Vários tons de “não”: relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT)

Varios tonos de “no”: relatos de profesionales de la Atención Básica en la asistencia de lesbianas, gais, bisexuales, travestis y transexuales (LGBTT)

Breno de Oliveira Ferreira Claudia Bonan Sobre os autores

Resumos

As populações de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT) vivenciam obstáculos no acesso e na assistência ofertada pelos serviços da Atenção Básica. Neste estudo, buscamos analisar relatos de profissionais na assistência dessas populações na Estratégia Saúde da Família (ESF). Tratou-se de uma pesquisa qualitativa realizada por meio de relatos orais. Participaram 32 profissionais que atuavam em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Teresina, Piauí, Brasil. A análise foi pautada em três dimensões – reconhecimento, redistribuição e representação – e mostrou que é preciso interligar, dentro de um mesmo princípio de justiça, o espaço do reconhecimento da diversidade sexual e de gênero (campo cultural), o espaço das desigualdades atreladas à exploração e redistribuição de recursos (campo organizacional) e o espaço de representação e participação das populações LGBTT (campo político e social), na lógica circular dos serviços de saúde.

Palavras-chave
Minorias sexuais e de gênero; Profissionais de saúde; Atenção Básica; Assistência à saúde


Las poblaciones de lesbianas, gais, bisexuales, travestis y transexuales (LGBTT) experimentan obstáculos en el acceso y en la asistencia ofrecida por los servicios de la Atención Básica. En este estudio, buscamos analizar relatos de profesionales en la asistencia de esas poblaciones en la Estrategia de Salud de la Familia (ESF). Se trató de una investigación cualitativa realizada por medio de relatos orales. Participaron 32 profesionales que actuaban en una unidad básica de salud (UBS) en Teresina, Estado de Piauí, Brasil. El análisis se pautó en tres dimensiones: reconocimiento, redistribución y representación, mostrando que es preciso interconectar, dentro de un mismo principio de justicia, el espacio del reconocimiento de la diversidad sexual y de género (campo cultural), el espacio de las desigualdades vinculadas a la explotación y redistribución de recursos (campo organizacional) y el espacio de representación y participación de las poblaciones LGBTT (campo político y social), en la lógica circular de los servicios de salud.

Palabras clave
Minorías sexuales y de género; Profesionales de salud; Atención básica; Asistencia a la salud


Introdução

Ainda que as violências contra as pessoas com orientação sexual e identidade de gênero dissonantes da norma recentemente tenham sido consideradas crime no Brasil por terem sido equiparadas ao racismo, temos vivido inúmeros outros entraves na construção de um projeto de igualdade, respeito, liberdade e justiça, conforme demarcado há três décadas com a elaboração da Constituição Federal de 1988. Somadas à trombeteada cena política dos últimos anos, marcada por ameaças recorrentes de autoritarismo político e reforço dos estereótipos, as assimetrias e violências que impõem o binarismo sexual se tornaram ainda mais intensas no campo da saúde. As populações LGBTT têm sofrido discriminações, constrangimentos e violências nos serviços de saúde, que, em sua maioria, são plasmados por uma matriz que impõe a heterossexualidade e a cisgeneridade como padrão11 Ferreira BO, Bonan C. Abrindo os armários do acesso e da qualidade: uma revisão integrativa sobre assistência à saúde das populações LGBTT. Cienc Saude Colet. 2020; 25(5):1765-78. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34492019.
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Para a maioria das populações LGBTT, a produção de saúde possui relação com os modos de viver suas identidades e com suas estratégias de sobrevivência e resistência, que acabam se materializando em práticas corporais e sexuais que possuem alguma relação com o seu grau de vulnerabilidade no cuidado em saúde. Muitas mulheres lésbicas, por exemplo, sentem receio em revelar sua orientação sexual durante a consulta ginecológica e deixam de ser assistidas nos serviços de saúde22 Rufino AC, Madeiro A, Trinidad AS, Rodrigues SR, Freitas I. Disclosure of sexual orientation among women who have sex with women during gynecological care: a qualitative study In Brazil. J Sex Med. 2018; 15(7):966-73. Doi: https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2018.04.648.
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. Gays, quando comparecem aos serviços de saúde e verbalizam sua orientação sexual, sofrem estigmas e preconceitos decorrentes da associação Aids-homossexualidade33 Cele NH, Sibiya MN, Sokhela DG. Experiences of homosexual patients’ access to primary health care services in Umlazi, KwaZulu-Natal. Curationis. 2015; 38(2):1522-30. Doi: https://doi.org/10.4102/curationis.v38i2.1522.
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.Travestis e transexuais vivenciam discriminações ainda maiores no acesso aos serviços de saúde, seja no uso do nome social, seja na garantia do processo transexualizador44 Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte MLI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38. Doi: https://doi.org/10.1590/s0103-73312017000400009.
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Há pelo menos duas décadas, os movimentos sociais LGBTT, por meio das conferências, conselhos, comitês e participação em outras instâncias de negociação política, iniciaram um diálogo intenso com o Estado brasileiro para a garantia de políticas públicas equânimes no Sistema Único de Saúde (SUS), e com isso o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836, de 1 de Dezembro de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (política nacional de saúde integral LGBT). Brasília: Ministério da Saúde; 2011., com enfoque específico, mas que dialoga também com diversas outras políticas de saúde.

Contudo, o desenho de diretrizes e as pactuações das políticas não garantem que os profissionais que atuam no cotidiano dos serviços ofereçam assistência integral, digna e respeitosa às populações LGBTT66 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180279.
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. Quando trazemos essa discussão para a Atenção Básica, que é a principal porta de entrada do SUS, as práticas profissionais ganham ainda mais destaque no contexto de trabalho em equipe territorializada, já que a dinâmica de atuação envolve a compreensão ampliada do meio no qual se estabelece o processo de saúde-adoecimento-cuidado, assim como os problemas, as necessidades e as situações de saúde77 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1707-14. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05582018.
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. São serviços desenvolvidos com o mais alto grau de descentralização e capilaridade da rede de saúde, nos quais as práticas se aproximam da vida das pessoas mais vulneráveis, a partir do vínculo, integralidade, responsabilização, humanização e controle social frente às particularidades de cada região88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017..

O estudo em questão ocorreu na Atenção Básica de Teresina, capital do Piauí. Localizado no Nordeste, um lugar que já é escuso no Brasil, o Piauí é um dos estados menos reconhecidos nacionalmente, mesmo entre os seus vizinhos. Única capital nordestina que não é banhada por mares, a mais católica do país, lidera os índices de mortes LGBTT no Brasil e, paradoxalmente, é situada em um estado que é reconhecido nacionalmente pelas legislações de proteção a essas populações99 Silva AS, Ortolano F. Narrativas psicopolíticas da homofobia. Trivium. 2015; 7(1):1-18. Doi: https://dx.doi.org/10.18370/2176-4891.2015v1p1.
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. Por isso, buscamos compreender as experiências de profissionais que atuam na Atenção Básica e que devem prestar assistência às populações LGBTT. Para analisar essas questões, utilizamos os conceitos propostos pela feminista Nancy Fraser.

Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003. teoriza três dimensões de um princípio universal de justiça aptas a dar conta do enfrentamento dos problemas relativos às desigualdades sociais nas sociedades contemporâneas: reconhecimento, redistribuição e representação. Defende a necessidade de interligar, dentro desse princípio universal de justiça, o espaço de reconhecimento da diversidade sexual e de gênero (campo cultural) e o espaço das desigualdades atreladas à exploração e à injusta redistribuição de recursos (campo organizacional). A representação (campo político e social) vem complementar as dimensões do reconhecimento e da redistribuição, promovendo o fortalecimento de canais de visibilidade e participação dos grupos que não predominam e, muitas vezes, nem sequer estão presentes nas estruturas representativas da organização na sociedade.

Essa perspectiva impõe a reflexão de que as barreiras enfrentadas pelas populações LGBTT nos serviços de saúde são produto da desvalorização ou falta de reconhecimento de suas identidades, que, em uma lógica circular, produzem ou acentuam restrições no que tange ao acesso a bens e recursos sociais, inclusive os cuidados em saúde. Esse processo também é fruto da falta de representação, das invisibilidades e dos estigmas associados às populações LGBTT na sociedade e, por conseguinte, nos serviços de saúde. Assim, a tríade reconhecimento-redistribuição-representação foi utilizada ao longo deste trabalho para analisar relatos de experiências de profissionais da atenção básica na assistência à saúde das populações LGBTT em Teresina, Piauí.

Metodologia

Realizamos uma pesquisa de abordagem qualitativa, em que o método aplicado foi o estudo de relatos orais1111 Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002., pois contar histórias tem um papel essencial na conformação de diferentes fenômenos sociais e culturais em várias sociedades, além do fato de que as histórias contadas facilitam a apreensão de aspectos interacionais e representacionais das experiências dos sujeitos e seus coletivos. Foi escolhida uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência na cidade de Teresina, Piauí, situada em região central e que conta com o maior número de equipes da rede: seis equipes de Saúde da Família (eSF) e uma equipe de Consultório na Rua (eCR). Além disso, a unidade tem vínculo com equipes de Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), é considerada tipo II pelo Ministério da Saúde e conta com gestão local.

O universo de sujeitos elegíveis para a pesquisa incluiu 32 profissionais que atuavam na unidade escolhida, como médicos, enfermeiros, cirurgiões-dentistas, técnicos e/ou auxiliares de saúde bucal, técnicos e/ou auxiliares em enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACS), coordenador e alguns profissionais que integravam as equipes de Nasf-AB (psicólogo, fisioterapeuta e nutricionista) e outros da eCR (enfermeiro, assistente social, médico e agente social). Esse número total de sujeitos não foi, por óbvio, calculado com base em critérios probabilísticos, já que a amostra qualitativa ideal é a que reflete a totalidade das múltiplas dimensões do objeto de estudo, e não o número de sujeitos em si1212 Minayo MCS. A amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesqui Qual. 2017; 5(7):1-12.. Buscamos assegurar, ainda, a diversidade entre os participantes, com pelo menos um de cada categoria profissional com no mínimo seis meses de atuação na unidade, além de contemplar os diferentes marcadores de idade, raça/cor, sexo/gênero, escolaridade e outros. Também adotamos o critério da saturação, ou seja, paramos as entrevistas quando os dados produzidos começaram a se mostrar razoavelmente repetitivos no contexto estudado.

Utilizamos a entrevista individual narrativa1111 Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002. com 26 participantes, e também foi realizado um grupo focal1313 Trad LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis. 2009; 19(3):777-96. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312009000300013.
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com mais seis profissionais de saúde. As atividades de campo ocorreram entre agosto e outubro de 2019.

Para a elaboração do enredo narrativo, seguimos a proposta de Gomes e Mendonça1414 Gomes R, Mendonça EA. A representação e a experiência da doença: princípio para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Minayo MCS, Deslandes SF, organizadores. Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. que, em termos de sequência analítica, sugerem etapas basilares para esse processo: a) compreensão dos contextos nos relatos; b) desvendamento dos aspectos estruturais nos relatos; e c) construção de uma síntese interpretativa.

No que se refere aos procedimentos éticos, a pesquisa foi aprovada sob o parecer de nº 3.443.926 na Plataforma Brasil, estando de acordo com as resoluções 466/2012 e 510/2016. Os nomes reais dos profissionais de saúde foram alterados por nomes fictícios.

Resultados e discussão

Dentro do universo de participantes, a maioria foram mulheres (83%). Um número expressivo possuía idade entre quarenta e sessenta anos (48%). Quanto ao tempo de carreira profissional, a média foi de 16 anos, e sobre o tempo de exercício na Atenção Básica, a média foi de 12 anos. No que se refere aos cursos de formação após a saída das universidades, 42% possuíam algum curso lato sensu, preferencialmente em saúde pública, saúde da família ou saúde mental; e 3% possuíam cursos stricto sensu. Para aqueles que exerciam cargo de nível médio, observou-se que muitos já possuíam curso de graduação, ou estavam cursando (30%). A cisgeneridade foi um ponto em comum a todos os sujeitos entrevistados, e a maioria identificou-se como heterossexual (94%). Sobre o estado civil, dividiam-se entre pessoas solteiras (50%) ou casadas (50%). Sobre o quesito raça/cor, a maioria se declarou negro (60%). No que tange à religião, a maioria afirmou ser católica (65%).

O que se esperar desse universo constituído por uma maioria de mulheres cis, heterossexuais, na meia-idade, com vários cursos de capacitações, casadas ou solteiras, predominantemente negras e de base católica? Os dados serão apresentados seguindo os três eixos propostos no marco teórico de Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003..

Não reconhecimento

A partir dessa categoria de análise, identificamos relatos do lugar da “não diferença” no atendimento às populações LGBTT na Atenção Básica. Em sua maioria, os profissionais de saúde apontaram que saber/conhecer sobre a orientação sexual/identidade de gênero não era importante para a condução do atendimento de saúde: o que mais interessava era resolver a patologia, como fazem com qualquer usuário. A fala de Cristiane exemplifica essa questão:

Eu acho que tem que ser tudo igual, porque se a gente especificar, eles vão ficar é pior. Faço o exame citológico exatamente igual [quando se referia ao exame em mulheres lésbicas].

(Cristiane, enfermeira, eSF)

Trato tudo igual. Mas será que tem alguma doença específica? Boca é boca.

(Joana, cirurgiã-dentista, eSF)

Na centralidade dos atendimentos, segundo os relatos, há uma tentativa de “igualar os atendimentos”, sem estabelecer qualquer relação com a orientação sexual e/ou identidade de gênero, o que supostamente tornaria o atendimento igual para todos. Nessa concepção, os serviços deveriam seguir protocolos e rotinas iguais, já que, assim, segundo os profissionais, estariam sendo éticos e respeitosos com as pessoas, incluindo as populações LGBTT. O relato de José reforça essa perspectiva:

Eu trato todo mundo igual, independente se é isso ou aquilo. Essas coisas não me interessam. A pessoa quando chega aqui, se ela é hipertensa, é hipertensa. Se ela quiser dizer o que ela tem, tudo bem, se não, não há nada a ser fazer.

(José, médico, eSF)

Esse relato expressa a negação, a ocultação e as invisibilidades das diferenças. As populações LGBTT e suas expressões, desejos e necessidades de saúde ficam, assim, escamoteadas pelo discurso da igualdade ou claramente objetificadas como “isso” ou “essas coisas”, em uma postura de distância e frieza por parte dos profissionais. Na busca por essa igualdade, também tentam esconder qualquer motivação de preconceito e acabam por afastar desse lugar de cuidado qualquer questão que possa colocar em xeque seus padrões, crenças e moralidades. Na tentativa de ser “eticamente correto”, podem deixar de abordar situações importantes para os diferentes usuários da rede.

Quando os profissionais de saúde se referiram à igualdade de assistência nos atendimentos na unidade, narrando que atendiam todos os usuários “sem distinções”, percebemos que na sequência de uma suposta igualdade na atenção, logo comparavam as populações LGBTT com as “populações em geral”. Certamente, há um imaginário de um usuário-padrão, aquele inscrito pela cisgeneridade e heterossexualidade e que também frequenta os serviços da unidade com assiduidade (e se “compromissam” com a realização das orientações prestadas).

Parece-nos que essa comparação está imbuída de crenças, valores, visões e expressões normativas e conservadoras, como também pode ser mantida com o intuito de justificar a ausência de ações específicas no cuidado à saúde das populações LGBTT na unidade, ao passo que, nesse cuidado, não são identificados os sujeitos com nomes, histórias e inúmeras singularidades, sendo atendidos como “qualquer outro”. Porém, esse outro parece ser bem característico – ele é estigmatizado, velado, embarreirado ou sequer lembrado. Alguns relatos ainda mostraram que há uma culpabilização e/ou uma responsabilização do usuário LGBTT pelo seu não reconhecimento: “mas eles não falam”, “eles não querem”, “eles não vêm”. São projetadas nas populações LGBTT as cargas pelas suas vidas precárias.

Uma pesquisa1515 Guimarães RCP. Estigma e diversidade sexual nos discursos dos (as) profissionais do SUS: desafios para a saúde da população LGBT [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018. realizada com profissionais da Atenção Básica das regiões Centro-Oeste e Nordeste do país mostrou pouco envolvimento, falta de conhecimento e desrespeito às populações LGBTT nos serviços. Fazendo menção a Foucault, a autora afirma existir uma atualização da “hipótese repressiva” e dos “silêncios” sobre a sexualidade. Existe um delay entre a historicidade teórica da compreensão das sexualidades e o conhecimento de profissionais e da sociedade sobre elas.

Vários outros estudos11 Ferreira BO, Bonan C. Abrindo os armários do acesso e da qualidade: uma revisão integrativa sobre assistência à saúde das populações LGBTT. Cienc Saude Colet. 2020; 25(5):1765-78. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34492019.
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2 Rufino AC, Madeiro A, Trinidad AS, Rodrigues SR, Freitas I. Disclosure of sexual orientation among women who have sex with women during gynecological care: a qualitative study In Brazil. J Sex Med. 2018; 15(7):966-73. Doi: https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2018.04.648.
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-33 Cele NH, Sibiya MN, Sokhela DG. Experiences of homosexual patients’ access to primary health care services in Umlazi, KwaZulu-Natal. Curationis. 2015; 38(2):1522-30. Doi: https://doi.org/10.4102/curationis.v38i2.1522.
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mostraram que as populações LGBTT enfrentam problemas de saúde similares aos identificados na população em geral, mas também apontaram a necessidade de identificar as especificidades de cuidado para cada letrinha que compõe a sigla: L, G, B, T e T. Isso nos faz olhar para as vulnerabilidades, riscos e suscetibilidades a partir de dimensões não somente individuais, mas também sociais, econômicas e institucionais. Quando o conceito de equidade foi incorporado na conformação do SUS, foi justamente para dar conta das iniquidades de cada sujeito, de cada grupo ou de cada cidade77 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1707-14. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05582018.
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Um estudo66 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180279.
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com profissionais da Atenção Básica identificou “discursos da não diferença” no atendimento às populações LGBTT, especialmente por médicos. Já que as populações LGBTT são invisibilizadas e, em sua maioria, não reconhecidas, perguntamo-nos como as Unidades de Saúde têm se operado para organizar seus recursos e acolher esses sujeitos. Essa pauta está no eixo da segunda dimensão apontada por Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003..

Má distribuição de recursos

Tem médico que atende simplesmente quatro pacientes dentro do consultório, e é junto! Aí você quer contar uma coisa íntima para o médico, quer contar uma coisa [...] ele não atende a pessoa se a pessoa quiser atender só, manda a pessoa ir embora, acredita?

(Caio, técnico em enfermagem, eSF)

O relato de Caio, que é um homem gay, reapresenta um contraponto à padronização dos discursos de grande parcela dos profissionais entrevistados. Traz a antiga discussão sobre a organização dos processos de trabalho nas Unidades de Saúde em função das necessidades dos profissionais e/ou de uma entidade abstrata, o “serviço”, e não em função do cuidado às pessoas. Essa fala introduz inúmeras questões éticas e políticas no que se refere ao reconhecimento do direito do outro à singularidade, à privacidade e à confidencialidade na assistência à saúde, com repercussões importantes para as populações LGBTT. O que acontece quando pessoas LGBTT se deparam com uma “consulta coletiva” ao demandarem cuidados em saúde? Como se sentem nessa situação citada por Caio? Como podem revelar sua orientação sexual e identidade de gênero, falar de suas vidas e experiências em situações como essa? Elas voltam a frequentar esses serviços? A partir do olhar teórico de Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003. já sabemos que as injustiças de reconhecimento trazem injustiças na distribuição dos recursos; no caso aqui estudado, a má organização dos serviços de Atenção Básica tem relação com a falta de reconhecimento desses sujeitos nos territórios. E é nesse campo da organização dos serviços e dos processos de trabalho que alguns aspectos serão aqui abordados.

Para começarmos a entender melhor a categoria acesso e acessibilidade na Atenção Básica, voltemos ao estudo clássico desenvolvido por Starfield1616 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Unesco, Ministério da Saúde; 2002.. A autora fala sobre a diferença entre acesso e acessibilidade e define acesso como a utilização oportuna e adequada de serviços de saúde, com fins de se chegar a melhores resultados na própria saúde, e acessibilidade como o que faz possível o contato do usuário com os serviços de saúde. Então, a acessibilidade é uma possibilidade de contato que se faz efetiva com o acesso, e para as populações LGBTT, muitas vezes, não se realiza pela presença de diversas barreiras, como as organizacionais.

A partir desse paradigma da redistribuição, os relatos mostraram que as populações LGBTT possivelmente tentam esconder ou escamotear sua orientação sexual e identidade de gênero na tentativa de serem mais bem recebidos e atendidos nos serviços de saúde. Esses dados também foram identificados em outros estudos33 Cele NH, Sibiya MN, Sokhela DG. Experiences of homosexual patients’ access to primary health care services in Umlazi, KwaZulu-Natal. Curationis. 2015; 38(2):1522-30. Doi: https://doi.org/10.4102/curationis.v38i2.1522.
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,66 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180279.
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A concepção de passabilidade aplicada ao princípio de justiça redistributiva, dentro da realidade da unidade estudada, pode implicar também em uma performatividade de gênero. Os relatos mostraram que, por meio de um conjunto de atos regulados e repetidos que asseguram uma imagem substancial de gênero, dentro de um registro em uma matriz heterossexual e cisgênera, muitos LGBTT forjam suas identidades a fim de serem assistidos nos serviços de saúde, como trouxe Carina:

[...] muitos deles se arrumam de um jeito que nem dá para perceber.

(Carina, enfermeira, eSF)

As visões dos profissionais de saúde sobre a acessibilidade e o acesso das populações LGBTT à unidade também se apresentaram díspares; aqueles que atuavam no território ampliado – ACS e integrantes da eCR – pareciam identificar os usuários LGBTT e suas condições de acessibilidade com mais facilidade do que médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas da ESF, que, em maioria, trabalham confinados nos consultórios.

Nessa construção, apresentamos os relatos dos profissionais com o olhar mais sensível às populações LGBTT no território:

Aqui perto tem boates, tem prostíbulos, tem a questão que essas pessoas trabalham na noite. Ah! Tem muito aqui, aqui é o centro da cidade, tem muito, muito, muito, muito deles.

(Letícia, ACS)

Patrícia (assistente social, eCR) diz:

Como o Centro dá mais oportunidade, eles acabam se concentrando principalmente nessa região.

(Elda, enfermeira, eCR)

Também coaduna:

Atendo vários casais. Eu não poderia te dar aqui um número, entendeu? Mas na minha mente vêm umas cinco travestis que chegam pra mim que dizem e são caracterizadas.

(Elda, enfermeira, eCR)

As populações LGBTT, segundo os relatos, estão na comunidade em geral, seja na forma de casais, seja trabalhando, seja consumindo os serviços, enfim, são pessoas que estão e sempre estiveram presentes na cidade e que, de alguma forma, foram enxergadas pelos ACS e pelos integrantes da eCR, profissionais que formalmente realizam trabalhos próximos das pessoas em suas realidades cotidianas.

A Política Nacional de Atenção Básica88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2017. atribui ao ACS o “diagnóstico demográfico, social, cultural, ambiental, epidemiológico e sanitário do território em que atuam, contribuindo para o processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe”. Portanto, são profissionais de acesso privilegiado às realidades das famílias, até porque, em sua maioria, também vivem no território onde atuam. A eCR realiza atividades preferencialmente no espaço da rua, ofertando serviços in loco, o que acaba por facilitar o conhecimento sobre o território e a circulação dos usuários.

Por outro lado, os profissionais de saúde que atuam basicamente nos consultórios e residem em outros bairros, com características socioterritoriais diferentes – cirurgiões-dentistas, médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem – identificaram menos as populações LGBTT, não somente a sua circulação no território ampliado dos bairros adscritos, mas também dentro da dinâmica organizacional da própria unidade, conforme as descrições dos relatos:

Eu acho que aqui a gente não tem muito, pelo menos eu não vejo.

(Marta, enfermeira, eSF)

Que tenham falado que era, pra mim? Não! Só se foi no atendimento de um hipertenso, mas ele nunca me disse que era.

(Ana, enfermeira, eSF)

Nunca vi nada para eles aqui no posto, e também não tem ninguém gay aqui na comunidade. Acho que uns puxam os outros, mas aqui não tem.

(Joana, cirurgiã-dentista, eSF)

As falas de Marta, Ana e Joana, cujas atividades se dão quase que exclusivamente dentro da unidade, apresentaram outra interpretação da realidade; em suas versões, as populações LGBTT não acessam (ou quase nunca acessam) a unidade de saúde. Como vimos no tópico anterior, esses sujeitos já não são reconhecidos e, agora, também não acessam? O que esses relatos do “não” querem nos dizer?

A má distribuição dos serviços também se apresentou inscrita dentro na Educação Permanente em Saúde. Nenhum profissional conseguiu elencar cursos de capacitação, treinamento ou formações diversas com enfoque ns saúde das populações LGBTT, como disse Aline:

Aqui só tem cursos de vacinas, tuberculose, medicações novas, mas desses aí nunca teve.

(Aline, ACS)

Tal consideração tem relação direta com o acesso organizacional – forma como as instituições se preparam para as demandas em saúde – das populações LGBTT aos serviços de Atenção Básica.

A não inclusão da orientação sexual e identidade de gênero na dinâmica de trabalho pode fragilizar a relação usuário-profissional11 Ferreira BO, Bonan C. Abrindo os armários do acesso e da qualidade: uma revisão integrativa sobre assistência à saúde das populações LGBTT. Cienc Saude Colet. 2020; 25(5):1765-78. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.34492019.
https://doi.org/10.1590/1413-81232020255...
, dificultar as operacionalidades de algumas ações específicas de cuidado33 Cele NH, Sibiya MN, Sokhela DG. Experiences of homosexual patients’ access to primary health care services in Umlazi, KwaZulu-Natal. Curationis. 2015; 38(2):1522-30. Doi: https://doi.org/10.4102/curationis.v38i2.1522.
https://doi.org/10.4102/curationis.v38i2...
e ter relação ainda com o tipo de abordagem desses conteúdos no ensino de graduação66 Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da estratégia saúde da família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. Doi: https://doi.org/10.1590/interface.180279.
https://doi.org/10.1590/interface.180279...
. Um estudo mostrou que a discussão sobre diversidade sexual e de gênero dentro das instituições de ensino superior, especialmente nos cursos de saúde, é fragmentada e pouco abordada e, com isso, tem gerado profissionais cada vez mais distantes da temática22 Rufino AC, Madeiro A, Trinidad AS, Rodrigues SR, Freitas I. Disclosure of sexual orientation among women who have sex with women during gynecological care: a qualitative study In Brazil. J Sex Med. 2018; 15(7):966-73. Doi: https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2018.04.648.
https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2018.04.6...
. Outro estudo chamou atenção para os discursos religiosos atrelados aos discursos de saber-poder no campo da saúde1515 Guimarães RCP. Estigma e diversidade sexual nos discursos dos (as) profissionais do SUS: desafios para a saúde da população LGBT [tese]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018.. Enfim, os profissionais de saúde divergem quanto à acessibilidade das populações LGBTT nos serviços, e isso tem gerado outros entraves na análise, planejamento e organização das ações dentro da unidade. Se parcela das populações LGBTT não acessa os serviços, iremos descrever na categoria a seguir em que contextos elas aparecem, segundo relatos dos profissionais.

Frágil representação

A simples existência pública de corpos e identidades que desestabilizam o sistema sexo-gênero já é, por si, um (f)ato político e chacoalha aquilo que Butler chama de “políticas de aparecimento”. Butler1717 Butler J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de janeiro: Civilização Brasileira; 2018. dialoga com os conceitos de precariedade e performatividade para compreender as formas de representação das minorias sexuais e de gênero na sociedade, mostrando que, mais do que o direito à participação em espaços já legitimados, por meio do voto, por exemplo, o exercício performativo de gênero está relacionado com o direito de aparecer, de existir, de ter expressão corporal e vocal, isto é, de participar de espaços formais e informais na vida pública e cotidiana.

Desde os primeiros momentos da história do movimento social LGBTT no Brasil, um mosaico de lutas tem sido construído, e suas pautas têm se entrelaçado com diversos fios alinhavados por agentes públicos, sociedade civil, profissionais de áreas disciplinares distintas, pesquisadores e vários outros atores. Por isso, questionamos os profissionais de saúde sobre o que sabiam/conheciam sobre os movimentos sociais LGBTT. André (técnico em enfermagem), um homem heterossexual e cisgênero, foi um dos poucos que trouxe esse entendimento sobre as inter-relações entre a história da construção do direito à saúde, do SUS e das práticas assistenciais contemporâneas e os movimentos sociais:

Se você é profissional aqui e vai atender essa população, acho é preciso se unir com os movimentos sociais, chamar esses grupos.

(André, técnico em enfermagem)

Vale também destacar que é importante reconhecer a orientação sexual e identidade de gênero dos profissionais entrevistados para que não se possa abrir um flanco nessa construção e incorrer em uma extensão de padronização e homogeneização dos sujeitos, e nesse caso, André foi um contraponto em face dos demais profissionais de saúde.

Concordamos com André quando ele destaca a importância da participação dos movimentos sociais LGBTT no processo de construção dos cuidados em saúde no SUS e, em particular, na Atenção Básica, que, por meio da ESF, atua diretamente nos territórios. É essencial lembrar que a participação da comunidade é um dos princípios organizativos do SUS77 Campos GWS. SUS: o que e como fazer? Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1707-14. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05582018.
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.

As respostas dadas às epidemias de Aids no Brasil provocaram redes de solidariedade constituídas, principalmente, pelos movimentos sociais LGBTT. No início da década de 1990, a inexistência de uma política pública de saúde estruturada pelo Estado brasileiro fez com que se multiplicassem as lideranças de grupos LGBTT e, com uma intensa representatividade em espaços de controle social, puderam levar as questões de Aids como prioritárias na agenda das esferas de poder público na saúde1818 Camargos ML. O surgimento das Paradas LGBT no Brasil. In: Green J, Quinalha R, Caetano M, Fernandes M, organizadores. História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda; 2018..

Mas onde estão os movimentos sociais LGBTT do Piauí? No estado e na capital, a história dos movimentos e das lideranças LGBTT é longa e relevante, tendo suas pautas incididas em vários planos e no processo de elaboração de diferentes políticas. O discurso politicamente correto, mas desinformado, de Marta (enfermeira, eSF) – “precisam de mais política” – diz muito sobre a necessidade de efetivação dessas políticas públicas. As conquistas de anos em lutas LGBTT parecem não terem sido incorporadas, de modo suficiente, pelos profissionais em seu trabalho. O que está por trás de mais outro “não”?

Já que os participantes não conhecem e, portanto, não incorporaram as diretrizes das políticas LGBTT, as práticas de assistência em saúde também se tornam imbuídas de dificuldades, impedindo sua efetivação enquanto dispositivo de redistribuição. Além disso, não há reconhecimento das necessidades, especificidades e situacionalidades das populações LGBTT – tratam “tudo igual”, como já vimos em discussões anteriores. Desse modo, pensando com Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003., no interior dos serviços de saúde, os princípios de reconhecimento e redistribuição são fragilizados. Por sua vez, os profissionais identificaram e apontaram nas entrevistas (às vezes, de forma problemática) outros lugares – exteriores aos serviços de saúde – de representação e aparecimento desses sujeitos, a saber: Parada da Diversidade, os LGBTT da novela e os LGBTT na família.

Eu participei das últimas Semanas da Diversidade que teve antes de eu ter neném e amei.

(Cláudia, fisioterapeuta, Nasf-AB)

A Semana da Diversidade, muito conhecida como Parada do Orgulho Gay ou Parada da Diversidade, foi mencionada também por outros profissionais, que reforçaram o evento como um importante lugar de aparecimento em massa das populações LGBTT, talvez, o mais conhecido entre os informantes. Essas participações e comemorações nos mostram como o tecido social ainda necessita mudar seus valores e concepções, trazendo à tona novas possibilidades de interação com o outro e com nós mesmos. Estratégias como essa se arranjam em meio ao velho e ao novo, entre o que morre e o que nasce, entre a evolução e a transformação. Enfim, a f(r)esta da Parada (a festa no sentido comemorativo e a fresta como uma pequena abertura para a diversidade) também pode agir como uma ponte entre o passado histórico e a idealização de um presente com novos projetos de vida vinculados a um formato de aparição e visibilidade corporal e simbólica em massa1919 Grangeiro A, Silva LL, Teixeira PR. Resposta à Aids no Brasil: contribuições dos movimentos sociais e da reforma sanitária. Rev Panam Salud Publica. 2009; 26(1):87-94..

Quando Conceição, médica da eSF, foi questionada sobre as formas de aparecimento das populações LGBTT, disse:

[...] conhecimento, a fundo, de perto assim, não, só do que eu vejo falar.

(Conceição, médica da eSF)

E o que se ouve falar das populações LGBTT? Como a mídia tem veiculado essas questões? Andrea, por exemplo, fala o que pensa sobre o assunto:

Eu acho que às vezes é colocado até de uma forma muito invasiva. Às vezes um pai chega à noite que é o tempo que ele tem de assistir uma televisão com o filho e senta e vê esse tipo de cena. Na última novela teve uma menina que queria virar homem, tinha incentivo para tirar o seio e tomar hormônio, isso incentiva a criança também. Achei tão invasivo, ainda mais para um horário que crianças assistem.

(Andrea, coordenação, eSF)

A mídia tem cada vez mais apostado em personagens LGBTT nas telenovelas. Essa seria uma pauta de representação ou de reprodução de estereótipos? Quantos de fato são atores LGBTT representando suas questões de vida? Quem é LGBTT e está no elenco em geral? A pauta LGBTT e seus flashs parecem não dialogar com os telespectadores ou até mesmo fomentar um diálogo democrático do que se vê. Andrea, por exemplo, acha que essa temática não deve ser vista por crianças. Entre os estereótipos midiáticos e os seus silenciamentos, as populações LGBTT continuam a ser alvos na/da sociedade como um todo. Democratizar não quer dizer abordar múltiplas representações, mas sim fortalecer a construção de um processo de releituras sociais, culturais e, principalmente, familiares, o que ameaça o status quo vigente e se alimenta do machismo, do racismo, do patriarcalismo, do sexismo e da heteronormatividade, como situou Carla (enfermeira, eSF):

A luta dos grupos LGBT tem despertado para que a população possa encarar isso de uma maneira mais natural. Esses temas têm sido mais incluídos, mas tudo ainda envolve relações complexas.

(Carla, enfermeira, eSF)

A complexidade das relações, como se refere Carla, também tem apropriações com o lugar de fala de cada sujeito e de seus grupos. O lugar de fala se trata de um locus individual e/ou coletivo que surgiu como contraponto ao silenciamento da vez e da voz daqueles que historicamente têm sido excluídos pelos seus marcadores de raça/cor, gênero, classe, geração, sexualidade e outros imbuídos de relações de opressão na estrutura da sociedade2020 Ribeiro D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; 2017..

Alguns profissionais conseguiram falar desse lugar com mais demarcação, destacando que alguns eventos de vida se deram com mais veemência em seus processos individuais ou coletivos. Por exemplo:

Eu tenho meu sobrinho que é, ele se veste assim. Eu amo tanto, mas sei que ele sofre muita piadinha.

(Suzana, ACS)

Eu sou gay assim de boa, não tenho problema em dizer, mas acho que as pessoas não vão aceitar nunca.

(Caio, técnico em enfermagem, eSF)

Isso também mostra que a orientação sexual e a identidade de gênero dos profissionais podem interferir na dinâmica de atuação nos serviços, já que o trabalho carrega consigo parte das identidades de cada sujeito. Na pesquisa, os discursos de profissionais LGBTT se mostraram mais sensíveis para o cuidado à diversidade sexual e de gênero.

Os familiares são pessoas que, em seu lugar de fala, também podem militar junto às minorias, articular-se de forma mais sensível pelo coletivo e acionar outras redes nos processos de cuidado diante das violências que presenciam. Manuela (ACS) relatou que defendeu o irmão quando sofria bullying na escola. Em outra situação, Manuela defendeu um usuário gay que era maltratado por uma evangelizadora que distribuía panfletos de sua igreja na unidade. Há uma militância, uma transferência de cuidados, ou, minimamente, um olhar diferenciado para as vulnerabilidades das populações LGBTT nesses casos. Além disso, Caio trouxe um discurso político, crítico e consciente sobre ser gay e sobre os coletivos LGBTT. Seu lugar de fala tem relação com seu ponto de partida, suas responsabilidades sociais e seu compromisso com a justiça.

Ao longo dessa discussão de representação, aparição e participação das populações LGBTT na sociedade, notamos o quanto essa luta ainda está distante dos profissionais de saúde. O movimento social LGBTT, por mais de quarenta anos, passou não apenas a visibilizar as vozes e demandas das populações LGBTT, mas também reconhecer os corpos dissidentes, zelar pela cidadania sexual e de gênero e ofertar acolhimento livre de qualquer discriminação. Isso nos mostra o quanto os serviços de saúde precisam aprender com os movimentos sociais.

Considerações finais

Ao longo do estudo pudemos perceber que os profissionais de saúde, em sua maioria com larga experiência na Atenção Básica, há anos produzem uma assistência “igual” aos usuários do serviço. São profissionais que estão desde a implantação da ESF em Teresina e cujo modus operandi codifica esse tipo de cuidado, especialmente porque é assim que “tem dado certo”. É como se houvesse uma cadeia operacional, mas também subjetiva, que não permitisse incluir as populações LGBTT nas práticas do trabalho em saúde – não como sujeitos LGBTT –, tanto antes quanto depois da implantação da Política Nacional de Saúde LGBT no país. Essa organização em cadeia também envolve outros aparelhos formadores de subjetividades, como a gestão em saúde, os conselhos das categorias profissionais, os equipamentos formativos e tantos outros.

Se de um lado as populações LGBTT não foram reconhecidas como sujeitos dentro dos territórios de saúde, por outro lado, profissionais de saúde que atuam mais diretamente conseguiram identificá-las. Tal fato pode ocasionar um desencontro no planejamento e organização das ações de saúde, já que o trabalho segue em equipes interdisciplinares. Contudo, alguns profissionais identificam esses sujeitos, o que por si pode facilitar o acesso aos serviços.

Ocorre também que as populações dissidentes têm sido patrulhadas em seu próprio direito de existir como tais1717 Butler J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de janeiro: Civilização Brasileira; 2018.; por isso questionamos sobre as suas apresentações e visibilizações na própria vida cotidiana, não necessariamente em espaços já legitimados formalmente. Nos relatos, a representação foi acionada, assim como os movimentos sociais, às paradas da diversidade e ao lugar de fala de familiares e do próprio profissional LGBTT. Alguns conseguiram falar sobre a importância dessa representação, e outros mostraram não se aliançarem a processos emancipatórios em suas práticas de saúde.

Apostamos na escuta como uma das chaves para o respeito à diversidade sexual e de gênero na Atenção Básica. Isto é, os corpos LGBTT precisam ser reconhecidos como usuários de saúde. Quando se tenta homogeneizar ou trivializar os atendimentos, perde-se a própria noção de autonomia dos sujeitos, um direito imprescindível na prestação de cuidados. E quem detém o poder? Certamente os profissionais de saúde, inclusive, decidindo o que é e o que não é vulnerabilidade. Os discursos mostraram claramente como as populações LGBTT são invisibilizadas em suas possibilidades de expressões, aparições e participações, e, já que escapam às normalidades do sexo e do gênero, ficam no lugar do controle, da verificação e do exame de suas abjeções. E já que eles – profissionais de saúde – detêm o suposto saber, em sua maioria, aplicam a partícula negativa – “não” na assistência prestada. Seja como advérbio, interjeição ou substantivo, os “nãos” tinham funções de negar, interditar, justificar ou encerrar o assunto. Foram vários tons de “não”! A palavra ainda apareceu quase três mil vezes nas entrevistas e no grupo focal.

Por fim, como um fluxo contínuo, o não reconhecimento das populações LGBTT enquanto usuários da Atenção Básica gera obstáculos no acesso e na qualidade da assistência prestada, seja por meio das relações (usuário-profissional); seja por meio da organização e da dinâmica dos serviços; seja pelos elementos desse contexto, o que também tem relação com a forma como esses sujeitos são visibilizados nos canais de aparição. Somente a tríade reconhecimento-redistribuição-representação permite a correção das iniquidades e injustiças sociais. Esses três eixos da justiça, sinalizados por Fraser1010 Fraser N, Honneth A. Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. New York: Verso; 2003., permitem-nos perceber que os esforços precisam ser orientados tanto por iniciativas organizacionais (nos próprios serviços, nas instâncias formadoras, etc.) quanto pela cultura (nas mídias, nas ruas, nas igrejas, etc.), que, juntas, fazem aparecer diferentes performatividades de gênero. Quando esses eixos tomam apenas um partido, ou quando se tornam deficitários, toda a tríade é atingida.

  • Ferreira BO, Bonan C. Vários tons de “não”: relatos de profissionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Interface (Botucatu). 2021; 25: e200327 https://doi.org/10.1590/interface.200327
  • Financiamento

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2020
  • Aceito
    23 Nov 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br