A educação médica nos cenários de práticas em anos iniciais da formação: sentidos tecidos pelo photovoice

La educación médica en los escenarios de prácticas en años iniciales de la formación: sentidos tejidos por el photovoice

Maíra Ferro de Sousa Touso Glória Lúcia Alves de Figueiredo Sobre os autores

Resumos

Como estratégia para formação de profissionais aptos a promoverem assistência integral à saúde, na contemporaneidade, o ensino médico prevê inserção do acadêmico no campo de atenção, desde os anos iniciais da graduação. Objetivou-se analisar a dimensão formativa desta imersão em cenários da saúde mental a partir de imagens captadas pelo photovoice e reflexões em grupo focal. Participaram seis estudantes de uma disciplina de graduação que promove a integração desses nos equipamentos de saúde do município, no período de 2017 a 2018. Pela interpretação dos sentidos do material produzido, duas categorias temáticas se sobressaíram: a inserção nos cenários de práticas e a educação médica em ação. Esses núcleos de sentido foram descritos, estabelecendo-se um diálogo com a literatura pertinente. A experiência fotografada, relatada e discutida no grupo trouxe vitalidade à formação, aproximando-os do humano que há neles e nos outros, favorecendo a integralidade do cuidado.

Educação médica; Saúde mental; Assistência integral à saúde


Como estrategia para la formación de profesionales aptos para promover asistencia integral a la salud, en la contemporaneidad, la enseñanza médica prevé la inserción del académico en el campo de atención desde los años iniciales de la graduación. El objetivo fue analizar la dimensión formativa de esta inmersión en escenarios de la salud mental a partir de imágenes captadas por el photovoice y reflexiones en grupo focal. Participaron seis alumnos de una disciplina de graduación que promueve la integración de ellos en los equipos de salud del municipio, en el período de 2017 a 2018. Por la interpretación de los sentidos del material producido, se destacaron dos categorías temáticas: La inserción en los Escenarios de Prácticas y la Educación Médica en Acción. Se describieron estableciéndose un diálogo con la literatura pertinente. La experiencia fotografiada, relatada y discutida en el grupo brindó vitalidad a la formación, aproximándolos del humano que hay en ellos y en los otros, favoreciendo la integralidad del cuidado.

Educación médica; Salud mental; Asistencia integral de la salud


Introdução

O cuidar médico, em essência, pressupõe relação humana, proximidade, vínculo e, portanto, não pode se desprender da dimensão afetiva da existência. No entanto, examinando a educação médica nas últimas décadas, percebe-se que o boom tecnológico aprimorou os procedimentos da área e provocou um afastamento gradual em relação à dimensão humana no “fazer” médico. Os conhecimentos científicos e habilidades técnicas no palco central ofuscaram a paixão e compaixão, essenciais no exercício do cuidado humano.

O modelo tradicional de ensino médico originou-se em 1910, quando Abraham Flexner, educador norte-americano, visando à qualificação e padronização do ensino, sugeriu filiar os hospitais às faculdades de medicina. Como consequência dessa união, a produção de conhecimento na área de saúde e a prática médica fragmentaram-se em diversas especializações e o ensino consolidou-se em bases científicas centradas na racionalidade anatomoclínica 11. Itikawa FA , Afonsoi DH , Rodrigues RD , Guimarães MAM . Implantação de uma nova disciplina à luz das diretrizes curriculares no curso de graduação em medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro . Rev Bras Educ Med . 2008 ; 32 ( 3 ): 324 - 32 . .

Gradativamente, a prática do ensino médico passou a se guiar por “um conjunto de elementos estruturais: o mecanicismo, o ‘biologismo’, o individualismo, a especialização, a exclusão das práticas alternativas, a ênfase na medicina curativa, a concentração de recursos e a ‘tecnificação’ do ato médico” 22. Silva J, Alves AG, Almeida C. Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo ADAC, organizadores. Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007 . p. 27-41. (p. 325).

Esse modelo de medicina científica entrou em crise na segunda metade do século XX, quando sua ineficiência se fez sentir na crescente necessidade de investimentos, alto custo e baixa resolubilidade das necessidades de saúde da população geral. Em consequência a essa crise, o paradigma da relação médico-paciente pautada na escuta dos problemas, no humanismo e na consideração da unidade indissolúvel do corpo e mente, engolfado pelo processo de hospitalização da saúde, voltou a ser pensado 11. Itikawa FA , Afonsoi DH , Rodrigues RD , Guimarães MAM . Implantação de uma nova disciplina à luz das diretrizes curriculares no curso de graduação em medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro . Rev Bras Educ Med . 2008 ; 32 ( 3 ): 324 - 32 . , 33. Amoretti R. A educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005 ; 29(2):136-46. .

Nesse percurso histórico, diante das inadequações do modelo flexneriano para a educação em saúde, buscaram-se estratégias pedagógicas. A partir da década de 1950, encontram-se no cenário norte-americano os pioneiros nesse esforço, destacando-se, entre eles, George Miller, da Universidade do Estado de Nova York. Miller, por meio de pesquisa sistemática, propôs um benéfico intercâmbio com a pedagogia e desenvolveu estratégias para qualificar o ensino e aprendizagem nas escolas médicas: “ensinar os professores de medicina a ensinar” 44. Norman G . Fifty years of medical education research: waves of migration . Med Educ . 2011 ; 45 ( 8 ): 785 - 91 . (p. 788).

Com a chegada do século XXI, fortaleceu-se o consenso nos meios políticos e acadêmicos de que a abordagem tradicional da formação médica necessitava de mudanças e ajustes, de modo que passasse a responder de maneira mais adequada às necessidades da sociedade na qual o médico atuaria profissionalmente 55. Oliveira GS, Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar, um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2004 . , 66. Hamamoto Filho PT , Santos Filho CA , Abbade JF , Peraçoli JC . Produção científica sobre educação médica no Brasil: estudo a partir das publicações da Revista Brasileira de Educação Médica . Rev Bras Educ Med . 2013 ; 37 ( 4 ): 477 - 82 . .

No Brasil, as mudanças curriculares, em curso desde 2001, apontam a necessidade de formar médicos capazes de integrarem as dimensões biológica, psicológica, social e ambiental no processo saúde-doença; e de atuarem em equipes multiprofissionais para a produção de saúde e que tenham formação crítica e reflexiva. As metodologias de ensino, portanto, precisam estimular a participação ativa do estudante na construção do conhecimento, vinculando a formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde com base nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) 77. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. .

Embalado pela pioneira Conferência Internacional de Alma-Ata, ocorrida no Cazaquistão em 1978 88. Ministério da Saúde. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde: Declaração de Alma-Ata, 1978. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. , que sugeriu ao mundo definir como prioridade a atenção primária, com o objetivo “Saúde para todos no ano 2000”, o momento contemporâneo reflete a preocupação com os desafios que o ensino médico ainda precisa alcançar. Desses, desdobra-se em resgatar o espírito do antepassado “médico da família” e assim promover no ensino o desenvolvimento de competências generalistas e a capacidade de compreensão da doença em seu contexto biopsicossocial 99. Del Giglio A . Medicina e humanismo . Rev Assoc Med Bras . 2007 ; 53 ( 3 ): 191 - 2 . .

Segundo o Ministério da Educação e Cultura na promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do Curso de Graduação em Medicina de 2014, há um propósito de promover uma formação médica geral e humanista “com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, dignidade humana e saúde integral da população” 77. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. .

A intenção da DCNs é garantir a flexibilidade, a criatividade e a responsabilidade das instituições de ensino superior ao elaborarem suas propostas curriculares. O princípio da integralidade é um valor a ser sustentado para uma boa prática em saúde e consiste em uma resposta ao sofrimento do paciente que procura o serviço de saúde. Em um cuidado não reducionista, o estudante será capaz de transpor as queixas explícitas e não silenciar o sofrimento do cidadão 33. Amoretti R. A educação médica diante das necessidades sociais em saúde. Rev Bras Educ Med. 2005 ; 29(2):136-46. , 55. Oliveira GS, Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar, um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2004 . , 77. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. .

Nos cenários da assistência em saúde mental, atuações pautadas no princípio da integralidade e da construção da clínica ampliada constituem ferramentas a serem empregadas para possibilitar um novo “fazer”, sendo que o termo “psicossocial” designa práticas com a função de substituir o modelo assistencial psiquiátrico ainda dominante 1010. Da Costa-Rosa A . A instituição de saúde mental como dispositivo social de produção de subjetividade . Estud Psicol (Campinas). 2012 ; 29 ( 1 ): 115 - 26 . .

Espera-se que as aspirações do trabalho sejam norteadas por valores como a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, além da corresponsabilidade entre eles, os vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão 1111. Amarante P , Torre EHG . Loucura e diversidade cultural: inovação e ruptura nas experiências de arte e cultura da Reforma Psiquiátrica e do campo da Saúde Mental no Brasil . Interface (Botucatu). 2017 ; 21 ( 63 ): 763 - 74 . . No entanto, nesse campo de formação há desafios, uma vez que a temática “saúde mental” permanece marginalizada e isolada nas escolas médicas 66. Hamamoto Filho PT , Santos Filho CA , Abbade JF , Peraçoli JC . Produção científica sobre educação médica no Brasil: estudo a partir das publicações da Revista Brasileira de Educação Médica . Rev Bras Educ Med . 2013 ; 37 ( 4 ): 477 - 82 . .

Como uma alternativa à supressão das dificuldades, percebe-se um movimento das faculdades em priorizar a formação centrada no estudante e uma inserção vertical de conteúdos de saúde mental ao longo de todo o curso médico, propondo o desenvolvimento de uma visão holística dos pacientes. Considerando, ademais, que o sofrimento mental é de alta prevalência na população, a necessidade de se superar a dicotomia mente e corpo, assim como de se compreender que na etiologia das doenças estão a dimensão emocional; a relação médico-paciente; e fatores ambientais e sociais, é reforçada a importância da exposição longitudinal do estudante à temática 1212. Rêgo C , Batista SH . Desenvolvimento docente nos cursos de medicina: um campo fecundo . Rev Bras Educ Med . 2012 ; 36 ( 3 ): 317 - 24 . , 1313. Cliquet MB , Rodrigues CIS . Grupo tutorial e a saúde mental no ensino médico . Rev Bras Educ Med . 2016 ; 40 ( 4 ): 591 - 601 . .

Portanto, se a formação médica se propõe a promover uma assistência integral, faz-se necessário incluir nesta o contato do estudante com o portador de doença mental em seus cenários de assistência, desde os anos iniciais da graduação. Este estudo pretendeu analisar a dimensão formativa do estudante inserido em cenários da saúde mental, a partir de imagens captadas e reflexões em grupo focal.

Percurso metodológico

A concepção teórica que respaldou o presente artigo foi a da psicologia social, em uma perspectiva que privilegia a compreensão dos fenômenos sociais, levando-se em conta que significados e intencionalidades os separam dos fenômenos naturais. Nesse contexto, privilegia-se uma vertente mais compreensiva em detrimento de uma causal em relação às interpretações dadas aos fenômenos psicossociais 1414. Minayo MCS . O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde . 14a ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, ABRASCO; 2014. .

A fotografia é uma estratégia intimamente ligada à investigação qualitativa, auxilia no aspecto descritivo de um acontecimento, ajuda na compreensão de aspectos subjetivos e pode ser analisada indutivamente 1515. Bogdan CR, Biklen KS. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora; 1994 . (Coleção Ciências da Educação). . Imagens capturadas em fotos permitem o estudo de aspectos da vida não apreensíveis somente com as palavras.

O método photovoice , adotado e adaptado para esta pesquisa, foi desenvolvido por Wang et al. 1616. Wang CC , Burris MA , Xiang YP . Chinese village women as visual anthropologists: a participatory approach to reaching policymakers . Soc Sci Med . 1996 ; ( 42 ): 1391 - 400 . em meados dos anos 1990. Trata-se de um processo que possibilita aos indivíduos representarem e exporem suas vivências comunitárias por meio de uma técnica de fotografia específica e que dá voz ao prover câmeras às mãos das pessoas que serão capacitadas a atuarem como repórteres e potenciais catalisadores de mudanças políticas e sociais em suas próprias comunidades 1616. Wang CC , Burris MA , Xiang YP . Chinese village women as visual anthropologists: a participatory approach to reaching policymakers . Soc Sci Med . 1996 ; ( 42 ): 1391 - 400 . , 1717. Wang CC , Burris MA . Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment . Health Educ. 1997 ; 24 ( 3 ): 369 - 87 . .

Uma das ideias essenciais que fundamenta o corpo teórico dessa metodologia é a pedagogia crítica de Paulo Freire (1970 apud Wang 1616. Wang CC , Burris MA , Xiang YP . Chinese village women as visual anthropologists: a participatory approach to reaching policymakers . Soc Sci Med . 1996 ; ( 42 ): 1391 - 400 . ), a qual defende que todo homem, não importando o quão “ignorante” ou “submerso na cultura do silêncio” esteja, seria capaz de um olhar crítico e dialético do mundo ao seu redor e dos relacionamentos que mantêm (grifos do autor).

Outra característica importante do photovoice é que este se classifica como um tipo de pesquisa-ação participativa em que as pessoas produzem e discutem fotografias que elas próprias tiraram sobre suas vivências enquanto membros de uma determinada comunidade ou grupo. Por meio de fotografias e relatos que as acompanham, têm a possibilidade de expor suas visões para as autoridades e pesquisadores responsáveis pelas questões levantadas 1717. Wang CC , Burris MA . Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment . Health Educ. 1997 ; 24 ( 3 ): 369 - 87 .

18. Wang CC , Red-Wood Jones A . Photovoice ethics: perspectives from flint Photovoice . Health Educ Behav . 2001 ; 28 ( 5 ): 560 - 72 .
- 1919. Wang CC , Cash J , Powers LS . Who knows the streets as well as the homeless? Promoting per-sonal and community action through Photovoice . Health Promot Pract . 2000 ; 1 ( 1 ): 81 - 9 . .

Nas mais de duas décadas de existência do photovoice , seu uso foi ampliado para diversos campos do saber, além da investigação comunitária. Na literatura, encontram-se alguns, ainda tímidos, exemplos de projetos que utilizaram a fotografia com a finalidade de reforçar o diálogo e a mudança social no campo da saúde e educação. Essa crescente expansão segue a ideia original de Wang e Burris 1717. Wang CC , Burris MA . Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment . Health Educ. 1997 ; 24 ( 3 ): 369 - 87 . de que a discussão reflexiva de fotografias facilita um diálogo crítico sobre questões específicas de interesse do pesquisador 2020. Novak D . Democratizing qualitative research: photovoice and the study of human communication . Commun Methods Meas . 2010 ; 4 ( 4 ): 291 - 310 . .

No Canadá, entre os anos de 2010 e 2011, foi realizado um estudo com quatro residentes de medicina da família e da comunidade, dois supervisores médicos e dois pesquisadores (um antropólogo e um docente médico). Neste, os residentes-participantes fotografaram o cotidiano de suas práticas na atenção primária à saúde, posteriormente elegeram cinco fotografias retratando o tema e, em grupo, passaram por sessões de entrevista e de briefing junto com os pesquisadores 2121. Loignon C , Boudreault-Fournier A , Truchon K , Labrousse Y , Fortin B . Medical residents reflect on their prejudices toward poverty: a photovoice training project . BMC Med Educ . 2014 ; 14 :1050-62. .

Outro ensaio europeu de 2016 investigou suas contribuições na educação e concluiu que o emprego do photovoice proporciona benefícios, destacando-se o acesso a configurações e experiências subjetivas; o engajamento dos participantes no processo; o conhecimento das vivências acadêmicas reais; e a reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem 2222. Massengale KEC , Strack RW , Orsini MM , Herget J . Photovoice as pedagogy for authentic learning . Pedagogy Health Promot . 2016 ; 2 ( 2 ): 117 - 26 . .

No estudo que embasou o presente artigo, para a apreensão e construção dos sentidos e significados do material captado pelos participantes, optou-se pela técnica do grupo focal para que, a partir das fotos escolhidas, o diálogo se expandisse entre o facilitador e os participantes.

Os grupos focais são particularmente úteis para refletir sobre realidades sociais e culturais, pois, por meio dessa metodologia qualitativa, pode-se aceder às experiências, significados, entendimentos, assim como a atitudes, opiniões, conhecimentos e crenças 2323. Wilkinson S . Focus group methodology: a review . Int J Soc Res Methodol . 1998 ; 1 ( 3 ): 181 - 203 . . A coleta de informações mediada por um grupo focal tem como uma de suas maiores riquezas basear-se na tendência humana de formar opiniões e atitudes na interação com outros indivíduos 2424. Krueger RA , Casey MA . Focus groups: a practical guide for applied research . Califórnia: Sage publications; 2014. .

Este estudo foi realizado entre 2017 e 2018; o cenário no qual se deu a coleta de dados foi uma cidade situada no interior de São Paulo com população estimada em 2016 de 344.704 habitantes. Nesta, funciona, desde 2012, um curso de medicina privado cujo projeto pedagógico adota metodologias ativas de ensino e atende às premissas das DCNs 77. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 Jun 2014. , visando à formação de um profissional capacitado tecnicamente, com fundamentação científica e valores humanísticos em sua prática. Seu estudante cursa a disciplina teórico-prática do Programa de Integração Ensino na Saúde da Família (PIESF) oferecida do primeiro ao oitavo semestre, a qual oportuniza, por meio de práticas de complexidade progressiva, sua inserção na rede pública de saúde e hospitais do município.

A escolha dos participantes caracterizados no Quadro 1 foi intencional. Foi convidado um grupo de seis estudantes do PIESF matriculados no 6º semestre. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os participantes tiveram duas reuniões para preparo técnico. De posse de suas câmeras ( smartphones ), foram instruídos a focarem suas práticas e a fotografarem, buscando retratar o seu dia a dia enquanto estudantes inseridos nos cenários de assistência à saúde mental.

Quadro 1
Perfil dos participantes segundo sexo, idade, estado civil e número de graduações

Resultados e discussão

O projeto foi submetido a um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, de acordo com a resolução 466/12, registrado sob o número nacional CAAE: 68579917.0.0000.5495 e aprovado mediante o Número do Parecer 2.261.870.

O grupo de participantes produziu um total de 32 fotos. Em entrevista individual, foi solicitado que escolhessem duas fotos mais significativas e atribuíssem a elas título e significados. Para discussão das fotos representativas, ocorreram dois encontros focais com os participantes, mediados pela pesquisadora principal. Os relatos e vozes coletivas que acompanharam as exposições foram gravados, em arquivo digital, e reescritos na íntegra.

A amplitude do método photovoice trouxe desafios às pesquisadoras, que lançaram mão da criatividade como recurso de investigação durante o trabalho artesanal desta pesquisa sem perder de vista que as imagens tinham um potencial simbólico e uma capacidade de capturar emoções que não podem ser reduzidas em palavras.

Assim, para a análise do material gerado, utilizou-se o Método de Interpretação de Sentidos 2525. Gomes R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2007 . p. 79-108. . Estabeleceu-se um percurso com início na compreensão das informações a partir de uma leitura minuciosa e identificação de recortes temáticos, passando por uma problematização e interpretação de sentidos subjacentes às narrativas e como desfecho, foi realizada uma síntese.

Foram classificados em dois núcleos de sentidos: A inserção nos cenários de práticas e A educação médica em ação. As categorias temáticas se entrelaçaram, tendo como pano de fundo os cenários da atenção em saúde mental do município. Pôde-se pensar o diálogo coletivo como um constructo propício à educação médica em ação e, nessa premissa, os dois núcleos foram descritos, estabelecendo-se um diálogo com a literatura pertinente à área do saber que o circunscreve.

Fotografias: imagens e reflexões

A Câmera é um instrumento que ensina a gente a ver sem câmera. (Dorothea Lange)

A inserção nos cenários de práticas e a educação médica em ação

A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. (Alberto Caeiro)

Uma das proposições da reformulação do modelo educacional se pauta na ampliação dos espaços de aprendizagem para além do hospital de especialidades, incluindo novos cenários de práticas que favoreçam uma formação humanística e o desenvolvimento das práticas curriculares em uma perspectiva interdisciplinar. Sugere-se que a produção de conhecimento, formação profissional e prestação de serviços sejam tomadas como indissociáveis e que haja a redefinição de referenciais e relações da universidade com diferentes segmentos da sociedade para a construção de um novo lugar social, relevante e comprometido com a superação das desigualdades e com um cuidado coerente com suas demandas 66. Hamamoto Filho PT , Santos Filho CA , Abbade JF , Peraçoli JC . Produção científica sobre educação médica no Brasil: estudo a partir das publicações da Revista Brasileira de Educação Médica . Rev Bras Educ Med . 2013 ; 37 ( 4 ): 477 - 82 . , 2626. Feuerwerker LCM. Cuidar em saúde. In: Rocha CMF, Pinto HA, Andrade LR, Feuerwerker LCM, Santos L, Bilibio LFS, et al. Organizadores. VER-SUS Brasil: cadernos de textos. Porto Alegre: Rede Unida; 2013 . p. 43-57. .

As DCNs propõem uma concepção ampliada de saúde e estabelecem como horizonte desejável a organização dos cursos em currículos integrados; permitindo superar o modelo disciplinar ao articular os componentes de sua grade em torno de temáticas relevantes e estimulantes. A superação da dicotomia entre teoria e prática necessita, portanto, de um campo de aprendizagem articulado aos serviços de saúde e populações do local de formação 2626. Feuerwerker LCM. Cuidar em saúde. In: Rocha CMF, Pinto HA, Andrade LR, Feuerwerker LCM, Santos L, Bilibio LFS, et al. Organizadores. VER-SUS Brasil: cadernos de textos. Porto Alegre: Rede Unida; 2013 . p. 43-57. , 2727. Silveira TTJ , Palko SNL , Staevie BR . Apostas de mudança na educação médica: trajetórias de uma escola de medicina . Interface (Botucatu). 2017; 21 ( 60 ): 177 - 88 . .

Cenário 1: hospital psiquiátrico

Figura 1
Privacidade zero

Essa imagem inaugurou o tema “internação psiquiátrica”, ilustrado nas primeiras fotografias escolhidas pelos participantes para o diálogo no grupo focal sobre o hospital psiquiátrico. Assim como as demais, essa cena parecia carregar uma tensão claustrofóbica que ficou evidente no depoimento por essas evocado. Apresentá-las “a seco” pode ter sido uma maneira de trazer à tona um assunto que não raramente é omitido dos manuais de psiquiatria: o sofrimento do paciente em suas múltiplas matizes e a impotência experimentada pelo profissional de saúde.

Coletivo: Ah, essa aí é angustiante! [...] É profunda! Estávamos na intercorrência do hospital psiquiátrico aprendendo a fazer contenção mecânica; havia marcas de arranhões de unhas nas paredes, as camas são presas no chão, grades nas janelas, porta de ferro, monitorados 24 horas [...]. Entrada escoltada, eu me senti numa prisão [...]. Prisão autorizada! Privacidade zero.

Coletivo: Ah, o hospital como um todo é deprimente, a pessoa não tem mais nenhum controle sobre sua vida, não tem deliberação para nada, fica lá numa “prisão” autorizada pela justiça. [...] É necessário sem dúvidas, mas muito triste isso, a doença domina e toma conta, a ponto do sujeito não existir mais enquanto cidadão, porque ele não contribui mais pra sociedade, é um lugar desolador, eu fiquei chocada de ver. [...] A gente lê a teria da Reforma Psiquiátrica sobre a necessidade de construção de uma rede de cuidados, mas não poderia imaginar que era daquele jeito, pensar nas pessoas estarem naquela situação e não poderem sair, porque nem sempre tem como, né? A doença mental pode ser muito incapacitante.

Nas vozes coletivas, o hospital psiquiátrico deixa de ser apenas um lugar no tempo e espaço e a presença do estudante em seus espaços privados sugere um potencial em sensibilizá-los na construção de seu conhecimento acadêmico. No entanto, para que a experiência cumpra este potencial, faz-se necessário dar voz às vivências, ouvi-las e transformá-las. A coletividade dos participantes nomeia a necessidade em se transpor o impacto inicial e pensar a assistência em um formato ampliado, pois o modelo saúde X doença se mostra impróprio para a compreensão da experiência total da doença mental. O estudante inserido nesse cenário, frente uma realidade desconhecida, é convidado a compreender a doença além de seus aspectos nosológicos e depara-se com o sofrimento, a incapacidade e as limitações de um modelo assistencial que clamou por uma “reforma” 2525. Gomes R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2007 . p. 79-108. .

As práticas pautadas no princípio da integralidade e da construção da clínica ampliada constituem-se em ferramentas a serem usadas para a construção de uma nova ética do cuidar em saúde mental 22. Silva J, Alves AG, Almeida C. Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas. In: Morosini MVGC, Corbo ADAC, organizadores. Modelos de atenção e a saúde da família. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007 . p. 27-41. , 55. Oliveira GS, Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar, um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2004 . , 1010. Da Costa-Rosa A . A instituição de saúde mental como dispositivo social de produção de subjetividade . Estud Psicol (Campinas). 2012 ; 29 ( 1 ): 115 - 26 . . A substituição, em curso, do modelo “psiquiátrico hospitalocêntrico medicalizador” pelo paradigma psicossocial propõe horizontalização da antiga hierarquia de saberes, cooperação enquanto modo de relação entre os atores do cuidado e transposição “de relações com o saber enciclopédico para relações com o saber do sujeito e de sujeito (‘não sabido’ e inconsciente)” 1010. Da Costa-Rosa A . A instituição de saúde mental como dispositivo social de produção de subjetividade . Estud Psicol (Campinas). 2012 ; 29 ( 1 ): 115 - 26 . (p. 125).

Figura 2
Paz

A escolha da segunda imagem que representa esse cenário nem pareceu ter sido clicada no mesmo local, claustrofóbico e hostil. O curso dos temas que emergiram no grupo focal apontou para uma elaboração do choque inicial; uma mesma experiência pode saturar e inviabilizar o seu componente formativo ou, quando dialogada e significada, ampliar as possibilidades de compreensão e favorecer o crescimento cognitivo e afetivo do estudante.

Facilitadora: Acham que a visita os sensibilizou para compreenderem melhor as limitações das doenças mentais e as dificuldades de tratamento?

Coletivo: Com certeza, porque ver um paciente de lá é muito diferente da pessoa que você vai atender no consultório [...]. Uma internação destas, com o prognóstico indefinido, é um outro extremo. [...] Então com certeza sensibiliza e você pensa que poder chegar naquele ponto e é triste, tipo “qualquer um de n ó s pode descobrir uma doença mental amanhã e passar por isso?”, chocante [...]! Essa foto é da gente caminhando pelo jardim, um lugar lindo, com uma energia boa; apesar de ser lá dentro, não tinha muito barulho, foi massa andar aí e fomos falando amenidades o tempo inteiro [risos]. [...] Ficamos mesmo em paz após o tumulto do começo da visita; acho que o cuidado aos pacientes precisa ajud á -los a encontrarem de volta alguma tranquilidade.

Ayres 2828. Ayres JRCM . O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde . Saude Soc . 2006; 13 ( 3 ): 16 - 29 . lança luz sobre a questão do cuidado como prática de saúde, inserindo-o no movimento humano de se lançar ao mundo, em uma reconstrução constante de si mesmo e desse mundo. O autor sugere que a atitude do cuidado se manifesta enquanto uma atitude terapêutica quando se busca ativamente seu sentido existencial. Ao se colocarem no lugar do outro (“Qualquer um de n ó s pode descobrir uma doença mental amanhã e passar por isso?”), resgataram a horizontalidade da atenção em saúde mental e o diferente foi se tornando familiar; vê-se um interesse no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, o estudante pôde conceber que há práticas possíveis de recuperação à saúde que ajudam no resgate das vidas.

Facilitadora: E vocês acham que nas situações tensas vocês falam muito para amenizar um pouco a tensão?

Coletivo: Um alívio você fala? É aquele desconforto que instala, a gente precisa extravasar [...]. No caminho da visita a gente conversou com a assistente social que estava acompanhando, ela contou que atendia lá há 20 anos. Contou que gosta e acha o que faz lá muito importante; deu pra perceber, pois para trabalhar ali tem que ter vocação e dedicação, não adianta ser mais ou menos... Não dá para dizer “eu vou pegar este emprego porque não tenho nada pra fazer”, você tem que confiar ali e oferecer seu melhor, ela deixou isso bem claro.

A profissão enquanto escolha que implica em responsabilidade perpassa uma revisão de conceitos e valores e tem como baliza a noção de humanização, compreendida como a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde 99. Del Giglio A . Medicina e humanismo . Rev Assoc Med Bras . 2007 ; 53 ( 3 ): 191 - 2 . . Com base nessa descrição, a literatura entende a atenção psicossocial como referencial ético, teórico e político do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil e como modo prático de cuidado em saúde mental 2929. Vasconcellos VC. A dinâmica do trabalho em saúde mental: limites e possibilidades na contemporaneidade e no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2008 . .

A aproximação entre racionalidade e sensibilidade parece um caminho possível para a ressignificação da saúde e do adoecer. Essa tarefa apresenta o desafio de administrar tensões teórico-políticas, sendo necessária a construção de discursos e práticas indutores de uma nova relação com o conhecimento científico, com um olhar mais amplo, que possibilite enfrentar os problemas da saúde p ú blica de maneira mais eficaz 88. Ministério da Saúde. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde: Declaração de Alma-Ata, 1978. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. , 3030. Giovannini PE, Paiva Neto JR, Silva JV, Cunha ATR, Maia AMLR, Rodrigues T . Promoção da saúde em campos de estágio para a formação médica . Rev Bras Educ Med . 2018 ; 42 ( 1 ): 181 - 9 . .

Cenário 2: comunidade terapêutica

Figura 3
Tranquilidade necessária

Coletivo: Esta foto já é lá na comunidade e lá é um lugar simples, mas bem bonito, tranquilo, afastado da cidade, sem trânsito, sem barulho [...] Então acho que o ambiente vai contribuir na recuperação das pessoas que estão lá, elas precisam disso mesmo, de paz [...]. Todos os internos entram lá por si mesmo , voluntariamente, e precisam pensar em suas escolhas pessoais para poder se tornar um dependente recuperado, limpo.

Pensar a dependência química assistida em um contexto de não violência, um ambiente saudável e aparentemente propício para o processo de reabilitação ampliou o olhar do estudante para um cuidado digno com o sujeito em situação de vulnerabilidade pelo uso de substâncias psicoativas. No entanto, p ô de-se notar uma ingenuidade no discurso do grupo e ainda um distanciamento desse “outro” que “precisa pensar em suas escolhas”, culpabilizando-se o sujeito e desconsiderando-se, assim, as demais e múltiplas facetas da dependência. O dependente confinado choca menos do que o em situação de rua: estando “limpo”, não representa perigo à sociedade.

Basaglia 3131. Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985 . (Obra original em Italiano 1968). propõe a noção de instituições de violência para as instituições fechadas, descrevendo como essas roubam a liberdade e a possibilidade de saúde dos internados. A violência e a exclusão são justificadas nesses estabelecimentos por um suposto caráter educativo pautado em uma divisão hierárquica daqueles que têm o poder e daqueles que não o t ê m, em que os direitos igualitários, humanos e de bem-estar não são considerados.

A Reforma Psiquiátrica no Brasil, segundo Basaglia 3131. Basaglia F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal; 1985 . (Obra original em Italiano 1968). , efetivou mudanças no panorama da saúde mental, em especial nos hospitais psiquiátricos, com a construção de alternativas à internação; no entanto, no campo do álcool e outras drogas, o confinamento ainda é majoritário. Os cenários não são tão hostis como os expostos anteriormente, mas a exclusão do sujeito é veemente.

Coletivo: A gente chega lá e fica muito bem impressionado com o local, com os pilares terapêuticos: fé, trabalho e disciplina; mas daí a gente vai ver as estatísticas e o índice de abstinência pós-alt a é muito baixo. Daí a gente fica pensando “Será que não tem outro jeito?”.

Coletivo: A gente tinha lido as referências sobre os tipos de tratamento para a dependência, mas não imaginava como era de fato uma comunidade. Interessante o rodízio: cozinhando, lavando louças, plantando, cuidando da casa [...]. “Laborterapia” este tipo de atividade, essencial para o dependente em tratamento aprender a ter rotina e responsabilidades. [...] Mas ainda é ruim ficarem isolados da família e sociedade!

O grupo mediado pelo facilitador foi tecendo seu saber: o perfeito (paisagem, limpeza, organização), ao ser examinado, mostrou suas agruras e evocou novos pensamentos (como “Será que não tem outro jeito?” e “[...] ruim ficarem isolados”). Olhar as fotos, falar e ouvir estabelecem um processo dialógico e o encontro das vozes em uma interação, viva e ativada pela prática, parece permitir que signifiquem as experiências vividas e teorias estudadas, passo importante para a construção do ato de “ser médico”. Lidar com o humano em sua complexidade requer uma habilidade em compreender além das leis da física e de reducionismos biológicos. Permitiram-se, assim, perceber os sujeitos dos cuidados em saúde mental em sua integralidade.

Coletivo: As histórias de vida são muito diversas e tristes. Tinha gente como a gente lá, com família, estudos e que conheceu as drogas na universidade [...]. Outras histórias de vida muito trágicas, como de um senhor que contou que a mãe era garota de programa, nunca conheceu o pai, foi abandonado aos oito anos, viveu na rua e começou a usar cola ainda criança, morou na Cracolândia. [...] Por isso tratar parece tão difícil, são pessoas com bagagens pesadas e não sei se rezar e trabalhar seria suficiente para recuperá-los.

Facilitador: Alternativa?

Coletivo: Muita terapia, acompanhamento médico... e um lugar onde pudessem morar, como no caso daquele senhor.

Facilitador: Vínculos?

Coletivo: Acho que sim, se ninguém te ama, qual o propósito da vida?

É no diálogo que o conhecimento se constrói e que o compreender transita da aparência para a essência remetendo às ideias de Edgar Morin 3232. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget; 2001 . (séc. XX), que propõe a reforma do pensamento e convida o interlocutor a abandonar as ruínas da edificação construídas sob os pilares da fragmentação, hiperespecialização e redução de saberes. A proposta de Morin é que, nos processos educacionais, seja possível abrir as “gavetinhas” nas quais os saberes estão arquivados, para que, então, seja possível tecer seus saberes de forma complexa.

Na formação médica, a inserção, nos anos iniciais da graduação, em cenários reais, vivos e complexos parece conter potencialidades para a construção de um modo de pensar que transponha a insuficiência das simplificações. O exercício de uma medicina humana e ética requer a apropriação do pensamento complexo – que exprime as ideias do uno e múltiplo presentes no todo e elimina as ideias simplistas, reducionistas e disjuntivas.

[...] Primeira etapa da complexidade: temos conhecimentos simples que não ajudam a conhecer as propriedades do conjunto. Uma constatação banal que tem consequências não banais: a tapeçaria é mais que a soma dos fios que a constituem. Um todo é mais do que a soma das partes que o constituem 3232. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget; 2001 . (p. 103).

Cenário 3: emergência psiquiátrica

Figura 4
Emergências

Na fotografia, vê-se a fachada do prédio onde se situa a Emergência Psiquiátrica visitada pelos participantes. No grupo focal, quando a foto foi projetada, houve um silêncio e os participantes hesitaram em assumir suas vozes.

Facilitador: [silêncio] Foi aí, na emergência psiquiátrica, que conheceram o Guilherme [nome fictício]. O que acharam da história dele?

Coletivo: Aquele jovem da Fundação Casa? Foi meio chocante! Ele já teve três internações psiquiátricas e nenhuma foi resolutiva. [...] Contou que usava drogas e teve várias recaídas, a mãe estava acompanhando e falou que antes ela preocupava muito com ele e que hoje já desligou pois é muito difícil; da última vez ele ficou três dias desaparecido de casa. [...] E o pai morreu.

Facilitador: Vocês ouviram que quando o pai faleceu de câncer ele prometeu no seu leito de morte não usar mais drogas?

Coletivo: Sim, e que ele já tinha recaído, se sentia culpado, que era uma baita frustração pra família [...]. Parece que por isso desistiu de viver e se cuidar, por culpa; tinha parado de comer, estava prostrado. [...] Daí fico pensando que não adianta internar, dar remédio, ele pode até tomar enquanto estiver na Fundação, mas que esperança este jovem tem? O emocional, as relações, a índole. Parece que já perdeu tudo! [...] Até de homicídio ele já participou.

Facilitador: Vocês veem alternativa para estes “Guilhermes”?

Coletivo: A gente percebeu que a família precisa estar junto e ser pra recuperação. [...] E não só a família, uma equipe multi. Tem que cuidar da família também, imagina a situação desta mãe, sem pai e com um filho assim? E o trabalho é importante, ele disse que era marceneiro, aprendeu com o pai, parece que tinha talento!

Histórias de vida como a de Guilherme em um primeiro momento parecem ficar arquivadas em um local intocável da memória, no qual se isola tudo aquilo que é difícil e doloroso digerir mentalmente. Apenas com o auxílio do facilitador que a resgataram e, então, pôde-se emergir das lembranças dos participantes os detalhes e o sofrimento inscritos nas entrelinhas do depoimento do paciente.

Tais histórias levam a pensar sobre a necessidade da compreensão por parte do estudante da saúde enquanto um conceito ampliado e no palco do cuidado, além do paciente, de diversos atores como família, equipe e o trabalho. Desloca-se o centro do fazer do médico, historicamente sustentado pelo conhecimento em uma dimensão biológica e curativa, para um universo de ações da promoção e de prevenção pautados na compreensão dos determinantes sociais e interações das ações de saúde com outros níveis da sociedade e com outros setores 2828. Ayres JRCM . O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde . Saude Soc . 2006; 13 ( 3 ): 16 - 29 . .

A medicina centrada na doença se revela insuficiente para promover o cuidado que muitos “Guilhermes” demandam. Aponta-se a necessidade de ruptura de paradigmas e a desculpabilização do sujeito como único responsável por suas escolhas. Nesse sentido, no panorama brasileiro, uma estrutura curricular que integre professores, gestores e profissionais da rede SUS, com diferentes formações e características, favoreceria a interdisciplinaridade e integralidade almejadas pelo profissional médico 3333. McNair R , Griffiths L , Reid K , Sloan H . Medical students developing confidence and patient centredness in diverse clinical settings: a longitudinal survey study . BMC Med Educ . 2016 ; 16 :176. .

Pretende-se que a formação médica compreenda a medicina centrada no paciente: o cuidado do sujeito a partir da identificação de suas ideias e emoções a respeito do adoecer; e o cuidar pautado no acordo de metas comuns entre médicos e pacientes. O compartilhamento de decisões e responsabilidades se mostra um novo caminho e possibilidade rica de atuação para a medicina contemporânea 55. Oliveira GS, Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar, um desafio para o processo de formação. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2004 . , 3333. McNair R , Griffiths L , Reid K , Sloan H . Medical students developing confidence and patient centredness in diverse clinical settings: a longitudinal survey study . BMC Med Educ . 2016 ; 16 :176. .

Conclusão

I am no superman, I have no answers for you.I am no hero,

And that’s for sure.

But I know one thing,

That’s where you are, is where I belong.

I do know

Where you go

Is where I want to be [...]

(“Where Are You Going”, Dave Matthews Band, Busted Stuff, 2002)

É lá onde o outro está que o profissional do cuidado pertence, alcançar esse outro se constitui intuito principal de qualquer formação em saúde; é preciso estar e sentir, conectar o conhecimento com as práticas, dar vivacidade às experiências, sentir entusiasmo. E, então, esta medicina pode fazer sentido?

Sabe-se que a educação médica se faz no trânsito. “ Transitu ”, do latim, em suas origens, remete à passagem, movimento; e será no movimento permanente entre o conhecer, fazer e pensar que tornará possível, a partir do sentido dado às experiências, formar um profissional apto a cuidar e a exercer seu ofício em uma perspectiva ética e humana. No trânsito entre o contato com a teoria e a inserção nos cenários de práticas de saúde mental, pôde-se perceber o processo de confecção dos sentidos e a importância de se integrar as dimensões afetivas e cognitivas para uma boa prática.

Competência, no contexto da formação médica, é um termo complexo que envolve a articulação de aprendizados nas esferas cognitiva, psicomotora e socioafetiva. Se o objetivo da aquisição de competências é proporcionar uma formação profissional humanista; crítica; reflexiva; e com senso de responsabilidade social e atuação voltada para a assistência integral à saúde do ser humano, tal como preveem as DCNs, mostra-se necessário fortalecer as atividades curriculares que fomentem o diálogo e abarquem a subjetividade do estudante em seu processo formativo.

Neste projeto, os participantes integrados nos campos de práticas puderam expor e pensar em sua formação a partir de suas inserções em espaços que compõem a assistência em saúde mental do município de sua graduação. Sair da universidade e ingressar na realidade mostrou-se fértil para fomentar a compreensão de conceitos que, quando apenas teóricos, são vazios e não nutrem o “vir-a-ser” ccDonald Woods Winnicott (1896-1971). médico. A experiência fotografada, relatada e discutida no grupo trouxe vitalidade à formação, aproximando-os do humano que há neles e nos outros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2019
  • Aceito
    21 Dez 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br