Resumos
Discutem-se ações de comunicação em saúde nas campanhas de prevenção à leptospirose em Maceió. O método consistiu na análise multimodal de cinco cartazes, dois fôlders e um panfleto utilizados nessas campanhas entre 1996 e 2017 e da análise do conteúdo de duas entrevistas realizadas com usuários que foram acometidos pela doença. Resultados mostram que a finalidade original dos materiais altera seu efeito discursivo e que o enfoque visual predominante é o rato; as campanhas fazem uso de um modelo comunicacional unilateral, diretivo e de impacto potencialmente baixo, ratificando achados anteriores da literatura; falta correspondência entre as ações propostas e as condições de vida dos usuários; e a responsabilidade pela prevenção é atribuída majoritariamente à população em situação de vulnerabilidade, isentando-se o Estado de ações que fomentem o diálogo. As potenciais implicações psicossociais desse processo são discutidas.
Comunicação em saúde; Prevenção primária; Leptospirose
Se discuten acciones de comunicación en salud en las campañas de prevención de la leptospirosis en Maceió. El método consistió en el análisis multimodal de cinco carteles, dos folletos y un panfleto utilizados en esas campañas entre 1996 y 2017 y del análisis del contenido de dos entrevistas realizadas con usuarios afectados por la enfermedad. Los resultados muestran que: la finalidad original de los materiales altera su efecto discursivo y que el enfoque visual predominante son los ratones; las campañas utilizan un modelo de comunicación unilateral, directivo y de impacto potencialmente bajo, ratificando hallazgos anteriores de la literatura; falta correspondencia entre las acciones propuestas y las condiciones de vida de los usuarios y la responsabilidad por la prevención se atribuye mayoritariamente a la población en situación de vulnerabilidad, exentándose el Estado de acciones que fomenten el diálogo. Se discuten las potenciales implicaciones psicosociales de ese proceso.
Comunicación en salud; Prevención primaria; Leptospirosis
Introdução
Na 10a Conferência Nacional de Saúde, foram reconhecidas as limitações da participação dos diferentes segmentos da sociedade nas conquistas do Sistema Único de Saúde (SUS) e a necessidade de implantar estruturas gerenciais, operacionais e de garantia de recursos para fomentar essa participação por meio de ações voltadas à informação, educação e comunicação em saúde. Enquanto a informação em saúde foi associada à organização de sistemas de dados para apoiar a tomada de decisão, a educação e comunicação em saúde foram paulatinamente integradas, desde a associação da educação sanitária até as técnicas de propaganda11. Brasil. Ministério da Saúde. Informação, educação e comunicação: uma estratégia para o SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 1996. .
Tais ações visam distribuir de maneira equânime a informação sobre o processo saúde-doença de modo a promover a adoção de práticas de cuidado em saúde que garantam a manutenção e melhoria da qualidade da vida. A estratégia é fundamental porque o SUS apenas se efetiva quando seus princípios e práticas circulam e são visibilizados e apropriados pelos grupos aos quais se destina, o que coloca a comunicação como um dos principais instrumentos para a sua concretização e aperfeiçoamento22. Araújo I, Cardoso J. Comunicação e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007. .
Nesse contexto, as estratégias de prevenção pautadas em campanhas assumem um lugar de destaque. Ao contrário das intervenções em corpos individuais, fomentadas pelo modelo biomédico da clínica, o modelo campanhista enfoca a população como público-alvo e objeto de intervenção. Para isso, visa à organização e higienização de espaços públicos com base nos paradigmas epidemiológico e sanitário, seja por meio de programas de vacinação obrigatória, desinfecção de espaços públicos e domiciliares ou divulgação de informações relevantes para o manejo de doenças33. Matta G, Morosini M. Atenção à saúde. In: Pereira IB, França JC, organizadores. Dicionário da educação profissional em saúde. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009. p. 39-44. .
No escopo específico dessas práticas de divulgação, os materiais impressos (cartazes, panfletos e fôlders) são parte de uma linha de ação que prima pela democratização da comunicação por meio do acesso ampliado e facilitado a informações necessárias ao exercício do controle social. Ao contrário de outras mídias, os informes públicos impressos oferecem a oportunidade de acessar as informações expressas sem precisar pagar por elas. Além disso, são materiais de fácil manejo e disposição em ambientes públicos como hospitais, centros de saúde e escolas44. Oyebode O, Unuabonah F. Coping with HIV/AIDS: a multimodal discourse analysis of selected HIV/AIDS posters in south-western Nigeria. Discourse Soc. 2013; 24(6):810-27. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0205.
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Esses materiais impressos são centrais nas práticas de comunicação e educação em saúde, mas também apresentam um uso deficiente e/ou de alcance e eficácia limitados. Essa estratégia de intervenção tem sido fundamentada por um modelo unilinear de comunicação, cuja meta é única e exclusivamente transmissional, com foco em um público-alvo fictício e homogêneo, quando não, estereotipado55. Freitas FV, Rezende Filho LA. Modelos de comunicação e uso de impressos na educação em saúde: uma pesquisa bibliográfica. Interface (Botucatu). 2011; 15(36):243-56. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832010005000044.
http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832010... , sendo necessário investir em seu aprimoramento. Tal investimento nessas ações que ampliam a circulação de informações e não oneram o público-alvo são fundamentais em uma sociedade na qual o conhecimento sobre determinadas mazelas passa pela sua visibilidade e pela criação de círculos de atenção social, nas quais doenças ou condições de menor apelo político-midiático, geralmente relacionadas a condições de pobreza e iniquidade, são negligenciadas66. Cavaca A, Vasconcellos-Silva P. Doenças midiaticamente negligenciadas: uma aproximação teórica. Interface (Botucatu). 2015; 19(52):83-94. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0205.
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A maioria dos estudos que enfoca os materiais impressos em campanhas preventivas são de doenças como a esquistossomose77. Lefévre F. Análise de cartazes sobre esquistossomose elaborados por escolares. Rev Saude Publica. 1980; 14(3):396-403. , 88. Ribeiro PJ, Aguiar LA, Toledo CF, Barrosa SM, Borges D. Programa educativo em esquistossomose: modelo de abordagem metodológica. Rev Saude Publica. 2004; 38(3):415-21. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102004000300012.
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102004... , a dengue99. Damasceno N, Müller N, Sales A, Sales C, Reis C. Conteúdos de aprendizagem presentes em um material educativo impresso sobre combate à dengue. Interfaces Educ. 2016; 7(20):178-94. doi: https://dx.doi.org/1026514/inter.v7i20.1103.
https://dx.doi.org/1026514/inter.v7i20.1... e a aids44. Oyebode O, Unuabonah F. Coping with HIV/AIDS: a multimodal discourse analysis of selected HIV/AIDS posters in south-western Nigeria. Discourse Soc. 2013; 24(6):810-27. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0205.
https://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014... . Nossa meta neste trabalho é ampliar esse campo ao explorar uma enfermidade com pouca visibilidade: a leptospirose humana. Estudos com foco em materiais sobre a leptospirose ainda são escassos e decorrentes, principalmente, de trabalhos com educação ambiental1010. Mesquita MO, Trevilato GC, Saraiva LH, Schons MS, Garcia MIF. Material de educação ambiental como estratégia de prevenção da leptospirose para uma comunidade urbana reassentada. Cad Saude Colet. 2016; 24(1):77-83. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X2016000x0428.
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462X20160... , o que chama a atenção para a necessidade de entender como tal questão tem operado no âmbito do setor saúde.
A relevância em estudar essa doença decorre do fato de ela ser potencialmente letal e de sua patogênese e impacto na saúde da população ainda serem pouco conhecidos1111. Ko I, Goarant C, Picardeau M. Leptospira: the dawn of the molecular genetics era for an emerging zoonotic pathogen. Nat Rev Microbiol. 2009; 7(10):736-47. doi: http://dx.doi.org/10.1038/nrmicro2208.
http://dx.doi.org/10.1038/nrmicro2208... . A leptospirose é influenciada por condições comportamentais1212. Navegantes de Araújo W, Finkmoore B, Ribeiro GS, Reis RB, Felzemburgh RDM, Hagan JE, et al. Knowledge, attitudes, and practices related to leptospirosis among urban slum residents in Brazil. Am J Trop Med Hyg. 2013; 88(2):359-63. doi: http://dx.doi.org/10.4269/ajtmh.2012.12-0245.
http://dx.doi.org/10.4269/ajtmh.2012.12-... e socioambientais1313. Guimarães R, Cruz O, Parreira V, Mazoto M, Vieira J, Asmus C. Análise temporal da relação entre leptospirose e ocorrência de inundações por chuvas no município do Rio de Janeiro, Brasil, 2007-2012. Cienc Saude Colet. 2014; 19(9):3683-92. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014199.06432014.
https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014... e surtos têm ocorrido em países desenvolvidos, como a França1414. Socolovschi C, Angelakis E, Renvoisé A, Fournier P, Marié JL, Davoust B, et al. Strikes, flooding, rats, and leptospirosis in Marseille, France. Int J Infect Dis. 2011; 15(10):e710-5. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.ijid.2011.05.017.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ijid.2011.05... , e países em desenvolvimento com altos índices de desigualdade social, como as Filipinas1515. Amilasan AS, Ujiie M, Suzuki M, Salva E, Belo MC, Koizumi N, et al. Outbreak of leptospirosis after flood, the Philippines, 2009. Emerg Infect Dis. 2012; 18(1):91-4. doi: http://doi.org/10.3201/eid1801.101892.
http://doi.org/10.3201/eid1801.101892... , a Guiana1616. Dechet AM, Parsons M, Rambaran M, Mohamed-Rambaran P, Florendo-Cumbermack A, Persaud SBS, et al. Leptospirosis outbreak following severe flooding: a rapid assessment and mass prophylaxis campaign; Guyana, January-February 2005. PLoS ONE. 2012; 7(7):e39672. doi: http://doi.org/10.1371/journal.pone.0039672.
http://doi.org/10.1371/journal.pone.0039... e o Brasil1717. Londe LR, Marchezini V, Conceição RS, Bortoletto KC, Silva AEP, Santos EV, et al. Impactos de desastres socioambientais em saúde pública: estudos dos casos dos Estados de Santa Catarina em 2008 e Pernambuco em 2010. Rev Bras Estud Popul. 2015; 32(3):537-62. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-3098201500000031.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-30982015... . Em relação ao contexto brasileiro, é importante salientar que, embora tenha características de uma Doença Tropical Negligenciada (DTN)1818. Hotez PJ. Global urbanization and the neglected tropical diseases. PLoS Negl Trop Dis. 2017; 11(2):e0005308. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pntd.0005308.
http://dx.doi.org/10.1371/journal.pntd.0... , a leptospirose não foi tomada como prioridade das agendas de pesquisa e intervenções governamentais para DTN, o que a caracteriza, segundo estudos recentes, como uma doença duplamente negligenciada1919. Martins MHM, Spink MJ. Leptospirosis as a doubly neglected tropical disease. Cienc Saude Colet [Internet]. 2018 [citado 10 Mai 2019]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/en/articles/human-leptospirosis-as-a-doubly-neglected-disease-in-brazil/16851?id=16851
http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/... . Ela é mais recorrente nas áreas urbanas pobres do país1818. Hotez PJ. Global urbanization and the neglected tropical diseases. PLoS Negl Trop Dis. 2017; 11(2):e0005308. doi: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pntd.0005308.
http://dx.doi.org/10.1371/journal.pntd.0... e relacionada a insalubridade ambiental decorrente da falta de saneamento básico em várias capitais, como Belém2020. Gonçalves N, Araujo E, Sousa Júnior A, Pereira W, Miranda C, Campos P, et al. Distribuição espaço-temporal da leptospirose e fatores de risco em Belém, Pará, Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3947-55. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.07022016.
https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015... , Rio de Janeiro2121. Chaiblich J, Lima M, Oliveira R, Monken M, Penna M. Estudo espacial de riscos à leptospirose no município do Rio de Janeiro (RJ). Saude Debate. 2017; 41 Spe 2:225-40. doi: https://dx.doi.org/10.1590/0103-11042017s219.
https://dx.doi.org/10.1590/0103-11042017... e Maceió2222. Silva S, Gama J, Callado N, Souza V. Saneamento básico e saúde pública na bacia hidrográfica do Riacho Reginaldo em Maceió, Alagoas. Eng Sanit Ambient. 2017; 22(4):699-709. doi: https://dx.doi.org/10.1590/s1413-41522017146971.
https://dx.doi.org/10.1590/s1413-4152201... .
O problema da leptospirose requer especial atenção em Maceió, capital de Alagoas, em virtude dos determinantes sociais da cidade. Apenas 47,1% dos domicílios possuem esgoto sanitário adequado na cidade2323. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [citado 20 Set 2017]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv45351.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza... e apenas 32,7% deles têm urbanização adequada das vias públicas2424. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico: características da população e dos domicílios. Rio de Janeiro: IBGE; 2011 [citado 20 Set 2017]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza... . Esses fatores estão diretamente relacionados à alta incidência e letalidade da doença na cidade, bem como sua distribuição desigual no território.
Essa distribuição desigual pode ser vista na figura 1 , que apresenta os bairros de Maceió com maior número de casos de leptospirose entre 2010 e 2016. Esses bairros são justamente aqueles com presença maciça de assentamentos precários, nos quais o esgoto sanitário é deficiente; há ocorrência de ratos e outros vetores da leptospirose humana; e a população é de baixa renda e com baixa escolaridade, não detendo condições para o enfrentamento individual da doença. Tendo em vista essa situação, mostra-se fundamental compreender como têm sido desenvolvidas as ações de prevenção à leptospirose nesse município.
Tendo em vista esse panorama, o nosso objetivo neste artigo é discutir as formas de comunicação em saúde adotadas pelas campanhas de prevenção à leptospirose humana em Maceió (Alagoas), Brasil. Espera-se que o presente estudo contribua para o aprimoramento dos conteúdos e da circulação dos materiais de campanha na cidade.
Teoria e método
Tipos de material
A presente pesquisa analisa dois tipos de materiais: a) o material impresso utilizado em campanhas de prevenção à leptospirose humana em Maceió e b) transcrições de duas entrevistas semiestruturadas com usuários que tiveram leptospirose e foram atendidos pelos serviços de saúde de Maceió.
Seleção do material impresso
O material impresso consiste de cinco cartazes, dois fôlders e um panfleto que foram utilizados nas campanhas de prevenção à leptospirose em Maceió entre 1996 e 2017. A data específica em que cada um dos materiais impressos foi produzido não consta nos registros da Secretaria Municipal de Saúde da cidade, sendo reconhecido apenas o ano de produção do panfleto mais antigo (1996). Consideramos o período de 1996 a 2017 em virtude de contemplar o ano em que o primeiro material passou a ser veiculado e o ano de término da pesquisa de campo que propiciou a produção do presente artigo. Em todo esse período, os materiais impressos foram utilizados de maneira concomitante; não houve substituição de um material por outro, apenas incremento e diversificação dos materiais. O presente artigo analisa todos os materiais impressos cedidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Maceió.
É importante destacar que um fôlder, um cartaz e o panfleto analisado não foram originalmente produzidos para campanhas de prevenção à leptospirose, mas sim para campanhas de combate a roedores. Todavia, como são utilizados nas campanhas de prevenção à doença, foram incluídos neste estudo. O panfleto, material mais antigo, passou a ser utilizado em ambas as campanhas no mesmo ano de sua confecção.
Seleção dos entrevistados
A seleção dos usuários a serem entrevistados ocorreu após seis meses de acompanhamento das ações de prevenção à leptospirose na Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e de um mês de acompanhamento das ações desenvolvidas pela equipe de saúde no hospital de referência para o tratamento da leptospirose no município. Durante o acompanhamento das atividades nessas instituições, dialogamos com diferentes usuários sobre suas experiências com a leptospirose humana e com os materiais de campanha utilizados. Além disso, dialogamos também com a equipe de saúde que nos relatou diferentes perspectivas sobre a função da educação e da comunicação em saúde na prevenção da leptospirose humana.
Esses diálogos foram fundamentais para que estabelecêssemos os critérios de inclusão de entrevistados para nossa pesquisa. Os dois entrevistados foram selecionados por serem informantes-chave que a) experienciaram toda a trajetória de atendimento à leptospirose na rede de saúde, tendo contato com a rede de atenção básica e especializada; b) receberam da equipe técnica informações sobre a doença, suas causas e tratamentos; c) sintetizaram argumentos e experiências de outros usuários também acometidos pela doença que foram acompanhados durante as observações no hospital de referência; d) eram maiores de 18 anos; e e) expuseram interesse em participar da pesquisa e narrar suas trajetórias na rede de saúde.
Procedimentos de análise
O material impresso e as transcrições das entrevistas passaram por procedimentos de análise distintos. O primeiro conjunto de procedimentos foi aplicado ao material impresso e consiste no uso de três tipos de análise: multimodal do discurso2525. Kress G, Van Leeuwen T. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary communication. London: Oxford University Press; 2001. , de repertórios linguísticos2626. Spink MJ, Reigota MAS, Martins MHM. Linguistic repertoires of interdisciplinarity in Brazilian journals in the area of psychology. Paidéia (Ribeirão Preto). 2014; 24(59):371-8. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1982-43272459201411.
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27. Aragaki SS, Piani PP, Spink MJ. Uso de repertórios linguísticos em pesquisa. In: Spink MJ, Brigagão J, Nascimento V, Cordeiro M, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 229-46. - 2828. Martins M, Ribeiro M. Repertórios linguísticos dos riscos industriais no Pontal da Barra, Maceió. Athenea Digital. 2016; 16(1):139-58. doi: https://dx.doi.org/10.5565/rev/athenea.1316.
https://dx.doi.org/10.5565/rev/athenea.1... e de atos ilocucionários2929. Austin J. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press; 1962.
30. Searle J. A taxonomy of illocutionary acts. In: Gunderson K, organizador. Language, mind and knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press; 1975. p. 344-69. - 3131. Espinoza-Ibacache J, Íñiguez-Rueda L. “Mujeres peligrosas”: prácticas discursivas del Estado chileno en relación con la prostitución, el comercio sexual y el trabajo sexual. Rev Colomb Cienc Soc. 2017; 8(2):388-411. doi: http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230.
http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230... . O segundo conjunto de procedimentos de análise foi utilizado nas entrevistas e consistiu na transcrição e análise do conteúdo expresso pelos usuários do sistema de saúde3232. Flick U, organizador. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artemed; 2009. p. 276-97. .
Análise do material impresso
A análise multimodal do discurso considera que os diferentes sistemas semióticos complementam uns aos outros na criação de significados compartilhados. Neste texto, optamos por enfocar especificamente a análise de enquadramento ( framing ): aquilo que determina os blocos de informação a serem analisados. O enquadramento foi inicialmente abordado como um modo de conexão e desconexão da composição visual que é marcada por diferentes linhas, como espaços vazios entre elementos, descontinuidades e continuidades de cor ou limites formados pelas bordas de elementos da composição2525. Kress G, Van Leeuwen T. Multimodal discourse: the modes and media of contemporary communication. London: Oxford University Press; 2001. . Neste trabalho, enfocaremos a relação entre a linguagem visual e o uso da linguagem escrita para identificar o elemento principal no enquadramento nas campanhas.
A análise de repertórios, por sua vez, diz respeito à seleção, tipificação, classificação e atribuição de funções a palavras ou conjuntos de palavras que delimitam as condições e possibilidades da ação em determinado campo da atividade humana2727. Aragaki SS, Piani PP, Spink MJ. Uso de repertórios linguísticos em pesquisa. In: Spink MJ, Brigagão J, Nascimento V, Cordeiro M, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p. 229-46. . O primeiro tipo de repertório que analisamos são os verbos, que resumem a ação da frase. Atentamos para sua conjugação, flexão em número, pessoa, modo e tempo verbal. O segundo tipo de repertório analisado foram as características, palavras que expressam atributos e particularidades; e palavras equivalentes ao objeto analisado. Por fim, também analisamos as atribuições que podem ser classificadas como causas (substantivos aos quais se estabelece uma relação de causalidade, responsabilidade ou mesmo culpa); efeitos ou afetados (pessoas, coisas, animais, instituições ou corpos afetados por uma ação); lugares (adjuntos adverbiais que indicam o espaço no qual a ação foi narrada); e tempos (termos que marcam os momentos históricos nos quais a ação acontece). Na análise de repertórios, os verbos foram sublinhados e as elipses verbais foram marcadas pelo símbolo (_). As características foram marcadas em negrito, enquanto as atribuições (causa, efeitos/afetados, lugares e tempos), pelo uso do itálico. O objetivo é identificar os principais elementos discursivos que compõem os materiais de campanha e as relações entre eles.
O terceiro procedimento foi a identificação de atos ilocucionários, que dizem respeito ao potencial de ação de uma sentença2929. Austin J. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press; 1962.
30. Searle J. A taxonomy of illocutionary acts. In: Gunderson K, organizador. Language, mind and knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press; 1975. p. 344-69. - 3131. Espinoza-Ibacache J, Íñiguez-Rueda L. “Mujeres peligrosas”: prácticas discursivas del Estado chileno en relación con la prostitución, el comercio sexual y el trabajo sexual. Rev Colomb Cienc Soc. 2017; 8(2):388-411. doi: http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230.
http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230... . De acordo com a classificação de Searle2020. Gonçalves N, Araujo E, Sousa Júnior A, Pereira W, Miranda C, Campos P, et al. Distribuição espaço-temporal da leptospirose e fatores de risco em Belém, Pará, Brasil. Cienc Saude Colet. 2016; 21(12):3947-55. doi: https://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.07022016.
https://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015... , há cinco tipos de atos ilocucionários: os representativos, que comprometem o falante com a verdade de uma proposição; os diretivos, que comprometem o ouvinte com um curso de ação futura; os comissivos, que comprometem o falante com um curso de ação futura; os expressivos, que expressam estados psicológicos; as declarações, que mudam a realidade a partir de sua enunciação; e as declarações representativas, que comprometem o falante com um enunciado de verdade e mudam a realidade concomitantemente. As sentenças selecionadas foram classificadas segundo essa tipificação para entender quais ações são voltadas a qual público-alvo nas campanhas.
Análise das transcrições das entrevistas
As entrevistas abordaram o cotidiano de dois usuários e as informações que tinham sobre a leptospirose antes, durante e após a infecção. O roteiro de entrevista consistiu nas seguintes perguntas: “Você já tinha ouvido falar da leptospirose?, “Em caso positivo, de quem ou o que você ouviu sobre a doença?”, “Como você soube que tinha leptospirose?”, “Você foi informado sobre a doença enquanto estava sendo tratado?”, “Como você acredita ter sido infectado?” e “Quais os efeitos ou impactos que a doença teve em sua vida?”.
Em seguida, foi feita uma análise do conteúdo dessas entrevistas com base em uma codificação aberta das informações apresentadas3232. Flick U, organizador. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artemed; 2009. p. 276-97. . Essa codificação enfocou sentenças relacionadas ao cotidiano dos entrevistados no momento em que estes souberam o que era leptospirose e à influência das informações sobre a doença em suas vidas.
Procedimentos éticos
Em virtude de tratar-se de pesquisa com seres humanos, o presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética sob o número CAEE 37203114.8.0000.5482 e aprovado.
Resultados
A partir dos procedimentos adotados, pudemos identificar quatro resultados principais: a finalidade original de alguns materiais altera o efeito discursivo e, consequentemente, o rato passa a ser o principal agente enfrentado pelas campanhas; o modelo de comunicação adotado é unilateral e faz uso de atos ilocucionários eminentemente diretivos; há falta de correspondência entre as ações propostas e as condições de vida dos usuários acometidos pela doença; e a responsabilidade pela prevenção é atribuída à população em situação de risco, isentando o Estado de quaisquer comprometimentos, o que levanta uma discussão sobre atribuições de responsabilidade e culpa.
Enquadramento
Os cartazes, fôlders e o panfleto da leptospirose humana analisados neste trabalho apresentaram três tipos de enquadramento em relação à mensagem. O primeiro enquadramento tem por foco a imagem e é composto por quatro blocos: informação sobre vetor, imagem do vetor, informação sobre a ação do leitor e dados da instituição responsável pelo documento. Esse tipo de enquadramento foi identificado em um dos cartazes ( figura 2 ) e na capa de um fôlder ( figura 3 ).
As linhas de enquadramento de ambas as imagens são marcadas pelo contraste de cores entre o fundo dos materiais (vermelho e marrom), a cor da fonte que apresenta o conteúdo da mensagem (branca) e a cor da imagem do vetor, um rato (preto). Os blocos de informação são divididos por espaços nos quais predomina a cor de fundo. As imagens do vetor são os elementos centrais e, com exceção do fundo, são os elementos que mais ocupam espaço nesses materiais.
A outra forma de enquadramento busca equilibrar os conteúdos escritos do material e as diferentes imagens que o compõem. Nesse caso, há mais de uma imagem dispostas em diferentes lugares do material e que, eventualmente, competem com o conteúdo escrito da mensagem. Esse tipo de enquadramento possui diferentes composições, sendo identificados os seguintes blocos de informação: título com nome da enfermidade; definição da enfermidade; imagens do principal vetor (rato), esgoto e lixo; principais sintomas; formas de prevenção; encaminhamentos; e dados da instituição responsável. Quatro cartazes, a capa de um fôlder e o conteúdo de dois fôlders seguem essa estrutura. Os cartazes das figuras 4 e 5 ilustram esse modelo.
Nesse caso, as linhas de enquadramento são produzidas por espaços vazios nos quais predomina a cor de fundo, quadros de cores distintas que delimitam os blocos de informações (definição da doença, sintomas e modos de transmissão e de prevenção) e contraste de cores do conteúdo escrito (letras em destaque vermelho e amarelo, preto ou apenas vermelho) com a cor de fundo dos cartazes. As imagens são utilizadas de maneira ilustrativa para representar o vetor e as fontes de infecção, ou são autoexplicativas, como é o caso do rato marcado pelo símbolo de proibido.
O último tipo de enquadramento ocorre em apenas um material: o panfleto representado na figura 6 , no qual se dá mais destaque aos conteúdos do que às imagens. Esse panfleto foi impresso em papel sulfite e dispõe apenas das cores preto, branco e cinza. O enquadramento apresenta a seguinte disposição: informações sobre a instituição responsável; indicador dos responsáveis pelo controle de roedores; imagens associadas a medidas de controle; recomendações para controle interno e externo; e frase de encerramento.
É importante salientar que o cartaz da figura 2 e a capa do fôlder da figura 3 , ambos com enquadramentos que enfocavam a imagem, e o panfleto figura 6 , cujo enfoque do enquadramento foi o conteúdo da mensagem, foram originalmente produzidos para campanhas de combate a roedores, enquanto os demais cartazes e fôlders, que alternaram linguagem escrita e visual, foram produzidos especificamente para campanhas de prevenção à leptospirose. A apropriação desses materiais produzidos para as campanhas de roedores nas campanhas de leptospirose alteram o tipo de comunicação: enquanto os responsáveis pelo programa de roedores fazem uso da linguagem visual para chamar a atenção e da linguagem escrita para passar informação, os responsáveis pela elaboração dos materiais impressos produzidos especificamente para as campanhas de prevenção à leptospirose fazem uso das duas linguagens conjuntamente para alcançar esses objetivos.
Essa incorporação dos materiais de campanha para combate aos roedores também surte efeito no foco da campanha de prevenção à leptospirose, porque o enquadramento predominante passa a ser o rato. Os blocos de informação utilizados para referir a imagem ou o nome da doença relacionados ao vetor (“doença do rato”) são predominantes em relação a outros enquadramentos, como os sinais, sintomas e fatores de risco. Esse enfoque no vetor oblitera os demais fatores de risco que constam nas imagens e pode contribuir para a redução da doença a um elemento causal: elimine/evite o rato, elimine/evite os riscos.
Análise de repertórios e atos ilocucionários
A partir da identificação dos blocos de informação, deu-se início à análise dos repertórios e atos ilocucionários presentes nos blocos textuais. As sentenças extraídas dos panfletos e cartazes foram organizadas na figura 7 . Os verbos utilizados nos materiais são variados, mas compartilham entre si o fato de estarem conjugados no infinitivo ou no imperativo. Esses formatos estão associados a atos ilocucionários diretivos, os quais provocam o interlocutor a tomar determinado curso de ação. Nos referidos casos, o modo infinitivo é mais sutil, caracterizando-se por uma recomendação, enquanto o uso do imperativo exprime ordens diretas3131. Espinoza-Ibacache J, Íñiguez-Rueda L. “Mujeres peligrosas”: prácticas discursivas del Estado chileno en relación con la prostitución, el comercio sexual y el trabajo sexual. Rev Colomb Cienc Soc. 2017; 8(2):388-411. doi: http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230.
http://dx.doi.org/10.21501/22161201.2230... .
Isso aponta para o fato de que a população é responsável por evitar a infecção tomando um conjunto de medidas ordenadas pelo Estado. Nessa perspectiva, o sujeito é capaz de gerir os riscos aos quais está submetido. Conforme Spink, isso ocorre porque se parte “do pressuposto iluminista de que somos seres racionais passíveis de tomada de decisão, a disponibilização da informação tornaria cada um de nós parceiros da gestão dos riscos”3333. Spink MJ. Estilos de vida saudável e práticas de existência: fronteiras e conflitos. In: Bernardes J, Medrado B, organizadores. Psicologia social e políticas de existência: fronteiras e conflitos. Maceió: Abrapso; 2009. p. 15-26. (p. 225). Como consequência, os materiais impressos fomentam um modelo de atenção em saúde em que basta expressar medidas, que a população buscará, automaticamente, meios para se prevenir.
Essas medidas dizem respeito às principais características que identificamos: vetor (rato), fatores que atraem o rato (alimentos, lixo e entulhos) e fatores que propiciam o contato com a urina desse animal (lixo, lama ou água contaminada). Cabe destacar que o rato aparece de duas maneiras: como um agente que deve ser morto, logo, o indivíduo que integra o público-alvo da mensagem deve buscá-lo e matá-lo, e como um agente que deve ser evitado por meio de um conjunto de medidas que afastem sua presença. Os materiais previamente apresentados nas figuras 2 e 3 exprimem essa relação ambígua com o animal.
As ações de prevenção em sua maioria relacionam-se a essas características, pois tratam de sentenças negativas. A limpeza dos ambientes, o armazenamento adequado dos alimentos, o descarte apropriado do lixo e o uso de equipamentos de proteção são as principais ações de prevenção, sendo todas voltadas à população. Com exceção do panfleto da figura 6 , que aponta que o poder público deve executar obras sanitárias, todas as demais sentenças selecionadas nos cartazes são voltadas à população ou comunidade, reforçando nosso argumento de uma responsabilização unilateral pela saúde.
As atribuições de lugar também evidenciam essa responsabilização dos indivíduos de um grupo populacional pela infecção, tendo em vista que se referem a situações nas quais a leptospirose está relacionada aos locais que o público-alvo frequenta ou ao ambiente doméstico, como “sua casa”, “áreas de refeição” e “quintal”. São esses ambientes que necessitam estar sempre limpos.
Além disso, quatro sentenças específicas também chamam a atenção para as formas de responsabilização da população, mas por motivos opostos. Duas delas deflagram a situação de precariedade em que vivem as pessoas público-alvo das campanhas de prevenção da leptospirose. A primeira – “Usar proteção como botas e luvas de borracha ou, na ausência destes, utilizar sacos plásticos duplos presos nas mãos e pés” – propõe o uso de equipamentos de proteção, reconhece, ao mesmo tempo, que esse não é um material comumente acessível ao público-alvo da campanha e, por isso, propõe um improviso com uso de sacos plásticos. Por sua vez, a sentença “Andar calçado sempre que possível” é utilizada como uma recomendação, reconhecendo por meio de um marcador temporal que nem sempre é possível para esse público andar com calçados adequados.
Por outro lado, outras duas sentenças, identificadas no folder 2 ( figura 7 ), pressupõem um público que não corresponde ao perfil da população com leptospirose. As sentenças “Coloque lixo orgânico em saco plástico, feche e encaminhe para a coleta, perto do horário de passagem do lixeiro” e “Se-pa-re o lixo e encaminhe para a coleta seletiva o que puder ser reaproveitado ou reciclado” pressupõem que as pessoas sabem separar lixo orgânico de outros tipos de lixo, que elas participam da coleta seletiva mesmo em uma cidade em que essa coleta não é fomentada, que a pessoa tem coleta em seu bairro e que tem tempo e disponibilidade para dispor o lixo no horário de passagem dos garis. Logo, ora a campanha tenta adequar-se às limitações do público-alvo, ora pressupõe que é o público-alvo que deve adequar-se às necessidades de saúde.
Entrevistas com usuários
Tendo em vista que as campanhas de prevenção à leptospirose ora desconsideram, ora reconhecem a condição de precariedade em que vivem as pessoas em situação de vulnerabilidade em relação à doença, cabe questionar se essas interpretações têm relação com o cotidiano dessas pessoas. Segundo nossos entrevistados, eventualmente, a realidade das pessoas que tiveram leptospirose pode ser muito mais difícil do que aquilo que é pressuposto pelas campanhas. Tal realidade é apresentada no relato do usuário 1.
Usuário 1 – Na época eu trabalhava no supermercado, eu era fiscal de caixa na época que eu adoeci. Então... era mais ou menos uma época de inverno, né? E as redondezas ali da região onde eu trabalhava ficavam muito alagadas e quando eu precisava trabalhar sempre entrava nessa rua que sempre tava alagada de chuva. Então eu acredito que foi por esse motivo que eu adoeci. E lá constataram que tinha muita presença de ratazanas e até na própria empresa que eu trabalhei apareciam muitos ratos também.
Pesquisador – Já dentro da empresa?
Usuário 1 – Já dentro da empresa. Mais nas locas, né, no armazém onde eles colocam as mercadorias, tinha muito rato.
Pesquisador – É... mas... por que que você decidiu atravessar? Porque é tudo alagado, né?
Usuário 1 – É porque a gente fica ilhado, né? De alguma forma a gente tem que chegar ao trabalho . Aí era necessário passar por isso, porque não tinha alternativa. Então... a rua que ligava o ponto de ônibus até onde eu trabalhava não tinha outra alternativa, então eu tinha que passar por aquela rua. [Grifo nosso]
Conforme exposto, não há alternativa para chegar ao trabalho: ou o usuário atravessa o alagamento ou falta e, consequentemente, perde parte de seu salário. Ao chegar ao trabalho, todavia, ele ainda não está livre desses fatores de risco porque há ratos na empresa. A única razão para enfrentar diariamente essas situações é o emprego. Isso não significa dizer, todavia, que ele desconhecia os riscos de entrar em contato com água de alagamentos ou mesmo com ratos.
Usuário 1 – Talvez até na época eu até sabia que eu podia pegar doença que desde criança a gente acaba... os pais acabam orientando: “Olhe, não pise aí porque você pode pegar alguma doença!” Só que a gente não sabe da gravidade da nossa situação, a gente acaba não se cuidando e a gente não sabe a gravidade da doença que a gente tá sujeito, é só passando por isso que a gente acaba tendo maiores cuidados. [Grifo nosso]
O usuário havia sido informado sobre o perigo de entrar em contato com água de chuva e de alagamentos pela família, embora o risco de contrair uma doença grave como a leptospirose não fosse nítido para ele. Nesse trecho, destacamos a frase “a gente acaba não se cuidando”, que expressa a responsabilização individual sobre a saúde e um dos efeitos potenciais do discurso promocional e preventivo: a culpa. Segundo Spink3333. Spink MJ. Estilos de vida saudável e práticas de existência: fronteiras e conflitos. In: Bernardes J, Medrado B, organizadores. Psicologia social e políticas de existência: fronteiras e conflitos. Maceió: Abrapso; 2009. p. 15-26. (p. 24), em seu ensaio sobre estilos de vida saudável, essa expressão decorre de uma internalização da responsabilidade e é “decorrência do nexo causal resultante da associação entre nossas ações e eventos da saúde (ou, mais precisamente, da doença). Se há culpa é porque esses estilos de vida saudável tornaram-se um dever para consigo mesmo em relação aos nossos entes queridos e para com o coletivo”.
Essa informação que responsabiliza e culpa chega de alguma maneira ao usuário; porém, não diretamente dos materiais impressos. O percurso da informação pode vir originalmente de trabalhos na escola ou no cotidiano, sem ser apropriado como conhecimento, conforme os relatos que seguem:
Usuário 1 – Já! Já! Tenho ouvido mais em trabalho de escola, né? Que a gente acaba tendo que fazer algumas pesquisas sobre epidemiologia, doenças tropicais, coisa assim, a gente acabava pesquisando, mas não... não sabia que era causada pela urina do rato, né?
Usuário 2 – Leptospirose eu ouvi falar só pelo nome, sabe? Chegava a ver o povo falar, mas eu não sabia que ela podia ser assim perigosa não, de correr urgentemente pra ser atendido, não.
Pesquisador – Você chegou a ver, você conhece algum cartaz, panfleto, já recebeu alguma dessas coisas, você lembra?
Usuário – Não.
As informações de materiais impressos de prevenção à leptospirose nem sempre condizem com a realidade das pessoas em situação de risco, podendo promover sentimentos de culpa em virtude da responsabilização individual pela saúde, e não necessariamente chegam às pessoas que deveriam ser alcançadas. Isso implica em refletir sobre a produção do material de campanha, sua distribuição e veiculação no município e seu impacto psicossocial. Embora as informações tenham chegado via outros meios (escola, atendimento hospitalar), nenhum dos dois entrevistados relatou ter tido contato com esses materiais, realidade comum a outros usuários com os quais conversamos em nossa pesquisa de campo. De modo a produzir efeitos, esses materiais precisam ser produzidos e circulados tendo em vista as próprias pessoas que configuram o público-alvo das campanhas. A relação unilateral de produção desses materiais acaba por obliterar o sujeito de direitos da política pública, atribuindo-lhe responsabilidades, promovendo a culpa e mantendo os pressupostos de um modelo de comunicação diretivo e meramente informacional. Seria esse o impacto psicossocial almejado por uma política comunicacional na saúde?
Considerações finais
Neste artigo, discutimos ações de comunicação em campanhas de prevenção à leptospirose humana na cidade de Maceió. Em relação ao enquadramento dos materiais, é importante salientar que o uso da linguagem visual teve dois objetivos: ilustrar os conteúdos e passar mensagens de ações de prevenção. Visualmente, o rato é uma figura central nos materiais e discursivamente ele é caracterizado como um agente a ser morto ou evitado. Essa forma de referir-se à doença e às formas de preveni-la pode implicar um conjunto de ações restritas à eliminação do rato, reduzindo o problema à existência do vetor.
Com relação à análise de repertórios, identificamos que os verbos utilizados nos materiais são variados, mas compartilham entre si o fato de estarem conjugados no infinitivo ou no imperativo. Nos referidos casos, o modo infinitivo é mais sutil, caracterizando-se como uma recomendação, enquanto o uso do imperativo exprime ordens diretas. Esses formatos estão associados a atos ilocucionários diretivos, o que aponta para o fato de que a população é responsável por evitar a infecção tomando um conjunto de medidas ordenadas pelo Estado. Essas medidas, por sua vez, são bastante ambíguas. Em nossa análise identificamos sentenças que propõem ações de prevenção, mas reconhecem a precariedade em que vive o público-alvo das campanhas, e outras que pressupõem um público que não corresponde ao perfil da população com leptospirose.
As entrevistas com os usuários que tiveram leptospirose, por sua vez, mostram que a realidade do público-alvo pode ser ainda pior do que a prevista pelas campanhas e produzir como efeitos a culpa atrelada à responsabilização individual. Eventualmente, saber dos riscos, conhecer algo da doença ou suas consequências não significa adotar medidas de prevenção porque nem sempre essas medidas são cabíveis, mas os usuários podem sentir que são culpados pelo próprio adoecimento por não segui-las. Por isso, esses materiais precisam ser produzidos e circulados com participação da comunidade, atentando para as responsabilizações e atribuições de culpa geralmente associadas aos modelos preventivos e promocionais na saúde.
A presente pesquisa ratifica os principais resultados obtidos na literatura da área e traz para a discussão a questão da atribuição de responsabilidades e a produção de culpa nas campanhas preventivas, que se apropriam de um modelo promocional sem avaliar seus potenciais impactos psicossociais. Em virtude da quantidade de entrevistas, não buscamos configurar um corpus representativo, mas sim confrontar pontos de vista. Estudos posteriores poderão abordar a temática a partir de outras estratégias metodológicas não adotadas aqui. Esperamos ainda contribuir, a partir de uma demanda local, para fomentar práticas de avaliação e melhoria das estratégias comunicacionais nas campanhas de prevenção da leptospirose.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao CNPq pela bolsa de doutorado concedida e aos integrantes do grupo Laicos da Universidade Autônoma de Barcelona pelas discussões que fomentaram a produção desse artigo.
Agradecemos ainda à Profa. Ms. Alline Lamenha pela contribuição na produção e formatação da Figura 1 deste trabalho.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Ago 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
16 Dez 2018 - Aceito
06 Maio 2019