y de coautor: Un analizador aquí denominado magia a-significante. Se concluye como posible que los colegiados gestores se configuren como escenarios para un cambio y para ello se propone que ellos contengan herramientas de Educación permanente en salud.
Cuidados integrales en salud; Educación permanente; Gestión en salud; Reforma del sector de la salud
Introdução
A gestão das mudanças na Saúde tem se configurado como uma preocupação central de governos que apostam na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), desde os primeiros movimentos da chamada “reforma sanitária” no Brasil 11. Merhy EE. São Paulo de 1920 a 1940 - A Saúde Pública como Política: os movimentos sanitários, os modelos tecnoassistenciais e a formação das políticas governamentais. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. (Coleção Clássicos da Saúde Coletiva).,22. Feuerwerker LCM, organizador. Modelos tecnoasssistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde – nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. p. 69-89. . Tais mudanças, especialmente no tocante aos modos de cuidar, aconteceriam em um passe de “mágica”, como frequentemente se deseja e até se promete, em uma disputa eleitoral? Se não, que outras possibilidades haveriam para esse conjunto de acontecimentos desejados? É possível, em certos cenários sociais, o engendramento de uma “magia” que permita novos movimentos cuidadores? Neste artigo, examinaremos aspectos específicos das mudanças nos modos de cuidar em Saúde: a aposta em outros modos de governar tais mudanças.
Tem-se considerado que a implantação de colegiados de gestão (CG) teria um papel central em uma determinada agenda. Dos CG, espera-se que sejam espaços democráticos de práticas dialógicas e solidárias, possibilitando consensos em torno de um projeto 33. Cecilio LCO. Colegiados de gestão em serviços de saúde: um estudo empírico. Cad Saude Publica. 2010; 26(3):557-66. . Mas sabe-se que também podem se tornar espaços “duros”, com muitos “não ditos” e agendas ocultas, táticas para imposição de projetos verticalizados com um caráter meramente instrumental nos quais os temas relativos ao cuidado em saúde tendem a ser pautas minoritárias ou até ausentes 33. Cecilio LCO. Colegiados de gestão em serviços de saúde: um estudo empírico. Cad Saude Publica. 2010; 26(3):557-66. .
Em uma pesquisa chamada “Observatório Nacional da Produção de Cuidado em Diferentes Modalidades à Luz do Processo de Implantação das Redes Temáticas de Atenção à Saúde no Sistema Único de Saúde (SUS): avalia quem pede, quem faz e quem usa” 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. , conduzida em um município da região sul do Brasil, estudou-se, como um dos eixos de investigação e pressupondo-se a inseparabilidade da produção do cuidado e a gestão em saúde no SUS, o papel dos CG na mudança na saúde. Problematizaram-se também as múltiplas possibilidades de se oferecer e conduzir estratégias de mudanças nos modos de governar o trabalho em saúde, analisando-se o que acontecia nos CG encontrados no trabalho de campo a partir da investigação sobre a produção do cuidado em saúde no plano da micropolítica que se constituía nos encontros entre pesquisadores-gestores-trabalhadores-usuários dos serviços daquela rede, sempre que se conformavam redes vivas de existências 55. Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp H Jr, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2017. v. 1, p. 31-42. no mundo do trabalho e do cuidado em saúde, sobre as quais as ações de mudança também almejavam incidir na perspectiva de induzir certos agires e/ou coibir outros.
A partir dos acontecimentos que os encontros no campo produziram, identificaram-se tensões relativas aos espaços-tempos políticos necessários para as mudanças, frente àqueles ali já dados: de um lado, o governo tensionando seus instrumentos de gestão a produzirem resultados sobre os processos de trabalho, e no menor tempo possível; e de outro, os de cada equipe, de cada serviço das várias instâncias de gestão, e dos usuários, todos operando nos seus agires engendrados a partir de outras necessidades e projetos, vários deles contrários ao novo projeto governamental. O presente artigo apresenta e problematiza os resultados parciais desta pesquisa no que se refere a tais CG, discutindo-os a partir de um analisador aqui nomeado magia a-significante.
Metodologia
Tratou-se de uma pesquisa qualitativa de abordagem cartográfica, tomando-se “cartografia” 66. Deleuze G, Guattari F, organizadores. Introdução: rizoma. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. p. 10-36. aqui como estratégia de produção coletiva de conhecimento a partir da experiência vivida, que demanda um olhar não restrito a um conhecimento-representação e comprometido com o direito à diferença, atento e aberto à multiplicidade, sempre colocando os próprios pesquisadores também em análise e em todas as etapas do processo de pesquisa 77. Rolnik S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2007.,88. Benet M, Merhy EE, Pla M. Devenir cartógrafa. Athenea Dig. 2016; 16(3):229-43. . Neste modo de investigação, não apenas se abdica da neutralidade do pesquisador, mas se admite uma “interferência dobrada” – da pesquisa no campo e da pesquisa no pesquisador – como estratégia ético-metodológica, entendendo-se “interferência” a partir de uma perspectiva segundo a qual, não havendo imparcialidade, toda mudança que se produz na realidade deve ser preferencialmente sutil e lenta, não devendo pretender uma intervenção propriamente dita, ou mesmo apostar em uma recognição: de onde se propõe que esta se tratou, também, de uma “pesquisa interferência” 99. Henz AO. Interferência. In: Palestra proferida no Seminário Nacional da Rede de Avaliação Compartilhada e do Observatório de Políticas e Cuidados em Saúde: no cuidado avalia quem pede, quem faz e quem usa; Rio de Janeiro; 2014.,1010. Slomp H Jr. Uma experienciação em educação permanente em saúde: ativação coletiva de projetos terapêuticos compartilhados com operação de conceitos advindos da homeopatia (tese). Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2015. .
O trabalho no campo da pesquisa neste município seguiu certas etapas 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.: 1. apresentação desta nas várias instâncias de gestão e em seus colegiados gestores, seguindo-se convite para integrarem a equipe de pesquisadores; 2. demonstração de interesse na pesquisa por gerentes de serviços; 3. apresentação da pesquisa para os trabalhadores dos serviços, seguindo-se também o convite para integrarem a equipe de pesquisadores; 4. encomenda de narrativas de casos que os trabalhadores elegessem como “difíceis ou complexos”, ou frente aos quais alegassem “esgotamento” das possibilidades de cuidado.
Quando do processamento coletivo de tais narrativas eram definidos os chamados “usuários-guia”, ou seja, aqueles cujo acompanhamento possibilitou uma abordagem cartográfica das redes de saúde 1111. Cerqueira Gomes MP, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores In-Mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. . A ferramenta metodológica usuário-guia foi utilizada para se percorrer tanto os pontos da rede de saúde que cada usuário acessou quanto aqueles que consensualmente deveriam ter sido acessados, seus nós críticos e pontos cegos ou zonas de invisibilidade. Sobretudo, os pesquisadores ativeram-se prioritariamente às conexões que o usuário realizou e que não passaram por espaços institucionais, mas que foram significativas para a produção do cuidado: as redes vivas de existência que eram construídas pelo mundo do trabalho e do cuidado em saúde 55. Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp H Jr, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2017. v. 1, p. 31-42. .
O percurso investigativo se deu pela produção de encontros ao longo de cerca de trinta meses, com equipes e CG de unidades básicas de saúde, unidades de pronto atendimento, centros de atenção psicossocial, centros de especialidades, centros de orientação e aconselhamento em HIV/AIDS, consultórios na rua, equipamentos de assistência social – Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) –, entre outros 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. . Nos CG, os pesquisadores, sempre que possível, propunham algumas questões, tais como: “Onde vocês conversam sobre estes usuários?”, “Quem os ajuda a enfrentar os problemas?”, “Que conversas acontecem nos colegiados?”, “Quem participa desses encontros?”, “Abre-se espaço neles para que as pessoas se conheçam no que fazem, problematizem, inventem e pactuem novas coisas?”, entre outras 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016. .
Para recortar o material empírico produzido, que abrange vários aspectos relacionados ao cuidado em saúde nas redes de atenção à saúde e aos modos de governar a mudança ou transformação na saúde a partir das instituições formais de governo, forjou-se aqui uma chave conceitual que articula dois elementos analisadores: mágica e magia a-significante. O primeiro enuncia uma forma de transformação tal qual aquela operada pela figura do mágico, que, aos olhos de quem vê, salta etapas, indo ao resultado desejado e alcançado expresso como uma ilusão. Já o segundo, que é o principal conceito-ferramenta desta análise e aqui operado como analisador – magia a-significante” –, foi articulado a partir de certas proposições de Carlos Castañeda 1212. Castañeda C. A erva do diabo – as experiências indígenas com plantas alucinógenas reveladas por Dom Juan. São Paulo: Círculo do Livro; 1970. e de Giles Deleuze e Felix Guattari 66. Deleuze G, Guattari F, organizadores. Introdução: rizoma. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1995. p. 10-36. , como outra forma de transformação a ser operada pelos coletivos, na qual o termo “magia” tem seu sentido definido como produção do desejo na condição de enunciado coletivo, tendo o atributo “a-significante” a função de indicar que não há intencionalidade prévia ou um glossário de sentidos a priori . Mudanças pensadas como magia a-significante, neste trabalho, dizem respeito a movimentos a partir do território do não intencional, do não racional e do não cognitivamente representável da realidade, mas que se afirma como criação desejante.
Utilizou-se como hipótese a de que os CG podem efetivamente constituírem-se em dispositivos produtivos para a gestão da mudança na saúde, a depender do modo como tais coletivos são engendrados e operados. Designou-se neste artigo o grupo de alta direção pela letra G maiúscula, e os demais gestores e trabalhadores da rede de serviço, entre outros atores sociais, com a letra g minúscula 1313. Matus C. Política, planejamento e governo. Tomo II. Brasília: IPEA; 1996. . Utilizou-se tanto G quanto g na condição de sujeitos coletivos e, como Matus, pressupôs-se que todos governam, formulação que vai ao encontro de certa concepção de educação permanente em saúde: a de que “todos fazem gestão” 1414. EPS em Movimento. Todo mundo faz gestão [Internet]. 2014 [citado 5 Abr 2018]. Disponível em: http://eps.otics.org/material/entrada-textos-em-cena/arquivos-em-pdf/todo-mundo-faz-gestao .
http://eps.otics.org/material/entrada-te... .
O trabalho de campo foi realizado entre maio de 2014 e dezembro de 2016 na rede pública de saúde de um município do sul do Brasil. Os diários de campo dos pesquisadores e as narrativas multivozes obtidas após diferentes encontros foram a matéria-prima estruturante para o recorte e as reflexões apresentados a seguir. A pesquisa que originou este artigo respondeu ao preconizado pela Resolução no 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil, tendo sido aprovado seu projeto em Comitê de Ética em Pesquisa sob o no 27159214.9.0000.5291. O estudo foi financiado pelo Ministério da Saúde.
Resultados
Um dos aspectos centrais do então projeto de governo da rede pesquisada era uma retomada dos atributos clássicos da atenção primária à saúde (APS), especialmente quanto à coordenação da atenção 1515. Starfield B. Coordenação da atenção: juntando tudo. Atenção primária - equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco-Ministério da Saúde; 2002. p. 365-415. , mediante a busca de uma certa excelência técnico-clínica (carteira de serviços, matriciamento com foco clínico, etc.) aliada a uma eficiência/efetividade na prestação dos serviços (flexibilização/ampliação do acesso, regulação em vários âmbitos, etc.). Este projeto produzia uma tensão junto a muitas equipes da rede básica que, no município em estudo, encontravam-se há mais de uma década operando um modelo que se dizia orientado por correntes como as Ações Programáticas 1616. Nemes MIB. Prática programática em saúde. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB, organizadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 48-65. , a Vigilância da Saúde 1717. Teixeira CCF, Paim JS, Vilasbôas AL. SUS, modelos assistenciais e vigilância da saúde. Inf Epidemol Sus. 1998; 7(2):7-28. , entre outras; porém, na prática configurava-se, segundo a leitura que alguns membros de G faziam naquele momento, como ainda burocratizado e menos resolutivo do que poderia ser 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.:
[...] a rede básica era organizada somente para dar conta dos programas ou para descentralizar o hospital. […] Agora começamos a mexer no principal “sintoma” que era visível na rede básica: a restrição do acesso. [...] Propusemos para as equipes que atendessem a todos que necessitassem. Apostamos muito na clínica da enfermagem [...]. Mexemos na carteira de serviços para ampliar as ofertas que havia nas unidades [...], criamos uma nova estrutura na Secretaria para a atenção primária. (Fragmentos de diários de campo)
Tal tese era corroborada por alguns problemas apontados nas demandas dos equipamentos 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.: “A partir de 2006, […] as [Unidades de Pronto Atendimento] UPAs ficaram sobrecarregadas, enquanto que, nas [Unidades Básicas de Saúde] UBS, mais ou menos 90% das consultas eram de programas.” (Fragmentos de diários de campo). Portanto, o novo governo detectava problemas a partir de certo ponto de vista e propunha medidas de enfrentamento destes na dimensão técnica: qualificação da clínica e intervenções nos fluxos da rede. G apostava que esta seria uma estratégia eficiente para fazer acontecerem novos processos de trabalho.
Os distritos sanitários eram vistos como um importante espaço para se operar mudanças como esta; no entanto, estes, tais como encontrados pelo novo governo, eram avaliados por G como estruturas igualmente centradas na racionalidade gerencial dominante 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.: Sua atuação na agenda da assistência ficou restrita ao modelo taylorista de supervisão das UBS: "havia contrato de gestão do distrito com as UBS, baseado em conjuntos de indicadores que monitoravam a produção" (Fragmentos de diários de campo).
Mesmo assim, G entendia que ali estaria um espaço estratégico para a instalação de “verdadeiros” colegiados 44. Merhy EE, Bertussi DC, Feuerwerker LCM, Slomp H Jr, Cruz KT, Land MG. Observatório nacional da produção de cuidado em diferentes modalidades, à luz do processo de implantação das redes temáticas de atenção à saúde no Sistema Único de Saúde: avalia quem pede, quem faz e quem usa [relatório de pesquisa]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2016.: “É o distrito que [...] articula o apoio necessário para a rede. É necessário construir um caminho na gestão para enfrentar os desafios de mudar o modelo.” (Fragmentos de diários de campo).
Membros de G também analisavam o cenário para além do plano gerencial: "Há uma cultura muito estruturada baseada em regras autoritárias, castradora da liberdade das pessoas; mas se está enfrentando isso, se está dando liberdade para o pessoal fazer de forma diferente" (Fragmentos de diários de campo).
Assim, a transformação das tradicionais reuniões administrativas das equipes gestoras em todos os âmbitos da gestão, mediante a implantação de “verdadeiros” CG, visava uma dupla tarefa: por um lado, implantar a “democracia institucional” para o conjunto dos trabalhadores da rede, ponto central do discurso político e compromisso eleitorais; por outro, criar condições para que o grupo G alcançasse maior capacidade para governar a mudança proposta.
A estratégia escolhida para ativar os CG distritais, que, por sua vez, ativariam os locais, foi a do “apoiador institucional”, técnicos diretamente vinculados a G que operariam um “contágio” de ideias e desejos, mas que também se viam convocados (em função do caráter da mudança?) à verificação do cumprimento de novos protocolos, normas e procedimentos, sempre no sentido do aprimoramento do funcionamento da gestão 1818. Bertussi DC. O apoio matricial e a produção de coletivos e na gestão municipal em saúde [tese]. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2010. . Embora imbuídos de missão democratizante, tais apoiadores muitas vezes enfrentavam forte oposição e alegavam que a própria estratégia compartilhada de governo ou era vista como ausência de projeto ou como fraqueza.
De um modo geral, não predominava nos colegiados percorridos “uma perspectiva mais emancipatória [...] de práticas solidárias, dialógicas, visando à construção de consenso” 33. Cecilio LCO. Colegiados de gestão em serviços de saúde: um estudo empírico. Cad Saude Publica. 2010; 26(3):557-66.: tais espaços pareciam habitados primordialmente por pautas exteriores a eles, burocráticas e em geral definidas por (ou – e não raro – atribuídas a) G, além de algumas convocatórias cartoriais e até autoritárias, das quais talvez a cúpula G nem tivesse conhecimento. Ou seja, não predominava a simetria das relações nos CG, pois mesmo que ela fosse aparente, o era mais em função de não ditos.
A pesquisa também mostrou que havia pouco espaço, na maior parte dos encontros vivenciados pela pesquisa em CG, para se debater a realidade cotidiana local. Eventualmente se discutia algum caso dito complexo, mas o tema do cuidado invariavelmente se restringia aos aspectos clínicos de casos narrados a partir do olhar do trabalhador, excluindo-se a perspectiva do usuário e sua rede viva de existência, resultando menos no acúmulo de reflexões para se repensar as práticas em geral do que na solução para “aquele caso” e com base principalmente em um repertório apriorístico de respostas, plano no qual deveria incidir a normatividade. Assim, observou-se forte presença de discussões restritas ao domínio dos agires técnicos ou profissionais, em detrimento de uma dimensão comum a todos (incluindo os usuários); e equipes reféns de uma rotina repleta de tarefas, justificável pela “demanda” – mas que não gerava um aprendizado reflexivo – e que produzia uma sensação de frustração e uma desconfiança diante de uma possível mudança desta realidade. A mágica não parecia se concretizar naqueles espaços-tempos.
Por outro lado, no cotidiano dos serviços havia também elementos da mudança proposta sendo aceita e já acontecendo, ainda que minoritariamente, em serviços nos quais G apontava como um dos “modelos” a serem seguidos. Ao longo da pesquisa, verificou-se que algumas dessas experiências já aconteciam antes mesmo do novo governo, pois tratava-se de equipes que já discutiam anteriormente seus incômodos e problemas cotidianos, ou que ansiavam por esta chancela institucional para fazê-lo. Em um dos encontros produzidos pela pesquisa, quando se reuniu as equipes de uma UPA e de uma UBS para se debater a situação de um usuário-guia, com facilidade a equipe de pesquisa pôde pautar temas como o modo de vida do usuário, como este se constituía em sua rede viva de existência, o que era problema para ele para além de sua doença e tudo o que afetava a equipe em seu cuidado. Nesses momentos, os pesquisadores vivenciaram intensa produção coletiva da gestão do cuidado, e tais interferências configuraram-se como centrais para a construção dos usuários-guia. Novos pactos intra e entre equipes se mostraram possíveis. Magia a-significante, diríamos aqui.
No mais das vezes, o campo da pesquisa era habitado por equipes e usuários no exercício do seu autogoverno 1919. Franco TB, Merhy EE. O reconhecimento de uma produção subjetiva do cuidado. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 151-71. , resistindo às intervenções que teriam sido formuladas de modo centralizado e desconstruindo sistematicamente, na sua prática cotidiana, o discurso de G: era evidente uma forte tensão entre G e muitos dos g. A proposta para a qualificação da APS, por exemplo, que incluía um melhor atendimento à livre demanda ou demanda espontânea, era com frequência apontada pelas equipes locais como uma simples “operação limpa banco”, ou uma extinção deliberada dos “programas”, ou seja, das únicas ações que eram consideradas por elas como de “promoção da saúde”. Em tensões desse tipo, as intervenções governamentais pareciam ser recebidas como projeto de um “outro”, operadas como demanda para quem não o formulou.
Discussão
Não raro, quando se alcança o lugar de governo e se está implicado com o projeto do SUS e da reforma sanitária 11. Merhy EE. São Paulo de 1920 a 1940 - A Saúde Pública como Política: os movimentos sanitários, os modelos tecnoassistenciais e a formação das políticas governamentais. 2a ed. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. (Coleção Clássicos da Saúde Coletiva).,22. Feuerwerker LCM, organizador. Modelos tecnoasssistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde – nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. p. 69-89. , tenta-se produzir uma mudança rápida, como em um passe de mágica, pois espera-se que a realidade efetivamente melhore e que a produção de saúde para os usuários se concretize. Tal posicionamento era evidente durante todo o campo da pesquisa, na postura – de um otimismo evidente – de muitos dos membros de G frente às mudanças propostas. No entanto, em tais processos entende-se que há sempre um risco não negligenciável de se governar no plano “moral”, pois, mesmo que isso não seja dito, espera-se uma “adesão automática e irrestrita” dos trabalhadores em geral ao novo projeto 2020. Cecilio LCO. O “trabalhador moral” na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):345-51. .
Durante o período de campo da pesquisa, a “mágica” esperada demorava a se concretizar, e muitos g seguiam com suas práticas, algumas cuidadoras, outras nem tanto, apesar das apostas de G, que muitas vezes parecia operar no plano da abstração das vidas que efetivamente eram vividas pelos trabalhadores e usuários 2121. Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar: conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. . Tal postura não apenas expressa a distância entre esses mundos (governo X cuidado em saúde), mas que tende também a impedir o reconhecimento por G dos demais projetos em disputa – seja nos espaços de gestão ou nos de produção do cuidado – como legítimos 22. Feuerwerker LCM, organizador. Modelos tecnoasssistenciais, gestão e organização do trabalho em saúde – nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do SUS. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida; 2014. p. 69-89.,2121. Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar: conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. . Se a mágica não se mostrava possível, uma magia a-significante parecia ainda mais distante.
Verificava-se, dessa forma, que a aposta na agenda “gestão colegiada”, em si, embora abrisse importantes possibilidades aqui ou ali, não se mostrava suficiente para garantir a mudança desejada, e assim algumas novas hipóteses da pesquisa eram elaboradas durante o próprio trabalho de campo, de acordo com a proposta cartográfica. Visualizando uma superação tanto da racionalidade gerencial dominante quanto da autogestão dos coletivos, Campos 2222. Campos GWS. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad Saude Publica. 1998; 14(4):863-70.,2323. Campos GWS. Cogestão e neoartesanato: elementos conceituais para repensar o trabalho em saúde combinando responsabilidade e autonomia. Cienc Saude Colet. 2010; 15(5):2337-44. propõe a ampliação da democracia institucional ou organizacional mediante, entre outras ações, um certo equilíbrio entre a produção de graus de autonomia e a responsabilidade sanitária, processo a ser articulado durante atividades de planejamento, pactuação de contratos de metas e avaliação. Esse método, que o autor chama cogestão, sem dúvida uma aposta relevante, potente e coerente, ao menos no plano macropolítico, era exaustivamente operado pelos “apoiadores institucionais” vinculados a G e, conforme relatamos acima, por um lado deu visibilidade e apoiou desejos e iniciativas que aconteciam ou ansiavam por acontecer, mas, por outro, não parecia facilitar a disputa, na multiplicidade do real, com tantos projetos de ordem corporativa ou profissional-centrados, como certos autoritarismos constitutivos da própria máquina governamental. Ou seja, a “autogestão” que o projeto de cogestão pretendia neutralizar, por vezes cuidadora e outras não centrada mesmo no usuário, permanecia livre em sua agenda de impedir qualquer mudança, negando-se a assumir sua “responsabilidade sanitária”.
As tensões interditoras não estariam justamente emergindo visto que, em mudanças de tal natureza, há que se render a múltiplos tempos, como o institucional, o político e o histórico 2424. Testa M. Pensar em saúde. Porto Alegre: Artes Médicas; 1992. , e porque em tais cenários sociais talvez haja ainda outros tempos e projetos desejantes a serem considerados? Ou porque, de outro lado, os CG teriam na figura do “coordenador”, inevitavelmente, uma vinculação governamental 33. Cecilio LCO. Colegiados de gestão em serviços de saúde: um estudo empírico. Cad Saude Publica. 2010; 26(3):557-66. que cristalizaria sua relação com os demais trabalhadores como de caráter assimétrico? A equipe de pesquisa, em seu percurso cartográfico, produzia a cada passo mais questões do que respostas, tensionando-se também estranhamentos quanto às práticas gerenciais vividas anteriormente pelos próprios pesquisadores, em suas experiências pregressas como gestores em saúde, incluindo-se a de um dos autores em uma fase anterior daquele mesmo governo: o colocar-se em autoanálise como interferências da pesquisa sobre os pesquisadores e ferramenta de investigação.
Ao se tomar a prática gerencial em si como objeto de reflexão compartilhada, em um primeiro momento com as equipes, mas também com G em geral, foi possível explorar-se novos sentidos e novas possibilidades de interferências mútuas, assim como propor que um maior coeficiente de simetria nas relações colegiadas abre espaços-tempos para as singularidades e para a invenção de novas configurações do próprio projeto de governo, ampliando sua autoria 2525. Baduy RS, Feuerwerker LCM, Zucoli M, Borian JT. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad Saude Publica. 2011; 27(2):295-304. . Isso implica em afirmar que qualquer mudança, se não for permanentemente problematizada/processada com os trabalhadores e usuários que, independentemente de a desejarem a priori ou não, a viverão e serão dela agentes-chave, tende a ser recebida com desconforto e até a ser rechaçada, pois não se consideraram os diferentes tempos que os sujeitos individuais e coletivos precisam para viverem deslocamentos de seus territórios instituídos, arriscando novos movimentos sempre que, mais uma vez, assim o desejarem. Oferecer o engendramento de uma magia a-significante, propomos, pode ser simplesmente, quando se chega na condição de novo governo, levar em conta os significados dos vários modos de sentir/pensar/fazer já instaurados nas vidas de trabalhadores e usuários que a recebem, bem como os investimentos prévios que ali foram acumulados, para só então se negociar qualquer mudança.
Esse nos parece ser um ponto-chave que qualquer gestão que visa implantar algo como a “democracia institucional” deve considerar: o plano micropolítico da vida. Ignorar ou negligenciar essa dimensão da produção desejante coletiva implica apostar em mudanças de tal ordem tão somente a partir de um plano representacional da realidade social. Consequentemente, o apoiador institucional citado, na perspectiva aqui proposta, poderia ser mais do que um operador da agenda estratégica de G no território. Pelo contrário, poderia se deslocar do lugar do “estratégico” (o mundo do governo) e abrir passagens/aberturas em si mesmo para se deixar “in-mundicizar” da perspectiva do outro (equipes de saúde) 1111. Cerqueira Gomes MP, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores In-Mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. . Essa radicalização da democracia na organização de saúde implicaria que este mesmo apoiador fosse capaz de facilitar o diálogo entre esses dois mundos. E, porque não, incluindo sempre um terceiro mundo, o dos usuários, no intuito de potencializar a porosidade dos espaços-tempos nas diversas instâncias de gestão e do próprio governo G, tratando os problemas/desconfortos colocados por quem trabalha e por quem usa como centrais nas formulações do modelo tecnoassistencial (de “tecnológico”, não de “técnico”), e não como desinteresse ou desinformação a serem dominados. Talvez essa seja uma forma de interrogar o instituído da gestão que abstrai as experiências vividas por profissionais de saúde e usuários, desconsiderando-as como as verdadeiras potências vivas que fabricam o cuidado ponto a ponto em todo o sistema de saúde, e que devem ser apoiadas e potencializadas 2121. Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar: conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2016. .
Uma mudança para produzir cuidado em saúde pressupõe um intenso vivido de novas relações e de novas possibilidades de mundos, o que demanda de todos os envolvidos um permanente interferir e deixar-se interferir no mundo da saúde, processo que temos chamado de in-mundicização 1111. Cerqueira Gomes MP, Merhy EE, organizadores. Pesquisadores In-Mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014. , como nos dizem as próprias experiências efetivamente cuidadoras vivenciadas na pesquisa. Propomos que, se a “função governo” é imanente não só a G, mas também a múltiplos espaços-tempos não governamentais, porque todos fazem gestão, sim, é possível que os CG configurem-se como cenários para a produção de acontecimentos nos quais cuidar seja a “alma” do agir coletivo em saúde 2626. Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver – SUS Brasil: Cadernos de Textos. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p.108-37. . No entanto, para tanto há que se “engravidar” os CG para torná-los “rodas” de negociação, possibilitando acordos e flexibilidades; ou quem sabe investir em fazer emergir neles verdadeiras práticas de “praças”, pois não raro eram vários os coletivos em intensiva produção coletiva, diríamos, em franca intercessão 2727. Merhy EE. Engravidando palavras: o caso da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: UERJ-IMS; 2005. p. 195-206.,2828. Merhy EE. Público e privado: entre aparelhos, rodas e praças. In: Aciole GG. A saúde no Brasil: cartografias do público e do privado. São Paulo: Hucitec; 2006. (Prefácio). . Ou seja, propomos que é possível torná-los repletos de novos sentidos para a produção de mudanças emancipatórias, para a invenção de novas práticas de aprender e de cuidar seguindo-se outros modos éticos de agir sobre o viver de si e do outro, uma magia a-significante com destaque para a potência do trabalho vivo em ato, com simetria, compartilhamento e protagonismo efetivos de todos os envolvidos, enquanto desejantes e coautores, e em todos os espaços-tempos, sejam eles institucionalizados ou não 2929. Seixas CT, Merhy EE, Baduy RS, Slomp H Jr. La integralidad desde la perspectiva del cuidado en salud: una experiencia del Sistema Único de Salud en Brasil. Salud Colect. 2016; 12(1):113-23. .
A dimensão macropolítica de uma realidade social, com seu quantitativo de pessoas, suas estruturas físicas, recursos materiais, normas e fluxos estabelecidos, entre outros componentes, é rapidamente apreensível por nossas retinas e aparentemente compreensível por nosso equipamento cognitivo, e, obviamente concordamos, deve mesmo ser alvo de intervenções de governo, pois carências e fragilidades nesse plano põem a perder qualquer projeto de produção de saúde. No entanto, entendemos como fundamental que se consiga fazer com que todo projeto mudancista tenha efeitos nos processos de subjetivação e na produção desejante dos coletivos, sendo o cuidado ao usuário o centro de gravidade inegociável 1919. Franco TB, Merhy EE. O reconhecimento de uma produção subjetiva do cuidado. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 151-71.,2929. Seixas CT, Merhy EE, Baduy RS, Slomp H Jr. La integralidad desde la perspectiva del cuidado en salud: una experiencia del Sistema Único de Salud en Brasil. Salud Colect. 2016; 12(1):113-23. .
Nesse sentido, seria também possível engendrar CG potentes quanto à produção coletiva, sem, por exemplo, alterar a verticalidade das decisões? Acreditamos que não, já que a horizontalidade e a simetria nas relações é potencializadora de encontros entre os infindáveis pontos de vista e projetos, de onde emergem as invenções de outras configurações para o projeto de mudança no sentido da ampliação de sua autoria. Isso não esvazia o papel estratégico da cúpula governamental G que, de seu lugar, além de se ocupar do arcabouço macropolítico, imprescindível mas que não produz a mudança por si, pode garantir politicamente os arranjos que possibilitem tais movimentos coletivos, assim como as pautas relacionadas ao cuidado em saúde, centrais, ao nosso ver, quando se pretende mudanças no saber-fazer em saúde.
De qualquer maneira, os autores-pesquisadores não teriam a pretensão de respostas e receitas para o enfrentamento da problemática aqui colocada. Uma possibilidade para se fazer acontecer essa magia a-significante nos colegiados seria, acreditamos, a ativação, nos encontros entre trabalhadores, usuários e gestores, de estratégias de Educação Permanente em Saúde (EPS) como caixa de ferramentas de gestão 3030. Merhy EE. Educação permanente em movimento – uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saude Redes. 2015; 1(1):7-14. . A partir do projeto ético-estético-político(g(g)Este conceito, no contexto deste artigo, implica assumir que qualquer ação na área da saúde (cuidar, governar ou pesquisar) deve pautar-se nas dimensões ética (usuários tidos como finalidade para qualquer ação, e usuários e trabalhadores tidos como interlocutores válidos), estética (intensidades da vida e do cotidiano do trabalho como orientadoras das práticas de cuidado, gestão e pesquisa) e política (privilégio dos espaços-tempos coletivos para a construção da mudança), além da centralidade em toda e qualquer vida como digna de ser vivida, transversalizando essas dimensões. Inspirado em produções como a de Felix Guattari, tem sido utilizado como um operador no âmbito da Saúde Coletiva e, nesta reflexão, como agenciador de sentidos para a mudança em saúde.) já desenvolvido acima, buscar a mudança a partir das relações, delicadamente, sem intervenções intempestivas, começando pela discussão do já experienciado ali onde se opera a mudança, refletindo-se sobre sua necessidade ou não naquele momento, e fazê-la “com” as pessoas, em lugar de se fazer “por” elas 1818. Bertussi DC. O apoio matricial e a produção de coletivos e na gestão municipal em saúde [tese]. Rio de Janeiro: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2010.,2525. Baduy RS, Feuerwerker LCM, Zucoli M, Borian JT. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad Saude Publica. 2011; 27(2):295-304. . Ou seja, entendemos magia a-significante no sentido da produção de movimentos a partir de encontros intensivos entre todos os envolvidos (gestores, trabalhadores e usuários), não apenas colocando-se pessoas “junto”, mas tendo-as na condição de protagonistas para se “fazer junto”; único caminho, acreditamos, capaz de produzir uma mudança de tal magnitude. O grupo gestor que reconhece esses múltiplos planos da realidade social inevitavelmente muda seu modo de governar e inclui as disputas cotidianas não como insurgências a serem debeladas, mas como produção, ainda que às vezes de início não cuidadoras, posto que certas transformações só podem ser construídas em cooperação.
Agradecimentos
A todo o coletivo pesquisador da Rede de Avaliação Compartilhada, incluindo os trabalhadores da saúde, da atenção e da gestão; e, especialmente, os usuários.
Referências
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- 26Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver – SUS Brasil: Cadernos de Textos. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. p.108-37.
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- 28Merhy EE. Público e privado: entre aparelhos, rodas e praças. In: Aciole GG. A saúde no Brasil: cartografias do público e do privado. São Paulo: Hucitec; 2006. (Prefácio).
- 29Seixas CT, Merhy EE, Baduy RS, Slomp H Jr. La integralidad desde la perspectiva del cuidado en salud: una experiencia del Sistema Único de Salud en Brasil. Salud Colect. 2016; 12(1):113-23.
- 30Merhy EE. Educação permanente em movimento – uma política de reconhecimento e cooperação, ativando os encontros do cotidiano no mundo do trabalho em saúde, questões para os gestores, trabalhadores e quem mais quiser se ver nisso. Saude Redes. 2015; 1(1):7-14.
- (g)Este conceito, no contexto deste artigo, implica assumir que qualquer ação na área da saúde (cuidar, governar ou pesquisar) deve pautar-se nas dimensões ética (usuários tidos como finalidade para qualquer ação, e usuários e trabalhadores tidos como interlocutores válidos), estética (intensidades da vida e do cotidiano do trabalho como orientadoras das práticas de cuidado, gestão e pesquisa) e política (privilégio dos espaços-tempos coletivos para a construção da mudança), além da centralidade em toda e qualquer vida como digna de ser vivida, transversalizando essas dimensões. Inspirado em produções como a de Felix Guattari, tem sido utilizado como um operador no âmbito da Saúde Coletiva e, nesta reflexão, como agenciador de sentidos para a mudança em saúde.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Abr 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
07 Ago 2017 - Aceito
30 Abr 2018