Resumos
O objetivo do estudo foi analisar a integração ensino-serviço-comunidade em um curso de Odontologia, a partir dos estágios curriculares vistos na perspectiva dos trabalhadores de saúde, estudantes, usuários, gestores e professores. Foram realizadas 27 entrevistas semiestruturadas, posteriormente transcritas e analisadas tematicamente. As representações culturais sobre a integração estudada são ressignificadas processualmente a partir das interações e colisões entre os seus diferentes agentes, possibilitando o deslizamento de sentidos expressos e compartilhados. As representações também operam de forma contingente, ora facilitando, ora dificultando um processo de formação odontológica efetivamente dialógico. A integração ensino-serviço-comunidade, estudada a partir de um dos seus dispositivos, os estágios supervisionados, é um lugar de “sair de si” para vivenciar a teoria na prática e a prática na teoria, com ações sociais e pedagógicas que produzem atualizações, corresponsabilizações e conhecimentos orientados coletiva e intencionalmente para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Estudos culturais; Odontologia; Saúde Pública; Ensino
El objetivo del estudio fue analizar la integración enseñanza-servicio-comunidad en un curso de Odontología, a partir de las pasantías curriculares vistas bajo la perspectiva de los trabajadores de la salud, estudiantes, usuarios, gestores y profesores. Se realizaron 27 entrevistas semiestructuradas, que posteriormente se transcribieron y analizaron temáticamente. Las representaciones culturales sobre la integración estudiada se resignifican procesalmente a partir de las interacciones y choques entre sus diferentes agentes, posibilitando el deslizamiento de sentidos expresados y compartidos. Las representaciones también operan de forma contingente, tanto facilitando, como dificultando un proceso de formación odontológica efectivamente dialógico. La integración enseñanza-trabajo-comunidad, estudiada a partir de uno de sus instrumentos, las pasantías supervisadas, es un lugar para “salir de sí” para vivir la teoría-en-la-práctica y la práctica-en-la-teoría, con acciones sociales y pedagógicas que producen actualización, corresponsabilidades y conocimiento orientados de forma colectiva e intencional hacia el Sistema Brasileño de Salud.
Estudios culturales; Odontología; Salud Pública; Enseñanza
Introdução
O currículo de graduação e a seleção de conhecimentos nele contidos são artefatos culturais e, como tais, gravitam em campos de disputa de poder, influência e conquista de significados, tendo como escopo a busca de hegemonia cultural11. Silva TT. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: Silva TT, organizador. Alienígenas na sala de aula: introdução aos estudos culturais em educação. 11a ed. Petrópolis: Vozes; 2018. em distintos campos no tempo e no espaço acadêmicos.
Escolhas curriculares são e estão impregnadas por representações culturais que revelam hierarquias entre saberes e fazeres. Representações culturais estabelecem hábitos e valores conforme interesses coletivos, associados à construção de identidades, produções, consumos e regulações, dispostos em circuito contínuo22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016.. O elenco dos conhecimentos contemplados ou secundarizados nas matrizes curriculares envolve diferentes práticas, que garantem a institucionalização e a celebração de aprendizados e competências específicas, e o próprio perfil dos egressos11. Silva TT. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: Silva TT, organizador. Alienígenas na sala de aula: introdução aos estudos culturais em educação. 11a ed. Petrópolis: Vozes; 2018.,44. Germinari GD, Pedroso D. Educação escolar e currículo: uma abordagem cultural. Rev Dialogo Educ. 2017; 17(53):843-65..
Na formação da odontologia, que se estabelece(ia) hegemonicamente no mercado de trabalho autônomo e privado, sem a possibilidade de cotejamento da inserção no SUS, a tradição de mais de um século revela-se em uma cultura solidamente tecnocentrada e monopolizada pelo desenvolvimento de habilidades e atitudes para a intervenção biomecânica competente e especializada sobre as sequelas das doenças bucais55. Souza Nétto OB, Moura MS, Lima MDM, Lages GP, Mendes RG, Moura LFAD. O pró-saúde no curso de Odontologia na Universidade Federal do Piauí: relato de uma vivência de cinco anos. Cienc Cuid Saude. 2013; 12(2):391-7.
6. Haddad AE, Laganá DC, Assis EQ, Morita MC, Toledo OA, Rode SM, et al. A aderência dos cursos de graduação em Odontologia às Diretrizes Curriculares Nacionais. In: Brasil. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. A aderência dos cursos de graduação em Enfermagem, Medicina e Odontologia às diretrizes curriculares nacionais. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p. 119-52. (Série F, Comunicação e Educação na Saúde).
7. Morita MC, Kriger L, Carvalho ACP, Haddad AE. Implantação das diretrizes curriculares nacionais em Odontologia. 2a ed. Maringá: Dental Press, Abeno, OPS, MS; 2013.-88. Zilbovicius C, Araujo ME, Botazzo C, Frias AC, Junqueira SR, Junqueira CR. A paradigm shift in predoctoral dental curricula in Brazil: evaluating the process of change. J Dent Educ. 2011; 75(4):557-64..
A Constituição brasileira de 1988, no seu artigo 200, inciso III, destacou a saúde como direito de todos e um dever do Estado, bem como o papel ordenador do SUS na formação de recursos humanos no setor saúde99. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.. A publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), em 20021010. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES 3, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2002., e das diversas políticas interministeriais de reorientação no campo da educação e da saúde nos anos consecutivos foi indutora de processos de reformulação de projetos pedagógicos e currículos dos cursos da área da saúde1111. Barreto LDSO, Guimarães Campos VD, Dal Poz MR. Interprofessional education in healthcare and health workforce (HRH) planning in Brazil: experiences and good practices. J Interprof Care. 2019; 33(4):369-81. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230.
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.... ,1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.. Todos os marcos legais possuíram como imagem-objetivo na Odontologia uma formação que problematizasse as condições de saúde bucal da população brasileira; o arranjo organizacional, nacional e locorregional dos sistemas públicos de saúde bucal; e a formação de um cirurgião-dentista humanista e crítico-reflexivo1010. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES 3, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2002..
A formulação e a implementação da integração ensino-serviço-comunidade (IESC), mediante os esforços de articulação entre o sistema de saúde e de ensino superior, materializam-se na inserção de estudantes e docentes nas redes sanitárias assistenciais em desenvolvimento no Brasil, com experiências interessantes apontadas tanto nacional1111. Barreto LDSO, Guimarães Campos VD, Dal Poz MR. Interprofessional education in healthcare and health workforce (HRH) planning in Brazil: experiences and good practices. J Interprof Care. 2019; 33(4):369-81. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230.
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019....
12. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.-1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25. quanto internacionalmente1414. Hobson RS. A view of European challenges in dental education. Br Dent J. 2009; 206(2):65-6.
15. Piskorowski WA, Stenafac SJ, Fitzgerald M, Green TG, Krell RE. Influence of community-based dental education on dental students’ preparation and intent to treat underserved populations. J Dent Educ. 2012; 76(4):534-9.
16. McQuistan MR, Mohamad A, Kuthy RA. Association between dentists’ participation in charitable care and community-based dental education. J Dent Educ. 2014; 78(1):110-8.-1717. Formicola AJ, Bailit HL. Community-based dental education: history, current status, and future. J Dent Educ. 2012; 76(1):98-106.. Essa regulação de mão dupla (educação-saúde) também implica no desenvolvimento de componentes curriculares, projetos de pesquisa e extensão, assim como a formação ampliada e diversificada dos estudantes, com todas as complexidades envolvidas, inclusive no campo das disputas narrativas e culturais estabelecidas1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.,1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25..
A presença de estudantes e professores em estágios supervisionados no SUS, democraticamente articulada com as administrações municipais e equipes multiprofissionais de saúde, potencializa aprendizados recíprocos e contribui para o delineamento de uma cultura formativa que contempla os desafios cotidianos da política pública de saúde, sejam eles de vigilância, gestão, educação permanente, regulação, assistenciais ou outros.
Os estágios supervisionados trazem questões singulares à dinâmica formativa, como: os papéis pedagógicos do preceptor (trabalhador); a polifonia do tríptico cenário de ensino-aprendizagem – unidade básica de saúde-território-população adscrita –; e o encontro com a pluralidade de processos e condições de trabalho como um ensaio acadêmico realístico de profissionalismo.
Paradoxalmente, os estágios supervisionados experimentam uma crise semântico-identitária pós-DCN, não devendo ser compreendidos utilitariamente apenas como práticas educativas de bonomia higienista colonizadora ou exercícios clínicos realizados fora do ambiente universitário1818. Werneck MAF, Senna MIB, Drumond MM, Lucas SD. Nem tudo é estágio: contribuições para o debate. Cienc Saude Colet. 2010; 15(1):221-31., mas sobretudo como vivências polissêmicas nos territórios sanitários.
O objetivo do estudo foi analisar a integração ensino-serviço-comunidade em um curso de Odontologia, a partir dos estágios curriculares vistos na perspectiva dos trabalhadores de saúde, estudantes, usuários, gestores e professores.
Método
Foi realizado um estudo de caso1919. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. para compreender os significados e as intencionalidades do processo de integração ensino-serviço-comunidade, a partir dos estágios curriculares de um curso de Odontologia, em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de uma capital do Nordeste brasileiro.
Trata-se de um estudo de representação cultural22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016. que buscou ampliar e diversificar os olhares sobre a IESC como tema caro às reformas contemporâneas do ensino de graduação em Odontologia no Brasil. A importância do estudo das representações culturais está no fato de que elas estabelecem conexões entre os sentidos e significados dos conhecimentos contidos no currículo de graduação e as práticas desenvolvidas nos estágios curriculares.
O curso de Odontologia investigado na presente pesquisa pertence a uma instituição de ensino superior (IES) federal com 65 anos de fundação. A partir de 2002, a instituição propôs uma matriz curricular que abrange estágios supervisionados, em que os quatro primeiros módulos são realizados no biênio inicial do curso e estão sob a responsabilidade dos docentes da saúde coletiva, contemplando 120 horas, sendo trinta horas em cada semestre2020. Forte FDS, Pontes AA, Morais HGF, Barbosa AS, Sousa Nétto OB. Olhar discente e a formação em Odontologia: interseções possíveis com a Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170407.,2121. Forte FDS, Pessoa TRRF, Freitas CHSM, Barbosa AS, Morais MB, Braga CC, et al. Community-based education: experience in community health supervised clerkships at the Federal University of Paraíba Dentistry Course. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, Amaral E, organizers. Community-based education for the health professions: learning from the Brazilian experience. Brasília: OPAS, PAHO; 2015. p. 220-33..
O delineamento pedagógico adotado pelos estágios supervisionados é pautado por metodologias ativas, que estimulam um comportamento discente participativo e com relações mediadas pela construção reflexiva do conhecimento. O ponto de partida é a complexidade e a diversidade do mundo do trabalho em saúde vivenciado no território da ESF, no qual se incluem múltiplos equipamentos sociais como escolas, creches e centros comunitários2020. Forte FDS, Pontes AA, Morais HGF, Barbosa AS, Sousa Nétto OB. Olhar discente e a formação em Odontologia: interseções possíveis com a Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e170407.,2121. Forte FDS, Pessoa TRRF, Freitas CHSM, Barbosa AS, Morais MB, Braga CC, et al. Community-based education: experience in community health supervised clerkships at the Federal University of Paraíba Dentistry Course. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, Amaral E, organizers. Community-based education for the health professions: learning from the Brazilian experience. Brasília: OPAS, PAHO; 2015. p. 220-33..
O conteúdo programático contempla temas importantes para o campo da Saúde Coletiva e da saúde bucal coletiva brasileira: o SUS e suas diversas políticas setoriais; Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; programa de agentes comunitários de saúde (ACS); territorialização; humanização em saúde; educação em saúde; e epidemiologia geral e das doenças bucais.
O presente estudo foi desenvolvido em uma USF selecionada intencionalmente por ser, desde 2005, o cenário do Programa de Reorientação da Formação e do Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (Pró-Saúde, Pet-Saúde) dos estágios supervisionados dos cursos de Odontologia, Enfermagem e Nutrição. Trata-se de um serviço no qual trabalham uma equipe da ESF e uma Equipe de Saúde Bucal (EqSB).
Foram entrevistados 27 participantes, dos quais nove eram estudantes de graduação, seis ACS, um profissional de saúde de nível superior, uma auxiliar de saúde bucal (ASB), cinco profissionais da educação infantil e cinco usuários do SUS. A seleção dos entrevistados se deu em função da participação nas atividades dos estágios supervisionados, nos equipamentos sociais e/ou na USF. Os estudantes estavam regularmente matriculados no curso, e foram excluídos trabalhadores que estivessem de férias e/ou licença.
As entrevistas foram realizadas por três pesquisadores (dois estudantes de graduação e um docente), no período de dezembro de 2016 a junho de 2017. Previamente às entrevistas, os pesquisadores discutiram o pressuposto do estudo, a entrevista como técnica de coleta de dados e sobre o ethos da pesquisa qualitativa, a fim de alinhar a condução dos trabalhos com o arcabouço teórico-conceitual dos estudos culturais22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016.. Exercícios de simulação de entrevistas e discussão sobre elas também foram realizados.
Para participar da pesquisa, todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram registradas em áudio e, posteriormente, transcritas para análise. A leitura das transcrições revelou que os 27 entrevistados haviam respondido à questão da pesquisa, e a realização de novas entrevistas poderia representar redundância, pois se observou o alcance do platô de saturação para pesquisas qualitativas, que remete ao não surgimento de sentido ou significado novo sobre o que está sendo estudado2222. Saunder B. Saturation in qualitative research: exploring its conceptualization and operationalization. Qual Quant. 2018; 52(4):1893-907..
As entrevistas foram transcritas na íntegra e trabalhadas pela análise de conteúdo temática2323. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2014. em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. A pré-análise significou a organização do material coletado e teve por objetivo operacionalizar e sistematizar as ideias iniciais. A leitura flutuante das transcrições consistiu em estabelecer um contato para melhor conhecê-las, analisá-las e explorá-las. A terceira fase foi o tratamento dos resultados obtidos. A codificação foi o processo pelo qual os dados foram sistematicamente transformados e agregados em unidades que permitiram uma descrição das características pertinentes do conteúdo. Os trechos das entrevistas utilizados neste artigo foram apresentados com o nome da categoria do participante, seguido por numeração aleatória.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da IES envolvida na pesquisa, protocolo n. 1.653.507.
Resultados e discussão
O conceito de cultura é amplo e diverso, sendo neste artigo elaborado como uma forma de compreender os conjuntos de práticas associadas ao poder e à hegemonia22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016., o que permite discutir as representações culturais da IESC, desvelando a sua presença na formação em odontologia.
Para Williams2424. Williams R. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Vozes; 2011., a cultura produz a realidade na medida em que os sujeitos engendrados nesse movimento de educação, formação e saúde interagem, dialogam, fazem, planejam, articulam e produzem práticas significativas em um território visitado, que nunca é apenas um território sanitário1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.,1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25.,2121. Forte FDS, Pessoa TRRF, Freitas CHSM, Barbosa AS, Morais MB, Braga CC, et al. Community-based education: experience in community health supervised clerkships at the Federal University of Paraíba Dentistry Course. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, Amaral E, organizers. Community-based education for the health professions: learning from the Brazilian experience. Brasília: OPAS, PAHO; 2015. p. 220-33.,2525. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12a ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2015..
A análise cultural é também política, e toda formação em saúde é feita a partir de escolhas de conhecimentos, pedagogias e paradigmas, que se manifestam na valorização de determinados modos de ensino-aprendizagem e na invisibilização de outros11. Silva TT. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: Silva TT, organizador. Alienígenas na sala de aula: introdução aos estudos culturais em educação. 11a ed. Petrópolis: Vozes; 2018.. As matrizes curriculares no limite iluminam memórias e esquecimentos, revelam e ocultam saberes e práticas em contextos específicos11. Silva TT. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: Silva TT, organizador. Alienígenas na sala de aula: introdução aos estudos culturais em educação. 11a ed. Petrópolis: Vozes; 2018..
A representação cultural é uma forma de elaboração e compreensão que conecta sentidos e práticas; é parte nuclear do processo pelo qual os significados são produzidos, compartilhados (consumidos) e ressignificados entre membros de uma comunidade cultural22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,2525. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12a ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2015.. Compreender o significado e as representações culturais relacionadas aos estágios supervisionados enriquece e amplifica a discussão sobre seu papel na formação em saúde orientada pela IESC.
Os estágios supervisionados são construções sociais que podem traduzir um vínculo epistêmico e político com a reforma sanitária brasileira, a luta infinda pela democratização da saúde e pela sobrevida do SUS em tempos quase sempre tão contrários. A presença da graduação em Odontologia no SUS, como parte do espectro formativo, é um devir, um convite à relação, ao encontro, à mudança e à impermanência no processo de aprendizagem.
O que representa culturalmente a integração de um curso de graduação tradicional, como a Odontologia, com os serviços do SUS em uma comunidade específica?
A IESC é fruto do trabalho coletivo articulado e pactuado por professores, estudantes, preceptores, gestores, comunidade usuária do SUS e agentes dos diferentes equipamentos sociais. A análise temática do discurso dos entrevistados deixa antever que as pessoas envolvidas na IESC são artífices das representações culturais2626. Woodward K. A identidade e diferença: uma introdução: In: Silva TT, Woodward K, Hall S, organizadores. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15a ed. Petrópolis: Vozes; 2014.. Os entrevistados enfatizam a necessidade de inserção do estudante em realidades e contextos diferentes dos academicamente familiares, mostrando-lhe quão necessário é “sair de si”, do que já está acostumado a ver e fazer, para conseguir, assim, enxergar as necessidades do outro. Os agentes envolvidos na IESC explicitaram suas representações refletindo diversos posicionamentos assumidos a partir dos seus lugares de origem, de formação e de experiências de vida, que compõem seu “sistema simbólico de representação”2626. Woodward K. A identidade e diferença: uma introdução: In: Silva TT, Woodward K, Hall S, organizadores. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15a ed. Petrópolis: Vozes; 2014..
Uma representação cultural da IESC é a de que se trata de uma prática ou um “acontecimento” com vários aspectos positivos para a formação dos graduandos. Nas palavras de entrevistados:
Eu acho importante porque ele vai vivenciar na prática. Porque na universidade estuda, mas aí é a teoria, porque o que importa é, além da teoria, você também vivenciar, na prática, o que você aprendeu. Não só pelo que a gente conta, mas também o que a gente vivencia. É bom que o estudante, ele também tem a oportunidade de conseguir, ele mesmo, vivenciar a experiência em situações diferentes [...] aí, ele vê diferentes realidades de condições, de tudo: de saúde, condição financeira, a realidade mesmo; tipo de família, tudo que é relacionado à saúde, direta ou indiretamente. (Profissional)
O respeito junto com o amor, conhecendo a realidade, o dia a dia das pessoas [...] então, acho muito importante para eles trabalharem junto com as crianças e junto com a comunidade, porque eles também gostam, eles se sentem pessoas importantes. (Professora da creche 3)
A produção do conhecimento na experiência integrativa não é um campo cultural neutro, nem consensualmente pacífico. Ela exige uma intencionalidade, sobretudo política, ética, um ativismo1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.,2727. Williams R. La larga revolución. Buenos Aires: Nueva Visión; 2003.,2828. Neta Aguiar A, Alves MSCF. A comunidade como local de protagonismo na integração ensino-serviço e atuação multiprofissional. Trab Educ Saude. 2016; 14(1):221-3. comprometido com a defesa da vida, da saúde, do SUS e da cidadania. A IESC permite que todo um corpus teórico-prático seja experimentado, desde a leitura dos documentos oficiais – DCN, Leis Orgânicas da Saúde e Políticas Nacionais de Saúde99. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.,1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.,1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25. – até a imersão no processo de trabalho da ESF, passando pelo experimento comunitário de andanças territoriais, visitas domiciliares e formas plurais – vivenciadas, (re)inventadas e (res)significadas – de cuidado33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016.,2525. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12a ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2015.. Cada agente, à sua maneira, representou a IESC como uma forma de produzir mudanças sociais:
[...] pra mim, o que mais mudou foi a visão que eu tinha em relação ao SUS. Eu acho que isso foi o que mais mudou, porque quando você não utiliza do serviço e quando você não faz parte daquilo, você não entende bem como funciona, nem na teoria nem na prática, então eu acho que a gente tem a oportunidade de ver melhor como funciona, que o trabalho do dentista não é só aquilo dentro da clínica. (Estudante 1)
[...] estudantes vão perceber que a vida não se resume só naquele mundinho deles, existem outros locais, e, se envolverem-se com esse novo ambiente, podem crescer profissionalmente também. (Professora da creche 5)
[...] a gente trabalha, procurando formar o profissional de uma forma geral [que] ele veja o usuário em seu contexto e não apenas só a boca... juntar os cursos, fazer aquela equipe multiprofissional... fica rico o trabalho multidisciplinar, transdisciplinar. Cada um sai da caixinha, com um objetivo só: o usuário. (Profissional)
A IESC, ao oferecer suporte para transformações no campo da formação, da produção de cuidado e do fortalecimento do SUS1111. Barreto LDSO, Guimarães Campos VD, Dal Poz MR. Interprofessional education in healthcare and health workforce (HRH) planning in Brazil: experiences and good practices. J Interprof Care. 2019; 33(4):369-81. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230.
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019....
12. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.-1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25.,2828. Neta Aguiar A, Alves MSCF. A comunidade como local de protagonismo na integração ensino-serviço e atuação multiprofissional. Trab Educ Saude. 2016; 14(1):221-3.
29. Toassi RFC, Davoglio RS, Lemos VMA. Integração ensino-serviço-comunidade: o estágio na atenção básica da graduação em Odontologia. Educ Rev. 2012; 28(4):223-42.
30. Finkler M, Caetano JC, Ramos RFS. Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia. Interface (Botucatu). 2011; 15(39):1053-70.-3131. Warmiling CM, Rossoni E, Hugo FN, Toassi RFC, Lemos VA, Slavutzki SMB, et al. Estágios curriculares no SUS: experiências da faculdade de Odontologia da UFRGS. Rev ABENO. 2011; 11(2):63-70., opera para romper com as representações culturais cristalizadas e que consolidam estereótipos, empobrecendo a compreensão do conjunto de possibilidades experienciais contidas nos arranjos culturais22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,2525. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12a ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2015.
26. Woodward K. A identidade e diferença: uma introdução: In: Silva TT, Woodward K, Hall S, organizadores. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15a ed. Petrópolis: Vozes; 2014.-2727. Williams R. La larga revolución. Buenos Aires: Nueva Visión; 2003. dos estágios nos serviços e territórios de saúde. De acordo com os entrevistados, rompem-se invólucros quando se repaginam conhecimentos, habilidades e atitude, e quando imagens sociais são (re)significadas. Em suas palavras:
[...] é de suma importância que tenha essa integração [...] para o aprendizado e troca de saberes... a gente aprende muito com quem vem se atualizando com o que trazem. (Profissional)
Com certeza, eu acho, porque eles têm que ver o meio que eles estão trabalhando, que eles estão estagiando, porque tem muitos que fazem estágio e não conhecem o trabalho de uma entidade, de uma creche, não conhecem o pessoal da comunidade, tem uma imagem diferente, uma imagem muito diferente. (Professora da creche 3)
[...] feito aquela troca de informações e aprendizado, para nós, para os usuários, e estudantes, que estão entrando ali naquela casa, naquela família, aprendendo novas coisas [...] e a visita no território é outro mundo. (ACS 5)
[...] porque aí ele vai poder também aprender a conviver com diferentes realidades, aprender a lidar com as situações que forem vindo, porque aí são situações diferentes. Cada família tem uma situação, e cada realidade apresenta também situações diferentes, então, assim, na vivência mesmo com essa oportunidade que os estudantes têm de participar daqui diretamente, das visitas nas casas dos usuários, para fazer as visitas domiciliares, eu acho que aprende muito, porque se aprende vivendo. (ACS 3)
Se para Hall2525. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 12a ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2015. a cultura é condição constitutiva da vida social, com seus valores simbólicos comunais e a linguagem o meio pelo qual a representações culturais são elaboradas, a análise de conteúdo das entrevistas permitiu observar que os pesquisados constroem representações de maneira contingencial, portanto, não essencializadas e com posicionalidade.
Nessa direção, existe a construção dos significados de corresponsabilização com a saúde da população, com o estabelecimento de agendas comuns entre IES e equipe e com o fortalecimento de vínculos, que, pela continuidade do trabalho, oportunizam o amadurecimento reflexivo e crítico de todos os envolvidos no processo formador2929. Toassi RFC, Davoglio RS, Lemos VMA. Integração ensino-serviço-comunidade: o estágio na atenção básica da graduação em Odontologia. Educ Rev. 2012; 28(4):223-42.,3131. Warmiling CM, Rossoni E, Hugo FN, Toassi RFC, Lemos VA, Slavutzki SMB, et al. Estágios curriculares no SUS: experiências da faculdade de Odontologia da UFRGS. Rev ABENO. 2011; 11(2):63-70.,3232. Lisboa Filho FF, Moraes ALC. Estudos Culturais aplicados a pesquisas em mídias audiovisuais: o circuito da cultura como instrumental analítico. Significação. 2014; 41(42):67-86..
Se a gente não ajudar, como esses estudantes vão aprender? Porque para terem base, têm que começar na comunidade, [...] para poder formar um perfil profissional. (ACS 1)
Me sinto importante, na realidade, a gente dá, procura estar aprendendo, e levando conhecimento, ajudando famílias da melhor maneira, facilitando com o nosso trabalho, nas casas ou mesmo na unidade. Como profissional de saúde, me sinto importante. (ACS 2)
[...] eu gostei muito, coisas que a gente tem dúvida e o pessoal tira aquela dúvida que a gente tem na cabeça. A gente mesmo não se conhece, e a gente vem para palestra, não perco uma, só se eu não souber... mas eu gosto muito dessas palestras, escutar, tentar desenrolar para entender as coisas, às vezes pensando em mim, penso na minha filha, para eu poder ajudar na hora que ela precisar de uma palavra, a minha mesmo, né? (Usuária 2)
A graduação, com seus alunos e professores, mergulha no SUS, articulando mundos representacionais fronteiriços, formados pelo ensino, trabalho e outras práticas2121. Forte FDS, Pessoa TRRF, Freitas CHSM, Barbosa AS, Morais MB, Braga CC, et al. Community-based education: experience in community health supervised clerkships at the Federal University of Paraíba Dentistry Course. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, Amaral E, organizers. Community-based education for the health professions: learning from the Brazilian experience. Brasília: OPAS, PAHO; 2015. p. 220-33.. Na formação em odontologia, há papéis profissionais definidos socialmente, que apontam antecipadamente o lugar do saber reconhecido, válido e valorizado; e indicam, ainda, o caráter funcional-instrumental do aprendizado a ser desenvolvido em modo único e o modus operandi do êxito profissional a ser buscado. Gradua-se para o atendimento odontológico clínico-individualizado, diante do qual “tudo que excede” é “alternativo”, secundarizado e invisibilizado. Essas representações culturais revelaram-se insuficientes, socialmente insustentáveis e antagônicas com as propostas das DCN e do SUS.
O choque entre representações potencializa o deslizamento dos significados na formação odontológica. A histórica valorização do saber-fazer biomédico, exclusivamente intramural e intrabucal, amplia-se com a incorporação e o reconhecimento de um conjunto de práticas desenvolvidas em espaços de saúde coletiva, e seu desafiador saber-fazer extramural1818. Werneck MAF, Senna MIB, Drumond MM, Lucas SD. Nem tudo é estágio: contribuições para o debate. Cienc Saude Colet. 2010; 15(1):221-31., tendo como pressupostos: o conceito ampliado de saúde, a determinação social do processo saúde-doença-cuidado e a presença das ciências sociais e humanas no contexto da saúde.
Esse deslizamento para a formação via estágios supervisionados, integrando o ensino ao trabalho em saúde, não se dá facilmente, nem é desprovido de animosidade, sendo frequentemente acompanhado pelo sentimento de contrariedade e desconfiança explícita ou velada de muitos agentes envolvidos na formação de cirurgiões-dentistas. Todavia, entre os entrevistados da IESC, os estágios supervisionados foram representados culturalmente como o lugar de aprender:
Coisas que não ensinam nos livros: se colocar no lugar do outro [...] e se a gente conhece a realidade daquela pessoa, [...] entende um pouco as prioridades daquela pessoa, consegue trabalhar de uma forma que se aproxime mais das necessidades que aquela pessoa tem. (Estudante 1)
[...] os estágios, eles mostram muito isso, e quando você tá em campo, você bota a cara fora do seu ambiente, daquele seu mundo que você está sujeito ali, você começa a enxergar muita coisa que você não via antes. Então, a vida lá fora é muito mais difícil do que a gente imagina, então, quando a gente se depara com uma comunidade que existem inúmeros problemas, que não é só aquele problema que a gente tá vendo, existe todo um contexto por trás, então, você acaba vivenciando aquilo e levando aquilo com você. (Estudante 7)
Nos estágios supervisionados, as fronteiras e os limites pedagógicos são borrados, e, dadas as porosidades existentes, a experiência de aprendizagem torna-se ubíqua. Estudantes estranham o território geográfico e humano; e as racionalidades e as práticas realizadas no território, para depois se aproximarem e se familiarizarem. Há um encontro desses estudantes com “eles”: sujeitos indefinidos, estranhos e ambivalentes do mundo do trabalho (gestores, trabalhadores e usuários). Encontro em movimento, rua de passagem que pede tradução, compreensão e construção de significados.
Na diáspora da universidade para os serviços de saúde do SUS, as perspectivas culturais e as estruturas mentais dos agentes envolvidos não se abrem pacífica e tranquilamente de uns para os outros, e, quando o fazem, rótulos e estereótipos podem estar presentes diante da diferença cultural experimentada. Pertencer a uma cultura é compartilhar o mesmo universo conceitual e linguístico. É ter pertencimento e estar protegido pela compreensão simbólica. Cada sujeito entrevistado, com sua performatividade, contribui com um olhar sobre a formação em saúde, pois suas representações culturais são um exercício de sociabilidade em uma cultura de IESC no curso de Odontologia22. Du Gay P, Hall S, Janes L, Mackay H, Negus K. Doing cultural studies: the story of the Sony Walkman. 2a ed. London: Sage; 2013.,33. Hall S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10a ed. Rio de Janeiro: DP&A; 2016.. Para diferentes agentes, a IESC é representada como a experiência de construção coletiva no território:
Tudo é feito planejando aqui na unidade, com toda a equipe. A gente articula direitinho, combina. Nada de imediato, tudo é articulado, e a gente faz direitinho. (ACS 4)
Nós vamos discutir com os estudantes para ficar mais confortável, tanto para eles como para a gente também. Ouvir da comunidade o que eles querem, também, que eles abordem, o que eles consideram importante. A comunidade também dá a opinião dela, o que ela quer ouvir. (Profissional de nível médio)
Foi em conjunto. Todos contribuíram com ideias, com aquilo que a gente ia levar. A questão dos alimentos foi da creche, a gente planejou dinâmicas e como ia trabalhar com as crianças. Senta toda a equipe! Planeja. Cada um dá uma sugestão, e aquela mais aceita é o que a gente trabalha. (Estudante 4)
A IESC é também, simultaneamente, compreendida como estratégia de implementação de ações de educação permanente1111. Barreto LDSO, Guimarães Campos VD, Dal Poz MR. Interprofessional education in healthcare and health workforce (HRH) planning in Brazil: experiences and good practices. J Interprof Care. 2019; 33(4):369-81. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230.
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019....
12. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.-1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25., um aprender que se pretende por toda a vida. Para os discentes, a construção da IESC via estágios supervisionados representa um “sentir-se progressivamente parte da equipe da USF”, uma experiência formativa qualitativamente significante, com proatividade na gestão das atividades coletivas e dos vínculos comunais, com tudo que elas possuem de conhecimentos, habilidades, atitudes e possibilidades de novas formas de aprender em um trabalho, que é traduzido como cuidado.
Estudos têm mostrado o diálogo (e a falta dele) entre preceptores e estudantes, em um convite à ressignificação dos saberes cristalizados em práticas1212. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.,2828. Neta Aguiar A, Alves MSCF. A comunidade como local de protagonismo na integração ensino-serviço e atuação multiprofissional. Trab Educ Saude. 2016; 14(1):221-3.
29. Toassi RFC, Davoglio RS, Lemos VMA. Integração ensino-serviço-comunidade: o estágio na atenção básica da graduação em Odontologia. Educ Rev. 2012; 28(4):223-42.
30. Finkler M, Caetano JC, Ramos RFS. Integração “ensino-serviço” no processo de mudança na formação profissional em Odontologia. Interface (Botucatu). 2011; 15(39):1053-70.-3131. Warmiling CM, Rossoni E, Hugo FN, Toassi RFC, Lemos VA, Slavutzki SMB, et al. Estágios curriculares no SUS: experiências da faculdade de Odontologia da UFRGS. Rev ABENO. 2011; 11(2):63-70.. Nesta pesquisa, os estágios supervisionados foram espaços de diálogo representados culturalmente como os territórios de produzir e consumir trocas de saberes e fazeres regulados pelos parâmetros legais99. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.,1010. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES 3, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2002., pelas políticas sanitárias e formativas. Nas palavras de dois entrevistados:
Eu gosto, principalmente, por causa do aprendizado. A gente aprende, esclarece dúvidas, tira dúvidas, e, assim, a gente pode tá ajudando os nossos usuários. (ACS 3)
Sim, eu acho que aprendem, há troca, porque a gente tem aquele pouquinho de conhecimento, eles também têm, então acontece troca de conhecimentos. (ACS 4)
A reorientação da formação em saúde exige novas práticas nos sistemas de educação e de saúde55. Souza Nétto OB, Moura MS, Lima MDM, Lages GP, Mendes RG, Moura LFAD. O pró-saúde no curso de Odontologia na Universidade Federal do Piauí: relato de uma vivência de cinco anos. Cienc Cuid Saude. 2013; 12(2):391-7.,1111. Barreto LDSO, Guimarães Campos VD, Dal Poz MR. Interprofessional education in healthcare and health workforce (HRH) planning in Brazil: experiences and good practices. J Interprof Care. 2019; 33(4):369-81. Doi: http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230.
http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019....
12. Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.-1313. Vendruscolo C, Ferraz F, Prado ML, Kleba ME, Reibnitz KS. Teaching-service integration and its interface in the context of reorienting health education. Interface (Botucatu). 2016; 20(59):1015-25.. Se, por um lado, é necessário propor inovação no projeto pedagógico alicerçado na reestruturação do processo ensino-aprendizagem, por outro, o modelo de atenção em saúde precisa refletir as políticas públicas de saúde na perspectiva da integralidade do cuidado e do fortalecimento do SUS. Dessa forma, relações de interdependência autônoma dos sistemas de saúde e educação devem ser construídas nos espaços dialógicos e de reflexão crítica e coletiva das intenções.
Este estudo pretendeu contribuir para a ampliação da experiência vivenciada no processo de IESC no caminho da formação de novos cirurgiões-dentistas. Todavia, há limitações no estudo, pois considerou um único território onde os estágios supervisionados acontecem. A USF escolhida já participou de edições anteriores dos programas de reorientação da formação e é cenário de vários estágios curriculares de diversos núcleos profissionais.
Considerações finais
Compôs-se com esta pesquisa um estudo da cultura contemporânea da formação em odontologia, a partir da análise da representação cultural dos agentes reguladores, produtores e consumidores dos estágios supervisionados na integração ensino-serviço-comunidade. Sistemas simbólicos albergam representações culturais sobre a IESC, que são internalizadas e ressignificadas, possibilitando o deslizamento de sentidos, a partir da interação entre diferentes agentes presentes no processo formativo.
Desenvolver o ensino de graduação em Odontologia orientado pela IESC ainda é um desafio, bem como para todas as outras profissões do campo da saúde. É necessário sensibilizar agentes e buscar agendas convergentes com os problemas de saúde na coletividade. Além disso, é necessário ampliar oportunidades e espaços efetivos de interlocução entre a universidade, os serviços de saúde e a sociedade civil que propiciem o encontro de diferentes agentes.
Com base neste estudo, a integração ensino-serviço-comunidade, a partir do dispositivo dos estágios supervisionados, é um lugar de formação que propicia aos estudantes “sair de si” para vivenciarem a teoria na prática e a prática na teoria, com mudanças sociais que produzem atualizações, corresponsabilizações e produções de conhecimentos coletivamente orientados.
Referências
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» http://dx.doi.org/10.1080/13561820.2019.1646230 - 12Silveira JLGC, Kremer MM, Silveira MEUC, Schneider ACTC. Percepções da integração ensino-serviço-comunidade: contribuições para a formação e o cuidado integral em saúde. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190499.
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- *Este trabalho é parte da pesquisa de pós-doutorado do autor Franklin Delano Soares Forte na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, supervisionado pelo autor Nelson Filice de Barros. Agradecimento ao auxílio recebido pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) da Universidade Federal da Paraíba.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Set 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
02 Abr 2020 - Aceito
09 Jul 2020