O artigo de Heider Pinto e colegas11 Pinto HA, Andreazza R, Ribeiro RJ, Loula MR, Reis AAC. O Programa Mais Médicos e a mudança do papel do Estado na regulação e ordenação da formação médica. Interface (Botucatu). 2019; 23(Supl. 1): e170960 . traz elementos para debate que merecem ser discutidos sob a ótica do ciclo das políticas públicas. Portanto, ainda que os autores expressem o seu estatuto engajado com a política que propõem analisar, a sua reflexão tem relevância para o debate académico per si e para informar a ação governativa futura.
O artigo mostra o quanto a decisão política é um processo pautado por circunstâncias. Falar em processo remete para o entendimento dos diferentes ciclos das políticas públicas: emergência e agendamento do problema; e formulação, implementação e avaliação das políticas22 Rodrigues M. Exercícios de análise de políticas públicas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda e ISCTE-IUL; 2014.. Falar de circunstâncias remete para o fato de a concretização dos ciclos políticos ser variável. No fundo, trata-se de abrir a “caixa negra” da ação governativa, entendendo que as decisões adotadas no decorrer dos ciclos das políticas resultam da estrutura e organização momentânea de grupos de interesse33 Bourgeault IL. Conceptualizing the social and political context of the health workforce: health professions, the state, and its gender dimensions. Front Sociol. 2017; 2:16. doi: 10.3389/fsoc.2017.00016.
https://doi.org/10.3389/fsoc.2017.00016... . Esses grupos incluem comunidades políticas alargadas (partidos e múltiplos movimentos de organização social com fins políticos), como também profissões, mercado, instâncias de regulação internacional e, claro está, a universidade.
O argumento é que o aspeto estrutural do Programa Mais Médicos (PMM) adotado no Brasil procurou reconfigurar o papel do Estado na regulação dos recursos humanos em saúde (RHS), do ponto de vista tanto da oferta quanto do ensino e, consequentemente, das práticas assistenciais.
Quanto à emergência da política, o artigo aponta dois problemas que o PMM visava responder. Um era o desequilíbrio da distribuição de médicos no território, quer em termos gerais, quer em termos de certas especialidades; o outro era a necessidade de o Estado regular a educação médica na ótica da oferta e do ensino. O argumento dos autores é que o primeiro problema decorre do segundo e a questão é simples de compreender: os governos não têm forma de assegurar o compromisso com a universalidade e integralidade dos cuidados a não ser por intermédio de mecanismos de controle e previsibilidade dos múltiplos meios necessários nessa prestação. Esses meios incluem a tecnologia, as infraestruturas, o conhecimento e os profissionais. Não agir politicamente em algum desses meios remete os sistemas de saúde a graus variáveis de exposição ao mercado, a interesses parcelares ou a ambos. Sabe-se da dificuldade de regulação para escala nacional do mercado global de tecnologia e inovação em saúde (ex: medicamentos), pelo que é razão acrescida serem aplicados esforços naquilo que pode ser eficazmente regulado dentro das fronteiras de um país. O conhecimento e os profissionais são exemplo disso.
Ainda assim, desequilíbrios na oferta de RHS são encontrados na maioria dos países, mesmo naqueles que fortaleceram a regulação estatal das vagas de formação. Isso não significa que a regulação estatal seja irrelevante para a disponibilidade de profissionais em exercício. Uma vez mais, os dados de Pinto e colegas mostram o contrário: a autorregulação do mercado não só não se adequa à garantia de prestar cuidados para todos e em todas as fases da vida44 United Nations. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. New York: United Nations; 2015., como também é permeável a interesses corporativos e parcelares.
O que está em causa é um aspeto que sai fora do escopo da análise de Pinto e colegas, mas que deve orientar o debate futuro sobre o PMM: a retenção dos RHS. Respostas para as seguintes perguntas são necessárias: até que ponto os médicos - RHS em geral - têm dinâmicas de mobilidade territorial no Sistema Único de Saúde (SUS) para o exercício profissional? Quais os motivos dessas dinâmicas? Até que ponto essas dinâmicas são desejáveis ou indesejáveis na organização e planejamento dos cuidados e são politicamente reguláveis?
É decorrente de problemas relacionados com a retenção dos RHS que se explica que, mesmo entre os países onde a regulação da formação foi fortalecida, a distribuição dos profissionais possa continuar a apresentar desequilíbrios.
Quanto ao agendamento político, os elementos referidos no artigo permitem enquadrar o surgimento do PMM em 2013 e também a sua relativa suspensão a partir de 2016 sob várias perspectivas teóricas que análises futuras devem desenvolver com mais detalhes. Uma é a metáfora dos fluxos55 Kingdom J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Longman; 2003., segundo a qual janelas de oportunidade para a emergência de uma política resultam da coexistência de três fluxos: o fluxo dos problemas (perceção que existe um problema que precisa ser resolvido), o fluxo das políticas (posse de soluções e estratégias políticas concretas) e o fluxo da política (condições de governança favoráveis para essa formulação). Outra perspetiva é o equilíbrio pontuado66 Baumgartner F, Breunig C, Green-Pedersen C, Jones BD, Mortensen PB, Nuytemans M, et al. Punctuated equilibrium in comparative perspective. Am J Polit Sci. 2009; 53(3):602-19., segundo o qual a emergência e fim do ciclo de uma política pública decorre da disputa de monopólios políticos. Consequentemente, o entendimento político sobre se desequilíbrios na distribuição de vagas de formação de médicos são ou não um problema explica, logo de início, a propensão para ação ou omissão governativa. Essa perspetiva ajuda a mostrar o quanto o jogo político é povoado por vários grupos de interesse, alguns deles contrários do ponto de vista dos valores e do entendimento do papel e função dos demais atores do sistema político. O equilíbrio é pontuado porque em diferentes momentos as relações de poder entre eles se alteram. Uma terceira perspetiva diz respeito aos ciclos de atenção pública e midiática dos problemas77 Hogwood B, Peters BG. Policy dynamics. New York: St. Martin's Press; 1983.. Sabendo-se da influência da mídia e opinião pública no agendamento político, o relativo abandono da implementação política do PMM após 2016 revela ou uma fraca adesão pública ou o seu desconhecimento midiático. Ambas as possibilidades mostram o quanto a divulgação massificada deve acompanhar o agendamento político para que a formulação política venha a ser a mais apropriada possível por vários setores da sociedade.
Quanto à formulação política, os elementos referidos no artigo apontam para elementos enquadráveis por diferentes perspectivas que análises futuras devem procurar entender de forma mais detalhada. Uma perspetiva é a dependência da trajetória88 Pierson P. Increasing returns, path dependence and the study of politics. Am Polit Sci Rev. 2000; 94(2):251-67., considerando os elementos políticos prévios nos quais o PMM foi alicerçado. Contudo, a inovação trazida pelo reforço da regulação estatal na formação e distribuição das vagas aponta para um misto de abordagens: as que se centram nos atores99 Dye T. Understanding public policy. Boston: Longman; 2012. e as que se centram na difusão das políticas1010 Dolowitz D, Marsh D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance. 2000; 13(1):5-24.. As primeiras salientam o papel ativo que atores-chave desempenham no desenho das políticas públicas; portanto, até que ponto, como e quais atores individuais formularam o PMM em 2013. Da mesma forma, é necessário perceber até que ponto, como e quais atores individuais alteraram o PMM após 2016. As segundas abordagens salientam a influência internacional no desenho de políticas nacionais, ou seja, até que ponto e como o PMM resultou de orientações decorrentes de organizações internacionais (como a Organização Mundial de Saúde, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, etc.) e como essa influência foi adaptada ao contexto nacional.
Relativamente à implementação política - e porque a aparente quebra de ciclo do PMM em 2016 apenas permite avaliar parcialmente os seus efeitos -, o artigo fornece elementos bastante pormenorizados, além de mostrar o quanto o PMM teve na sua origem o entendimento sistêmico que a ação governativa no setor da Saúde requer. A informação permite ainda colocar novas perguntas para análises futuras, inclusive para melhor entender a mudança a partir de 2016. Reitera-se que a evidência internacional legitima o eixo estrutural que o PMM procurou implementar em 2013. A questão é que lições podem ser aprendidas sobre o modo como a implementação foi conduzida no sentido de no futuro ser possível dar continuidade ao PMM mesmo perante ciclos governativos desfavoráveis. Sabe-se que a implementação de políticas públicas é tanto mais eficaz quanto maior for a apropriação por setores alargados da sociedade. É isso que garante a estabilidade das políticas em diferentes ciclos governativos. Portanto, interessa saber como o PMM estava sendo percebido pela diversidade de atores e o que motivou a alteração verificada em 2016. Em que medida o propósito em 2016 não foi precisamente “cortar pela raiz” a política antes que esta viesse a ser efetivamente apropriada pelos atores? Ou, por outro lado, se já havia tempo suficiente para que a sua apropriação tivesse acontecido, o que explica a fraca apropriação da política? Houve resistência ou não à mudança de ciclo governativo em 2016? Quais as condições necessárias para que o PMM volte a tentar cumprir o seu objetivo? Respostas claras para estas perguntas constituirão um recurso valioso para melhor informar e, se possível, alterar a ação governativa.
Referências bibliográficas
- 1Pinto HA, Andreazza R, Ribeiro RJ, Loula MR, Reis AAC. O Programa Mais Médicos e a mudança do papel do Estado na regulação e ordenação da formação médica. Interface (Botucatu). 2019; 23(Supl. 1): e170960 .
- 2Rodrigues M. Exercícios de análise de políticas públicas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda e ISCTE-IUL; 2014.
- 3Bourgeault IL. Conceptualizing the social and political context of the health workforce: health professions, the state, and its gender dimensions. Front Sociol. 2017; 2:16. doi: 10.3389/fsoc.2017.00016.
» https://doi.org/10.3389/fsoc.2017.00016 - 4United Nations. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. New York: United Nations; 2015.
- 5Kingdom J. Agendas, alternatives, and public policies. New York: Longman; 2003.
- 6Baumgartner F, Breunig C, Green-Pedersen C, Jones BD, Mortensen PB, Nuytemans M, et al. Punctuated equilibrium in comparative perspective. Am J Polit Sci. 2009; 53(3):602-19.
- 7Hogwood B, Peters BG. Policy dynamics. New York: St. Martin's Press; 1983.
- 8Pierson P. Increasing returns, path dependence and the study of politics. Am Polit Sci Rev. 2000; 94(2):251-67.
- 9Dye T. Understanding public policy. Boston: Longman; 2012.
- 10Dolowitz D, Marsh D. Learning from abroad: the role of policy transfer in contemporary policy-making. Governance. 2000; 13(1):5-24.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Maio 2019 - Data do Fascículo
2019
Histórico
- Recebido
30 Out 2018 - Aceito
05 Nov 2018