Qualidade-equidade em saúde: novos desafios em um estado de mal-estar social

Equidad de calidad en salud: nuevos desafíos en un estado de malestar social

Naomar de Almeida-Filho Sobre o autor

Nas teorias do bem-estar social11. Wilensky H. The welfare state and equality. Berkeley: University of California; 1975.,22. Sen A. On economic inequality. New York: Oxford University Press; 1997. (Expanded edition)., em sociedades democráticas, a economia, a sociedade e o Estado teriam como objetivo melhorar a vida dos seres humanos. Nesse discurso, o Estado idealmente seria configurado como um dispositivo institucional concebido para estabilidade política, segurança pública, ministração da justiça e regulação de mercados, viabilizando o bem comum, garantindo direitos civis e promovendo equidade. Assim, desigualdades econômicas e sociais seriam subprodutos indesejáveis de crises e imprevistos do sistema produtivo, a serem superadas pelo desenvolvimento econômico, social e humano dos países e pela ação mediadora ou intervencionista do Estado-benfeitor, mediante políticas públicas promotoras de equidade, focalizando a distribuição dos benefícios nos segmentos sociais mais desprivilegiados.

Em “O Capital no Século XXI”, Thomas Piketty33. Piketty T. El capital en el siglo XXI. Madrid: Fondo de Cultura Económica; 2015. observa uma tendência secular de persistência das desigualdades, desdobradas em desigualdades de propriedade do capital e desigualdades de renda do trabalho, como fundamento estrutural do sistema econômico capitalista. Em obra mais recente44. Piketty T. Capital et idéologie. Paris: Editions du Seuil; 2019., esse autor intitula a súmula dos seus novos achados sobre o capitalismo tardio como “Le retour des inégalités” (p. 48). Piketty33. Piketty T. El capital en el siglo XXI. Madrid: Fondo de Cultura Económica; 2015.,44. Piketty T. Capital et idéologie. Paris: Editions du Seuil; 2019. postula que, na medida em que o capitalismo se internacionaliza, atualiza sua base produtiva com ativos cognitivos e revisa suas formas de realização da lucratividade mediante financeirização; há um aumento de desigualdades extremas, a ser superado ou compensado mediante políticas econômicas e sociais que, em muitos contextos, não estão a ocorrer.

A partir desse referencial, Julia Lynch55. Lynch J. Regimes of inequality: the political economy of health and wealth. Cambridge: Cambridge University Press; 2020. analisa o que chama de “enigma da desigualdade resiliente”. Para a autora, as instituições criadas para reduzir desigualdades em saúde nos estados de bem-estar da Europa no pós-guerra se confrontaram com políticas econômicas neoliberais, a partir da década de 1980. Em vez de solucionar o problema da desigualdade no plano estrutural, por meio de “remédios políticos” efetivos, investiu-se em processos de gerenciamento otimizado supostamente simples e eficazes. Nesses países, a questão das desigualdades em geral foi assumida como um problema apenas legal, a ser resolvido na esfera normativa, o que permitia manter, no plano formal, um compromisso histórico com a equidade sem desafiar os fundamentos da política tributária que financia o Estado. Nesse contexto, a questão das inequidades em saúde tornou-se uma pauta política de centro-esquerda, que evitava discutir a contradição entre uma ordem de bem-estar conservador-corporativista e o paradigma neoliberal que passou a dominar a Europa na década de 198055. Lynch J. Regimes of inequality: the political economy of health and wealth. Cambridge: Cambridge University Press; 2020. (p. 207).

Focada no plano da economia em geral, a proposta de Piketty pode, do ponto de vista teórico, ser considerada como uma nova economia política, na medida em que trata as desigualdades econômicas como epifenômeno ou subproduto do sistema econômico, e não como condição estrutural do modo de produção capitalista. Por sua vez, no campo da saúde, apesar da pretensão de formular uma crítica teórica do que chama de “regimes de inequidade”, a análise de Lynch se autorreferencia como uma “political economy of wealth and health”. Ao tratar as desigualdades econômicas (e suas contrapartidas políticas, sociais, gerenciais, societais e sanitárias) como efeito secundário e indesejável de processos, ciclos e crises econômicas e políticas, suscetível de soluções capazes de, no dizer de Schrecker66. Schrecker T. Globalization, austerity and health equity politics: taming the inequality machine, and why it matters. Crit Public Health. 2016; 26(1):4-13., “taming the inequality machine” (em tradução livre: “domar a máquina de desigualdades”), tanto Piketty quanto Lynch se posicionam ainda dentro dos limites da perspectiva funcionalista dominante nas epistemologias do Norte. Assim, não escondem seu objetivo de tentar resolver, no plano das políticas públicas, de modo eficiente e viável, impasses e contradições postos pelas iniquidades em saúde perante o sistema econômico e social.

Nessa perspectiva neokeynesiana, base de um neoliberalismo moderado, a existência de sujeitos que, por razões econômicas ou políticas, são impedidos de se beneficiar de políticas públicas demandadas pela sociedade implicaria uma dívida social em aberto, a ser superada ou quitada. No Brasil, essa retórica se encontra presente desde a redemocratização e a Nova República, como resposta tecnocrática à constatação de que modelos de desenvolvimento baseados em endividamento externo e concentração de renda como geradores de investimento aumentam a pobreza e produzem desigualdades sociais. Para esse discurso, a noção de “dívida social” se justifica “no pressuposto ético de que cada cidadão deveria ter suas necessidades básicas minimamente garantidas; [... à] semelhança da dívida pública, ela seria uma dívida da sociedade com ela mesma.”77. Nery M. A dívida social. Conjunt Econ. 2002; 56(2):38-9. (p. 38). Na verdade, o que se chama de “dívida social” refere-se ao conjunto de desigualdades estruturais da sociedade que determina um compromisso histórico, em muitos casos adiado, mas sempre previsto, com a garantia de equidade e justiça perante direitos fundamentais da pessoa humana.

Não obstante, em um plano meramente operativo, pode se justificar o emprego da noção de dívida social, restrita a objetos específicos como os fenômenos da saúde-doença-cuidado. No campo da saúde, tal dívida social ou sanitária88. Vasconcellos M. Serviços de saúde: uma revisão de processos de regionalização, análises de padrões espaciais e modelos de localização In: Najar AL, Marques E, organizadores. Saúde e espaço: estudos metodológicos e técnicas de análise. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 63-93. (p. 67) pode se referir tanto à distribuição desigual de riscos, no sentido epidemiológico, quanto ao acesso desigual a sistemas de assistência à saúde, com programas efetivos, tecnologias eficazes e disponíveis e práticas de cuidado em saúde realizadas com a maior qualidade humana possível, o que deve ser garantido como direito a todos os membros de uma dada sociedade.

Entretanto, somente na perspectiva idealizada de um mítico welfare state responsável pelo bem-estar de todos os cidadãos de um dado país pode-se falar de dívida social. Na verdade, a dívida social da saúde não poderia ser renegociada, pois prazos que custam vidas humanas não podem ser ampliados, nem seria objeto de auditoria, moratória ou denúncia, simplesmente porque implica um problema estrutural cuja superação constitui compromisso político e moral com a transformação radical da sociedade. De fato, dívida social seriam desigualdades sociais que se tornam iniquidades – no sentido de uma forma peculiar entre as inequidades (definidas como evitáveis, na lógica redistributiva) reveladas como efeitos perversos de uma dinâmica socio-histórica fundada em exploração, exclusão e opressão. Vários autores99. Habermas J. A crise de legitimação do capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1980.

10. Marx K. O capital: crítica de economia política. São Paulo: Boitempo; 2013.

11. Mandel E. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural; 1985.
-1212. Heller A. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1998. postulam o capitalismo como resultado de um processo histórico global que, no mundo contemporâneo, constitui um fenômeno abrangente e complexo, não somente um modo de produção, mas também um modo de vida1212. Heller A. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1998.. Por meio de relações estruturais e superestruturais, esse modo de produção se articula com (condiciona, determina, sobredetermina etc.) a saúde em distintos planos de realidade, mediante uma série de processos, condições, determinantes e vetores1313. Sell SK, Williams OD. Health under capitalism: a global political economy of structural pathogenesis. Rev Int Polit Econ. 2020; 27(1):1-25..

A sobredeterminação dos efeitos estruturais profundos e subjacentes do capitalismo sobre a saúde e da saúde no modo de produção e nos modos de vida se evidencia em múltiplas escalas, compreendendo novos desafios teóricos, científicos e políticos para o campo da saúde. A macroeconomia do mundo globalizado, no momento dominada pelo neoliberalismo conservador, afeta profundamente a governança do campo da saúde, em políticas e ações diversas, como programas de austeridade, comércio internacional, investimentos em saúde, indústria farmacêutica e de equipamentos, segurança alimentar e consumo de produtos ultraprocessados. Para Sell & Williams1313. Sell SK, Williams OD. Health under capitalism: a global political economy of structural pathogenesis. Rev Int Polit Econ. 2020; 27(1):1-25., é necessário elaborar uma compreensão do capitalismo “como estruturalmente patogênico, com impactos negativos na saúde humana”, encarando esse modo de produção global e abrangente como gerador (e resultante) de desigualdades econômicas, inequidades sociais e iniquidades em saúde, como nenhum outro sistema produtivo na história humana.

Como estratégia analítica para melhor compreensão dessa questão, respeitando a especificidade de sua aplicação no campo da saúde, proponho decompor o conceito de equidade em suas formas elementares, buscando superar criticamente perspectivas teóricas convencionais1414. Whitehead M. The concepts and principles of equity and health. Int J Health Serv. 1992; 22(3):429-45..

Nesse sentido, apenas para efeito de argumentação, consideremos que, tanto no Estado de bem-estar social, democrático e eficiente, idealizado como dispositivo redistributivo11. Wilensky H. The welfare state and equality. Berkeley: University of California; 1975.,22. Sen A. On economic inequality. New York: Oxford University Press; 1997. (Expanded edition)., quanto nos projetos socialistas de uma sociedade democrática, igualitária, justa e solidária1515. Galbraith JK. The good society: the humane agenda. Boston: Houghton Mifflin; 1996.,1616. Sousa-Santos B. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez; 2007., plena equidade em saúde se traduziria em quatro possibilidades:

  1. Equidade na situação de saúde: quando os riscos de adoecer seriam homogêneos para todos os grupos populacionais.

  2. Equidade nas condições de saúde: quando todos os cidadãos seriam cobertos por programas efetivos de promoção e proteção da saúde.

  3. Equidade no acesso aos cuidados de saúde: quando, em um contexto de equidade social, sistemas e serviços de assistência e recuperação da saúde seriam garantidos a todos igualmente.

  4. Equidade nas práticas de atendimento: quando a eficácia tecnológica, a humanização e a qualidade do atendimento estariam igualmente disponíveis para todos os cidadãos.

No primeiro modo de equidade em saúde, é preciso considerar que igualdade perante os riscos à saúde ou homogeneidade na distribuição de probabilidades de adoecer e morrer constitui uma possibilidade concreta apenas no que concerne a fatores de risco socioambientais. Isso porque, no sentido epidemiológico, os riscos à saúde de fato não resultam somente da ação de fatores ambientais externos, mas também de vulnerabilidade e susceptibilidade individuais, além das interações indivíduo-ambiente. Daí resultam processos inevitáveis de diferenciação da saúde (enquanto funcionalidade vital) de indivíduos em todas as espécies, mais ainda nos humanos, primatas atravessados pela linguagem, produtores de cultura, dependentes de laços sociais, enfim, animais políticos. Em uma perspectiva epidemiológica stricto sensu, o indicador global dessa inequidade na situação de saúde será mais ou menos desigual na duração média da vida (medida em anos com qualidade de vida), entre os diferentes agregados geopolíticos, econômicos e sociais, o que pode ser complementado por outros indicadores de morbidade, mortalidade e uso de serviços de saúde1717. Castellanos PL. Epidemiologia, saúde pública, situação de saúde e condições de vida. Considerações conceituais. In: Barata RB, organizador. Condições de vida e situações de saúde. Rio de Janeiro: Abrasco; 1997. p. 31-75..

Os modos segundo e terceiro do conceito de equidade em saúde indicados compartilham uma dinâmica similar, na medida em que constituem objeto de políticas públicas de saúde. Aqui, em ambos os sentidos, a situação de iniquidade resultaria da omissão do Estado na promoção da qualidade de vida dos cidadãos, dessa forma, garantindo direitos fundamentais, como habitação, segurança, ambiente saudável, liberdade política, educação e saúde. No caso da saúde, atuação redistributiva ou compensatória do Estado se daria mediante ações e políticas de ampliação do acesso (no extremo, tornando-o universal e equânime) aos recursos disponíveis e adequados para melhoria das condições de saúde da população.

Essas três manifestações do problema das desigualdades sociais e das iniquidades em saúde têm sido objeto de profusa produção conceitual e empírica, em várias realidades e situações concretas1818. Macinko JA, Shi L, Starfield B, Wulu Jr JT. Income inequality and health: a critical review of the literature. Med Care Res Rev. 2003; 60(4):407-52.. Desigualdades qualitativas no acesso a tecnologias diagnósticas, assistenciais, preventivas e reabilitativas, por sua vez relacionadas a níveis diferenciais de eficácia, efetividade e, principalmente, qualidade humana do cuidado, são menos conhecidas em seus determinantes e efeitos.

Isso nos leva ao quarto componente da equidade em saúde, o qual proponho ser considerado como um conceito: qualidade-equidade. Nos campos de política social, como na educação, esses dois temas têm sido contemplados como dimensões, dinâmicas ou processos separados que, ao longo da divisão público-privado, configuram-se como elementos em contradição1919. García-Huidobro JE. Una nueva meta para la educación latinoamericana en el Bicentenario. In: Marchesi A, Tedesco JC, Coll C, coordenadores. Calidad, equidad y reformas en la enseñanza. Santiago: Fundación Santillana; 2011. p. 19-33.,2020. Phillis J. Public vs private education - navigating the quality-equity dynamic. Ethics Q. 2014; (96):25-8.. Na saúde, um padrão de ainda maior de isolamento se configura, sendo a garantia de qualidade tipicamente avaliada como um dos principais fatores da efetividade, em uma perspectiva instrumental do planejamento e avaliação de serviços de saúde2121. Donabedian A. The effectiveness of quality assurance. Int J Qual Health Care. 1996; 8(4):401-7., enquanto a questão da equidade tem sido tratada como um dos determinantes sociais da saúde1414. Whitehead M. The concepts and principles of equity and health. Int J Health Serv. 1992; 22(3):429-45.,1818. Macinko JA, Shi L, Starfield B, Wulu Jr JT. Income inequality and health: a critical review of the literature. Med Care Res Rev. 2003; 60(4):407-52..

A problemática da qualidade com equidade, em uma perspectiva de convergência e integralidade, situa-se na interface borrosa entre aspectos quantitativos e qualitativos da produção de assistência à saúde, entre oferta e utilização de serviços de saúde, nos atos de cuidado e nos itinerários terapêuticos, no interior dos sistemas de saúde. Para maior objetividade na análise, proponho aqui tratá-la na derivação negativa, como iniquidade na qualidade, um desvio da atribuição de qualidade na atenção à saúde.

Vista dessa maneira, internalizada nas próprias práticas de cuidado em saúde, a emergência de desigualdades na qualidade-equidade revela outra ordem de iniquidades, manifestas em quatro aspectos:

  1. Na ruptura da integralidade em saúde, parcialmente não cumprida pela operação, ainda incipiente do ponto de vista tecnológico, dos sistemas de referência e contrarreferência que selecionam socialmente os pacientes para os diferentes níveis de atenção.

  2. Na disponibilidade desigual de tecnologias diagnósticas, preventivas e terapêuticas, especialmente equipamentos de última geração, procedimentos e medicamentos de alto custo e maior eficiência (em alguns casos, esse aspecto pode ser agravado pelo fenômeno da judicialização do direito à saúde).

  3. Nas formas de diferenciação positiva ou negativa no uso de tecnologias eficientes e decisivas, em contextos e níveis equivalentes de atenção, excluindo, discriminando e segregando pacientes de diferentes segmentos sociais ou origens culturais.

  4. Na qualidade diferencial observada nos atos de cuidado em saúde, quando observamos formas de diferenciação positiva ou negativa no tratamento dos usuários, sob vários formatos de viés seletivo – como invisibilidade, segregação, discriminação, diferenciação de classe, sexo, etnia, geração ou região de origem.

Como garantir qualidade-equidade em saúde como direito fundamental de todos? Em um sentido geral, é preciso priorizar os elementos ético-políticos do cuidado, pois não seria moralmente justo e politicamente correto excluir quem quer que seja do acesso a uma assistência de qualidade em saúde. Em um sentido restrito, trata-se de fazer do conceito de qualidade-equidade um padrão universal de práticas de saúde, fundado sobre uma noção determinada e específica de justiça social em todos os planos, do macroeconômico ao microssocial, como conquista política do direito à saúde para além das estratégias redistributivas do bem-estar social.

Nesse sentido restrito, há questões práticas a considerar. Mesmo com as garantias legais e normativas típicas de democracias constitucionais, a realidade das situações e sistemas de saúde permite questionar sobre o modo como esse tipo de direito se pode concretizar. Primeiro, deve-se verificar em qual dimensão e sobre qual objeto de cuidado se realizará a desejada qualidade-equidade: saúde como estado vital? Como conjunto de práticas de cuidado? Como valor e medida?. Segundo, deve-se avaliar em que nível de cuidado – todos os níveis de complexidade? – e com que grau de qualidade – a melhor possível? O que significa isso: Otimização? Viabilidade? – a equidade se estabelece. Terceiro, e talvez a mais central dessas questões práticas, trata-se de confirmar de que maneira – quais modelos de atenção? mediante que atos de cuidado? – se realizará a qualidade-equidade.

Vejamos brevemente o caso particular do Brasil como ilustração. Apesar da implantação, iniciada há trinta anos, de um sistema assistencial unificado – o Sistema Único de Saúde (SUS)2222. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet. 2011; 377(9779):1778-97. –, persistem no Brasil profundas iniquidades em saúde, concentradas principalmente na qualidade diferencial dos recursos socialmente destinados à promoção da saúde2323. Macinko J, Lima-Costa MF. Horizontal equity in health care utilization in Brazil, 1998-2008. Int J Equity Health. 2012; 21(11):33.. Recentes avanços no contexto sanitário brasileiro fizeram com que sujeitos de classes e grupos sociais desfavorecidos, em geral residentes em áreas remotas, antes excluídos, cada vez mais consigam acesso ao SUS, sobretudo no nível de atenção primária à saúde mediante a Estratégia Saúde da Família2424. Rasella D, Basu S, Hone T, Paes-Sousa R, Ocké-Reis CO, Millett C. Child morbidity and mortality associated with alternative policy responses to the economic crisis in Brazil: a nationwide microsimulation study. PLoS Med. 2018; 15(5):e1002570.,2525. Facchini L, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira D, Siqueira FV, et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Cienc Saude Colet. 2066; 11(3):669-81.. Apesar disso, aqueles com maiores necessidades e vulnerabilidade continuam enfrentando dificuldades na utilização dos programas de promoção, proteção e recuperação da saúde, sobretudo nos níveis secundário e terciário de atenção, por seu turno, amplamente disponíveis para setores sociais já beneficiados com melhores condições de vida e pela cobertura de planos privados de saúde2323. Macinko J, Lima-Costa MF. Horizontal equity in health care utilization in Brazil, 1998-2008. Int J Equity Health. 2012; 21(11):33..

No contexto brasileiro, observam-se problemas referentes a financiamento, gestão e qualidade do SUS, agudizados pela recente crise econômica, social e política2626. Campos CM, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saude Soc. 2015; 24 Supl 1:82-91. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01007.
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0...
. No setor público de atenção à saúde, em todo o Brasil, aspectos organizacionais dos programas e instituições de saúde e subfinanciamento seletivo conformam obstáculos materiais e institucionais que geram diferenciação, desigualdades e segregação, dependentes de disparidades de renda e de inserção social, no acesso a recursos assistenciais disponíveis, além do gap na informação determinado por diferenciais de gênero, geração, educação e renda.

Assim, apesar de acolhidos no sistema, sujeitos de segmentos sociais vulneráveis e tipicamente mais necessitados de assistência de qualidade passam a sofrer uma nova ordem de desigualdades, internalizadas nos próprios atos de cuidado, resultantes da estrutura e funcionamento do sistema e da realização de práticas assistenciais de pouca efetividade e menor grau de humanização. Esses sujeitos se veem em uma situação de profunda iniquidade, na condição de usuários de categoria inferior em um sistema público de saúde supostamente universal. Uma especulação razoável é que essa quebra da qualidade-equidade, essa nova modalidade de “iniquidade internalizada”, de natureza qualitativa, cotidiana, intrafuncional e camuflada, tem sido exercida em distintos níveis e dimensões mediante formas sutis e culturalmente sensíveis de relacionamento intersubjetivo desumano, segregador e discriminatório. Assustador nessa especulação é que, em nosso país, a formação de competência para produzir e operar essas formas de iniquidade encontra raízes e reprodução no próprio sistema de educação formal2727. Almeida-Filho N. Social inequality and human development: Intertwined cycles of perversion in education in contemporary Brazil. Encounters Theory Hist Educ. 2015; 16:84-100. e no processo ideológico incorporado ao treinamento e capacitação de pessoal técnico e profissional em saúde2828. Almeida-Filho N. Higher education and health care in Brazil. Lancet. 2011; 377(9781):1898-900..

No Brasil, buscando superar pacificamente a saída da ditadura militar de 1964-1985, em um contexto de crise econômica e social, pretendemos criar um estado de bem-estar social no seio de um capitalismo patrimonialista, opressivo e predador, em uma sociedade ainda estruturada no colonialismo, na escravidão e no racismo, sem transformá-la. Assim, no contexto atual de avanço do ultraneoliberalismo em todo o mundo, terminamos com uma democracia parcial, ou democracia de baixa intensidade (como diria Boaventura de Sousa-Santos1616. Sousa-Santos B. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez; 2007.), haja vista a exclusão econômica, social e política de grande parcela da população. Apesar de resultante da restauração de uma ordem republicana precariamente pactuada, o Estado brasileiro falha em cumprir funções básicas do Estado democrático moderno, estabelecidas desde sua concepção no início do século XIX como dispositivo capaz de redistribuir poder e riqueza, atenuando efeitos de desigualdades econômicas e desequilíbrios políticos no limite mínimo para garantir paz social. Dessa forma, o Estado brasileiro confirma-se como estado de mal-estar social ou, na designação cunhada por James Galbraith, “the predator state2929. Galbraith J. The predator state. New York: Free Press; 2009.. Subfinanciado e ineficiente para conduzir políticas públicas capazes de compensar desvantagens atuais e reparar dívidas sociais históricas, os setores estatais funcionam como verdadeira usina de transformação de desigualdades econômicas em iniquidades sociais e políticas, sobretudo nas áreas de segurança, educação e saúde.

Em diversos contextos, mesmo nos estados de bem-estar social com maior estabilidade política, já se dispõe de evidências robustas de que a alocação de recursos públicos governamentais pode, direta ou indiretamente, beneficiar os segmentos mais ricos da sociedade3030. Poulantzas N. El problema del Estado capitalista. In: Tarcus H. editor. Debates sobre el Estado capitalista. Buenos Aires: Imago Mundi; 1991. p. 71-90.,3131. Batifoulier P, Da Silva N, Vahabi M. A theory of predatory welfare state and citizen welfare: the French case. Paris: CEPN; 2019.. Considerando esse referencial teórico e empírico, proponho a hipótese de que, particularmente em países de economia periférica e democracias de baixa intensidade como a do Brasil, o próprio Estado funciona como promotor e implementador de desigualdades, chegando a atuar como principal agente social de transformação das inequidades em iniquidades3232. Costa S. Desigualdades, interdependência e políticas sociais no Brasil. In: Pires RR. organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2019. p. 53-77.. No caso específico da saúde, o corolário dessa hipótese é que um processo, amplo e complexo, de mutação da natureza das desigualdades econômicas e sociais termina produzindo novas formas de iniquidades em saúde.

Em suma, nesse contexto de hipercapitalismo globalizado, encontramo-nos em uma conjuntura política mundial dominada por uma perversa combinação de fundamentalismo e obscurantismo, em contextos de ajustes econômicos orientados pelo neoliberalismo, produtores de desigualdades sociais com impactos fortemente negativos sobre a saúde. Nessa conjuntura atual, será pertinente afirmar que, em estados de mal-estar social como o Brasil, o incremento das desigualdades extremas promove variações nas formas elementares de desigualdade, gerando novas modalidades de inequidades sociais e consequentemente novas formas de iniquidades em todos os espaços de diferenciação, incluindo o campo da saúde. Nesse contexto, as desigualdades, inequidades e iniquidades paradoxalmente crescem na medida em que aumenta a capacidade resolutiva das tecnologias de saúde disponíveis e se amplia a cobertura formal do sistema de saúde. Para pelo menos para evitar ou minimizar seus efeitos perversos, será preciso intensa e urgente luta política para retomar o Estado, reafirmando seu caráter de dispositivo democrático comprometido com o progresso social, ampliando e renovando alianças com todas as forças sociais e movimentos políticos que, nos últimos quarenta anos, de diversas formas têm contribuído para consolidação e ampliação das políticas públicas de saúde, resultando em melhoria da situação de saúde no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    06 Abr 2020
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