RESUMO
As novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) visam à reestruturação e adequação dos currículos médicos. Objetiva-se realizar uma análise crítico-reflexiva da reestruturação da matriz curricular para um curso de Medicina. Trata-se de uma pesquisa-ação realizada em uma universidade federal brasileira. Para a análise do material, procedeu-se com Análise de Discurso. Como resultados, destacou-se uma proposição curricular que valorize a vida, capaz de transpor o paradigma biomédico para incorporar outras dimensões no cuidado em Saúde. Apontou-se para o fortalecimento de uma matriz curricular retroalimentada pelas demandas sociais, tendo a Atenção Primária como cenário preferencial para a formação. Propõe-se o estabelecimento de relações de longitudinalidade e transversalidade entre as áreas de competência das DCN de 2014 e os componentes curriculares ofertados. Intenciona-se fomentar a compreensão dos determinantes e relações das doenças com os modos de vida das comunidades.
Palavras-chave:
Educação médica; Currículo; Atenção primária à saúde; Saúde coletiva; Integralidade em saúde
Introdução
O século XXI demonstrou a fragilidade dos sistemas de saúde em lidar com a tripla carga de doenças infecto-parasitárias, crônicas não transmissíveis e causas externas. Expôs, também, o descompasso da formação médica para com as principais necessidades de saúde da população11 Amoretti R. A educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005; 29(2):136-46..
Parte dessa incongruência entre formação profissional e necessidades de saúde relaciona-se a um processo histórico de elaboração de currículos, muitas vezes descontextualizados, fragmentados e focalizados na técnica. Nesse contexto, pelo menos três gerações de reformas educacionais importantes podem ser destacadas22 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010; 376(4):1923-58.. A primeira foi uma mudança paradigmática, desencadeada a partir da publicação do Relatório Flexner, no início dos anos 1920, no qual se solidifica a formação em ambientes hospitalares como cenários privilegiados para o exercício da prática médica22 Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010; 376(4):1923-58..
A segunda reforma introduziu inovações pedagógicas, como o Problem-Based Learning (PBL), as metodologias ativas e o trabalho em pequenos grupos na formação de profissionais de saúde. As faculdades de Medicina, em especial, foram estimuladas a romper com estruturas hierarquizadas e modelos tradicionais de ensino para adotarem metodologias de ensino-aprendizagem centradas no aluno33 Cyrino E, Toralles-Pereira M. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad Saude Publica. 2004; 20(3):780-8..
A terceira geração de mudanças ganha força nos sistemas educacionais a partir do conceito de “social accountability”, termo que ainda carece de tradução, pois não se restringe apenas à responsabilidade social. Trata-se do compromisso de prestação de contas, de uma relação que se inicia no acolhimento das preocupações sociossanitárias das comunidades, regiões ou nações para o direcionamento das atividades de ensino, pesquisa e serviço44 Boelen C, Heck J. Defining and measuring the social accountability of medical schools [Internet]. Geneva: World Health Organization; 1995 [citado 12 Set 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/59441/1/WHO_HRH_95.7.pdf
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... . Caracteriza-se, portanto, pela necessidade de as instituições educacionais estarem engajadas para melhorar o desempenho dos sistemas de saúde, adaptando as competências profissionais essenciais para contextos e cenários específicos11 Amoretti R. A educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005; 29(2):136-46..
No Brasil, o movimento pela Reforma Sanitária pode ser considerado vanguarda desse novo paradigma, quando contribuiu para institucionalizar a formação de recursos humanos para a saúde por meio da Constituição Federal. De acordo com a Lei Orgânica da Saúde no 8.080/90, a ordenação do processo de formação desses profissionais deve ser orientada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em conformidade com as necessidades de saúde mais prevalentes da população55 Presidência da República (BR). Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990..
Aliado a esse aspecto, ganha relevo a conformação do campo da Saúde Coletiva, constituído a partir de críticas ao modelo biomédico de formação. Institui-se como expansão de um paradigma que incorpora uma perspectiva biopsicossocial do indivíduo e que extrapola sua concepção pedagógica para além dos muros dos hospitais, direcionando experiências e olhares educacionais também para as comunidades66 Nunes E. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 17-37..
Nas últimas três décadas, várias ações significativas foram propostas na forma de documentos e legislações no Brasil (figura 1). Essas iniciativas vêm contribuindo para fomentar o debate sobre a formação de profissionais da saúde77 Ministério da Saúde (BR). Anais da 8a Conferência Nacional de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 1986.
8 Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicinas e nutrição. Brasília: Ministério da Educação; 2001.
9 Presidência da República (BR). Lei nº 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de Dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013.
10 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Mais Médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
11 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.
12 Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de Novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Diário Oficial da União. 3 Nov 2005.
13 Severino AJ. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez; 2007.-1414 Ibiapina IMJM, Bandeira HMM. Pesquisa-ação crítica: origem e desenvolvimento do campo teórico-prático. In: Ibiapina IMJM, Bandeira HMM, Araújo FAM. Pesquisa colaborativa: multirreferenciais e práticas convergentes. Piauí: EDUFPI; 2016..
Um grande marco a ser destacado refere-se à publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de Medicina, no ano de 200188 Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicinas e nutrição. Brasília: Ministério da Educação; 2001., que já expressavam a preocupação com uma formação médica generalista, humanista, crítica e reflexiva. Além disso, trouxeram para orientação curricular as competências divididas em seis temáticas: Atenção à Saúde; tomada de decisões; comunicação; liderança; administração e gerenciamento; e educação permanente88 Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicinas e nutrição. Brasília: Ministério da Educação; 2001..
No ano de 2013, o governo brasileiro lançou o Programa Mais Médicos por meio da Lei 12.871, com diretrizes que reorientam a educação médica na graduação e pós-graduação. Dentre os seus objetivos, destaca-se o estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no país99 Presidência da República (BR). Lei nº 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de Dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013.,1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Mais Médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2015..
Em 2014, foram publicadas as novas DCN para os cursos de graduação em Medicina1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Trazem no seu escopo a necessidade de capacitar os futuros profissionais para atuarem nos diferentes níveis de atenção. Além disso, reforçam o compromisso com a defesa da dignidade humana, da saúde integral e da transversalidade da sua prática orientada pela determinação social do processo saúde-doença1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Diferentemente das DCN de 2001, as de 2014 dão ênfase ao campo da Saúde Coletiva quando dispõem de ações-chave planejadas e realizadas a partir do reconhecimento de dados demográficos, epidemiológicos, sanitários e ambientais, considerando dimensões de risco e vulnerabilidade das coletividades. Apresentam ainda as áreas de competência divididas em três eixos temáticos: Atenção à Saúde, Gestão em Saúde e Educação em Saúde1212 Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de Novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Diário Oficial da União. 3 Nov 2005..
Os cursos de graduação em Medicina de todo o Brasil têm envidado esforços na direção da reestruturação e readequação de seus currículos para o atendimento ao que preconiza as novas DCN. O ponto de partida para a tessitura deste manuscrito baseia-se na necessidade de reformulação do currículo vigente de uma escola médica no Nordeste do Brasil, com vistas a sua adequação às novas DCN de 2014. Passados 17 anos desde sua última alteração, o currículo vigente demanda modificações pela predominância dos cenários de prática no âmbito hospitalar; pela pouca inserção de atividades teórico-práticas vinculadas ao campo da Saúde Coletiva de modo geral e da Atenção Primária em Saúde em específico; e pelo baixo planejamento e execução de atividades orientadas pela determinação social do processo saúde-doença. Nesse contexto, objetiva-se realizar uma análise crítico-reflexiva da reestruturação da matriz curricular para um curso de Medicina em uma universidade pública federal no Nordeste do país.
Metodologia
Adotou-se como metodologia de investigação a pesquisa-ação participativa que, além de compreender, visa intervir na situação com vistas a modificá-la. Esse processo de investigação se move por meio de permanente espiral de ação e reflexão1313 Severino AJ. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez; 2007.. As fases da pesquisa-ação podem se sobrepor e os planos iniciais por vezes passam por modificações com os processos de reflexão realizados pelos pesquisadores e participantes1414 Ibiapina IMJM, Bandeira HMM. Pesquisa-ação crítica: origem e desenvolvimento do campo teórico-prático. In: Ibiapina IMJM, Bandeira HMM, Araújo FAM. Pesquisa colaborativa: multirreferenciais e práticas convergentes. Piauí: EDUFPI; 2016..
Neste estudo, a pesquisa-ação participativa foi delineada em três momentos: elaboração de um referencial teórico, ação prática e avaliação/reflexão permanente. Todos os momentos da tessitura de uma nova matriz curricular para o curso de Medicina, com o foco na Saúde Coletiva à luz das DCN de 2014, fizeram parte e foram vividos em um movimento em espiral, conforme os pressupostos da pesquisa-ação participativa1414 Ibiapina IMJM, Bandeira HMM. Pesquisa-ação crítica: origem e desenvolvimento do campo teórico-prático. In: Ibiapina IMJM, Bandeira HMM, Araújo FAM. Pesquisa colaborativa: multirreferenciais e práticas convergentes. Piauí: EDUFPI; 2016..
O cenário de investigação foi o curso de graduação em Medicina da Universidade Federal do Ceará, no município de Fortaleza. Este, por sua vez, foi pioneiro na formação, sendo a primeira escola médica do estado, constituindo-se como uma das referências para a organização das matrizes curriculares dos demais cursos que surgiram a posteriori. Além disso, é a instituição de ensino superior (IES) que mais oferece vagas para ingresso no estado1515 Lampert JB, Costa NMC, Perim GL, Abdalla IG, Aguilar-da-Silva RH, Stella RCDR. Tendências de mudanças em um grupo de escolas médicas brasileiras. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(1):19-34..
Administrativamente, a Faculdade de Medicina divide-se em oito departamentos, entre eles, o Departamento de Saúde Comunitária (DSC), objeto analítico deste artigo. Esse departamento é corresponsável pela organização pedagógica dos dois únicos componentes curriculares longitudinais e obrigatórios que perpassam todos os semestres do curso: Assistência Básica à Saúde (ABS) e Desenvolvimento Pessoal (DP). Além desses, também é responsável por coordenar o Internato em Saúde Comunitária, com ênfase na Atenção Primária. Dialoga com os campos da Epidemiologia; das Ciências Sociais e Humanas; Saúde, Trabalho e Ambiente; e Política e Planejamento em Saúde.
Os sujeitos da pesquisa foram docentes e coordenadores de módulos longitudinais ofertados pelo DSC. Também fizeram parte do estudo servidores técnicos que contribuem com o ensino na graduação, como enfermeiros, médicos e pedagogos.
A pesquisa foi realizada entre março de 2015 e abril de 2016. Durante esse período, foram realizados quatro seminários temáticos. Destes, três foram definidos em conformidade com as áreas de competência estabelecidas para a formação médica: I - Atenção à Saúde; II - Gestão em Saúde; e III - Educação em Saúde1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Estes objetivaram discutir as novas diretrizes, visando conduzir mudanças curriculares capazes de extrapolar um simples exercício pragmático. O 4o seminário foi realizado com o fito de apresentar para o colegiado do DSC o produto das sistematizações, de modo a promover uma validação coletiva dos resultados. O número de participantes variou em cada seminário. Contudo, pelo menos um representante de cada módulo esteve presente em todos os encontros, totalizando o mínimo de sete integrantes em cada momento. Os seminários foram facilitados por uma pedagoga com experiência em reelaboração de projetos pedagógicos de cursos de graduação na área da Saúde.
Para a condução dos seminários, adotaram-se as seguintes perguntas orientadoras: “o que ensinar”, “por que ensinar”, “para que ensinar” e “para quem ensinar”. A partir dessas questões, cada participante foi instigado a problematizar e escrever individualmente suas ideias sobre sua prática pedagógica atual, utilizando as áreas de competência em seus três eixos temáticos: Atenção à Saúde, Gestão em Saúde e Educação em Saúde das novas DCN de 2014 como modelo de referência analítica. Buscou-se com isso promover uma reflexão ontológica sobre a natureza do processo de ensino-aprendizagem, da produção de conhecimento, da cultura e da sociedade1616 Silva TT. Documento de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica; 2011..
O produto de cada seminário era transcrito, sistematizado, categorizado e apresentado no seminário seguinte, gerando novas reflexões, debates, embates e produção. Dessa forma, a participação acontecia em três momentos: individual, em pequenos grupos e em plenária. As categorizações temáticas1717 Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução a análise de discurso. São Paulo: Hacker Editores; 1999. foram organizadas em diálogo com as DCN de 2014, seguindo as áreas apresentadas na resolução: Atenção à Saúde, Gestão em Saúde e Educação em Saúde1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Posteriormente, foram analisadas e discutidas à luz da literatura científica.
Para a análise do material qualitativo, procedeu-se com a Análise de Discurso (AD), que procura “descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos”1717 Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução a análise de discurso. São Paulo: Hacker Editores; 1999. (p. 7). Dessa forma, a AD não se interessa apenas pelo que o texto diz ou evidencia. Por outro lado, visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos e como ele está investido de significância para e por sujeitos, pois toda fala é uma forma de ação1818 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editora; 2000..
Para tanto, é fundamental que os discursos sejam compreendidos e interpretados como práticas sociais determinantes e determinadas pelo contexto sociohistórico. Afinal, o analista de discurso não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em posição que lhe permite contemplar e agir sobre o processo de produção dos sentidos e em suas condições1818 Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editora; 2000.. Somente dessa forma o analista de discurso possui propriedade para interpretar e reinterpretar o seu corpus textual1717 Pinto MJ. Comunicação e discurso: introdução a análise de discurso. São Paulo: Hacker Editores; 1999.. Foi acordado ainda entre os participantes que as falas oriundas dos seminários não seriam tratadas de forma individual. Pelo contrário, seriam analisadas como produto coletivo de cada encontro, sendo identificadas pela letra (S), seguida do número do seminário.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará sob o número do parecer 04350712.4 0000.5054/2013.
Resultados e discussão
Áreas de competência da formação médica e a interface com o campo da Saúde Coletiva
Para iniciar o exercício de análise crítico-reflexiva das DCN de 2014, optou-se por realizar uma problematização acerca das proposições inscritas em cada uma das áreas de competência e suas ações-chave. A opção por esse percurso justificou-se por residir nessas seções a possibilidade de transformar as diretrizes em efetivas práticas competentes, adequadas e oportunas para a formação médica1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Atenção à Saúde
No que tange à área de competência Atenção à Saúde, esta se estrutura em duas subáreas: atenção às necessidades individuais de saúde e às necessidades de Saúde Coletiva. Ressalta-se que mesmo no âmbito da atenção às necessidades individuais, o grupo de docentes identificou contribuições relevantes do campo da Saúde Coletiva para a formação médica. Dentre elas, destaca-se uma ressignificação do paradigma biomédico, caminhando em direção a uma gestão compartilhada da clínica com o paciente, recolocando-o enquanto protagonista do seu próprio processo de cuidado:
A competência médica não é apenas técnica. É preciso sair do eixo biológico e ampliar o olhar para o paciente, para as decisões dele sobre sua vida, suas condições de lidar com sua doença. Isso pode se tornar real se a gente pensa e trabalha para a formação de um profissional mais humanizado, algo que interligue a formação humana com aprendizagem, com as teorias do conhecimento, com os aspectos da cultura. (S2)
Contudo, superar o paradigma biomédico para um enfoque de transição centrado na pessoa parece ainda não ser consenso, nem na prática profissional, nem na literatura científica. O paradigma médico-centrado ainda é considerado, por vezes, um elemento de poder. Autores como Bursztyn1919 Bursztyn I. Diretrizes curriculares nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cad ABEM. 2015; 2:6-19. destacam que a atenção às necessidades individuais é um domínio de destaque do médico: "A clínica, nomeada aqui como Atenção à Saúde Individual, é o espaço indiscutível de liderança do médico. A Saúde Coletiva, nomeada como Atenção às Necessidades de Saúde Coletiva, é um domínio onde o médico coopera com outros profissionais"1919 Bursztyn I. Diretrizes curriculares nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cad ABEM. 2015; 2:6-19. (p. 15).
Nesse escopo, prioriza-se o fortalecimento de uma formação de cunho assistencial, em geral voltada para a atenção à doença em sua manifestação corporal. Cabe salientar ainda que fomentar um pensamento anacrônico que propõe a hierarquização do profissional médico em relação às demais categorias da saúde também parece contraproducente, sobretudo quando consideramos a complexidade e multicausalidade dos problemas que perpassam o binômio saúde-doença.
Outrossim, demarcar a clínica como um espaço indiscutível de liderança do médico vai de encontro às próprias orientações inscritas no arcabouço das novas DCN. De acordo com o documento, na formação médica deve prevalecer:
[...] o trabalho interprofissional, em equipe, com o desenvolvimento da relação horizontal, compartilhada, respeitando-se as necessidades e os desejos da pessoa sob cuidado, família e comunidade, a compreensão destes sobre o adoecer, a identificação de objetivos e responsabilidades comuns entre profissionais de saúde e usuários no cuidado1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. (p. 2)
Outro ponto de confluência identificado nas novas DCN de 2014 com o campo da Saúde Coletiva reside no desenvolvimento de planos terapêuticos compartilhados, que preveem a negociação do tratamento com a pessoa sob cuidado, considerando a utilização de práticas populares de saúde1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Nessa perspectiva, identificou-se um alinhamento teórico com as contribuições oriundas dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS)2020 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2008.,2121 Campos G. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria PAIDEIA e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 39-78..
Os PTS caracterizam-se como um conjunto de propostas e condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultante da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar2121 Campos G. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria PAIDEIA e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 39-78.. Apresenta-se como uma ferramenta importante, tanto pelo fato de oportunizar diálogos transdisciplinares entre as equipes de saúde quanto pela proposição de ações que vão para além do combate às doenças:
Acreditamos que o estudante de Medicina tem condição de articular sua atuação com o trabalho de outros profissionais de saúde, serviços e instituições porque poderá entender a complexidade da doença e que necessita de várias mãos para obter o resultado desejado. A assistência à saúde é feita por uma equipe, e não por um único profissional. (S1).
A proposta do grupo de docentes e técnicos para a reformulação da matriz curricular para o curso de graduação em Medicina da Universidade Federal do Ceará caminhou em direção ao fortalecimento da Clínica Ampliada, vista como uma importante estratégia para superar o olhar fragmentado, essencialmente curativo e hospitalocêntrico em que ainda se assenta a formação em muitas escolas médicas2222 Feuerwerker L. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec; 2002..
Nesse contexto, oportuniza-se a confluência entre a clínica e a saúde coletiva. Apesar de reconhecer que ambas têm espaços de domínio próprios, ou campos científicos específicos2323 Bourdieu P. O poder simbólico. 14a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010., os objetos de suas práxis convergem para a responsabilidade sobre o cuidado em saúde.
A partir desse enfoque, a clínica e a saúde coletiva deixam de figurar como campos dicotômicos de conhecimento. Por outro lado, a conjunção desses paradigmas contribui sobremaneira para uma formação médica generalista, com visão ampliada, capaz de reconhecer a complexidade que permeia o processo saúde-doença nas suas diferentes dimensões biológicas, subjetivas, socioeconômicas, sanitárias e culturais.
A confluência entre a clínica e a saúde coletiva na matriz curricular dos cursos de Medicina, antes de representar espaços dicotômicos, desconexos ou pouco atrativos para os estudantes1919 Bursztyn I. Diretrizes curriculares nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cad ABEM. 2015; 2:6-19., contribui para uma formação humanista, ética, crítica e reflexiva. Apresenta, portanto, potencial para alinhar-se às necessidades de saúde e à realidade epidemiológica das populações e comunidades. Além disso, fortalece o desenvolvimento das ações de promoção da saúde e prevenção das doenças, tendo como foco analítico para a condução terapêutica a determinação social do processo saúde-doença1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
Educação e Gestão em Saúde
Nos seminários realizados também foram identificadas confluências entre as orientações das DCN com o campo da Saúde Coletiva no que tange às áreas de competência Educação em Saúde e Gestão em Saúde. Nesse contexto, priorizou-se a reflexão sobre as potencialidades dos cenários de práticas para o diálogo sistemático entre os estudantes de Medicina e as comunidades durante todo o seu percurso de formação. Dessa forma, facilita-se a criação de ambiências fecundas para o desenvolvimento de processos contínuos de reflexão/formação acerca das práticas de saúde, que se balizam e são referenciadas também pelos usuários dos serviços de saúde2424 Ferreira R, Silva R, Aguer C. Formação do profissional médico: a aprendizagem na Atenção Básica de Saúde. Rev Bras Educ Med. 2007; 31(1):52-9..
Estabelecem-se ainda mecanismos e estratégias que não apenas fomentem o diagnóstico e tratamento das doenças, mas que também promovam o desenvolvimento do protagonismo e autonomia dos estudantes de Medicina, médicos e usuários com o processo de cuidado2424 Ferreira R, Silva R, Aguer C. Formação do profissional médico: a aprendizagem na Atenção Básica de Saúde. Rev Bras Educ Med. 2007; 31(1):52-9.,2525 Ministério da Saúde (BR). Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2008.. Além disso, os cenários de prática facilitam o fortalecimento do vínculo entre esses atores, propiciando o desenvolvimento de relações horizontais e pautadas no respeito mútuo:
[...] Estes são desafios postos para as instituições de ensino superior. Reconhecer a importância de cada um dos sujeitos para o sucesso do plano terapêutico [...] acho que a gente devia ir resgatando o exercício da crítica reflexiva, do consertar, do construir e do descobrir melhores caminhos e práticas de ensino e cuidado. (S2)
Com base nesse escopo, caminha-se para uma proposição curricular que valoriza a vida, visando à melhoria da qualidade da Atenção à Saúde por meio do desenvolvimento de estratégias que fortaleçam também as ações de promoção da saúde e prevenção de doenças como indispensáveis para a prática médica. Busca-se com isso a transição de um paradigma que se orienta por meio de “indica-dores”, calcado nos efeitos negativos à saúde e focalizado no olhar biomédico e curativo, para a estruturação de uma proposta de “indica-ação”, que coloca no centro de sua abordagem as condições de vida e os contextos sociais em que se desenvolvem os processos de produção e reprodução da vida social2626 Breilh H. De lavigilancia convencional al monitoreo participativo. Cienc Saude Colet. 2003; 8(4):937-51..
A incorporação dessas proposições na matriz curricular dos cursos de Medicina representa uma ressignificação do atual modelo de formação, em que se prioriza o hospital como o cenário prioritário de práticas, promovendo um descompasso entre as orientações advindas das políticas públicas1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Mais Médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
11 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.-1212 Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de Novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Diário Oficial da União. 3 Nov 2005., as necessidades sociais do país e o fortalecimento da Atenção Básica2727 Oliveira NA, Alves LA. Ensino médico, SUS e início da profissão: como se sente quem está se formando? Rev Bras Educ Med. 2011; 35(1):26-36.. Por outro lado, propõe uma práxis que se sustenta em um permanente e indissociável processo de reflexão e ação, conjugado às interações e determinações do mundo social concreto, em que estudantes e usuários dos serviços de saúde auxiliam-se mutuamente para a construção de um conhecimento compartilhado, socialmente referenciado e com retorno social2828 Ferreira MJM, Rigotto RM. Contribuições epistemológicas/metodológicas para o fortalecimento de uma (cons)ciência emancipadora. Cienc Saude Colet. 2014; 19(10):4103-11., conforme se observa a seguir: "Em termos de ensino, as competências profissionais que promovam a autonomia e a independência intelectual, com responsabilidade social, são, pela essência delas, inequivocamente indispensáveis para a formação de um bom médico (S4).
Dessa forma, favorecem a tessitura de uma matriz curricular que se alimenta e é alimentada pelas demandas sociais, orientadas em consonância com o perfil de morbimortalidade das comunidades e que incorporam o desafio de responder às necessidades de saúde da população. Adotam a Atenção Básica como nível de atenção prioritário para a efetivação das mudanças curriculares propostas, tendo em vista seu potencial de operacionalizar grande parte das competências previstas nas DCN de 2014. Além disso, alinham-se às políticas que fomentam o desenvolvimento desse nível de atenção, considerando a necessidade de readequação e fortalecimento da formação de recursos humanos aptos a atender às necessidades do SUS1010 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Mais Médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
11 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.
12 Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de Novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Diário Oficial da União. 3 Nov 2005.
13 Severino AJ. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez; 2007.-1414 Ibiapina IMJM, Bandeira HMM. Pesquisa-ação crítica: origem e desenvolvimento do campo teórico-prático. In: Ibiapina IMJM, Bandeira HMM, Araújo FAM. Pesquisa colaborativa: multirreferenciais e práticas convergentes. Piauí: EDUFPI; 2016..
Para tanto, faz-se necessário o desenvolvimento de estratégias capazes de favorecer a vinculação dos estudantes junto com a Atenção Básica, de maneira ordenada e sistemática ao longo de todo o curso. Contudo, as condições materiais foram apontadas como elementos de fragilidade:
Penso que algumas dificuldades para inserção dos alunos no serviço poderiam ser superadas se a universidade participasse mais ativamente da gestão das unidades de Saúde. Seria muito interessante se os alunos pudessem ter certa fixação nas unidades de Saúde, unidades fixas de prática ao longo do curso. (S3)
No que tange à área de Gestão em Saúde, as novas DCN de 2014 orientam os cursos de Medicina a promoverem o bem-estar das comunidades por meio da valorização da vida, por um profissional médico generalista, propositivo e resolutivo. Para tanto, estimulam a elaboração e implementação de planos de intervenção, com apoio à criatividade e à inovação1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.. Contudo, os participantes dos seminários apontaram esses elementos como críticos e incipientes:
[...] vivemos numa cultura de self service, onde na verdade as pessoas, e nossos alunos, querem escolher o que já está pronto. Isto é, escolhe-se aquilo que já está feito. Pensar, fazer e inovar são ações consideradas perda de tempo ou desperdício de recursos, pois se acredita que utilizar o que já está feito é mais prático. Percebemos também que muitos profissionais médicos assimilaram também essa atitude em suas práticas. (S4)
Apesar dos desafios, iniciativas vêm sendo desenvolvidas com o intuito de estimular o compromisso dos estudantes de Medicina com a defesa da cidadania, da dignidade humana e do direito à saúde. Dessa forma, o trabalho colaborativo e em equipe, alinhado ao desenvolvimento de cenários de ensino-aprendizagem pautados pela ética profissional e solidária, apresentam-se como ferramentas importantes para ressignificar o cuidado em saúde:
Temos procurado propiciar um aprendizado em que os alunos discutem com colegas sobre situações-problema. Também propiciamos um trabalho de campo onde os alunos, além de se depararem com problemas de saúde, são motivados a descrevê-los, analisá-los e propor soluções coletivas com as comunidades. (S3)
Reconhece-se, portanto, a potencialidade dos cenários de prática e da coletividade para o desenvolvimento do compromisso com a qualidade, integralidade e continuidade da atenção. Além disso, a inclusão da perspectiva dos usuários, família, estudantes e profissionais propicia o trabalho colaborativo em saúde. Todos esses processos contribuem para a priorização de problemas, visando melhorar a organização do processo de trabalho e da Atenção à Saúde. Dessa forma, avança-se em busca de uma construção coletiva do sistema de saúde, pautada em princípios humanísticos, éticos, solidários e sanitários1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014..
O campo da Saúde Coletiva como alicerce para a elaboração de uma nova matriz curricular no curso de Medicina
O diálogo entre as novas DCN de 2014 e o arcabouço teórico-conceitual do campo da Saúde Coletiva propiciaram um aprofundamento analítico-reflexivo das suas inter-relações. Contribuiu ainda para subsidiar a proposição de uma nova matriz curricular no âmbito da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal do Ceará.
O acúmulo adquirido pelos docentes e técnicos durante os seminários possibilitou uma aproximação paradigmática entre as áreas de competência das novas Diretrizes Curriculares Nacionais1111 Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014., os fundamentos estruturantes do campo da Saúde Coletiva66 Nunes E. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 17-37. e os componentes curriculares ofertados pelo curso de Medicina2929 Comissão de Reforma Curricular da Universidade Federal do Ceará/Faculdade de Medicina. Projeto pedagógico: currículo do curso de medicina. Fortaleza: Imprensa Universitária; 2001.. Com vistas a fomentar a importância da integralidade da atenção e da humanização do cuidado durante a formação médica, buscou-se uma maior integração entre os conteúdos curriculares ao longo dos módulos. Além disso, esse conhecimento adquirido pelos docentes e técnicos proporcionou a inserção transversal dos componentes de habilidades comunicacionais e relação médico-pessoa sob cuidado constando, inclusive, na ementa de alguns módulos ao longo do curso.
A representação esquemática da nova matriz curricular enquanto produto dos seminários traz a abordagem de cada uma das áreas de competência das DCN ao longo do curso, em diálogo com os três eixos estruturantes do campo da Saúde Coletiva. No início da formação, os estudantes passam por um processo Introdutório (I) nas três áreas. No decorrer dos semestres, são direcionados Focos Principais (F) e Aprofundamentos Teórico-Práticos (ATP), em diálogo com os conteúdos dos módulos. Já no internato, resgatam as três áreas com um enfoque de Aprofundamento Prático (AP). Os componentes relacionados à Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; e Política, Planejamento e Gestão alimentam transversalmente os conteúdos em todos os semestres.
A representação esquemática da matriz curricular pode ser visualizada na figura 2.
O desenho de um currículo expressa o modo como uma instituição educacional se vê no mundo, ou seja, o seu papel, as relações que estabelece, a escolha dos seus interlocutores e como se produz e concebe o conhecimento. Além disso, sobretudo nas faculdades de Medicina, expressa também a concepção que se tem sobre a saúde e o papel do médico na sociedade2222 Feuerwerker L. Além do discurso de mudança na educação médica: processos e resultados. São Paulo: Hucitec; 2002..
Nesse sentido, a matriz curricular ora proposta tenciona para reformulações:
Ressignifica a Atenção Primária à Saúde como cenário preferencial para o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes do profissional médico.
Sintoniza o desenvolvimento de sua práxis em consonância com as demandas mais prevalentes de saúde das famílias e comunidades.
Propõe o estabelecimento de relações de longitudinalidade e transversalidade entre as áreas de competência das DCN de 2014, os núcleos fundantes da Saúde Coletiva e os componentes curriculares ofertados durante o curso:
Que o currículo é importante, ninguém deixa de concordar. Mas o que temos que dialogar são quais estratégias podemos usar para conseguir o que queremos com nossos alunos: formar médicos de pessoas, e não de doença! Um currículo deve servir para formar, e não deformar. Não devemos adoecer filosoficamente nossos alunos. (S1)
Dessa forma, o currículo passa a ser compreendido não como um fim em si mesmo, mas como um meio em que se ancoram as diferentes estratégias pedagógicas. Deve-se considerar ainda a indissociabilidade do tripé ensino-pesquisa-extensão como alicerces para uma formação de base sólida, de forma a priorizar a atenção às necessidades concretas de saúde da população. Faz-se necessária a inserção permanente dos alunos na Atenção Primária, adotando-a como cenário concreto para o desenvolvimento de atividades práticas, em contextos de complexidade e responsabilidade crescentes11 Amoretti R. A educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005; 29(2):136-46..
A inserção dos alunos na Atenção Primária à Saúde contribui ainda para o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família, na medida em que auxilia no diálogo entre o serviço e a universidade. Potencializa, com isso, o fluxo para que o tripé acadêmico de ensino, pesquisa e extensão possa atuar no desenvolvimento de tecnologias e ferramentas capazes de dar maior resolutividade aos desafios cotidianos do serviço.
Além disso, o fortalecimento da articulação ensino-serviço-comunidade possibilita a criação de cenários propícios para a troca de saberes, em que a complexidade experimentada no cotidiano de trabalho dos serviços de saúde alimenta as discussões e enriquece o processo ensino-aprendizagem na graduação. Por meio dessas vivências, os alunos passam a compreender as dificuldades e possibilidades das práticas conjugadas em saúde, vivenciando o cotidiano do SUS real.
Considerações finais
O ordenamento da formação de recursos humanos na área da Saúde com vistas a atender as necessidades do SUS continua a ser um desafio atual, sobretudo na área médica. Nesse sentido, iniciativas governamentais vêm sendo instituídas com o intuito de promover reformulações no âmbito da estrutura curricular dos cursos de Medicina, contribuindo com uma formação profissional capaz de responder de maneira eficaz às demandas de saúde mais prevalentes da população.
No escopo desse processo, as novas DCN de 2014 para os cursos de Medicina foram instituídas apontando para um maior fortalecimento da Atenção Primária em Saúde, ressignificando-a como espaço estratégico para a formação médica. Além disso, valoriza as potencialidades do campo da Saúde Coletiva, incorporando seus elementos paradigmáticos na proposição de áreas de competências articuladas, na perspectiva de fomentar a atenção integral à saúde.
Nesse contexto, a matriz curricular ora proposta busca fomentar nos graduandos a compreensão dos determinantes e das relações das doenças com o modo de vida e de trabalho das pessoas. Para tanto, valoriza o tripé ensino-serviço-comunidade como estratégia capaz de possibilitar mudanças no cuidado à saúde das pessoas, família e comunidade.
Fica evidente a necessidade de escuta atenta dos atores envolvidos, desde a formulação de novas matrizes no currículo da formação médica até o diálogo mais aproximado com o sistema público de Saúde.
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- 4Boelen C, Heck J. Defining and measuring the social accountability of medical schools [Internet]. Geneva: World Health Organization; 1995 [citado 12 Set 2017]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/59441/1/WHO_HRH_95.7.pdf
» http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/59441/1/WHO_HRH_95.7.pdf - 5Presidência da República (BR). Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.
- 6Nunes E. Saúde coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 17-37.
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- 8Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicinas e nutrição. Brasília: Ministério da Educação; 2001.
- 9Presidência da República (BR). Lei nº 12.871, de 22 de Outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de Dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Out 2013.
- 10Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa Mais Médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde; 2015.
- 11Ministério da Educação (BR). Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Brasília: Ministério da Educação; 2014.
- 12Portaria Interministerial nº 2.101, de 3 de Novembro de 2005. Institui o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde - para os cursos de graduação em Medicina, Enfermagem e Odontologia. Diário Oficial da União. 3 Nov 2005.
- 13Severino AJ. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez; 2007.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Maio 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
07 Dez 2017 - Aceito
08 Out 2018