Aprofundando o debate sobre os exames de licenciamento em Medicina

Deepening the debate on medical licensing examinations

Profundizar el debate sobre los exámenes de licencia en Medicina

Rafael Barbosa da Silva Bica George Edward Machado Kornis Sobre os autores

As análises de Claudia Maffini Gribowski, Eliana Amaral e Luiz Ernesto de Almeida Troncon a respeito de nosso artigo realizam aquele que, desde sua concepção, era nosso maior objetivo ao escrevê-lo: promover um debate qualificado sobre a eventual pertinência de se introduzir exames de licenciamento (ELMs) para graduandos em escolas médicas brasileiras. Agradecemos aos autores pela clareza e pelo rigor analítico com que aprofundaram a discussão dos argumentos apresentados no primeiro texto, apontando distintos enfoques e interpretações para questões cuja compreensão não é trivial; e com que identificaram outros fatores que influem na discussão e que nós não havíamos abordado com a devida ênfase.

As expectativas sociais que envolvem a realização dos ELMs mereceram destaque na discussão. Como Amaral indica, a terminalidade que caracteriza a graduação em medicina no Brasil é relativamente incomum fora da América Latina e eleva as expectativas sobre a qualificação do recém-formado, visto que não há etapas adicionais a cumprir antes do pleno licenciamento. A autora menciona outra questão relevante: a percepção pública sobre o “valor agregado” da educação superior. Em detalhada análise do tema, Salter e Tapper11. Salter B, Tapper T. The external pressures on the internal governance of universities. High Educ Q. 2002; 56(3):245-56. demonstram que as concepções da sociedade sobre as funções que a educação superior deve cumprir vêm se alterando nas últimas décadas e privilegiando, cada vez mais, a ideia de que a universidade deve promover a formação de recursos humanos que atendam às demandas do mercado de trabalho. Tal mudança, por sua vez, pressiona governos e entidades de representação profissional a buscar assumir algum grau de gerência sobre os processos de ensino e avaliação do ensino superior, retirando da comunidade acadêmica prerrogativas que lhe cabiam historicamente. É nesse contexto que se fortalecem, no caso específico do ensino médico, as pressões sociais em favor da regulação externa por meio de exames de licenciamento, que serviriam como uma “garantia de qualidade” para os profissionais autorizados a prestar serviços ao público. A esta tendência global, somam-se pressões que, embora também possuam caráter supranacional, são mais intensas no contexto brasileiro: como Troncon acertadamente indica, a recente e explosiva expansão do ensino médico brasileiro produz insegurança sobre a qualidade do ensino tanto na população geral como em segmentos diretamente interessados, tais como empregadores da saúde suplementar e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS).

Como indicam os autores, a maior demanda por garantias de qualidade na formação parece ser uma tendência inevitável e, como definiu Van der Vleuten22. Van Der Vleuten C. National, European licensing examinations or none at all? Med Teach. 2009; 31(3):189-91. , “inescapável”. Cabe-nos, então, analisar se a introdução dos ELMs seria uma das respostas adequadas. Ao defendê-la, Troncon indica que existe, no Brasil, capacidade operacional e expertise para realizar avaliações de um amplo contingente de formandos, com robustez psicométrica e abordando a ampla gama de conhecimentos e habilidades normatizadas pelas nossas Diretrizes Curriculares Nacionais. O autor menciona também a longa experiência de outros países, como Canadá e Estados Unidos, na aplicação de testes com esse formato em larga escala. Gribowski, no entanto, corretamente aponta a necessidade de se avaliar não apenas tais domínios, mas também a “aprendizagem inserida no contexto real”, ou seja, o domínio da performance clínica (o “fazer” da pirâmide de Miller). Desta forma, se um desenho cuidadoso de avaliações para licenciamento em larga escala pode garantir uma boa aferição de conhecimentos e habilidades e evitar que aqueles que não possuem a proficiência mínima nesses domínios sejam autorizados a praticar a medicina, talvez seja necessário complementá-las com metodologias que abordem a performance no mundo da prática, dimensão tão essencial quanto as duas primeiras e, inquestionavelmente, mais difícil de quantificar pontualmente.

A questão das evidências empíricas dos benefícios dos ELMs também recebeu a atenção dos autores. Amaral e Troncon dissecaram a ausência de evidências conclusivas sobre a efetividade dos ELMs em discernir, de modo válido e confiável, entre os formandos que possuem as competências desejadas e os que não as possuem. Amaral, em particular, levanta um argumento importante e que não havíamos abordado: boa parte das associações positivas, observadas em estudos anteriores, entre os resultados nos testes e o desempenho profissional pode estar enviesada não apenas pela incompletude dos parâmetros escolhidos mas também pelo inegável fato de que médicos com melhores notas nos ELMs tendem a trabalhar em ambientes melhor estruturados, onde um desempenho satisfatório é mais fácil de alcançar. As limitações dos estudos também são discutidas por Troncon, que expõe a inevitabilidade de se analisar apenas os desempenhos dos aprovados nos ELMs. O autor, aliás, considera não apenas os possíveis impactos educacionais negativos, mas também um tema frequentemente negligenciado na discussão: a necessidade de se desenvolver estratégias de remediação, onde os reprovados no teste possuam caminhos estruturados para aprimorar sua proficiência e assim alcançar a aprovação em oportunidades posteriores, minimizando o risco social de se criar uma categoria de bacharéis em medicina que não estejam aptos a praticá-la.

Tomados em conjunto, seus argumentos refletem a pluralidade de interpretações possíveis. Se a eficácia dos ELMs não está provada, também é verdade que sua ineficácia também não está, o que mantém aberta a questão e evidencia como outros fatores que vão além das evidências estritamente empíricas contribuem para a formação de cada posicionamento: concepções distintas sobre as funções e os impactos esperados para a avaliação do ensino médico brasileiro e percepções sobre o contexto social em que ela se insere estão entre os principais.

Esses dois fatores também foram objeto da análise dos três autores. Todos concordaram, como havíamos indicado no texto, que o ensino médico brasileiro carece de um programa mais amplo de avaliações dos estudantes e das escolas médicas. Amaral ressalta que o “ônus” da avaliação não deve recair apenas sobre o estudante: as escolas médicas também precisam ser avaliadas e assumir responsabilidade pelos resultados obtidos. Troncon sugere que tais avaliações devam ser realizadas por agências externas – ideia que, sem dúvida, fortalece-se à medida que analisamos as evidências já disponíveis, internacionalmente33. Mccrorie P, Boursicot K. Variations in medical school graduating examinations in the UK: are clinical competence standards comparable? Med Teach. 2009; 31(3):223-9. de que as escolas médicas, tomadas em conjunto, não tem sido capazes de avaliar o universo dos formandos de maneira uniforme. Com isso, pessoas com qualificações bastante distintas acabam recebendo qualificações e responsabilidades semelhantes, fenômeno que pode ser ainda mais delicado em um país com padrões tão heterogêneos de ensino como é o Brasil.

Por outro lado, há que se considerar também as funções esperadas da avaliação. Gribowski destaca a complementaridade das avaliações formativas e somativas e, ao fazê-lo, contribui para desfazer o mito de que tais modalidades são antagônicas, argumento frequentemente apresentado em discussões sobre o tema. Como apontamos no texto inicial, os ELMs são uma modalidade de avaliação somativa, com função certificadora, cuja “razão de ser” é estabelecer quais dos formandos têm as aptidões mínimas para o exercício da medicina. Os ELMs não têm o objetivo de promover correções de rumo em um programa curricular ou, mais amplamente falando, aprimoramentos na qualidade do ensino, e não são calibrados para isso. Assim, não nos parece recomendável julgar sua pertinência com base nesse critério, embora seja essencial que seu desenho operacional busque minimizar seus inquestionáveis (e não-intencionais) impactos educacionais. Já as avaliações formativas, cujas estruturas e objetivos são bem delineados por Gribowski, têm justamente a necessária missão de promover mudanças no aprendizado. A autora descreve a ANASEM como uma avaliação formativa nos moldes dos Testes de Progresso, medindo a aquisição progressiva de conhecimentos ao longo do curso de graduação. Com isso, faz uma correta contraposição às declarações do documento oficial de apresentação da ANASEM44. Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Documento Básico – Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina. Brasília: INEP/MEC; 2016. , que indicava aquela prova escrita como um instrumento capaz de avaliar “conhecimentos, habilidades e atitudes” dos estudantes.

Tomadas em conjunto, as análises dos três autores fortalecem nossa percepção de que visões distintas e qualificadas sobre um tema tão complexo quanto relevante se complementam. A qualidade final dos sistemas de avaliação do ensino médico brasileiro depende desse diálogo: aspectos essenciais à sua bem-sucedida elaboração e implementação podem passar despercebidos se as contribuições individuais de cada ator interessado no processo não forem cuidadosamente consideradas. Qualquer que seja o modelo final a prevalecer, este debate constitui uma forte indicação de qual caminho deve ser seguido.

Referências

  • 1
    Salter B, Tapper T. The external pressures on the internal governance of universities. High Educ Q. 2002; 56(3):245-56.
  • 2
    Van Der Vleuten C. National, European licensing examinations or none at all? Med Teach. 2009; 31(3):189-91.
  • 3
    Mccrorie P, Boursicot K. Variations in medical school graduating examinations in the UK: are clinical competence standards comparable? Med Teach. 2009; 31(3):223-9.
  • 4
    Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Documento Básico – Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina. Brasília: INEP/MEC; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2019
  • Aceito
    11 Nov 2019
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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