Resumos
A cultura da avaliação caracteriza-se como importante dispositivo de controle contemporâneo. Na educação superior, a lógica produtivista é apenas mais uma expressão da ubiquidade das práticas neoliberais, que engendram modos de subjetivação e capturas em espaços que deveriam resguardar possibilidades de resistência. A partir da noção foucaultiana de ética, este artigo aborda experiências de estudantes de pós-graduação em relação ao que chamamos de moral produtivista neoliberal no contexto acadêmico. Apresentam-se fragmentos de uma pesquisa-intervenção, que incluiu entrevistas semiestruturadas e oficinas de fotografia com dez estudantes de cinco programas de pós-graduação de universidades brasileiras. Os resultados apontam para a sujeição a uma moral produtivista no contexto acadêmico e para formas de questionamento e resistência que se articulam nas relações dos sujeitos consigo mesmos, deixando entrever também o sofrimento dos pós-graduandos que, com altos níveis de produtividade, são considerados cases de sucesso.
Produtivismo acadêmico; Avaliação dda educação superior; Formação em pesquisa; Oficinas de fotografia
The culture of assessment is an important social control device. In higher education, the productivist logic is just another expression of the ubiquity of neo-liberalism, which engenders modes of subjectivation and capture in settings that should safeguard possibilities of resistance. Drawing on Foucault’s notion of ethics, this article describes the experiences of graduate students regarding what we call neoliberal productivist morality in an academic context. We present fragments of an intervention study that includes semi-structured interviews and photography workshops with 10 students from five graduate programs in Brazilian universities. The findings point to subjection to productivist morality in an academic context and forms of questioning and resistance articulated in the subjects’ relationships with themselves, providing a glimpse of the vulnerability of graduate students, who, with high levels of output, are regarded as success stories.
Academic productivism; Higher education assessment; Research education; Photograph workshops
La cultura de la evaluación se caracteriza como un importante dispositivo de control contemporáneo. En la enseñanza superior, la lógica productivista es tan solo una expresión de la ubicuidad de las prácticas neoliberales que engendran modos de subjetivación y capturas en espacios que deberían resguardar posibilidades de resistencia. A partir de la noción foucaultiana de ética, este artículo aborda experiencias de estudiantes de postgrado con relación a lo que denominamos de moral productivista neoliberal en el contexto académico. Se presentan fragmentos de una investigación-intervención que incluyó entrevistas semiestructuradas y talleres de fotografía con diez alumnos de cinco programas de postgrado de universidades brasileñas. Los resultados señalan la sujeción a una moral productivista en el contexto académico y para formas de cuestionamiento y resistencia que se articulan en las relaciones de los sujetos consigo mismos dejando entrever la vulnerabilidad, incluso de los alumnos de postgrado que, con altos niveles de productividad, son considerados casos de éxito.
Produtivismo académico; Evaluación de la enseñanza superior; Formación en investigación; Talleres de fotografía
Introdução
Ao longo da segunda metade do século 20 e do início do século 21, a produção de conhecimento acadêmico vem se modificando internacionalmente, em razão da competição crescente, da pressão das agências financiadoras e da avaliação de instituições e pesquisadores por meio de indicadores e métricas. No Brasil, esse cenário ganha importância especialmente a partir das últimas duas décadas, com uma forte valorização da produção científica como critério para classificação e credenciamento dos programas de pós-graduação. Se, por um lado, a avaliação permite a explicitação das formas de gestão do investimento público e o acompanhamento do trabalho de pesquisa e de formação nos programas de pós-graduação, por outro, o modo como ela se realiza pode estar priorizando o incremento das estatísticas e produzindo efeitos de controle em docentes e estudantes11. Vosgerau D, Orlando E, Meyer P. Produtivismo acadêmico e suas repercussões na formação profissional de professores universitários. Educ Soc. 2017; 38(138):231-47. .
Tal configuração pode ser considerada como um dos efeitos do modelo neoliberal, indicando as consequências da entrada da lógica econômica utilitarista e meritocrática no cotidiano de produção de conhecimento. A cultura da avaliação está cada vez mais instalada em nosso cotidiano e caracteriza-se como um importante dispositivo de controle contemporâneo. Veiga-Neto22. Veiga-Neto A. Currículo: um desvio a direita ou delírios avaliatórios. In: Mendonça A, organizador. Anais do 10o Colóquio sobre Questões Curriculares e 6o Colóquio Luso-Brasileiro de Currículo. Belo Horizonte: FAE- UFMG; 2012. analisa que temos submetido a nós mesmos e aos outros ao escrutínio, por meio de delírios avaliatórios que colocam em xeque as práticas de liberdade. Avaliam-se pessoas e programas de pós-graduação do mesmo modo que se avaliam produtos e serviços, transformando multifacetados contextos de trabalho em pontuações objetivas a serem utilizadas para hierarquizar experiências.
A entrada da lógica produtivista no ensino superior é apenas mais uma expressão da ubiquidade do modelo neoliberal, engendrando modos de subjetivação e capturas em espaços que deveriam resguardar suas possibilidades de resistência. Desdobram-se diversas e sofisticadas formas de controle. Como exemplo, podemos citar algumas situações com as quais nos deparamos na pesquisa que fundamenta este artigo, como a criação de rankings de publicações entre mestrandos e doutorandos para a concessão de bolsas ou a divulgação dos docentes mais – e, consequentemente, menos – produtivos nos programas de pós-graduação em reuniões e murais nos corredores das universidades.
Além disso, as avaliações têm servido de argumento para a comparação entre universidades, programas de pós-graduação e pesquisadores, justificando a intensificação do trabalho e interferindo diretamente nos processos de formação dos alunos de pós-graduação33. Estácio L, Andrade E, Kern V, Cunha C. O produtivismo acadêmico na vida dos discentes de pós-graduação. Em Questão. 2019; 25(1):133-58. . Como efeito dessas práticas, temos a valorização excessiva dos resultados em detrimento dos processos, a intensificação do trabalho, o sofrimento psíquico, o aumento da competitividade entre pares e o entendimento do fazer científico como uma via para o reconhecimento pessoal.
Considerando que os programas de pós-graduação são contextos de formação de pesquisadores e professores, sustenta-se que deveriam fomentar o posicionamento crítico em relação a esses modos de operar. Pensar sobre o produtivismo a partir dos processos de subjetivação que ele aciona se justifica pela possibilidade de problematização e tensionamento de tais práticas e da criação de modos de resistir que envolvam experiências de si. Partindo da noção foucaultiana de ética e dos quatro elementos que a compõe – substância ética (ontologia), o modo de sujeição (deontologia), o trabalho ético (ascética) e a teleologia do sujeito moral (teleologia) –, buscaremos analisar tanto a moral produtivista no contexto acadêmico quanto as formas como estudantes de pós-graduação produzem certas relações consigo a fim de atingir tal moralidade.
Para tanto, apresentaremos fragmentos de uma pesquisa-intervenção realizada com dez estudantes de pós-graduação (seis mestrandos e quatro doutorandos), de cinco programas de pós-graduação – psicologia, engenharia mecânica, veterinária, bioquímica e educação – de universidades públicas e privadas do Brasil. A escolha pelos estudantes foi baseada na possibilidade de abarcar peculiaridades de diferentes áreas do conhecimento. Os procedimentos metodológicos consistiram na realização de uma entrevista semiestruturada com cada estudante, na qual colocávamos questões sobre como lidavam com as exigências de publicação e na realização de oficinas de fotografia. Tais oficinas foram organizadas por programa, a fim de que os estudantes pudessem debater sobre questões específicas de suas áreas. Sendo dois sujeitos de cada programa, as oficinas ocorreram em duplas, em dois encontros.
No primeiro encontro, abordávamos como temática os dispositivos que visibilizam algumas práticas e invisibilizam outras no trabalho acadêmico, sempre baseados no que os estudantes haviam trazido nas entrevistas. Buscando desconstruir a noção representacionista da fotografia, discutíamos sobre suas possibilidades na sensibilização de outros olhares sobre o cotidiano e no desencadeamento de análises em um dado contexto. Solicitávamos, então, que os pós-graduandos produzissem fotografias sobre aquilo que, do seu trabalho, não era reconhecido pelas formas de avaliação acadêmicas, ou seja, o invisível de uma pesquisa. No segundo encontro, convidávamos os estudantes a olhar as imagens, deixá-las acionar o pensamento e tecer algumas análises sobre suas experiências singulares no pesquisar em um contexto produtivista.
Para este artigo, selecionamos alguns fragmentos das entrevistas, assim como pontos de análise de todos os participantes e três fotografias de uma das mestrandas. A escolha dos elementos a serem apresentados se deu em função da relação mais íntima com a temática do artigo, tendo em vista que a pesquisa maior que embasa este texto extrapola o recorte aqui apresentado. A pesquisa apresentada foi aprovada pelo Comitê de Ética responsável, por meio do processo número 1.971.700.
Produtivismo acadêmico e neoliberalismo
O produtivismo acadêmico tem origem nos Estados Unidos, na década de 1950, tendo sua máxima na expressão “ publish or perish ”, que marcava a forte presença das exigências de mercado na academia, o controle dos órgãos financiadores e a entrada da perspectiva capitalista de trabalho no campo acadêmico, no qual o alto nível de produção passou a ser imprescindível para a manutenção da carreira, em uma espécie de mercantilização do conhecimento44. Hoffman C, Marchi J, Comorett E, Moura G. Relações entre autoconceito profissional e produtivismo na pós-graduação. Psicol Soc. 2018; 30:e167961. . No Brasil, este fenômeno surge nos anos 1970, sendo institucionalizado como uma política de avaliação nos anos 1990, com a construção de metodologias quantitativas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Os atuais critérios adotados pela Capes estão organizados a partir de cinco eixos – proposta do programa; corpo docente; corpo discente, teses e dissertações; produção intelectual e inserção social dos cursos. Ainda que os critérios variem conforme a área específica de conhecimento (tais como número de artigos publicados, internacionalização da produção, fator de impacto dos periódicos, registros de propriedade intelectual e participação discente na produção), a utilização crescente de métricas objetivas representa uma tendência em praticamente todas elas.
A amplitude do efeito das transformações nas políticas de avaliação pode ser analisada em dados que afirmam que, entre 1981 e 2006, a produção científica no mundo duplicou, enquanto a brasileira se multiplicou por nove55. Yamamoto OH, Tourinho EZ, Bastos AVB, Menandro PRM. Produção científica e produtivismo: há alguma luz no final do túnel? RBPG Rev Bras Pos-Grad. 2012; 9(18):727-50. . Ao mesmo tempo em que esses dados nos levam a admirar e a respeitar os pesquisadores e programas, precisamos pensar que eles estão no limite de serem alarmantes e não se fizeram sem um custo elevado. Analisa-se, por exemplo, o fato de que a qualidade dessas produções seria discutível, uma vez que o número de citações dos artigos brasileiros está abaixo da média mundial66. Bianchetti L, Valle IR, Pereira GRM. O fim dos intelectuais acadêmicos? Induções da Capes e desafios às associações científicas. Campinas: Autores Associados; 2015. . Alguns autores consideram isso como o resultado de uma “ciência-salame”, ou seja, da divisão do que seria um único artigo no maior número possível de produções a serem publicadas em revistas diferentes77. Castiel LD, Sanz-Valero J. Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cad Saude Publica. 2007; 23(12):3041-50. .
Maraschin e Sato88. Maraschin C, Sato L. Recuperando leituras críticas sobre a avaliação na pós-graduação: dando continuidade à discussão e ao debate. Psicol Soc. 2013; 25(1):2-9. sugerem que, apesar das intensas discussões, não ocorreram mudanças consideráveis nas formas de avaliação nos últimos anos. Segundo as autoras, a cultura da auditoria se introduz de forma muito “razoável” em nosso tempo, com a argumentação de que é preciso ter transparência, qualidade e responsabilidade com os gastos públicos. Entretanto, não se tem alcançado de fato essas garantias, na medida em que o trabalho acadêmico é que vem se moldando cada vez mais a partir dos critérios de avaliação22. Veiga-Neto A. Currículo: um desvio a direita ou delírios avaliatórios. In: Mendonça A, organizador. Anais do 10o Colóquio sobre Questões Curriculares e 6o Colóquio Luso-Brasileiro de Currículo. Belo Horizonte: FAE- UFMG; 2012. .
As consequências que podem advir dessa situação são várias: escolha por temáticas que não exigem tanto tempo de dedicação, produção de artigos com menor qualidade do que poderiam ter, sofrimento psíquico e competição entre pesquisadores e programas de pós-graduação que deveriam colaborar em processos de produção coletiva do conhecimento. Rocha99. Rocha R. As razões do produtivismo: fricções intelectuais e capitalismo ficcional. Galaxia. 2018; 39:136-49. atenta para o fato de que projetos coletivos – entre pares ou entre diferentes – perdem-se em um contexto marcado pela valorização do desempenho individual. Em nossa pesquisa, encontramos experiências que caracterizam essas situações, como a política de distribuição de bolsas de um programa específico, que classifica os alunos em um ranking de publicações, no qual só podem entrar aqueles que já tiverem um artigo em revista qualis A1. Apenas os primeiros da lista são contemplados com a assim chamada bolsa-prêmio, o que incentiva a competição entre pares desde a formação. Os estudantes passam a torcer para que o artigo do colega não seja aceito e mantêm sigilo quando sabem que têm chance de publicar um resultado. Algo semelhante apareceu nos resultados de uma pesquisa recente1010. Estácio L, Andrade W, Kern V, Cunha C. O produtivismo acadêmico na vida dos discentes de pós-graduação. Em Questão. 2019; 25(1):133-58. , na qual os estudantes relataram que o produtivismo teria como um importante efeito negativo a promoção da competição entre pares.
Tais práticas naturalizam o individualismo e criam uma associação direta entre produção de conhecimento e reconhecimento pessoal do pesquisador. Apesar do pesquisar envolver uma série de agenciamentos coletivos, que vão desde o cotidiano de trabalho até o compromisso com a sociedade, as recompensas são individuais, garantidas pela apresentação de um currículo “produtivo” em seleções, concursos, editais e progressões. O mesmo acontece com aqueles que publicam menos por inúmeras razões, entre elas, a complexidade dos temas eleitos, o baixo investimento em algumas áreas e o próprio excesso de trabalho. Na prática, eles são considerados desqualificados de um modo igualmente individualizado.
A própria expressão “produtivismo acadêmico” surge, no Brasil, no contexto da publicação da “lista dos improdutivos” na Folha de São Paulo, em 1988. A matéria sugeria que um quarto dos professores, apresentados pelo nome, não havia produzido “nada” entre 1985 e 1986. Em nossa pesquisa, uma das participantes relatou que, em uma reunião recente entre programas de distintas universidades da área da Psicologia, foi apresentado um slide com a lista dos docentes, ordenada por quantidade de publicações, cuja leitura foi realizada publicamente. Tais práticas nos permitem pensar que a questão do produtivismo, tomado como dispositivo de hierarquização entre pesquisadores, aciona um campo moral em nossa sociedade, cujos efeitos são, entre outros, a sujeição dos intelectuais destinados a produzir conhecimento a valores que os tornam empreendedores de si. Seu trabalho fica circunscrito ao que chamaremos de “moral acadêmica produtivista”, à qual os pesquisadores passam a tomar como referência para suas ações, seja se submetendo, seja resistindo a ela. Trata-se de um modo de engendrar relações do sujeito consigo mesmo marcadas pelo excesso, pela competitividade e pelo individualismo, premissas naturalizadas pelo neoliberalismo, mas que abrem algumas questões quando se introduzem no trabalho acadêmico.
A perversidade da moral acadêmica produtivista aciona processos de subjetivação nos quais pesquisadores multiplicam sua carga de trabalho a fim de atingir níveis supostamente adequados de publicações por “vontade própria”1111. Barsotti PD. Produtivismo acadêmico: essa cegueira terá fim? Educ Soc. 2011; 32(115):587-90. . Frequentemente, o tempo dedicado à escrita de artigos científicos é retirado dos momentos de descanso e não faz parte da carga horária semanal docente. Essa situação manifesta uma das principais estratégias neoliberais, que se apoia na premissa de que os indivíduos deverão assumir os valores de mercado nas decisões e práticas de qualquer natureza, a fim de reunir capital humano necessário para tornarem-se empreendedores de si mesmos. “O homo economicus neoliberal é um ‘átomo’ de interesse próprio, livre e autônomo, plenamente responsável por navegar pelo campo social utilizando cálculos de escolha racional e custo-benefício, ‘excluindo explicitamente’ todos os demais valores e interesses”1212. Hamann T. Neoliberalismo, governamentalidade e ética. Ecopolítica. 2012; 3:99-133. (p. 101).
De acordo com o sociólogo Lopez-Ruiz1313. López-Ruiz O. Os executivos das transnacionais e o espírito do capitalismo: capital humano e empreendedorismo como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue Editorial; 2007. , na Teoria do Capital Humano, habilidades e destrezas atribuídas a um plano pessoal, tais como criatividade, iniciativa, inteligência, perspicácia e esforço, passam a receber um valor de mercado e o status de um capital-eu, cujo desenvolvimento se daria por meio do “investimento próprio. Nesse cenário, a educação passa a ser entendida também como uma forma de acumulação de qualidades individuais necessárias ao sujeito para (sobre)viver em um mundo competitivo. Nas instituições de ensino, naturalizam-se os processos que tornam o estudante a causa e a consequência de seu sucesso ou fracasso, sendo que somente ele pode usufruir do seu sucesso ou definhar em seu fracasso, de modo que será impelido a constituir determinadas relações de competição com os outros e consigo mesmo.
As análises de Foucault1414. Foucault M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2008. descrevem o liberalismo como uma governamentalidade biopolítica, uma racionalidade que se propõe ao governo das populações e ao estabelecimento de formas de viver que respeitem a regra da economia máxima. As estratégias disciplinares buscam constituir a materialidade do que seriam formas de assujeitamento decorrentes de um governo dos outros. Entretanto, na obra de Foucault, tais análises se colocam, a partir do fim dos anos 1970, em relação ao que o autor irá designar como formas de governo de si, ou seja, as relações que os sujeitos estabelecem consigo mesmos a fim de tornarem-se sujeitos morais de suas próprias ações. Desse modo, a governança biopolítica se coloca lado a lado com os processos de subjetivação que buscarão formar um ethos neoliberal.
Produtivismo acadêmico e os quatro elementos da ética
A partir de uma crítica radical à noção de interioridade do sujeito, Michel Foucault propõe a abordagem dos processos de subjetivação como campos de exercícios de forças. A análise do poder em Michel Foucault não o toma como uma substância que possa pertencer a este ou àquele sujeito, a esta ou àquela instituição. O poder se atém sempre às relações, nas quais as possibilidades de resistência se colocam como uma espécie de pré-requisito para que se efetuem. É importante que haja, de ambas as partes, ao menos alguma possibilidade de liberdade, pois, quando não se pode resistir, não se trata mais de uma relação de poder, mas sim de um estado de dominação1515. Foucault M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus H, Rabinow P. Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1995. p. 231-50. . Nesse estado, não existe a perspectiva de que algo se modifique, e as possibilidades de deslocamento ficam bloqueadas, cristalizadas.
As relações de poder, por sua vez, implicam a noção de jogos de verdade, entendidos como os "jogos do verdadeiro e do falso, nos quais o sujeito se constitui historicamente como experiência"1616. Foucault M. Ditos e escritos III: estética: literatura e pintura, música e cinema. São Paulo: Forense Universitária; 2001. p. 264-98. (p. 163). Os jogos de verdade são os jogos com os quais se produzem efeitos de verdade em coisas que não são, em si, nem verdadeiras, nem falsas. Essa noção do que é verdadeiro e do que é falso ocorre, então, em um processo de lutas, de confrontos e de resistências. Na chamada terceira fase de sua trajetória analítica, Foucault1717. Foucault M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal Editora; 1998. analisa os modos como sujeitos se reconhecem nos jogos de verdade, ou seja, os processos de subjetivação. Em relação a isso, o autor afirma que, ao contrário de algumas interpretações que fazem de sua obra, o que sempre lhe interessou foi a constituição histórica das diferentes formas do sujeito em relação aos jogos de verdade, sendo que, nesse momento, a centralidade dos seus estudos passa a ser a forma como o sujeito se constitui de uma maneira ativa, por meio de práticas de si. Essas práticas, por sua vez, não partem de uma essência do sujeito, mas de sua relação com as regras, estilos e convenções do seu meio social. Nesse sentido, a noção de experiência de si remete às formas como os sujeitos se reconhecem nos jogos de verdade que os constituem e que são, ao mesmo tempo, aquilo a que eles resistem.
Tais análises apontam para experiências de si, considerando este “si” não como uma substância, mas sim como forma que, por sua vez, nunca é idêntica a si mesma. Assim como as relações de poder, que se afirmam ao se efetuar, "as relações consigo, que as verga, estabelece-se se efetuando"1818. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. (p. 121). É importante salientar que a experiência de si não é autônoma ao sistema institucional, mas se produz nas relações de poder. Entretanto, por meio da relação consigo, o sujeito pode resistir aos códigos e aos poderes hegemônicos. Ainda que esta não seja a única forma de resistência possível, tem grande importância no pensamento foucaultiano.
Consideramos que as práticas de avaliação no contexto acadêmico se legitimam por meio de jogos de verdade que definem o que tem – e quem tem – valor no universo de experiências dos alunos-pesquisadores e docentes-pesquisadores. Sendo assim, elas produzem as formas como esses sujeitos se relacionam com o conhecimento, com a pesquisa e consigo mesmos. Tomamos, então, como ponto de interesse o modo como pós-graduandos se reconhecem nos jogos de verdade produtivistas, como resistem ou não a eles, ou seja, as relações de poder e os processos de subjetivação atualizados pela entrada da lógica neoliberal no contexto acadêmico. Para tanto, torna-se necessária a análise dos jogos que marcam posições-sujeito no contexto acadêmico – quem é reconhecido, quem sobrevive ao modelo e quem não pode pertencer a ele. Que ações, comportamentos, formas de relações consigo mesmo devem ser acionadas para se alcançar estes espaços, que – sustentamos aqui – são definidos por meio de uma “moral produtivista”.
Entretanto, assinalar tal moralidade não basta por si só. É pré-requisito para que se possa debruçar sobre o ethos neoliberal na academia e sobre as formas de relação consigo mesmo dos sujeitos-pesquisadores para atingir o ideal do homo economicus . As análises de Foucault mostram que a ética se difere da regra ou do comportamento em relação à regra. Ela consiste nos modos do sujeito de conduzir a si mesmo diante das prescrições, ou seja, é maneira pela qual os indivíduos são chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral1717. Foucault M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal Editora; 1998. , pelo exame de si e pela transformação do seu modo de ser. No segundo volume da História da Sexualidade – O Uso dos Prazeres –, Foucault1919. Foucault M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. São Paulo: Forense Universitária; 2004. p. 264-87. apresenta os quatro elementos da ética: a substância ética (ontologia), o modo de sujeição (deontologia), o trabalho ético (ascética) e a teleologia do sujeito moral (teleologia). Buscaremos tomar essas noções como estratégias para analisar tanto a moral produtivista no contexto acadêmico quanto as formas como os sujeitos produzem certas relações consigo a fim de atingir tal moralidade.
Resistências e capturas frente a uma moral produtivista
A noção de “substância ética” remete ao elemento a ser tomado como matéria principal da conduta moral, ou seja, àquilo sobre o que a moral incide diretamente. Considerando como exemplo o campo amplo da sexualidade, poderia se situar como substância ética o comportamento sexual. Nesse caso, uma moral contrária às relações entre pessoas do mesmo sexo condenaria os atos, e não os pensamentos ou impulsos. Por outro lado, se tomarmos como substância ética uma interioridade, não importaria tanto, para essa moral, o quanto o sujeito se relacionasse com pessoas do mesmo sexo, mas o fato de ele experimentar em sua alma esta vontade. As prescrições incidem sobre diferentes objetos, articulando modos de o sujeito se relacionar consigo mesmo a partir daquilo que é eleito pela moralidade. No contexto neoliberal, poderíamos tomar como substância ética o modo como cada indivíduo regula o seu tempo e a sua vida em direção ao capital.
Na academia, os preceitos produtivistas exigem do sujeito uma certa relação consigo mesmo baseada na forma como ele é capaz de gerir a própria vida de modo a conquistar posições de reconhecimento. Na pesquisa realizada com pós-graduandos de cinco áreas diferentes, as narrativas dos estudantes trazem experiências como: “passo meus finais de semana no laboratório, mas, se o experimento dá certo, saio feliz”; “quando entro em férias, aproveito para escrever artigos, já que não preciso me deslocar para a universidade”; “almoço na frente do computador, porque no restaurante universitário costuma ter muita fila”; “nossa colega não tirou licença-maternidade quando seu filho nasceu para terminar o doutorado antes do tempo” (trechos de entrevistas, 2017). Tais situações envolvem supostas escolhas dos pós-graduandos, ou seja, eles eram aparentemente livres para optar por outros cenários. A moral produtivista dispensa o controle externo, na medida em que se constitui como um valor moral e coloca o indivíduo como o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso.
Para Foucault1818. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. , os “modos de sujeição” seriam o segundo aspecto da ética e dizem respeito às formas como o indivíduo estabelece sua relação com as regras.
Pode-se, por exemplo, praticar a fidelidade conjugal e se submeter ao preceito que a impõe por reconhecer-se como parte do grupo social que a aceita, e que a proclamam abertamente, e que dela conserva o hábito silencioso; porém, pode-se também praticá-la por considerar-se herdeiro de uma tradição espiritual a qual se tem a responsabilidade de preservar ou de fazer reviver; como também se pode exercer essa fidelidade respondendo a um apelo, propondo-se como exemplo ou buscando dar à vida pessoal uma forma e que corresponda a critérios de esplendor, beleza, nobreza ou perfeição1818. Deleuze G. Foucault. São Paulo: Brasiliense; 2005. . (p. 35)
As supostas escolhas feitas pelos pós-graduandos, além do envolvimento com suas pesquisas, indicam o desejo de pertencimento a espaços de reconhecimento acadêmicos e o medo de cair na lista (imoral) dos improdutivos. Assim, o modo de sujeição, ou seja, a razão pela qual os sujeitos são apreendidos por essa moral, dá-se a partir de um comprometimento com a própria carreira, de modo que o valor moral do currículo, por vezes, extrapola o valor moral do conteúdo das publicações.
Em nossa pesquisa, as narrativas dos pós-graduandos trouxeram experiências como a culpa por não estar escrevendo nos finais de semana, o que poderia indicar a suposição implícita de que se deveria usar todo o seu tempo para produzir. Uma das doutorandas comentou ter trocado diversos e-mails com seu orientador na noite de Natal, até o momento em que ele sugeriu que ela fizesse uma pausa e confraternizasse com sua família. Ao contrário do que ocorria no capitalismo fabril ou liberalismo, no neoliberalismo não é necessário controlar o corpo e o tempo do trabalhador, na medida em que ele mesmo se governa em direção às metas de produtividade que, por sua vez, dizem respeito a uma moral subjetivante.
O terceiro elemento da ética nas análises foucaultianas diz respeito às formas de elaboração do “trabalho ético”, ou seja, como o sujeito faz para transformar a si mesmo em um sujeito moral de sua própria conduta. Esse é o ponto mais sensível em nossa discussão, que busca dar visibilidade às experiências dos estudantes que são invisibilizadas pelo produtivismo. No contexto neoliberal, o cultivo de si passa, entre outras coisas, pela medicalização, ou seja, pelo uso de comprimidos para otimizar o funcionamento do corpo a fim de garantir níveis de produtividade considerados satisfatórios. Evidentemente, esses níveis são relativos e podem facilmente ultrapassar as possibilidades de um corpo. O que se constata é o uso cada vez mais frequente de medicamentos para dormir; para se concentrar; e para controlar a ansiedade e a depressão. O Brasil é o maior consumidor mundial de metilfenidato (conhecido pelo nome comercial de Ritalina) e o segundo maior consumidor de clonazepan – o popular Rivotril – perdendo somente para os Estados Unidos2020. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Relatório de Atividades da Anvisa – 2015. Brasília: Anvisa; 2016. . Podemos considerar a medicalização como uma prática de si para elaboração do trabalho ético-produtivista-neoliberal, que envolve a transformação ativa das funções do corpo, a fim de silenciar tanto o sofrimento psíquico – causado, muitas vezes, pelo próprio excesso de trabalho – quanto necessidades fisiológicas, como o sono. Trata-se de um corpo produtivo, regulado pelo próprio sujeito em suas funções.
Essa relação com o próprio corpo apareceu nas fotografias produzidas pelos estudantes em nossa pesquisa, quando solicitamos que expressassem, por meio de imagens, aquilo que, de seu trabalho, não aparecia em artigos, teses e dissertações. A figura 1 , produzida por uma mestranda da Educação, traz uma série de reflexões nesse sentido.
Trata-se de um lembrete, inspirado no poema Autotomia, de Wislawa Szymborska, um aviso às plantas e a ela mesma, de que é preciso resistir à entrega total do corpo, pensando a morte não como absoluta, mas como um apagamento suave e contínuo da própria existência.
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca2121. Szymborska W. Autotomia [Internet]. 2019 [citado 30 Out 2018]. Disponível em: https://www.escritas.org/pt/t/47864/autotomia
https://www.escritas.org/pt/t/47864/auto... .
Após começar o mestrado, ela sentia que não cuidava de si e havia deixado as plantas da casa morrerem. Mas, em algum momento, escreveu a mão um bilhete para si mesma, como uma forma de resistir a uma moral que incide sobre o uso do tempo e faz esquecer o próprio corpo. Discursos heterogêneos atravessam o pesquisar, sustentando sob linhas tênues todas as suas contradições e permitindo saídas e recapturas pelas linhas de força hegemônicas. Nas relações consigo, a mestranda busca “morrer somente o necessário”, entregando parte de si aos jogos de verdade que definem o que é ser um bom pesquisador e salvando a outra metade, como propõe Wislawa Szymborska. Outra fotografia ( figura 2 ), produzida pela mesma mestranda, remete-nos a reflexões semelhantes.
[...] era um domingo chuvoso e eu estava muito angustiada porque a escrita teórica não fluía. Encontrei minha colega de apartamento, também mestranda, deitada no chão da sala e a convidei para caminhar. Encontramos várias árvores de uvas japonesas. Minha amiga colheu uma das frutas e me perguntou se podia comer. Eu respondi que sim. Era a primeira vez no dia em que eu me sentia segura para fazer uma afirmação. Mas o que eu sabia, meu passado rural, parecia não ter a menor importância na vida que levo agora. Recolhi uma uva para fotografar. (DS, entrevista, 2017)
A escrita acadêmica exige performatividades específicas, que, por vezes, anulam o modo como flui o pensamento do pesquisador, o seu corpo, a sua historicidade. Nesse sentido, ela implica uma tentativa – sempre frustrada – de apagamento do sujeito que escreve. Exige um esforço de silenciamento dos fluxos que atravessam o pensamento, cujo efeito é uma forma de relação do sujeito consigo mesmo preconizado pela moral produtivista. A velocidade e os ritmos de publicação exigidos vêm a compor com esta forma de cultivo de si, na qual muitas vezes o pesquisador se vê frente à necessidade de medicalizar-se ou ainda de buscar outras estratégias que garantam o cumprimento de metas “autoimpostas”, como a diminuição do nível de exigência da escrita, o aumento do número de horas dedicadas ao texto e a utilização de plágio ou autoplágio. Todas essas práticas não se dão sem um custo elevado ao sujeito-pesquisador e ao próprio conhecimento produzido, como mencionado no início deste artigo.
Por outro lado, essas fissuras abertas pela entrada do modelo de produção neoliberal e na academia podem, por sua vez, proporcionar práticas reflexivas que resistam ao ideal do currículo competitivo. A pausa na escrita feita pela mestranda perante a angústia a colocou em outro modo de experienciar a si mesma: menos violento, talvez, e no qual pôde afirmar experiências que para ela tinham valor, valor questionável ao modelo acadêmico hegemônico. Em outra fotografia ( figura 3 ), ela traz um chá de jasmim tomado junto com essa mesma colega de apartamento, também para controlar a ansiedade em meio à escrita.
O seguinte poema, de Emily Dickinson, foi associado por ela à fotografia:
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém – Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste – ser – Alguém!
Que pública – a Fama –
Dizer seu nome – como a Rã –
Para as almas da Lama!2222. Dickinson E. Não sou ninguém: poemas. São Paulo: Unicamp; 2008. (p. 26)
As reflexões que seguiram diziam respeito à experiência de construir – às vezes com tristeza – uma escrita que não seria lida: para que (e para quem) servem os artigos, teses e dissertações que produzimos? O quanto um trabalho acadêmico é apreciado por pessoas além dos membros da banca e pareceristas de uma revista científica? Qual o sentido de produzir perante interlocutores que são, primordialmente, avaliadores? No poema, a palavra “pública” e a palavra “fama” aparecem na mesma estrofe para, em seguida, serem associadas a “rãs” e “lama”. A finalidade da moral produtivista é colocada em questão nas construções e na relação consigo das estudantes. Este seria o quarto aspecto da ética foucaultiana, correspondendo justamente ao que se toma como propósito da conduta moral, ou seja, a “teleologia da ética”.
Considerações finais
A questão que norteia este artigo diz respeito aos modos de sujeição e às possibilidades de resistência de estudantes de pós-graduação em relação ao que chamamos de uma ética do produtivismo. As análises realizadas no contexto da pesquisa e o recorte apresentado neste artigo permitem identificar alguns aspectos sobre as relações que esses pesquisadores estabelecem consigo mesmos diante das exigências acadêmicas. Um ponto que parece adensar práticas de si direcionadas a uma realização moral é a escrita de artigos, teses e dissertações, posto que é um dos fatores imprescindíveis para a medição da produtividade. Em nossa pesquisa, percebemos que ela aparece como um imenso desafio aos pós-graduandos, na medida em que exige deles um exercício de silenciamento de modos de pensar estrangeiros às convenções acadêmicas. Trata-se de uma habilidade em performar a neutralidade científica ou assumir uma erudição teórica eurocêntrica, masculinista e urbana, como mencionado por uma das mestrandas nos relatos verbais. Esse exercício de “purificar” a pesquisa e o texto do corpo que escreve é um trabalho de si sobre si que não se faz sem uma boa dose de angústia, cujo desdobramento é, com frequência, a medicalização.
Outro ponto analisado a partir da pesquisa sobre a experiência de si dos pós-graduandos diz respeito ao aproveitamento máximo do corpo, por meio da diminuição das horas de sono; idas ao laboratório nos fins de semana e nas férias; abdicação da licença-maternidade; troca de e-mails com orientador na noite de Natal; e consumo de estimulantes, como cafeína e metilfenidato. Em um momento no qual se discute mais amplamente a saúde mental de estudantes de pós-graduação, chama atenção que somente aqueles que desenvolvem depressão, transtornos de ansiedade ou tentativas de suicídio sejam tomados como vulneráveis, enquanto outros, que mantêm altos níveis de produtividade, são considerados cases de sucesso. Não estariam eles morrendo demais?
No que concerne à teleologia da ética produtivista, nossas análises apontam para uma individualização das recompensas pelas publicações e uma desconsideração do caráter coletivo das pesquisas. Um exemplo disso são as bolsas-prêmio anteriormente mencionadas, que se baseiam em uma premissa de que a produção escrita é resultado das qualidades individuais e do empenho do pesquisador. O perigo dessa lógica é que a lista dos “improdutivos” se encha de estudantes com menos privilégios econômicos, sociais e de gênero, ainda que estes estabeleçam consigo relações voltadas para a mesma teleologia que os demais. As práticas de si deverão ser mais rigorosas e, talvez, adoecedoras.
Por fim, é importante dizer que a moral produtivista encontra também enfrentamentos na constituição de exercícios de liberdade que questionam seus fundamentos. Eles se afirmam em recados nas plantas, chás de jasmim, pausas na escrita, caminhadas na chuva, encontros com outros estudantes, escolha por narrativas não hegemônicas na academia, como quadrinhos e fotografia. Precisamos estar atentos a esses tensionamentos, pois eles nos mostram caminhos singulares e práticas de si que permitem “morrer apenas o necessário” neste “abismo que nos cerca”.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Ago 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
15 Jan 2019 - Aceito
07 Jun 2019