Apropriação social do Sistema Único de Saúde: ouvindo a voz dos usuários

Apropiación social del Sistema Brasileño de Salud: oír la voz de los usuarios

Edson Malvezzi Márcia Niituma Ogata José Maurício de Oliveira Gastão Wagner de Sousa Campos Sobre os autores

Resumos

Trata-se de uma investigação com o objetivo de analisar a percepção de usuários do Sistema Único de Saúde quanto à sua apropriação social desta política pública, em especial, ao atendimento de suas necessidades e à participação nos processos de organização e avaliação do sistema e dos serviços de Saúde em que estão inseridos. Estudo qualitativo com usuários que vivenciaram episódio de internação hospitalar por condição sensível à atenção primária, seus resultados foram sistematizados segundo Análise de Conteúdo e discutidos à luz da hermenêutica crítica e do referencial Paideia. Os achados demonstram que os usuários reconhecem o Sistema Único de Saúde como política pública, referindo sua lógica de funcionamento e benefícios quando necessitam de cuidados à saúde; e descrevem seus efeitos pela criação de novas práticas de cuidado nas unidades básicas após episódio de internação hospitalar; não mencionando sua participação nos espaços de controle social.

Palavras-chave
Política pública; Sistema Único de Saúde; Controle social; Pesquisa qualitativa


Investigación con el objetivo de analizar la percepción de usuarios del Sistema Único de Salud en lo que se refiere a su apropiación social de esta política pública, en especial a la atención de sus necesidades y en la participación en los procesos de organización y evaluación del sistema y servicios de salud inseridos. Estudio cualitativo con usuarios que vivieron un episodio de ingreso en hospital por condición sensible a la atención primaria. Los resultados se sistematizaron según análisis de contenido y se discutieron a la luz de la hermenéutica crítica y del referencial “Paidéia”. Los hallazgos demuestran que reconocen el Sistema Único de Salud como una política pública, refiriendo su lógica de funcionamiento y beneficios cuando necesitan cuidados de salud. Describen sus efectos por la creación de nuevas prácticas de cuidado en las unidades básicas después de un episodio de ingreso hospitalario, sin mencionarse su participación en los espacios de control social.

Palabras clave
Política pública; Sistema Brasileño de Salud; Control social; Investigación cualitativa


Introdução

O processo histórico pelo qual as políticas públicas foram se constituindo no mundo mostra a disputa entre as necessidades sociais da população e os interesses econômicos neoliberais, sendo que o resultado desses embates revela contradições11 Pastorini A. Quem mexe os fios das políticas sociais? avanços e limites da categoria “concessão-conquista”. Serv Soc Soc. 1997; 18(53):80-101.

2 Faleiros VP. O que é política social. São Paulo: Brasiliense; 1991.

3 Almeida LA, Gomes RC. Processo das políticas públicas: revisão de literatura, reflexões teóricas e apontamentos para futuras pesquisas. Cad EBAPE.BR. 2018; 16(3):444-455.

4 Farah MFS. Análise de políticas públicas no Brasil: de uma prática não nomeada à institucionalização do “campo de públicas”. Rev Adm Publica. 2016; 50(6):959-979.

5 Souza C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias. 2006; 8(16):20-45.
-66 Draibe SM. As políticas sociais e neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas. Rev USP. 1993; 30(17):86-100..

As políticas sociais ora são vistas como mecanismos de manutenção da força de trabalho, ora como conquista dos trabalhadores, ora como arranjos do bloco no poder ou bloco governante, ora como doação das elites dominantes, ora como instrumento de garantia do aumento da riqueza ou dos direitos do cidadão22 Faleiros VP. O que é política social. São Paulo: Brasiliense; 1991.. (p. 8)

No Brasil, não diferente, mas agravado por sua posição de país periférico no mundo capitalista, a implantação de políticas sociais tem sido acompanhada pelo embate político e econômico, sendo altamente influenciada por determinações e decisões do capital e das potências mundiais77 Piana MC. As políticas sociais no contexto brasileiro: natureza e desenvolvimento. São Paulo: Unesp; 2009.,88 Moraes RC. Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações estado-sociedade. Educ Soc. 2002; 23(80):13-24..

Oscilando entre movimentos de ampliação e redução da participação do Estado no financiamento e na organização das ações e programas sociais, mas sempre permeada pela inclusão do mercado para responder às demandas sociais, a própria Constituição Federal de 1988, notadamente pautada pelos parâmetros da equidade e dos direitos sociais universais, manteve proposições conservadoras na área econômica, tributária, administrativa e do sistema político. As concepções de Estado neoliberal minimalista e de proteção social universalista disputam a condução política nas últimas décadas66 Draibe SM. As políticas sociais e neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas. Rev USP. 1993; 30(17):86-100..

Considerada uma das mais importantes consolidações de política social desta Constituição, o Sistema Único de Saúde (SUS) coloca a saúde como parte dos direitos sociais universais, afirmando ser dever do Estado sua manutenção, subordinando as práticas privadas à sua regulação e incluindo a participação da sociedade em instâncias de controle99 Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 23-64..

O Brasil enfrentou dificuldades pela instabilidade da crise econômica da década de 1990, com consequente pressão pela rediscussão do tamanho e papel do Estado e a adoção do modelo neoliberal, contexto que prejudicou a plena implementação do SUS, ainda que permanecessem esforços no sentido contrário de sanitaristas e usuários66 Draibe SM. As políticas sociais e neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas. Rev USP. 1993; 30(17):86-100.,1010 Menicucci TMG. História da reforma sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde: mudanças, continuidades e a agenda atual. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2014; 21(1):77-92.

11 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1707-1714.
-1212 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Lancet. 2011; 377(9779):11-31..

Compõe este cenário histórico a publicação em 1990 da Lei Orgânica da Saúde, que regulamentou os mecanismos de participação popular e de controle social, definindo a criação de conselhos paritários entre gestores, prestadores de serviço, trabalhadores e usuários para desempenhar a função de deliberar e controlar as ações das políticas públicas, passando a sociedade a ter atuação formal nas decisões e controle das suas ações1313 Mendes DCVR. Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático. Rev Katalysis. 2007; 10(2):143-153.,1414 Dagnino E. ¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: Mato D, organizador. Políticas de ciudadanía y sociedade civil en tiempos de globalizacíon. Caracas: Faces, Universidad Central de Venezuela; 2004. p. 95-100..

É neste contexto que se insere este estudo, cujo objetivo é analisar a percepção de usuários do SUS quanto a sua apropriação social desta política pública, em especial, ao atendimento das suas necessidades e à participação nos processos de organização e avaliação do sistema e serviços de Saúde em que estão inseridos.

Esse objetivo se dá no cotidiano em que ocorre a implantação da política pública de saúde; da produção e oferta do cuidado em saúde; da vida das pessoas; e, assim, do espaço de conflitos e contradições de toda ordem: sociais, políticas, econômicas e culturais88 Moraes RC. Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações estado-sociedade. Educ Soc. 2002; 23(80):13-24.. Pretende-se ouvir a voz dos usuários sobre como percebem essa realidade, como sentem seus efeitos no cotidiano e como nela participam, ou seja, como se apropriam socialmente de toda essa algaravia.

Apropriação social é aqui concebida a partir das proposições sobre o necessário acesso e incorporação do conhecimento científico e tecnológico pela sociedade1515 Barbosa H. Comunicação pública digital em ciência e tecnologia. In: Hayashi MCPI, Sousa CM, Rothberg D, organizadores. Apropriação social da ciência e da tecnologia: contribuições para uma agenda. Campina Grande: EDUEPB; 2011. p. 155-190.

16 Marteleto RM. Produção e apropriação social de conhecimentos: uma leitura pela ótica informacional [Internet]. In: Anais do 10o Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação; 2009; João Pessoa, Brasil. João Pessoa: UFPB; 2009 [citado 25 Out 2020]. Disponível em: http://enancib.ibict.br/index.php/enancib/xenancib/paper/viewFile/3215/2341
http://enancib.ibict.br/index.php/enanci...
-1717 Nunes JA. O que se entende por cultura científica nas sociedades baseadas no conhecimento? [Internet]. In: Conferência Prioridade à Cultura Científica; 2004; Coimbra, Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra; 2004 [citado 25 Out 2020]. Disponível em: http://www.cla.org.pt/docs/prici2_arriscado.pdf
http://www.cla.org.pt/docs/prici2_arrisc...
, associado às argumentações de que, para além do acesso, é necessária também a efetiva inserção dessa mesma sociedade no processo de produção e avaliação em espaços sociais que contemplem as pluralidades de seus atores para que alcancem legitimidade e reconhecimento de seus benefícios1515 Barbosa H. Comunicação pública digital em ciência e tecnologia. In: Hayashi MCPI, Sousa CM, Rothberg D, organizadores. Apropriação social da ciência e da tecnologia: contribuições para uma agenda. Campina Grande: EDUEPB; 2011. p. 155-190.,1818 Sousa CM, Berbel DB, Rothberg D, Hayashi MCPI. Transgenia e comunicação da ciência sob o olhar CTS. In: Hayashi MCPI, Sousa CM, Rothberg D, organizadores. Apropriação social da ciência e da tecnologia: contribuições para uma agenda. Campina Grande: EDUEPB; 2011. p. 15-40.,1919 Kleba JB. Tecnociência, assimetrias e retribuição: indagações sobre a bioprospecção farmacológica do conhecimento médico tradicional. In: Hayashi MCPI, Sousa CM, Rothberg D, organizadores. Apropriação social da ciência e da tecnologia: contribuições para uma agenda. Campina Grande: EDUEPB; 2011. p. 107-154..

Com base nisso, Malvezzi2020 Malvezzi E. Condições sensíveis à atenção primária como dispositivo de gestão do cuidado em saúde: a apropriação pelos usuários do SUS [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2019. propõe três elementos fundamentais e complementares para efeito de apropriação social da política pública de Saúde: o reconhecimento e acesso às informações sobre as principais diretrizes, princípios e direitos do SUS e como se organiza este sistema; o valor atribuído aos efeitos de suas ações e serviços frente às necessidades de saúde de seus usuários; e a efetiva inserção destes em seu processo de formulação, deliberação e avaliação de seus resultados2020 Malvezzi E. Condições sensíveis à atenção primária como dispositivo de gestão do cuidado em saúde: a apropriação pelos usuários do SUS [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2019..

Metodologia

Estudo de abordagem qualitativa orientado por postura hermenêutica crítica, busca a compreensão de como os humanos sentem, pensam e agem em sua realidade, vivenciada e construída com o outro, suas relações, representações, interpretações e intencionalidade2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.,2222 Turato ER. Qualitative and quantitative methods in health: definitions, differences and research subjects. Rev Saude Publica. 2005; 39(3):507-514..

Essa perspectiva procura evitar tornar o pesquisador surdo para outras e diversas “verdades”, deixando-se interrogar pelo material em estudo e pela “coisa em questão”, reconhecendo a alteridade do outro, mais em sua estranheza que em sua familiaridade, como condição para a compreensão2323 Gadamer HG. Verdade e método. Petrópolis: Vozes; 2012.,2424 Ayres JRCM. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):549-560.. Trata-se de um tipo de identificação empática, procurando entender a situação na qual as ações humanas fazem (ou adquirem) sentido em virtude do sistema de significados ao qual o sujeito pertence2525 Denzin NK, Lincoln YS. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Porto Alegre: Artemed; 2006..

A interação do pesquisador como uma vivência dialógica e compartilhada influencia e sofre influência dos encontros nessa relação, que, por sua vez, reproduzem as relações sociais nas quais podem estar representadas desigualdades, assimetrias e até conflitos entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa.

Aprovada sob CAAE nº 52891715.6.0000.5504, esta pesquisa foi realizada entre os anos de 2015 e 2019, elegendo como campo empírico as 17 Unidades Básicas de Saúde (UBS) de um mesmo Distrito Sanitário de uma cidade paulista. A escolha deste campo decorreu da existência de proposta de integração entre serviços públicos de Saúde nesse território sanitário2626 Oliveira JM, Malvezzi E, Gigante RL, Soeiro E, Campos GWS. Innovation in medical education: matrix support in residency programs. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):211-222..

A amostragem dos sujeitos, usuários do SUS com idade superior a vinte anos e que vivenciaram internação hospitalar por condições sensíveis à atenção primária (CSAP), foi não probabilística e por conveniência2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014., sendo estes identificados nas próprias UBS.

Para a coleta de dados, optou-se por entrevistas individuais, com roteiro semiestruturado e adoção de movimentos sucessivos de inclusão de elementos emergentes em cada entrevista2727 Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de quarta geração. Campinas: Unicamp; 2011. até atingir o critério de saturação2828 Fontanella BJB, Luchesi BM, Saidel MGB, Ricas J, Turato ER, Melo DG. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad Saude Publica. 2011; 27(2):389-394.. Foram entrevistados dez usuários entre novembro de 2017 e agosto de 2018, sendo as entrevistas gravadas em áudio e transcritas na íntegra pelo pesquisador.

A sistematização dos dados coletados foi feita segundo o referencial da Análise de Conteúdo, com ênfase na modalidade temática2121 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.,2929 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011..

Adotou-se a teoria Paideia3030 Campos GWS. Apoio Paideia e as políticas públicas. In: Campos GWS, Figueiredo MD, Oliveira MM, organizadores. O apoio Paideia e suas rodas. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 11-20.

31 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007.
-3232 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2007. como referencial para a discussão dos resultados. Ela tem como elemento central a busca de ampliação da capacidade de análise e intervenção de pessoas e grupos, assumindo o lugar de sujeitos na construção da democracia institucional. Campos3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007. destaca:

Na prática, ninguém, nenhum agente isolado, produz democracia. A democracia é uma reforma social, produto da práxis de Grupos Sujeitos e produtora de Sujeitos. Não havendo democracia sem a intervenção deliberada de Sujeitos concretos. A democracia é, pois, um produto social. Depende da correlação de forças, do confronto entre movimentos sociais e poderes instituídos. Depende da capacidade social de se construir espaços de poder compartilhado: rodas. A existência desses espaços é um sinal de democracia. A democracia é, portanto, a possibilidade de exercício do Poder: ter acesso a informações, tomar parte em discussões e na tomada de decisões. A democracia é, ao mesmo tempo, uma construção e uma instituição3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007.. (p. 41)

Apresentação e discussão dos resultados

Sobre os sujeitos da pesquisa, são todos dependentes do SUS; portadores de doenças crônicas que se agravaram e resultaram em internação hospitalar; moradores em áreas de grande vulnerabilidade social; e com idades entre 49 e noventa anos. Além disso, são cinco de cada gênero e cinco exercem atividade remunerada.

A partir da sistematização dos dados coletados, chegou-se a três núcleos temáticos de sentido que representam o conjunto de percepções: (1) Atendimento às necessidades em saúde, (2) Reflexos da internação hospitalar na oferta e produção do cuidado e (3) Apropriação social dos processos de organização e avaliação do sistema público de saúde.

Núcleo 1 – Atendimento das necessidades em saúde

Os entrevistados reconhecem suas necessidades de saúde quando há agravamento do seu sofrimento ou no acompanhamento de suas doenças crônicas. Indicam os diferentes serviços públicos de Saúde como recurso para estas circunstâncias: UBS, hospitais, serviço de atendimento móvel de urgência (Samu), prontos-socorros (PS), unidades de pronto atendimento (UPA), ambulatórios de especialidades e centros de referência.

Ao reconhecerem os serviços públicos de Saúde, sinalizam tanto para o conhecimento da existência destes quanto para a incorporação de que oferecem benefícios para o cotidiano da vida social, o que evidencia elementos constituintes e a expressão de dimensões da apropriação social do SUS.

Há nessa percepção uma grande aproximação com o que Campos3232 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2007. denomina de valor de uso do serviço, especialmente por sua capacidade potencial em atender às necessidades apontadas pela sociedade, que também pode revelar uma compreensão que toma o valor de uso e utilidade do serviço como se fossem equivalentes às necessidades da sociedade, o que retrata o tensionamento cotidiano entre o que a população demanda e o que os serviços de Saúde ofertam3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007..

Os sujeitos apontam os reflexos dessa equação e destacam uma série de aspectos positivos relacionados ao sistema de Saúde no qual estão inseridos, ao mesmo tempo em que também apontam desafios a serem superados para verem suas necessidades atendidas.

Sobre as UBS, ainda que as reconheçam como referência para a busca de cuidado em Saúde, referem perceber uma piora destas com o passar do tempo. Citam o arranjo organizacional do acolhimento como uma barreira, especialmente para as situações que fogem da rotina estabelecida – ou seja, demandas espontâneas ou urgências.

Campos3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007.,3232 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2007. considera o acesso como um dos pontos que concretamente mais interessam à população, atribuindo à estratégia do acolhimento a possibilidade de favorecer uma escuta qualificada e ofertar respostas, para além do agendamento de consultas médicas ou outras ações de rotina, considerando a avaliação implicada de riscos e vulnerabilidades, caso a caso, e, se necessário, a regulação para o encaminhamento para outros serviços.

Contudo, o que encontramos neste estudo foi uma percepção diferente desta, não no que diz respeito à oferta de agendamento futuro ou ao encaminhamento para outros serviços, mas no que diz respeito ao relato da não implicação dos profissionais frente à avaliação de risco e vulnerabilidades de suas demandas, retratadas por ofertas de agendamento ou orientação pela busca em outros serviços feita de modo burocrático e justificadas pela restrição de oferta local, sem avaliação e responsabilização por parte das equipes locais.

Foi possível também identificar relatos de estabelecimento de vínculo com a UBS de referência e com a equipe cuidadora, demonstrando reconhecerem qualidade e responsabilização para com a continuidade do cuidado, na articulação e viabilização da oferta de recursos terapêuticos e de exames complementares, assim como no fornecimento de medicamentos. Destacam o trabalho do agente comunitário de saúde como elo significativo para esse reconhecimento e pertencimento, com quem estreitaram laços e veem um canal de aproximação e comunicação.

Quanto aos outros serviços de Saúde utilizados pelos usuários quando necessitaram de exames ou acompanhamento em situações de maior complexidade ou emergenciais, as percepções permitem explorar a existência e conformação da rede que compõe o sistema público de Saúde e reconhecer a UBS como a instância que articula e viabiliza os encaminhamentos. Sobre a utilização do Samu, informam que o procuraram por iniciativa própria, sem mediação da UBS, e que por ele aconteceu o acesso ao PS hospitalar ou à UPA.

Ao citarem o hospital, serviço no qual buscam atendimento às suas necessidades mais complexas, os usuários expressam diferentes percepções. As vivências nas enfermarias e no ambulatório de egressos são reconhecidas por encontrarem oferta de cuidado em resposta às suas necessidades, estendendo essa avaliação para as situações em que necessitaram ser transferidos para outros hospitais. Contudo, ao se referirem ao PS, emergem queixas em relação à dificuldade de acesso e à degradação do cuidado.

Além dos serviços públicos de saúde, os sujeitos deste estudo também comentaram sobre o desejo de acesso a serviços privados para atendimento às suas necessidades. Pensam nessa opção quando sentem que os serviços públicos não respondem tal como desejariam, em especial pelas longas filas ou pelo tempo que teriam que aguardar para o atendimento. Cordeiro et al.3333 Cordeiro HA, Conill EM, Santos IS, Bressan AI. Por uma redução nas desigualdades em saúde no Brasil: qualidade e regulação num sistema com utilização combinada e desigual. In: Santos NR, Amarante PDC, organizadores. Gestão pública e relação público privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes; 2010. p. 129-151., analisando esse fenômeno, destacam a influência exercida pelo imaginário social, na qual há o predomínio da ideia de que o sistema privado é mais eficiente do que o público, reforçado pela posição liberal fortemente predominante nos profissionais da Saúde.

Núcleo 2 – Reflexos da internação hospitalar na oferta e produção do cuidado

Este núcleo aborda as vivências relativas ao episódio de internação hospitalar e seus reflexos na produção, articulação e continuidade do cuidado nos serviços da rede pública de Saúde. Ressalta-se que os sujeitos participantes foram identificados a partir das UBS, ou seja, mantiveram vínculo com essas unidades após a internação, e que estas ocorreram por causas potencialmente evitáveis.

Os relatos demonstram que as vivências de internação foram relevantes e marcantes em suas vidas e que deixaram a percepção de um atendimento adequado e satisfatório. Porém, apontam a chegada ao PS hospitalar como momento de estresse e sofrimento.

Dois aspectos se destacam sobre o atendimento no PS: um que toma a rapidez no atendimento como critério de avaliação do serviço e outro que o caracteriza como barreira para o acesso aos demais serviços do hospital. Enquanto a rapidez pode ser considerada um atributo de eficiência, a demora se relaciona à não utilização de critérios de risco para a priorização dos casos, à degradação na relação entre profissionais e usuários e à falta de estrutura do serviço.

Para Campos e Amaral3434 Campos GWS, Amaral MA. Amplified clinic, democratic management and care networks as theoretical and pragmatic references to the hospital reform. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-859., há de fato obstáculos estruturais, culturais e políticos para a transformação das tradicionais práticas hospitalares. Reconhecem a alta demanda por assistência, mas também apontam que a forma como esses serviços organizam a distribuição de suas equipes – frequentemente por plantões verticais – resultam em dificuldades para o estabelecimento de vínculo, responsabilização e acompanhamento terapêutico longitudinal desses pacientes, reforçando o modelo de atenção fragmentado e favorecendo a degradação do cuidado3434 Campos GWS, Amaral MA. Amplified clinic, democratic management and care networks as theoretical and pragmatic references to the hospital reform. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-859..

Quanto à internação propriamente dita, ganham destaque as falas sobre a presença de muitos médicos e a ocorrência de transferência para outros hospitais para realização de procedimentos complexos, ambos mencionados como pontos de valorização do serviço e de sua capacidade resolutiva. Há, nesse sentido, uma reafirmação da imagem hegemônica na sociedade em relação ao papel central que ocupam o hospital e o médico no sistema de Saúde3434 Campos GWS, Amaral MA. Amplified clinic, democratic management and care networks as theoretical and pragmatic references to the hospital reform. Cienc Saude Colet. 2007; 12(4):849-859..

Em relação aos relatos sobre o momento da alta da internação, os usuários revelam diferentes tipos de orientações recebidas para o seguimento de seus tratamentos. Duas se destacam: a que mantém o hospital como referência, por seu ambulatório de egressos, e a que indica a UBS para a continuidade do cuidado. Sobre a primeira, citam que a orientação para manter o seguimento no hospital ocorreu pela complexidade do caso e pela falta de recursos na UBS para seguir com o tratamento, incluindo o médico especialista. Nesses casos, mesmo que a continuidade com o especialista fosse necessária, não mencionam a possibilidade de um acompanhamento conjunto com a UBS. Relatam ter recebido orientação para buscar pela UBS apenas para a realização de curativos, retirada de medicamentos e/ou materiais e apoio emocional.

Pode-se constatar que há nesses relatos uma desvalorização da integração entre os serviços da rede, em especial pela negação do papel das UBS no sistema de Saúde, além do não compartilhamento com os usuários de alternativas terapêuticas disponíveis e adequadas, restringindo sua participação na coprodução de seu plano de cuidado.

Quanto ao outro tipo de orientação, que indicava a continuidade do cuidado na UBS, tanto exclusivamente quanto em situações em que o cuidado aconteceria de forma compartilhada, os entrevistados reconhecem nessa postura certa integração entre o hospital e a UBS, o que lhes dava maior segurança. Não se percebe, nesses casos, a utilização do critério de menor risco ou complexidade quando comparado aos casos da situação anterior.

Ao serem feitas essas orientações, parece haver um reconhecimento pela equipe do hospital das capacidades e recursos instalados nas UBS, potentes para a continuidade do cuidado, indicando uma postura de compreensão da corresponsabilização entre os serviços para um cuidado em rede. Nesse caminho, percebe-se a articulação para uma possibilidade de integração entre os serviços, ampliando a possibilidade de efetivação de um sistema em rede.

Explorando o conceito de integralidade, Pinheiro e Mattos3535 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2009. a traduzem como a capacidade dos serviços de saúde em ofertar respostas não só para o enfrentamento das doenças, mas também para realizar uma abordagem mais complexa, que também perceba as necessidades da população atendida. Indo além, apontam a necessária inclusão dos conhecimentos e saberes das pessoas envolvidas, em um processo de negociação e pactuação para a ampliação da compreensão dessas necessidades e a consequente estruturação das ofertas.

Nesse sentido, emergiram falas em relação ao cuidado na UBS pós-alta que refletem a percepção de mudanças em relação à qualificação das ações ofertadas que afirmam que algo diferente e novo passou a acontecer após a identificação de um determinado usuário como egresso de internação, independentemente de essa informação ter sido explicitada por iniciativa deste usuário ou por uma busca ativa da unidade.

A partir dessa constatação, foi relatado sensação de pertencimento; ser identificado em sua singularidade; reconhecimento de suas necessidades; e de que se sentiram fazendo parte da UBS. Essas mudanças foram evidenciadas pela modificação na dinâmica do serviço, especialmente pela ampliação da participação de outros profissionais da equipe no seu plano de cuidado, pelo aumento na frequência das visitas domiciliares que a equipe de referência passou a fazer e pelo monitoramento da adesão às orientações e sobre o comparecimento aos atendimentos agendados na própria UBS ou nos outros serviços de retaguarda.

Correlacionando estes relatos com o conceito de integralidade e identificando os movimentos das UBS nesse sentido, destacamos o que afirma Campos3232 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2007. quando refere que “para se lograr atenção integral é necessário reformular e ampliar a clínica e a saúde coletiva ao mesmo tempo, uma interagindo com a outra” (p. 104).

Os relatos apontam ainda para a sensação de que houve integração entre as equipes do hospital e da UBS e uma troca de informações entre estas, mesmo que desconheçam como isso acontecera. Especificamente em relação a isso, apontaram para os episódios de internação e quando utilizaram os ambulatórios especializados de retaguarda. Reforça-se aqui a presença de aspectos referentes à constituição de redes de atenção à saúde.

Essa percepção indica o reconhecimento de um processo de inovação da política pública de Saúde em sua dimensão assistencial, uma vez que amplia a qualidade e a efetividade da atenção pela introdução de um novo modo de ofertar ações de cuidado3636 Fleury S. Democracia e inovação na gestão local da saúde. Rio de Janeiro: Cebes, Fiocruz; 2014..

Núcleo 3 – Apropriação social dos processos de organização e avaliação do sistema público de Saúde

Quando os usuários mencionam o SUS como expressão da política pública, os relatos são genéricos, fazendo uma alusão mais forte aos políticos do que à política propriamente dita, ressaltando o quão os discursos destes são de interesse eleitoreiro, datados na proximidade das eleições, com promessas que não se cumprem, percebidos como pronunciamentos desconectados das reais necessidades de saúde da população e das condições em que os serviços públicos se encontram.

Campos3030 Campos GWS. Apoio Paideia e as políticas públicas. In: Campos GWS, Figueiredo MD, Oliveira MM, organizadores. O apoio Paideia e suas rodas. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 11-20. destaca o papel central que o Estado ocupa na operacionalização das políticas públicas, sobretudo no que diz respeito às ações para efetivação da inclusão social e bem-estar da população, e neste campo se inclui o direito à saúde. Contudo, a história vem apresentando uma hegemonia do modelo capitalista, que, por suas forças pró-mercado e tensões neoliberais, vem imprimindo uma lógica de redução do Estado, estimulando a desmobilização da sociedade e, consequentemente, do seu compromisso para com a garantia de políticas de proteção social3636 Fleury S. Democracia e inovação na gestão local da saúde. Rio de Janeiro: Cebes, Fiocruz; 2014..

Essa situação pode explicar, ao menos em parte, a percepção de esmaecimento crítico dos usuários do SUS sobre as políticas públicas, transferindo aos políticos parte visível e concreta deste contexto, mas não menos isenta, e a responsabilidade pelos efeitos do capitalismo e sua tendência ao Estado mínimo. Assim, políticas públicas são entendidas mais como uma concessão de governo do que um direito de cidadania.

Para enfrentamento dessa concepção, Campos3030 Campos GWS. Apoio Paideia e as políticas públicas. In: Campos GWS, Figueiredo MD, Oliveira MM, organizadores. O apoio Paideia e suas rodas. São Paulo: Hucitec; 2017. p. 11-20. aponta que:

[...] a sustentação de reformas sociais e da democracia depende tanto de uma reformulação dos modos tradicionais com que se têm organizado os movimentos sociais, quanto de mudanças nas formas de organizar e de gerir as Políticas Públicas. (p. 16-7)

Campos3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007. afirma ainda que:

[...] uma linha para essa mudança refere-se à construção de Espaços Coletivos que estimulem e facilitem a participação de outros agentes que não apenas aqueles com função de direção, bem como de agentes externos ao Coletivo. (p. 143)

Trata-se de uma constituição e um fortalecimento de sujeitos, pela ampliação de sua capacidade de análise e de intervenção, para a participação e construção da democracia institucional, que é fruto de uma práxis destes sujeitos, como uma reforma social produzida democraticamente em espaços de poder compartilhado, que impulsionam novas mudanças sociais3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007..

Fleury3636 Fleury S. Democracia e inovação na gestão local da saúde. Rio de Janeiro: Cebes, Fiocruz; 2014., corroborando, refere-se aos processos de inovação social como a expansão e o fortalecimento da cidadania por sua capacidade de influenciar as políticas públicas, levando a mudanças nas estruturas de poder do Estado e passando necessariamente pela constituição e incorporação de sujeitos autônomos e emancipados: “Fazer com as pessoas e não sobre elas3232 Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2007. (p. 26). Inclusive, podemos afirmar, por seu arcabouço, que este é um princípio do SUS.

Ainda sobre a percepção dos usuários sobre o modo de funcionamento do SUS e sua capacidade instalada, as entrevistas retratam a coexistência de um sistema que atende às necessidades com outro que é insuficiente para responder às demandas de cuidados em Saúde da população. Quando apontam que o SUS atende às necessidades, citam as diversas ofertas de ações para o cuidado em saúde, de diferentes complexidades e em serviços distintos. Porém, significativamente, essa afirmação vem correlacionada ao fato de ter o SUS como único recurso, como se houvesse um tom de atenuação ou de conformismo.

Em relação às falas sobre a precariedade do sistema, destacam-se a má aplicação dos recursos disponíveis, a necessidade de melhorias na estrutura e na organização dos serviços, a insuficiência de oferta de ações e o agravamento destas pela limitação e/ou falta de critérios para o acesso.

Cabe retornarmos à constatação de que não é mencionada a alternativa da participação nos espaços de gestão desse sistema e a restrita possibilidade da interferência desses usuários na condução deste processo, limitando seus próprios poderes e sugerindo a delegação ao outro, um outro não nominado, mas que muito provavelmente está retratado naqueles mesmos políticos dos quais reclamam por não resolverem seus problemas, no gestor da UBS, ou ainda nos trabalhadores dos serviços de Saúde. Não há manifestação, por parte dos usuários, do desejo de se tornarem protagonistas neste processo.

Sobre os trabalhadores dos serviços de Saúde, houve por parte dos usuários a manifestação de solidariedade e de proteção a estes profissionais, considerados tão vítimas quanto eles próprios pelas condições desfavoráveis de trabalho. Porém, houve também a crença de que isso não poderia justificar o desrespeito ou o mau atendimento por parte destes trabalhadores, atitude considerada incompatível com a função pública, ressaltando que seus salários são custeados por meio do pagamento de impostos pela população.

Em relação aos coletivos organizados para a produção, aqui focando nos trabalhadores, Campos3131 Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2007. aponta o cumprimento de duplo objetivo:

Produzir bens ou serviços de interesse social, ou seja, valores de uso que tenham a potencialidade de atender a necessidades sociais; e, ao mesmo tempo, assegurar a sobrevivência da própria organização e do conjunto de agentes que a integrem ou dela dependam. (p. 121)

Segue apontando que tais finalidades não necessariamente atuam em sentidos coincidentes, podendo haver contradições e conflitos em decorrência dessa duplicidade de objetivos, pois não são interesses de fácil conciliação.

O que vemos se repetir é que também nessa situação não há menção, por parte dos usuários, de iniciativas que problematizem situações de conflitos ou de estranhamento com os trabalhadores. Tampouco citam movimentos no sentido contrário, nos quais os próprios trabalhadores ou o gestor local abordem essas possibilidades.

Como uma situação idealizada, que poderia resolver parte desses problemas, alguns sujeitos da pesquisa trouxeram o desejo de aderir a um plano de saúde. Porém, não aparecem explicitamente colocados argumentos que comparem o SUS e os serviços privados, muito possivelmente em razão da grande dependência do SUS dos entrevistados.

Seguindo com a construção de alternativas para mudanças neste contexto assistencial – ou, ao menos, encontrar caminhos para amenizá-lo –, encontramos manifestações dos entrevistados sobre como foi compreendida a possibilidade de participação da sociedade nas instâncias que, por sua natureza, poderiam ampliar a análise dessa conjuntura e a formulação de indicativos para possíveis melhorias nesse contexto.

Quando aprofundamos as conversas sobre os espaços para a participação da sociedade no SUS emergiu o reconhecimento da força e da importância que a população poderia ter no delineamento de soluções e alcance de resultados frente à suas demandas sociais, ao encontro da visão que Bazzo et al.3737 Bazzo WA, Linsingen I, Pereira LTV. Introdução aos estudos CTS: ciência, tecnologia e sociedade. Madrid: OEI; 2003. apontam como mecanismo democrático para a construção de respostas às necessidades percebidas por esta mesma sociedade. Essa posição não se mostrou unânime por que emergiram também falas que refletem a sensação de que parte dos usuários tem posturas mais individualistas, com pouca implicação para com as questões da coletividade e com pouca motivação para propor mudanças, e mais alinhadas às concepções neoliberais.

Contudo, seguindo com a lógica dos movimentos pelo protagonismo, os usuários referem não encontrar espaço para esse exercício democrático e se deparar com uma postura de pouca disponibilidade para esse encontro e o debate de opiniões nos serviços de Saúde, por parte tanto dos gestores quanto dos profissionais. Sobre os gestores, em especial, referem sentir um distanciamento ainda maior, sendo estes colocados em uma posição de exercício do poder autoritário do qual não tem acesso, nem se sentem protagonistas.

Conflitos expressos nessa relação ainda pouco consolidada de exercício da cidadania, em um contexto que se apresenta contraditório entre o discurso a favor do engajamento da sociedade e a prática dominada pela cultura hierarquizada e unidirecional do Estado77 Piana MC. As políticas sociais no contexto brasileiro: natureza e desenvolvimento. São Paulo: Unesp; 2009..

Em relação à motivação e disposição para a participação nas instâncias de organização e avaliação do SUS, as manifestações dos usuários foram distintas. Entre aqueles que conhecem o controle social ou que já haviam participado destas instâncias, foram predominantes as falas de descrédito quanto à efetiva incorporação de suas contribuições ao processo.

Sobre o Conselho Local de Saúde das UBS, por exemplo, podemos afirmar que aqui também havia diferentes compreensões sobre sua existência e, por conseguinte, sobre os resultados que poderiam trazer. Seu reconhecimento enquanto um espaço possível para a participação dos usuários foi feito com muitas ressalvas, com os usuários colocando-o como instância de baixa credibilidade. Além disso, ele é referido como uma dimensão com pouca organização, esvaziada como instância deliberativa e utilizada para uso e exercício de micropoderes ou para alavancar outras aspirações na carreira política.

Os que desconheciam essas instâncias demonstraram interesse e as viram como uma oportunidade para participação, mas as falas eram permeadas por condicionantes. Uma delas, de caráter mais institucional, era a de que lhes fosse dada a oportunidade de entrar em contato efetivo com a existência desses espaços; e outra trazia características e interesses pessoais, desejos e necessidades, como a limitação de sua disponibilidade pessoal para a participação nas reuniões no Conselho Local de Saúde da UBS a depender do horário e dos locais onde seriam realizadas, já trazendo luz ao sempre desafiante arranjo coletivamente negociado.

Essa fragilidade da participação social aqui apontada guarda coerência com alguns trabalhos recentes. Kruger e Oliveira3838 Kruger TR, Oliveira A. Tendências da participação no SUS: a ênfase na instrumentalidade e na interface interestatal. Saude Debate. 2019; 43(esp 5):174-189. destacam como indicativo disto o pouco espaço do controle social nas comemorações dos trinta anos do SUS.

Ricardi et al.3939 Ricardi LM, Shimizu HE, Santos LMP. Conferências de saúde: metassíntese de boas práticas, obstáculos e recomendações a partir de experiências no Brasil, 1986-2016. Saude Soc. 2020; 29(1):e181084., ao buscarem evidências para qualificar o controle social no SUS, relatam como obstáculos para a participação dos usuários a pequena divulgação, mobilização e empoderamento destes. Ventura et al.4040 Ventura CAA, Miwa MJ, Serapioni M, Jorge MS. Cultura participativa: um processo de construção de cidadania no Brasil. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):907-920. também apresentam como obstáculos a comunicação entre os vários atores e as instituições sociais, reforçando que a participação popular é precária. Oliveira e Lima4141 Oliveira RJ, Lima WCMB. Participação social no Sistema Único de Saúde: o envolvimento da população de Alagoinhas. Rev Baiana Saude Publica. 2016; 40(4):942-956. acrescentam a falta de apoio dos gestores de Saúde para a efetivação do SUS.

Em resumo, há um unânime reconhecimento do valor e da institucionalidade do controle social no Brasil, mas os trabalhos recentes apontam evidências que confirmam a pouca participação dos usuários nos espaços de controle social do SUS.

Considerações finais

Esta investigação nos permite afirmar que há evidências de movimentos de aproximação de elementos da apropriação social do SUS: os usuários relatam ter acesso à informação e conhecer a lógica do sistema, saber onde encontrar e utilizar seus serviços, decodificar sua forma de organização e, mais do que isso, atribuir valor de uso a esse sistema na medida em que veem respondidas suas necessidades de cuidado à saúde, reconhecendo seus benefícios. Entendem ainda que algum tipo de inovação pode estar em curso, especialmente quando passam a ser reconhecidos e emerge a sensação de pertencimento ao sistema.

Contudo, os usuários aqui representados não se colocam como atores políticos na arena de disputas do SUS e não expressam movimento para sair dessa situação, preferindo delegar essa função especialmente aos assim chamados “políticos”. Mas também é fato que esses políticos não são citados como agentes proponentes de alternativas para mudanças dessa prática, deixando a participação e o controle popular mais na esfera técnico-burocrata, no campo do discurso e na expressão das diretrizes do SUS. A ampliação da participação da sociedade nas políticas públicas ainda é uma inovação social a ser fortalecida.

É inegável a força do modelo sociopolítico hegemônico, neoliberal e conservador, no qual a maioria da população está submetida, especialmente os usuários aqui representados, cuja condição socioeconômica os coloca em maior vulnerabilidade e dependência do Estado.

Ainda que os pressupostos do SUS apontem mecanismos para sua consolidação como política pública social, fica evidenciada a distância desse objetivo, permanecendo como desafio a sua apropriação pela sociedade. Embora tomada como paradigma das políticas públicas, a participação social nos processos de formulação e deliberação não emergem como parte do cotidiano dos aqui entrevistados.

Ouvir a voz dos usuários esclarece boa parte das dimensões e elementos que conformam essa relação, ao mesmo tempo em que deixa a certeza de que ainda há muitos desafios nesse campo, trazendo subsídios que podem se desdobrar em reflexões com outros atores e em outros territórios. Trata-se do desafio de desdobrar-se em rodas de conversa, em elementos para a provocação e constituição de sujeitos e de coletivos, em inovações e apropriação social.

  • Malvezzi E, Ogata MN, Oliveira JM, Campos GWS. Apropriação social do Sistema Único de Saúde: ouvindo a voz dos usuários. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200291 https://doi.org/10.1590/interface.200291

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br