Resumos
O grupo artístico Meninas de Sinhá teve como princípio um encontro de mulheres idosas em situação de vulnerabilidade que utilizam a brincadeira da dança de roda como uma potência curativa, capaz de torná-las mais saudáveis. Investigamos a atribuição de sentidos pelo grupo, no campo da saúde e do lazer, ao longo de sua formação estabelecida nos espaços/tempos de brincar de roda. Analisamos os estados corporais revelados nos depoimentos das mulheres que constam em documentos produzidos sobre o grupo e nas suas músicas autorais. Explicitamos esses estados na passagem da condição de adoecimento para a vida de artistas. Percebemos que, como prática comunitária, a brincadeira de roda constituiu-se como uma necessidade social específica para fruição da experiência do lazer, para mobilizar uma rede de encontros e cuidados (na troca e no autocuidado) e para o empoderamento dessas idosas.
Saúde; Atividades de lazer; Envelhecimento
The artistic group Meninas de Sinhá started as a meeting of elderly women in vulnerable situation who used the circle game as a healing power to become healthier. We investigated the group’s attribution of senses in the health and leisure areas throughout its establishment in spaces/times of playing circle. We analyzed the body states revealed in the women’s testimonies in documents related to the group and in their own songs. We explained these states in the “transition” from a sick condition to their artistic life. We realized that, as a community practice, the circle game represented a specific social need for enjoying a leisure experience, mobilizing a network of meetings and care (in exchange and selfcare), and empowering these elderly women.
Health; Leisure activities; Aging
El grupo artístico Meninas de Sinhá tuvo como principio un encuentro de mujeres ancianas en situación de vulnerabilidad que utilizaron el juego de la ronda como una potencia curativa, capaz de hacerlas más saludables. Investigamos la atribución de sentidos por parte del grupo, en el campo de la salud y del ocio, a lo largo de su formación establecida en los espacios/tiempos de jugar a la ronda. Analizamos los estados corporales revelados en las declaraciones de las mujeres que constan en documentos producidos sobre el grupo y en las canciones de su autoría. Explicamos estos estados en el “pasaje” de la condición de enfermedad para la vida de artistas. Percibimos que, como práctica comunitaria, el juego de la ronda se constituyó como una necesidad social específica para aprovechar la experiencia del ocio, para movilizar una red de encuentros y cuidados (en el intercambio y en el autocuidado) y para el empoderamiento de estas ancianas.
Salud; Actividades de ocio; Envejecimiento
Introdução
O grupo cultural Meninas de Sinhá é composto por mulheres idosas e de baixa renda, em sua maioria negras, residentes no bairro Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte (Minas Gerais). Existente há mais de vinte anos, o grupo teve, no princípio, um encontro marcado por mulheres adoecidas e deprimidas, mas que utilizaram uma das experiências positivas de infância – a brincadeira tradicional de dança de roda – como uma potência curativa.
A história deste grupo narra um processo de desmedicalização da maioria de suas integrantes, antes dependentes de antidepressivos. Por consequência, houve o alcance de uma vida com qualidade, mesmo em meio à pobreza e ao enfrentamento de uma sociedade machista, racista, classista e que ressalta a “valorização das coisas mais afetas à juventude”11. Alves Júnior ED, organizador. Envelhecimento e vida saudável. Rio de Janeiro: Apicuri; 2009. p. 232-44. (p. 25), em oposição ao (indesejado) envelhecimento.
A partir de um convite feito por uma líder comunitária, estas idosas passaram a se encontrar em outros locais para conversar, bordar e brincar as brincadeiras da infância, que revigoram a memória lúdica daquela época, sendo, assim, o ponto de partida para a formação do grupo artístico, que se apresenta cantando e dançando em eventos locais, nacionais e internacionais.
Atualmente, o grupo é composto por 22 mulheres entre 57 e 99 anos, mas em outros tempos agregou até cinquenta idosas. Algumas que integraram o grupo já faleceram, outras tiveram que sair por problemas de saúde ou por mudarem para outras localidades. Essas perdas acompanham a trajetória do grupo e o processo de envelhecimento das “meninas” (maneira como se autodenominam).
O grupo possui uma sede localizada numa área da Associação Comunitária do Alto Vera Cruz, onde acontecem ensaios, encontros e oficinas. Possui também dois CDs e um DVD autoral.
Ao investigar as trajetórias de vida dessas mulheres, especialmente suas infâncias, Galvão et al22. Galvão AM, Lopes EM, Jinzenji MY, Queiroz KAS, Silva SA. Histórias de meninas: meninas de sinhá. Belo Horizonte: Duo Editorial; 2011. explicitaram aspectos estruturantes de suas condições sociais e culturais. Embora reconheça as particularidades na vida de cada uma, ressaltaram uma possível universalidade: “São histórias que não se restringem às componentes do grupo, mas parecem compor a fisionomia mais ampla de parte da história da infância brasileira em meados do século XX. Podemos afirmar que são, de certa forma, histórias de um sujeito coletivo”22. Galvão AM, Lopes EM, Jinzenji MY, Queiroz KAS, Silva SA. Histórias de meninas: meninas de sinhá. Belo Horizonte: Duo Editorial; 2011. (p. 12).
Por exemplo, conhecendo a história de dona Valdete (1940-2014), fundadora do grupo e líder comunitária, é possível percebê-la em meio a esse contexto coletivo. Negra, de origem rural, foi criada por um casal de classe média. Desde muito cedo trabalhou executando serviços domésticos para essa família, que não se preocupou com sua escolarização e qualificação profissional. Trabalhou ainda cuidando de crianças de outras famílias, aos dez anos de idade.
No Brasil, a relação entre famílias brancas e meninas negras configurou um status de meninas semiescravizadas. A “criação” significava a dependência da criança afro-brasileira dos cuidados das famílias euro-brasileiras por questão de sobrevivência. Uma relação que pendia mais para a subserviência do que para o afeto33. Caldwell KL. Negras in Brazil: re-envisioning black-women, citizenship, and the politics of identity. New Brunswick, New Jersey, London: Rutgers University Press; 2007..
As histórias de vida dessas idosas estão entrelaçadas nos seguintes determinantes sociais: mulheres, pobres, quase todas de origem rural – e, portanto, migrantes para a periferia de um grande centro urbano –, católicas, negras e idosas22. Galvão AM, Lopes EM, Jinzenji MY, Queiroz KAS, Silva SA. Histórias de meninas: meninas de sinhá. Belo Horizonte: Duo Editorial; 2011.. A trajetória marcada por carências e lutas é expressa na história de vida de dona Valdete em similaridade com outras mulheres que formaram o Meninas de Sinhá.
Sampaio44. Sampaio TM. A justiça social em perspectiva de gênero e raça. In: Oliveira JLM, Siveres L, organizadores. Ensaios sobre justiça social: refazendo o caminho da vida e da paz. Brasília: Universa; 2009. p. 125-46. destaca que “o protagonismo social/real das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos empobrecidos, precisa ser investigado em rede, considerando as relações sociais de dominação vividas por estes grupos” (p. 129). Assim, diante de qualquer das esferas da vida, como a saúde e o lazer, devemos considerar os condicionantes socioculturais dos indivíduos envolvidos e as barreiras (sexistas, racistas, classistas e geracionais) que lhes são impostas.
Neste trabalho, discutimos as perspectivas de saúde e lazer a partir da expressividade das idosas do Meninas de Sinhá, que de um processo social marginal/ausente de dignidade, tornaram-se visíveis e figuras públicas, exercendo atividade criativa, estética e lúdica.
Para isso, recorremos à noção fenomenológica de corpo55. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes; 1994., em que a compreensão do ser no mundo situa o corpo em sua relação com o espaço. É nesse sentido que a corporeidade se configura como um estado corporal, um estar integrado, superando a dicotomia corpo versus mente. As dimensões mentais, biológicas e sociais interagem entre si, constituindo a totalidade do ser. Temos a premissa de que, no Meninas de Sinhá, essa totalidade do ser é recuperada pelo próprio encontro, pela brincadeira e pelo cuidado.
Ao olharmos para os estados corporais repercutidos nas brincadeiras de roda e na prática artística do grupo como vivência que marcou a ruptura com um estado de adoecimento (depressão), percebemos importantes apontamentos para a relação saúde, lazer e envelhecimento.
Assim, investigamos, por análise da literatura produzida e de documentos, a apropriação dos corpos na brincadeira de dança de roda pelo grupo Meninas de Sinhá, as tensões e potências propiciadas por esta atividade no estabelecimento de sentidos no campo da saúde e do lazer.
Esse interesse emergiu do olhar para os estados corporais vividos por essas mulheres e registrados em documentários, fotografias, reportagens televisivas e produções acadêmicas (dissertações, tese, artigos, livro e capítulo de livro) desenvolvidas com o grupo ou com suas integrantes. Percebemos, por esse material, a possibilidade de apresentar a maneira genuína de emancipação de um grupo de mulheres idosas por meio de caminhos construídos por elas mesmas, em descoberta da própria potência que as tornaram mais saudáveis. Demonstra também a potência da rede de afeto entre as mulheres e um caminho de desenvolver políticas públicas efetivas, pois acreditamos no nosso papel como agentes da saúde na construção desses espaços de potência. Nesse sentido, o lazer tem um valor intrínseco, pois pode ser mais um espaço de manifestação de potências e redes de afeto.
A saúde e o lazer sob o viés socioantropológico
Podemos afirmar que os cuidados com a saúde e a experiência do lazer, bem como o modo de viver a velhice, manifestam-se de maneira peculiar, variando entre os indivíduos e os diferentes contextos sociais e culturais.
Afastamo-nos da oposição entre saúde e doença, do paradigma hegemônico biomédico que sustenta a necessidade de “ter saúde” como prevenir-se de doenças, preservar-se jovem, manter o corpo sarado. Ainda, afastamo-nos da ideia de saúde e doença centrada na responsabilização (culpabilização) do indivíduo em detrimento do coletivo, do ambiente cultural vivido, das condições de vida, das políticas de acesso, da promoção da saúde e do acesso ao conhecimento. Compreendemos a saúde sob o ponto de vista da saúde coletiva, em que esta é “um bem social, um direito universal associado à qualidade e à proteção da vida, espelhando políticas públicas e sociais universalizantes, inclusivas na cidadania e superadoras das imensas desigualdades sociais”66. Minayo MC. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014. (p. 256).
Buscamos olhar para o conceito de saúde articulado com a cultura e, portanto, com a realidade social66. Minayo MC. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. Em uma pesquisa sobre aspectos socioculturais em mulheres deprimidas, moradoras de uma região periférica de São Paulo, foi identificado que “o sofrimento dessas mulheres na infância e na adolescência tem continuidade na vida adulta, quando passam a ser subordinadas e suscetíveis à agressão de seus companheiros”77. Brito CM, Caro C, Amaral L. Aspectos socioculturais e violência em mulheres deprimidas. Cienc Cuid Saude. 2015; 14(1):861-9. (p. 867). Apontou-se a depressão como parte de um processo sociocultural construído em contextos vulneráveis permeados pelo poder androcentrista.
O vínculo entre saúde e cultura nos faz reconhecer a existência de uma diversidade de sentidos atribuídos à saúde e doença por cada grupo social.
Em resumo, saúde e doença importam tanto por seus efeitos no corpo como por suas repercussões no imaginário: ambos são reais em suas consequências. Portanto, todas as ações clínicas, técnicas, de tratamento, de prevenção ou de planejamento devem estar atentas aos valores, atitudes e crenças das pessoas a quem a ação se dirige66. Minayo MC. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. (p. 31)
Assim, saúde e doença revelam uma visão de mundo e relacionam-se com a maneira que a sociedade se existencializa, organiza e produz a vida. Nesse mesmo sentido, o lazer, como uma construção social, manifesta-se de maneiras diversas, conforme as realidades, interesses e necessidades de cada grupo ou comunidade. Compreendemos o lazer como:
[...] uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo88. Gomes C, organizador. Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica; 2004. p. 119-25.. (p. 125)
Sobre o tempo, concordamos com a noção de Bramante99. Bramante AC. Lazer: concepções e significados. Licere. 1998; 1(1):9-17. sobre o tempo conquistado. Para esse autor, “‘conquistar’ um tempo da não obrigação vem se impondo como um desafio para todos que desejam exercitar a face humana da vida plena”99. Bramante AC. Lazer: concepções e significados. Licere. 1998; 1(1):9-17. (p. 11). Esse tempo, embora reconhecido como primordial para a promoção da vida com qualidade, ainda assim tem sido uma experiência privilegiada, que consiste na fruição da criatividade; do prazer; e das relações humanas dignas e afetivas.
O lazer também envolve um espaço/lugar “que vai além do espaço físico por ser um local do qual os sujeitos se apropriam no sentido de transformá-lo em ponto de encontro (consigo, com o outro e com o mundo) e de convívio social para o lazer”88. Gomes C, organizador. Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica; 2004. p. 119-25. (p. 124).
Portanto, não se trata de mera distração, ou compensação das obrigações, mas de um tempo/lugar em que se tem “uma oportunidade para a ampliação das potencialidades humanas, favorecendo a constituição de redes de sociabilidade e os encontros”1010. Gomes C, Pinto L. O lazer no Brasil: analisando práticas culturais cotidianas, acadêmicas e políticas. In: Gomes C, Osorio E, Pinto L, Elizalde R, organizadores. Lazer na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2009. p.67-122. (p. 111).
Metodologia
As pesquisas acadêmicas realizadas com o grupo Meninas de Sinhá apontaram a sua constituição e ampliação da participação social de suas integrantes como uma maneira de transformação social. Relendo esses estudos e analisando os documentos produzidos pelo próprio grupo, aprofundamos as análises sobre a corporeidade dessas mulheres na experiência do tempo de lazer em que a brincadeira de dança de roda foi vivenciada.
Essa análise documental possibilitou “dar forma conveniente e representar de outro modo essa informação, por intermédio de procedimentos de transformação”1111. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. (p. 51).
Para tanto, recorremos à análise de diversos materiais já produzidos sobre Meninas de Sinhá, em que os estados corporais eram descritos por meio de depoimentos das mulheres e observações de pesquisadoras; e evidenciados por meio de imagens de fotografias e vídeos produzidos do grupo. São estes materiais: portfólio do grupo (cedido pela produtora cultural); DVD autoral Daqui do Alto1212. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Daqui do alto [DVD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2014., um documentário musical; letras de músicas autorais dos CDs Na Roda da Vida1313. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Na roda da vida [CD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2011. e Tá caindo Fulô1414. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Tá caindo fulô [CD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2004.; dissertações de mestrado1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008.,1616. Caldeira SM. Meninas de Sinhá: os sentidos do grupo na história de vida de suas integrantes [dissertação]. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas; 2013.; tese de doutorado1717. Araújo AG. Apropriações de sentidos de um grupo cultural de cantigas de roda Campinas [tese]. Campinas: Faculdade de Educação, Universidade de Campinas; 2014.; livro22. Galvão AM, Lopes EM, Jinzenji MY, Queiroz KAS, Silva SA. Histórias de meninas: meninas de sinhá. Belo Horizonte: Duo Editorial; 2011.; capítulo de livro33. Caldwell KL. Negras in Brazil: re-envisioning black-women, citizenship, and the politics of identity. New Brunswick, New Jersey, London: Rutgers University Press; 2007.; e vídeos disponibilizados no site1818. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Vídeos [Internet]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2012 [citado 3 Jan 2019]. Disponível em: http://meninasdesinha.org.br/video/video-8/
http://meninasdesinha.org.br/video/video... do grupo.
Sistematizamos e analisamos os estados corporais captados nesses materiais explicitando-os como parte de um processo ritual, com objetivo de apresentar a passagem da condição de adoecimento (depressão) para a vida de artistas (com alegria, como elas se referem à cura da depressão) dessas idosas. Destacamos o termo “passagem” no intuito de expressar um processo intenso que, conforme explica Segalen1919. Segalen M. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2002., configura-se em um momento crítico da vida pessoal e social, que pressupõe ruptura, descontinuidade social e transposição de um limiar.
A sistematização das etapas dos rituais de passagem por Van Gennep2020. Van Gennep A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes; 1977. (Coleção Antropologia)., que também adotamos neste trabalho, permite a compreensão de expressões particulares dos diversos ritos. As etapas definidas por este autor consistem em “‘ritos preliminares’ os ritos de separação do mundo anterior, ‘ritos liminares’ os ritos executados durante o estágio de margem e ‘ritos pós-liminares’ os ritos de agregação ao novo mundo”2020. Van Gennep A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes; 1977. (Coleção Antropologia). (p. 27).
Assim, buscamos tensionar o particular e o universal, expressando os significados que definem a presença de um determinado estilo de ser e estar no mundo durante a velhice.
Os estados corporais que emergiram no processo ritual: o que dizem sobre os sentidos da saúde e do lazer
Xô tristeza! Bem-vinda a alegria Brincamos de roda dia e noite, noite e dia (Estrofe da música “Xô Tristeza”1313. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Na roda da vida [CD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2011., composição de Ephigênia Lopes)
Nos diversos depoimentos das Meninas, é comum reforçarem a importância da existência deste grupo em suas vidas, como algo que as libertou da tristeza/depressão e dos medicamentos. A participação no grupo gerou sentido às suas vidas – o viver com alegria – e possibilitou o compartilhamento da alegria com outras pessoas. Essa narrativa é sempre presente, ressaltando o importante espaço/tempo conquistado que lhes proporcionou condições de enfrentarem a vida e viverem plenamente.
O corpo delas se torna mais maleável com a ludicidade, que antes não era de alguma forma permitida no corpo deprimido. O corpo marcado por dor foi ganhando novos contornos associados a corpos de crianças.
No documentário Meninas de Sinhá, disponível no site1818. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Vídeos [Internet]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2012 [citado 3 Jan 2019]. Disponível em: http://meninasdesinha.org.br/video/video-8/
http://meninasdesinha.org.br/video/video... do grupo, dona Valdete explica: “A gente tem dor no joelho, a gente tem dor no ombro, a gente tem dor não sei aonde... mas, na hora que a gente tá na roda, desce o espírito de uma criança que ninguém lembra de dor. E essa é as Meninas de Sinhá”. Esse “espírito de criança” consiste em uma disponibilidade corporal para enfrentar a dor (e não ignorá-la) e superar o sofrimento. A brincadeira de roda é o dispositivo que estabelece alterações no estado de corpo a partir das imagens vinculadas às emoções e aos sentimentos positivos elaborados por essa vivência na infância e atualizadas diante do novo contexto de vida.
Ao dissertar sobre a relação entre estado de corpo, emoção e sentimento, o neurocientista António Damásio afirma ser grosseiro reduzir a depressão à disponibilidade dos neurotransmissores serotonina e norepinefrina, pois isso por si só não explica porque nos sentimos alegres ou tristes. Não se trata somente de uma relação de causa e efeito entre a substância e a sensação. Para a neurociência, importa também “descobrir de que modo as representações do corpo se tornam subjetivas, de que modo se tornam parte do ser que as possui”2121. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras; 2012. (p. 153). Esses estudos nos possibilitam perceber que a elaboração de imagens, pensamentos e sentimentos, sobre uma determinada atividade pode provocar alterações do estado corporal positivas ou negativas, contribuindo ou não para o processo de cura de estados depressivos, por exemplo.
No caso das “meninas”, para alcançarem esta condição de sentirem-se felizes e encorajadas diante da vida, destacamos as três etapas do processo ritual vivido por elas, seguindo a proposição de Van Gennep2020. Van Gennep A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes; 1977. (Coleção Antropologia). para os estudos rituais:
Etapa pré-liminar – estado de adoecimento/depressão e a organização do grupo Lar Feliz.
Etapa liminar – potencial das atividades de expressão corporal e das brincadeiras de roda e estado de redescoberta do corpo em sua expressividade e sensibilidade.
Etapa pós-liminar – alteração do nome do grupo para Meninas de Sinhá; cura da depressão; vida de artistas; ampliação da participação social; estado de alegria; e corpo comunicativo e participativo.
Cada uma dessas etapas foi descrita observando os estados corporais e as relações com a saúde e o lazer. A interpretação do momento anterior e posterior da passagem é necessária para compreender as motivações, necessidades e estados corporais que viabilizaram a conquista de uma nova condição social, conforme narrativa do grupo.
A depressão e o grupo Lar Feliz
Na etapa preliminar, temos mulheres que se encontravam no posto de saúde do bairro com o mesmo objetivo de obter medicação antidepressiva. Embora se encontrassem e tivessem o objetivo comum, não se mobilizavam coletivamente e, portanto, não se constituíam como unidade2222. Caldeira SM, Moreira MI. Meninas de Sinhá: os sentidos do grupo na história de vida de suas integrantes. Pesqui Prat Psicossociais. 2014; 9(1):7-17.. A condição preliminar dessa passagem foi marcada por um estado de anestesia das integrantes1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008.. Caldeira e Moreira2222. Caldeira SM, Moreira MI. Meninas de Sinhá: os sentidos do grupo na história de vida de suas integrantes. Pesqui Prat Psicossociais. 2014; 9(1):7-17. identificaram esse estado como angústia e falta de sentido para a vida.
Damásio2121. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras; 2012. explica que os estados corporais vividos no cotidiano, nas relações com o outro e no ambiente são combinados com determinados pensamentos, sendo essa combinação “a essência da tristeza ou da felicidade”.
Em conjunção com estados corporais negativos, a criação de imagens é lenta, sua diversidade é pequena e o raciocínio ineficaz; em conjunção com os estados corporais positivos, a criação de imagens é rápida, a sua diversidade é ampla e o raciocínio pode ser rápido, embora não necessariamente eficiente. Quando os estados corporais negativos se repetem com frequência, ou quando se verifica um estado corporal negativo persistente, como sucede numa depressão, aumenta a proporção de pensamentos suscetíveis de serem associados às situações negativas, e o estilo e a eficiência do raciocínio são afetados2121. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras; 2012.. (p. 142)
Essa recorrência de pensamentos negativos gera o sentimento de si-mesmo. O cotidiano retratado das Meninas, em diversos depoimentos, não viabilizava a experiência de um corpo vivido, real e total. Naquele momento, o corpo das integrantes do grupo apresentava-se fragmentado, quebrado, pelas dores e pela falta de desejo. Outra estrofe da música “Xô Tristeza” trouxe essa realidade: “A gente chorava a gente sofria/Triste calada e nada podia/Nem o doutor nada resolvia/Só dava remédio e a gente dormia”.
O modo cognitivo que acompanha a tristeza “é acompanhado de inibição motora e, em geral, de uma redução nos apetites e nos comportamentos exploratórios. A depressão constitui o extremo desse modo cognitivo”2121. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras; 2012. (p. 156).
Aspectos do cotidiano familiar, das obrigações e restrições das integrantes do grupo durante essa etapa ritual e preliminar foram explicitados por dona Valdete:
É porque elas tinham angústia, elas não dormiam à noite, às vezes era o filho que usava droga e elas não dava conta! Então tomava o comprimido e ia dormir e o tempo passava. Aí eu achei o seguinte: essas mulheres, elas não são doentes. Elas precisam de uma autoestima, porque... o filho casa, vai embora ou a filha, o filho tem namorada e à noite tá saindo, o marido tem barzinho, tem o baralho, tem o futebol e a mulher tem o quê? O tanque, o fogão, a vassoura, né? E a preocupação de quem está lá fora. Ela não se preocupa com ela própria1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008.. (p. 49)
Nesse depoimento, fica evidente que as oportunidades de autocuidado das mulheres encontram barreiras sexistas construídas culturalmente. Isso inibe a prática do lazer, constituindo-o mesmo privilégio2323. Marcellino N. Estudos do lazer: uma introdução. Campinas: Autores Associados; 2002..
No caso das Meninas, além de se depararem com a velhice, era necessário enfrentar o desafio de refletir sobre o cotidiano em que estavam mergulhadas para reconstruí-lo. No cotidiano vivido até então, nessa fase preliminar, não tinham nem tempo, nem possibilidades de absorver inteiramente e aguçar em intensidade os aspectos do homem de ser atuante e fruidor, ativo e receptivo2424. Debortoli JA. Brincadeira. In: Gomes CL, organizador. Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 2004. p. 19-24..
É comum entre os idosos a dificuldade de manterem-se autores de sua vida, “pela conjunção entre velhice e falta de desejo”1010. Gomes C, Pinto L. O lazer no Brasil: analisando práticas culturais cotidianas, acadêmicas e políticas. In: Gomes C, Osorio E, Pinto L, Elizalde R, organizadores. Lazer na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2009. p.67-122. (p. 32). Porém, mesmo que o sujeito abdique de sua autoria na sua história de vida, essa paralisia não cessa a dinâmica da vida, sendo necessário que a escrita persevere até a morte.
Foi nesse sentido que dona Valdete atuou junto com as mulheres de sua comunidade que se encontravam em depressão. Em 1995, as convidou para reunirem-se para modificar essa realidade e construir uma nova narrativa para a vida delas. Inicialmente, começaram a se encontrar pra fazer trabalhos manuais (bordados e costuras) e se intitularam Lar Feliz. Porém, essa prática configurou-se como mais uma obrigação, um trabalho:
Repetição dos trabalhos domésticos e com pouca potencialidade para modificar a condição emocional das integrantes do grupo”. Ainda, a maneira como foram denominadas não representava as mulheres que “não queriam carregar o ‘Lar’ no nome do grupo, já que o momento em que se reuniam era uma oportunidade de estarem fora do lar. Além disso, o lar da realidade dessas mulheres não tinha nada de feliz2222. Caldeira SM, Moreira MI. Meninas de Sinhá: os sentidos do grupo na história de vida de suas integrantes. Pesqui Prat Psicossociais. 2014; 9(1):7-17.. (p. 8)
É certo que o grupo Lar Feliz foi uma tentativa de promover um encontro extracotidiano que favorecesse uma melhora na autoestima, a partir de uma necessidade do coletivo de mulheres daquela comunidade observada por dona Valdete. Porém, a atividade proposta não foi suficiente para permitir a fruição lúdica e criativa e pouco contribuiu com a elaboração de novas percepções ou o estímulo das sensibilidades daquelas mulheres. Assim, o espaço e tempo destinados ao propósito de uma experiência de lazer esbarraram na oferta de uma atividade com sentido inverso, que apenas reforçava valores sociais vigentes, não sendo capaz de alcançar o sentido de lazer.
A expressão corporal e as brincadeiras de roda
A partir de uma experiência pessoal com atividades de expressão corporal, dona Valdete teve a ideia de oferecer aulas para o grupo Lar Feliz. Ela contou com auxílio de uma atriz contratada para esse fim pelo município de Belo Horizonte, em 1996.
A vivência da expressão corporal – que, pelos relatos das mulheres, consistiam em aulas com ginástica; brincadeiras de roda; e atividades corporais criativas, lúdicas e reflexivas – despertou interesse e agregou número maior de participantes, chegando a cinquenta.
Em depoimentos registrados em uma dissertação de mestrado1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008., dona Valdete contou que, ao assumir as aulas de expressão corporal, proporcionou ao seu grupo dinâmicas reflexivas sobre corpo e o processo de envelhecimento, pois ouvia muitas queixas sobre essa fase da vida. Percebeu também que essas reflexões geraram um autocuidado com o corpo, com as mulheres pintando as unhas e diversificando seus penteados, por exemplo. Ela disse:
Eu comecei a trabalhar com elas a beleza da idade: quando criança você tem uma beleza, na adolescência você tem outra, na mocidade você tem uma e na nossa idade nós temos outra beleza que é a beleza do troféu dos anos que passaram.1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008. (p. 53)
Outra percepção que dona Valdete teve com a expressão corporal foi a da importância da brincadeira de roda na vida daquelas mulheres, como uma memória ainda muito viva. Elas solicitavam brincar de roda.
Uma brincadeira entrecruza histórias, tempos e espaços. Não se brinca apenas com um objeto. Brinca-se com uma memória coletiva que muitas vezes transcende quem brinca e o próprio momento da brincadeira: objetos, tempos, substâncias, regiões, épocas, cidades, países, estações do ano, rituais, os mais amplos e ricos contextos humanos.2424. Debortoli JA. Brincadeira. In: Gomes CL, organizador. Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Editora Autêntica; 2004. p. 19-24. (p. 20)
Embora a brincadeira não fosse uma novidade na vida das Meninas, o reconhecimento do seu potencial na velhice era um conhecimento novo. De maneira criativa, o coletivo constituído em torno do brincar deu forma a esse novo conhecimento, integrando-o ao contexto da vida material, emocional e social. Para Angela Mucida2525. Mucida A. Escrita de uma memória que não se apaga: envelhecimento e velhice. Belo Horizonte: Autêntica; 2009., as práticas sociais que não homogeneízam, incluindo o lazer, encorajam e preservam o sujeito com seu estilo e podem proporcionar o “envelhecer bem”. Além disso, a participação dos idosos na elaboração de propostas de lazer rompe com as práticas destinadas apenas a ocupá-los, sem preocupações com uma vivência significativa2626. Alves Júnior E, Dias C. Lazer: um direito de todos. Sinais Soc. 2013; 8(23):64-86..
Ainda denominado Lar Feliz, esse grupo foi se tornando conhecido no bairro e passou a ser convidado para apresentações em eventos públicos. Esses convites demandaram a organização de um processo criativo que contou com auxílio de outros atores sociais, como um figurinista, um produtor cultural, um educador, uma percussionista, entre outras pessoas já envolvidas em ações culturais no Alto Vera Cruz.
Assim, a memória das brincadeiras de roda deflagrou um processo criativo. Enquanto as Meninas lembravam as músicas e sua representação gestual, foram construindo maneiras de se apresentar em público, adaptando músicas e coreografias. Coletivamente, criaram identidade visual e dramatúrgica. Estabeleceram, dessa maneira, um sentido de lazer vinculado ao processo criativo, superando a mera ocupação do tempo livre na velhice. O divertimento da infância passou a ter outros contornos na velhice.
A partir dos depoimentos coletados por Gil1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008., foram destacadas, dentre outras questões, as atividades de expressão corporal na formação do grupo, pois viabilizaram uma melhora na autoestima das idosas. O estado corporal que parece marcar essa fase de liminar ou de margem corresponde à redescoberta do corpo em sua expressividade e sensibilidade. Isso foi percebido pelas alterações da maneira de se vestir e de arrumar os cabelos e pela disponibilidade corporal para dançar, cantar e brincar. Com relação à saúde, o tempo vivido na fruição da brincadeira e sua repercussão artística na vida idosa dessas mulheres tiveram sentido na melhoria de sua saúde mental.
Com o convite da apresentação na inauguração do Centro Cultural do Alto Vera Cruz, as mulheres quiseram mudar o nome do grupo, sendo essa decisão um marco de uma transcendência identitária, que pontua uma nova configuração do grupo que vai além da mudança do nome Lar Feliz para Meninas de Sinhá. Percebemos que um novo estado corporal começou a se delinear, um corpo comunicativo e expressivo, permitindo o surgimento do estágio de condição pós-liminar ou agregação ao mundo novo, descrito a seguir.
Grupo Cultural Meninas de Sinhá
Agora vivemos para cantar Levando a alegria das Meninas de Sinhá (Estrofe da música “Xô Tristeza”1313. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Na roda da vida [CD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2011., composição de Ephigênia Lopes)
O estado de alegria – oriundo das experiências de redescoberta do corpo e de sua capacidade expressiva; da ampliação da participação social; e das práticas culturais – configura a etapa pós-liminar ou de agregação ao novo mundo.
Sobre esse estado, temos que:
O modo cognitivo que acompanha uma sensação de júbilo permite a criação rápida de múltiplas imagens, de tal forma que o processo associativo é mais rico e as associações são feitas de acordo com uma maior variedade de indícios existentes nas imagens que estão sendo examinadas... Esse modo cognitivo é acompanhado de uma desinibição de eficiência motora, assim como de um aumento do apetite e dos comportamentos exploratórios2121. Damásio A. O erro de descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras; 2012.. (p. 155)
As escritas narrativas da velhice dessas Meninas passaram a ser desenvolvidas a partir da representação que teceram delas mesmas: pessoas alegres que servem à vida cantando e levando alegria para outras pessoas. A nova condição das Meninas também afirmou uma nova obra e ação no mundo, na qual “tornam-se donas do próprio destino, tendo como missão levar a alegria para outras pessoas”2222. Caldeira SM, Moreira MI. Meninas de Sinhá: os sentidos do grupo na história de vida de suas integrantes. Pesqui Prat Psicossociais. 2014; 9(1):7-17. (p. 11), desenvolvem um sentimento de fraternidade, assumem tarefas diferenciadas e descobrem aptidões.
A liberdade criativa e participativa de selecionar, adaptar e compor músicas; trocar versos de domínio público; elaborar a maneira de se apresentar em público; e definir a vestimenta gerou um novo processo de aprendizagem, novos conhecimentos e novo estado de corpo.
Debortoli2727. Debortoli JA. Lazer, envelhecimento e participação social. Licere. 2012; 15(1):1-29. aposta no sentido do lazer como:
uma forma de engajamento e também como forma de produção e participação social: no fazer artístico, como presença sensível, atenta e encarnada, produzimos o mundo e produzimos a nós mesmos; compartilhamos a produção da vida e constituímo-nos sociais2727. Debortoli JA. Lazer, envelhecimento e participação social. Licere. 2012; 15(1):1-29.. (p. 23)
Podemos dizer que esse sentido do lazer corresponde às experiências do grupo Meninas de Sinhá. Reinventaram suas histórias e teceram a velhice rompendo com a ditatura da felicidade e do corpo belo e eternamente jovem, sendo que a brincadeira de roda provocou o encontro e a liberdade criativa.
Consideramos que a brincadeira de roda teve centralidade no desenvolvimento desse grupo e na cura da depressão. Não era uma atividade qualquer: era algo capaz de mobilizar uma rede de encontros (com o outro e consigo) e de cuidados (na troca e no autocuidado).
Como foi dito, as Meninas sofriam da depressão e eram dependentes de medicação para o tratamento. Porém, dona Valdete, de acordo com relato próprio em uma das pesquisas sobre o grupo, não considerava a depressão dessas mulheres como um adoecimento; para ela, tratava-se de tristeza e angústia associada à baixa autoestima. Portanto, em sua simplicidade, verificou que precisavam melhorar a autoestima e cuidar delas mesmas22. Galvão AM, Lopes EM, Jinzenji MY, Queiroz KAS, Silva SA. Histórias de meninas: meninas de sinhá. Belo Horizonte: Duo Editorial; 2011.. Essa representação de saúde, relatada por Valdete e associada ao cuidado ou troca de cuidados, também foi captada por Madel Luz2828. Luz M. As novas formas de saúde: práticas, representações e valores culturais na sociedade contemporânea. Rev Bras Saude Familia. 2008; 9:8-19., que explica o cuidado e a ruptura do isolamento em mulheres idosas como uma estratégia de saída do isolamento imposto, entre outros elementos, pela ameaça de pobreza.
Entendemos que o tratamento da depressão foi o cuidado e o encontro afetivo; e que “estar saudável é também ter alegria, disposição para a vida, recuperar o prazer das coisas cotidianas e poder estar com os outros (família, amigos)”2828. Luz M. As novas formas de saúde: práticas, representações e valores culturais na sociedade contemporânea. Rev Bras Saude Familia. 2008; 9:8-19. (p. 15).
Caldwell33. Caldwell KL. Negras in Brazil: re-envisioning black-women, citizenship, and the politics of identity. New Brunswick, New Jersey, London: Rutgers University Press; 2007. contou sobre uma visita ao grupo no momento em que se preparavam para uma apresentação em um programa de televisão local e ressaltou que suas roupas coloridas e suas maquiagens contrastavam com as mulheres pobres brasileiras. A brincadeira e seu desenrolar criativo foi potente ao desconstruir um padrão idealizado de velhice, de ser mulher e de ser pobre.
O depoimento de Dona Valdete a seguir evidencia desafios e mudanças vividas no cotidiano das integrantes após a sua constituição:
Alguns maridos queriam me matar, uns queriam passar o trator em cima de mim, porque as mulheres deixaram de ser Amélia para cuidar delas. “A comida está aí no fogão. Estou saindo. Quem quiser esquenta.” Antigamente ela dava o pratinho na mão1515. Gil TN. Meninas de Sinhá: a reinvenção da vida nas tramas do discurso musical. Belo Horizonte [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais; 2008.. (p. 61)
A mudança na vida cotidiana envolve refletir sobre suas atividades/afazeres, e rever a hierarquia estabelecida para o cumprimento delas. Para a mulher, o rompimento com padrões sexistas é um desafio que envolve seus parceiros, filhos, amigos. Para que as mulheres do grupo pudessem desfrutar de um tempo para si, de um momento de lazer, foi necessário esse enfrentamento.
Os corpos empoderados dessas Meninas parecem produzir tensões com o meio circundante, desenhando uma nova forma de ser e estar no mundo e, ainda, deslocando aqueles que as rodeiam cotidianamente dos passos naturalizados advindos da cultura sexista e patriarcal. Parece ser este um convite para uma nova dança da vida, demonstrando estar atento às necessidades de cuidar do outro e de si, de ser alegre e de levar a alegria.
Considerações finais: a memória, a saúde e o lazer como condições de empoderamento
Eu acho que o grupo tá no futuro...as Meninas de Sinhá conseguem criar... fazer uma coisa pra mim muito legal, que é criar esse arco que é ir na coisa lá atrás da memória delas, da infância, e ao mesmo tempo lançar isso, não como coisa saudosista, não como um desejo de voltar pra trás, mas algo que aponta uma solução, inclusive, pra problemas sociais. (Depoimento do músico e arte-educador Gil Amâncio1212. Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Daqui do alto [DVD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2014.)
A centralidade da brincadeira de roda como uma prática cultural viva na memória das Meninas é ressaltada nesse depoimento de Gil Amâncio, arte-educador que colabora com o grupo desde seu início. Se entre aquelas mulheres depressivas existia a carência do cuidado e da fruição do lazer, no sentido da experiência sensível e criativa, existia também uma potência, que se consiste na memória das brincadeiras de roda vividas na infância.
Portanto, destacamos o lazer como necessidade humana, dimensão da cultura e prática social em que há uma relação constante entre a carência e a potência, pois, “na medida em que as necessidades comprometem, motivam e mobilizam as pessoas, são também potencialidade”2929. Gomes C, Elizalde R. Horizontes latino-americanos do lazer. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2012. (p. 81).
Diversos problemas sociais foram desvelados com o encontro lúdico, afetuoso e reflexivo e puderam ser enfrentados à medida que uma mulher encorajava a outra. Assim, percebemos a passagem desse grupo do tratamento via medicação para o cuidado via corpos brincantes e encontros significativos. Os corpos adoecidos e deprimidos foram se transformando em corpos disponíveis para alegria, para o ato de criar e de se reconstruir.
Coletivamente, as Meninas assumiram a autoria de suas histórias de vida, estabeleceram redes sociais e construíram espaço e tempo de lazer. Nessa perspectiva, considera-se que a brincadeira de roda e seu desenvolvimento como prática artística comunitária, além de contribuir para a saúde, foi capaz de ser ressignificada e reconstituída como uma necessidade social para fruição da experiência do lazer, para a convivência afetiva e para o empoderamento de mulheres, em sua maioria, negras e pobres.
Agradecimentos
Agradecemos ao Grupo Cultural Meninas de Sinhá por acolherem esta pesquisa e disponibilizarem documentos. Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG por viabilizar esta pesquisa.
Referências
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- 12Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Daqui do alto [DVD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2014.
- 13Grupo Cultural Meninas de Sinhá. Na roda da vida [CD]. Belo Horizonte: Meninas de Sinhá; 2011.
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- 28Luz M. As novas formas de saúde: práticas, representações e valores culturais na sociedade contemporânea. Rev Bras Saude Familia. 2008; 9:8-19.
- 29Gomes C, Elizalde R. Horizontes latino-americanos do lazer. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2012.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Jan 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
10 Maio 2019 - Aceito
28 Out 2019