Corpo-em-fluxo: conexões entre dança, educação e saúde

Body-in-flow: links between dance, education and health

Cuerpo-en-flujo: conexiones entre danza, educación y salud

Cláudia Regina Garcia Millás Sobre o autor

Resumos

Este artigo trata da relação entre Dança, Educação e Saúde por meio da análise e reflexão de situações que emergiram da atividade docente em um curso de graduação em Dança no âmbito do ensino superior público brasileiro. Faz-se um estudo das experiências obtidas, destacando as concepções e estratégias pedagógicas desenvolvidas nas disciplinas de Dança Acrobática. Constatou-se que as atividades educativas corroboraram para a criação de um espaço de cura enquanto potência de transformação, em que os estudantes puderam se emancipar de uma dada condição e se aproximar de outras perspectivas de vida, sentindo-se em conexão consigo mesmos, com os outros e com o meio. Emprega-se o termo “corpo-em-fluxo” como uma qualidade corporal que o praticante, ao se colocar no momento, íntegro e presente na ação, desfaz-se de uma concepção de si para permitir que outras possam ser criadas.

Palavras-chave
Dança; Corpo; Ensino superior; Saúde


This article addresses the relationship between dance, education and health through the analysis of and reflection upon situations arising from teaching activities on a dance degree course at a public university in Brazil. We study the experiences, highlighting the pedagogical concepts and strategies developed in the Acrobatic Dance modules. The findings show that the educational activities helped create a space of healing as a transformative power, in which students could emancipate themselves from particular conditions and gain access to different perspectives on life, feeling connected to themselves, others and the environment. The term body-in-flow is employed as a bodily state in which the practitioner, by placing him/herself in the moment, whole and present in the action, undoes self-concepts, allowing others to be created.

Keywords
Dance; Body; Higher education; Health


Este artículo trata de la relación entre danza, educación y salud, por medio del análisis y reflexión de situaciones que surgieron de la actividad docente en un curso de graduación en danza en el ámbito de la enseñanza superior pública brasileña. Se hace un estudio de las experiencias obtenidas, destacándose las concepciones y estrategias pedagógicas desarrolladas en las asignaturas de Danza Acrobática. Se constató que las actividades educativas corroboraron para la creación de un espacio de cura como potencia de transformación, en la que los alumnos consiguieron emanciparse de una condición dada y aproximarse de otras perspectivas de vida, sintiéndose en conexión consigo mismos, con los demás y con el medio. Se emplea el término cuerpo-en-flujo como una cualidad corporal que el practicante, al colocarse en el momento, íntegro y presente en la acción, se deshace de una concepción de sí para permitir que otras puedan crearse.

Palabras clave
Danza; Cuerpo; Enseñanza superior; Salud


O corpo em êxtase, o corpo em dança, o corpo em ação restaura a luz. Ele não pensa, pois é pensamento e nesse pensamento age, cria e, portanto, resiste. [...] não possui memória, mas é memória e nessa memória recria, restaura e, portanto, se atualiza.11 Ferracini R, organizador. Corpos em fuga, corpos em arte. São Paulo: Hucitec, Fapesp; 2006.

Na sala de aula, a dança se fazia prática de cuidado e recriação de si

Este artigo busca tratar da relação entre a dança, a educação e a saúde, enquanto uma prática de cuidado corporal e reinvenção de si, por meio da análise e reflexão de situações específicas que emergiram de forma espontânea e contingencial da atividade profissional da autora enquanto docente no âmbito do ensino superior público brasileiro.

Faz-se um estudo das experiências obtidas em duas disciplinas optativas ministradas no curso de graduação em Dança da Universidade Federal de Uberlândia entre os anos de 2017 e 2018. Por serem disciplinas em formato de tópicos especiais, havia abertura para que fossem desenvolvidos aspectos relativos à pesquisa da docente, que poderia delimitar o seu modo de abordagem a partir de estudos sobre o corpo em arte, com objetivo de complementar e enriquecer o trabalho de expressão corporal dos discentes.

Sendo assim, a primeira disciplina – Tópicos Especiais em Técnicas Artísticas – se deu de forma teórico-prática, com enfoque nas experimentações corporais em sala de aula e leituras complementares relacionadas ao tema das técnicas corporais, tendo como base o estudo do treinamento corporal que a autora vinha desenvolvendo a partir da perspectiva ecológica, em consonância com Santos22 Santos BS. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., quando diferentes saberes são acionados, como a relação entre o circo, a dança, a escalada, o teatro e a educação somática, em uma possibilidade do que denominou de “Dança Acrobática”.

Longe de ser um trabalho sobre formas e truques do “corpo-máquina”, fazendo-se alusão a Góis et al.33 Góis EJ, Soares CL, Silva VTD. Corpo-máquina: diálogos entre discursos científicos e a ginástica. Movimento. 2015; 21(4):974-984. – que, pautados em um modelo externo, visam obter, de maneira competitiva, um desempenho virtuoso –, buscava-se perceber no próprio corpo, a partir do trabalho de consciência corporal, quais as forças agenciadas na acrobacia, enquanto possibilidade de lidar com o extremo, quando o praticante é deslocado de seu lugar comum e seguro para poder se reinventar ao longo da ação, vendo a si e ao mundo sob outra perspectiva.

A autora, permeada pelas vivências de dança, circo e escalada em ambiente natural – em que havia experienciado algo semelhante ao que o pesquisador e psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi44 Csikszentmihalyi M. Fluir: a psicologia da experiência optima, medidas para melhorar a qualidade de vida. Lisboa: Relógio D’água Editores; 2002. descreve na Teoria de Fluxo e que o montanhista e filósofo francês Michel Serres55 Serres M. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004. apresenta sobre a potência do corpo –, desenvolveu o termo “corpo-em-fluxo” como uma qualidade corporal que o praticante, ao se colocar no momento, íntegro e presente na ação, desfaz de uma concepção de si para permitir que outras possam ser criadas. Nesse movimento de ampliação e diferenciação, acompanhando as transformações geradas, o praticante pode sentir-se mais conectado em uma tríplice vertente, (consigo, com o outro e com o meio), tornando-se parte do espaço e sendo por ele responsável, conforme aponta Guattari66 Guattari F. As três ecologias. 21a ed. São Paulo: Papirus; 2012..

Utilizaram-se trabalhos de educação somática, focados nos estudos de consciência corporal, por levarem em consideração as diferenças de cada participante e seu percurso singular, que deve ser traçado e criado, a partir de uma auto-observação. Nesse sentido, partiu-se dos saberes desenvolvidos por Klauss e Angel Vianna77 Vianna K. A dança. 3a ed. São Paulo: Summus; 2005.,88 Resende C. O que pode um corpo? O método Angel Vianna de conscientização do movimento como um instrumento terapêutico. Physis. 2008; 18(3):563-574., do método de Cadeias Musculares e Articulares G.D.S.99 Champignion P. Aspectos biomecânicos: cadeias musculares e articulares, método GDS - noções básicas. São Paulo: Summus; 2003.,1010 Godelive DS. Cadeias musculares e articulares: o método GDS. São Paulo: Summus; 1995. e do trabalho sistematizado por Ivaldo Bertazzo1111 Bertazzo I. Corpo vivo: reeducação do movimento. São Paulo: Edições SESC; 2010..

Na segunda disciplina – Tópicos Especiais em Estudos do Corpo –, ministrada no semestre seguinte como continuidade da primeira, a partir da demanda dos próprios estudantes, decidiu-se seguir para além do treinamento que já vinha sendo realizado com a abordagem da Dança Acrobática para um processo de criação cênica que revelasse a busca deste corpo-em-fluxo. Também de caráter teórico-prático, a disciplina partiu de experimentações corporais em sala de aula, recomendações de leitura e discussões relacionadas ao tema “corpo em arte”, buscando aprofundar o treinamento corporal abordado na disciplina anterior para poder desenvolver uma prática de criação cênica, focando o estudo de presença e potencialidades físico-criativas, com exercícios e laboratórios de criação. Realizaram-se dinâmicas ao ar livre, fortalecendo o trabalho coletivo, em relação com o outro e o espaço. O trabalho cênico gerado no fim do semestre letivo a partir desta disciplina foi uma intervenção urbana coreográfica compartilhada com o público em evento artístico-pedagógico do próprio curso.

No fim de cada aula, em ambas as disciplinas, como forma de partilha das experiências vivenciadas, criava-se um espaço de troca para que cada participante pudesse colocar as suas impressões, sensações e reflexões sobre o trabalho experienciado. Como forma de avaliação das disciplinas, foi proposto, ao término de cada semestre, a elaboração de textos em forma de relatos de experiência, em que os estudantes eram instigados a desenvolver algum aspecto das aulas que havia sido significativo para eles e que gostariam de relacionar com a bibliografia indicada, discussões, exercícios e laboratórios criativos vivenciados.

Para análise deste estudo, além desses materiais produzidos pelos estudantes e de seus depoimentos, utilizaram-se os instrumentos de docência, tanto caderno quanto diário de campo, elaborados pela autora ao longo das disciplinas, nos quais são descritos o desenvolvimento das aulas e depoimentos, percepções, observações, questionamentos e proposições dos alunos.

A partir das análises realizadas, foi percebida a relação entre arte e vida, a transformação dos praticantes e a sensação de integração dos estudantes com o grupo e o espaço que habitavam. Assim, a possibilidade de experienciar um corpo-em-fluxo, que se recria ao longo do percurso, saindo de uma determinada condição e podendo habitar outras, passou a ser visto como possibilidade de cura, enquanto potência de transformação, e de emancipação, como forma de sair de uma dada condição.

Define-se este estudo como uma pesquisa social de abordagem qualitativa, com caráter teórico e interpretativo, em que se investiga o fenômeno saúde-doença em práticas artísticas. Percebe-se, como apresenta Minayo1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2007., que a pesquisa, “além de desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos referentes a grupos particulares, propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de conceitos e categorias durante a investigação.” (p. 57). Por este artigo se tratar de um estudo teórico, que busca aprofundar questões provindas de uma prática de ensino sem que essas fossem antes cogitadas, como forma de preservar os sujeitos envolvidos, serão omitidos quaisquer dados que possam revelar suas identidades, como nomes próprios, títulos, locais e datas.

Observa-se ainda que algumas condições foram relevantes para que se conseguisse trabalhar com os participantes aspectos relativos ao corpo-em-fluxo. Primeiro, identifica-se o caráter de ambas as disciplinas serem optativas, tendo como público-alvo os discentes interessados no tema, que vinham para a aula com predisposição ao trabalho, sem preocupação inicial com questões formais como avaliação, nota e presença. Esse fato tornou possível suprimir o momento inicial de “chamada”, pois a turma como um todo esteve presente, com raras ausências, em geral justificadas com antecedência. Nesse sentido, ressalta-se que a iniciativa para oferecimento da segunda disciplina foi dos próprios estudantes, que expuseram o desejo em dar continuidade ao trabalho que estava sendo realizado.

Outra condição foi de ambas as disciplinas terem carga horária total de sessenta horas cada uma, sendo quatro horas/aula consecutivas, permitindo assim que as práticas pudessem ser realizadas de forma intensiva, e com turmas de 10 pessoas, o que corroborava para criação de uma relação mais próxima e atenciosa tanto entre professor-estudante quanto entre os próprios discentes.

Destacam-se a seguir algumas concepções e estratégias pedagógicas adotadas para o ensino de Dança Acrobática. Não se pretende aprofundar em questões conceituais, mas sim revelar as interfaces percebidas entre os campos da dança, educação e saúde, que motivaram a realização do estudo e de sua partilha.

Possibilidades de “outrar-se” – o que vem a ser fluxo, cura e emancipação

Mihaly Csikszentmihalyi44 Csikszentmihalyi M. Fluir: a psicologia da experiência optima, medidas para melhorar a qualidade de vida. Lisboa: Relógio D’água Editores; 2002. define que “fluxo” é uma experiência humana que reflete aspectos positivos da vida como alegria, plenitude e sensação de presença e pertencimento ao meio, quando o praticante encontra-se completamente compenetrado e absorto no que está fazendo, sem outro objetivo, em que nada mais importa para ele, desejando assim permanecer.

A experiência de fluxo cunhada pelo autor supracitado traz consigo a possibilidade de o praticante se desfazer de alguma forma da definição de si mesmo, daquilo que o enrijece e paralisa, para que possa viver uma experiência em que se transforma ao longo do percurso, passível de ser outro, saindo assim de uma determinada condição e criando possibilidades de habitar paisagens e configurações ainda não dadas. Dessa forma, a partir deste tipo de experiência, o praticante se ausenta de uma definição e concepção de si, ou de uma posição enquanto sujeito com seus predicados, como aponta Safatle1313 Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2a ed. São Paulo: Editora Autêntica; 2015., para poder estar presente de outra forma. Não obstante, após esquecer-se de si mesmo, ao ter tamanha concentração na atividade que realiza, o praticante no fim sente-se em comunhão com o ambiente em uma sensação de tríplice conexão: consigo, com o outro e com o meio, conforme incita Guattari66 Guattari F. As três ecologias. 21a ed. São Paulo: Papirus; 2012. a partir das três ecologias.

Para trazer a definição de cura como potência de transformação, parte-se do pensamento elaborado por Safatle1414 Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Sci Stud. 2011; 9(1):11-27. e Neves1515 Neves TI. A cura em psicanálise como potência política de transformação [tese]. Recife (PE): Universidade Católica de Pernambuco; 2018., que revisitam a obra de Canguilhem1616 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. para expor uma crítica à razão “normalizante”. Ao contrário do que é praticado e do que se prega pela Medicina ocidental de maneira geral, os autores propõem que a doença poderia ser vista como uma experiência produtiva de indeterminação, já que teria, potencialmente, a capacidade de introduzir outros arranjos adaptativos de vida. Não significaria ausência de ordem fisiológica, mas outra possibilidade de configuração do sistema, uma nova normatividade vital, como expõe Canguilhem1616 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009..

Sendo assim, a saúde, depois do processo de transformação subsequente ao adoecimento, não seria a mesma de antes. Curar-se não seria retornar ao estágio anterior de normalidade, dito como tal, mas experimentar outras formas inéditas de viver: “curar é criar para si novas formas de vida, às vezes superior à antiga.”1616 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. (p. 92). Curar seria a realização de uma experiência de emancipação da norma imposta como normal, seria a transformação, e não a retificação das normalidades. Questiona-se, portanto, políticas normatizantes que pensam a cura como forma de retorno ao que se considera como normal, aceito e bem visto.

Pensando por uma ótica política, como propõe Safatle1414 Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Sci Stud. 2011; 9(1):11-27., a doença seria ainda o que faz o corpo falar, pois romperia seu silêncio e o transformaria em problema que exige cuidado e intervenção. Nesse ponto, acrescenta-se a visão cunhada por Leonardo Boff1717 Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 4a ed. Petrópolis: Vozes; 1999., que relaciona a cura em psicanálise com a ideia de cuidado já exposta por Heidegger1818 Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 1989..

Leonardo Boff percebe a humanidade empobrecida em sua realização no mundo e apresenta a tese de que seria justamente a falta de cuidado que faria o ser humano perder a conexão com o Todo: “o vazio da consciência que não mais se percebe parte e parcela do universo”1717 Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 4a ed. Petrópolis: Vozes; 1999. (p. 24).

Cuidado também seria uma forma de a pessoa sair de si e ir em direção ao outro, seja ele um objeto, um ser ou uma ação, com desvelo e solicitude. Dessa forma, a relação se daria entre sujeito-sujeito, e não entre sujeito-objeto, pois, pelo cuidado, não se vê a natureza e tudo que nela existe como objetos, mas sente-se parte dela, coexistindo, convivendo, em vez de dominar. Não é intervenção, mas interação e comunhão. Portanto, “Cuidar das coisas implica ter intimidade [...] Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele”1717 Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 4a ed. Petrópolis: Vozes; 1999. (p. 96).

Nesse sentido encontram-se os fundamentos da educação somática, como um conjunto de práticas interdisciplinares com diferentes abordagens para lidar com o soma, que “indica um corpo vivo, senciente e sensível, e não um mero corpo físico que poderia estar desprovido de vida e de sensação”1919 Shusterman R. Consciência corporal. São Paulo: É Realizações; 2012. (p. 26). Leva-se em consideração, portanto, os mais diversos atravessamentos desse corpo em vida, permeados de afetos e sensações, em constante transformação e recriação.

Ademais, para Thomas Hanna2020 Hanna T. What is somatics? J Behav Optom. 1991; 2(2):31-35., considerado como o primeiro a utilizar o termo educação somática, o soma seria o corpo subjetivo, quando percebido de dentro, do ponto de vista da primeira pessoa, pelos próprios sentidos daquele que se percebe, numa auto-observação. Nesta direção, complementa-se o entendimento de José Gil2121 Gil J. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio d’Água; 2001. de que “a consciência de si deve deixar de ver o corpo do exterior, e tornar-se uma consciência do corpo” (p.120). Dessa forma, o desenvolvimento da consciência corporal torna-se fundamental para que o praticante possa se perceber de forma integrada, em uníssono entre corpo-mente-espírito.

Diversos autores consideram os benefícios da aliança entre a dança e a educação somática para além de prevenir lesões e aprimorar técnicas específicas, considerando-a também como uma importante forma de abordagem que amplia o referencial criativo e expressivo dos participantes, justamente por não vê-los somente como bailarinos, mas também como seres humanos em sua integralidade. Utiliza-se de um conjunto de procedimentos que levam em consideração as singularidades dos participantes, percebendo que muitas vezes não há a necessidade de seguir um modelo externo, copiando a forma do movimento executado por outra pessoa; há, na realidade, a possibilidade de perceber em si mesmo o caminho deste movimento, podendo o bailarino trilhar seus próprios percursos, apropriando-se das propostas e ampliando suas possibilidades de atuação. Valoriza-se o processo, o “como fazer”, em vez da forma, do “o que fazer”2222 Fortin S. Educação somática: novo ingrediente da formação prática em dança. In: Cadernos do GIPE-CIT. Salvador: UFBA/PPGAC; 1999. p. 40-55.

23 Gravina HC. Eu tenho um corpo, eu sou um corpo: abordagens somáticas do movimento na graduação em dança. Rev Bras Estud Presença. 2015; 5(1):233-258.

24 Souza ET. Embodiment (corporalização), soma e dança: alguns nexos possíveis. Rev Bras Estud Presença. 2020; 10(4):1-30.
-2525 Domenici E. O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamentos epistemológicos sobre as teorias do corpo. Pro-Posições. 2010; 21(2):69-85..

Laurence Louppe2626 Louppe L. A poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro; 2012. defende que a busca da dança contemporânea é de um corpo em devir, em constante transformação e criação, que se constitui ao longo de seu fazer: “todo o sentido da dança contemporânea consiste [...] na libertação do fantasma de um corpo de origem, entendendo em que medida o trabalho da dança implica uma longa procura de um corpo em devir” (p. 83). Identifica ainda serem justamente as práticas de educação somática – que a autora nomeia de “técnicas de inteligência do movimento”, como Alexander, Feldenkrais e Pilates – possíveis auxiliadoras nessa busca.

Corroboram esse intuito as atividades desenvolvidas por Angel Vianna – criadora da metodologia que leva seu nome, desenvolvida na Faculdade homônima localizada na cidade do Rio de Janeiro –, as quais Hélia Borges2727 Borges H. A poética do corpo: uma leitura do trabalho de Angel Vianna. Performatus. 2013; 2(7):1-16. considera que “trazem à tona um corpo vivo, pulsátil, no qual o aluno passa a permanecer em escuta, em atenção aos movimentos corporais que se desdobram desde osso vivo em movimento, de modo a realizar uma torção necessária no pensamento” (p. 7). Essa autora considera que, a partir dessa metodologia, os alunos dispõem de elementos que propiciam o cuidado de si, como um processo de dar forma a sua existência, aproximando-se do que Foucault2828 Foucault M. Verdade e subjectividade. Rev Comun Linguagem. 1993; 1(19):203-223.,2929 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra; 2014. explicita nas tecnologias do Eu. Segundo este autor, a partir de seu estudo sobre a história da sexualidade em diversas culturas, essas técnicas permitiriam aos indivíduos:

[...] efectuarem um certo número de operações sobre os seus corpos, sobre as suas almas, sobre o seu próprio pensamento, sobre a sua própria conduta, e isso de tal maneira a transformarem-se a eles próprios, a modificarem-se, ou a agirem num certo estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural e assim por diante2828 Foucault M. Verdade e subjectividade. Rev Comun Linguagem. 1993; 1(19):203-223. (p. 208).

Ainda nesse sentido, seria como buscar a transformação de si próprio, ou seja: “como conferir ao seu ser uma qualidade que lhe permitisse viver diversamente, melhor, de maneira mais feliz que outras pessoas”2828 Foucault M. Verdade e subjectividade. Rev Comun Linguagem. 1993; 1(19):203-223. (p. 209). Portanto, metodologias como de Angel Vianna, não tangeriam unicamente o campo da dança e da arte, mas da vida, pois, como percebe Hélia Borges, “as estratégias performáticas viabilizam a transformação dos processos de arte em forma de vida.”2727 Borges H. A poética do corpo: uma leitura do trabalho de Angel Vianna. Performatus. 2013; 2(7):1-16. (p. 2). A dança poderia ser assim percebida como uma manifestação da vida em sua totalidade, como uma forma de afirmação da própria vida, em que se inventariam novas possibilidades de existência. Tratar-se-ia de encontrar uma linguagem para esta vida, uma forma de expressão da própria existência, ou de uma “ecoreografia, posto que ultrapassa a normatividade coreográfica para interagir mais amplamente com o espaço, com o tempo, com os objetos e com o corpo do outro”3030 Andrieu B, Nobrega TP. A emersologia do corpo vivo na dança contemporânea. Holos. 2016; 3:371-384. (p. 381).

Sendo assim, o ensino de Dança Acrobática, a partir de uma abordagem somática, buscou criar um campo de experiência em que cada estudante pudesse perceber em si mesmo as possibilidades acrobáticas, trilhando seu próprio percurso de maneira sensível e consciente. Defendeu-se uma prática que necessitasse de cuidado, da aproximação do praticante consigo mesmo, de forma que pudesse se perceber para assim se relacionar com o outro. Acrobacia foi vista como uma força, uma situação extrema que exige engajamento corporal, concentração e ampliação dos sentidos do acrobata, e não uma forma, enquanto um truque a ser executado.

Constatou-se que, ao experienciarem a acrobacia e se perceberem nessas propostas, os praticantes, enquanto corpos vivos, em constante transformação, ampliaram suas possibilidades de ser e estar. Nesse sentido, utiliza-se o termo “outrar-se”, referido no título deste item, como uma forma de se recriar, de habitar o corpo-em-fluxo, em devir, com potência de transformação, emancipando-se de condições impostas e modelos preestabelecidos; e possibilitando outras formas de vida que, como diz Hélia Borges2727 Borges H. A poética do corpo: uma leitura do trabalho de Angel Vianna. Performatus. 2013; 2(7):1-16., fariam valer a pena a vida.

É nessa interface entre arte e saúde, como o híbrido da arte/clínica que Suely Rolnik3131 Rolnik S. Lygia Clark e o híbrido da arte/clínica. Concinnitas. 2015; 1(26): 104-112. avalia pertencer à última fase do trabalho de Lygia Clark, que se percebe este estudo como um lugar “entre”, que se situa na interface da Arte (no caso, a Dança) entre a Educação e a Saúde.

No entanto, como as buscas mudam ao longo do percurso, este estudo não objetiva tornar-se um método ou receita, mas sim uma possibilidade de pensar práticas de emancipação a partir da perspectiva de cura também como um lugar em devir, como processo de transformação singular que exige cuidado e identifica-se que pertence a um campo vivo, que não pode ser edificado, mas deve ser observado, sentido e criado, caso a caso.

Em consonância com Santos22 Santos BS. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010., a Dança Acrobática pode ser vista como prática ecológica que tem como premissa a emancipação do praticante, libertando-se de uma dada realidade que estabelece padrões, sejam eles de movimento expressivo, saúde, eficiência, normalidade ou beleza. O pensamento/ação ecológico permite outras formas de vida; subjetividades em relação e transformação; e normatividades também singulares que levam em conta as especificidades e necessidades de cada experiência. Com a acrobacia, rompe-se justamente com esse uso regular e dito como normal do corpo, abrindo a possibilidade de o acrobata se reconfigurar, ver o mundo e a si mesmo sob outras perspectivas.

Como criar para si um corpo-em-fluxo: o fazer das disciplinas

A partir de uma abordagem somática com caráter processual, em que o percurso é trilhado ao longo do caminhar, levando em consideração as singularidades daqueles que participam, as disciplinas focaram na criação de um ambiente de trabalho fértil e generoso, para que fossem possíveis as trocas de saberes, no qual os participantes pudessem se sentir pertencentes e atuantes nas atividades.

Na tentativa de aproximar os estudantes da prática, foram usadas diferentes imagens. Falou-se do corpo que busca crescer, não só “ganhar” da gravidade, como argumenta Ivaldo Bertazzo1111 Bertazzo I. Corpo vivo: reeducação do movimento. São Paulo: Edições SESC; 2010., para que possa abrir espaço em si – condição do corpo-em-fluxo, que movimenta e é movimentado ao mesmo tempo, sendo parte do todo, com sensação de pertencimento e conexão (consigo, com o outro e com o meio), em transformação constante; capaz de gerar diferenciação em repetição e desafixar-se, trazendo para si o princípio da vida e gerando, assim, cura.

Foi utilizada também a inversão de pensamento proposto por Klauss Vianna77 Vianna K. A dança. 3a ed. São Paulo: Summus; 2005. que, ao invés de usar a frase clássica que denota uma dicotomia entre corpo-mente ou corpo-espírito, em que o corpo se torna posse do Eu – utilitarista, inclusive, como em “meu pé está doendo” –, passou a utilizar “eu estou doendo no pé”. Isso para dizer que o ser é corpo e que o trabalho sobre si é corporal, por meio desta via física, da matéria viva que se é, como o conceito de soma anteriormente referenciado.

Os primeiros exercícios de despertar o corpo, a partir das qualidades de aquecer, pressionar, moldar e lavar, desenvolveram-se, em sua grande maioria, em duplas, valorizando o contato com o outro a partir do toque, como uma experiência de cuidar e se deixar ser cuidado, criando um espaço de escuta, troca, afeto, cumplicidade e honestidade, que foi prezado nas aulas.

Realizaram-se pausas no fim de cada exercício para auto-observação, para que os estudantes pudessem perceber diferenças e qualidades corporais em si mesmos. No primeiro exercício de despertar, escutou-se com alguma frequência relatos de participantes que referiram sentirem-se “maior”, “com luz”, “brilhante”, “vibrando”, “leve”, “com peso”, “acordado”, “com mais volume”, “quente”, “grande”, “macio” e “vivo”.

Buscou-se também o fortalecimento muscular por expansão e alongamento, evitando fixações, enrijecimentos e posturas cristalizadas, que impedem a passagem de tensão pelo corpo e a transição entre diferentes qualidades corporais.

Na etapa seguinte, trabalhou-se com situações corporais não convencionais, que iam em direção ao extremo, característica do movimento acrobático, exigindo consciência, concentração, persistência e engajamento do praticante para conseguir permanecer na posição e ainda buscar crescer e abrir espaço em si mesmo. Longe de serem confortáveis e agradáveis, como pôde ser visto em parte dos relatos dos estudantes, as posições exigiam trabalho intenso, consonante com a fala de diversos autores, como Herrigel3232 Herrigel E. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Editora Pensamento; 1999., ao afirmar que era necessário o domínio perfeito da arte do arqueiro para poder se libertar, ou de Foucault2929 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra; 2014., ao expor sobre as práticas de si afirmando não se tratarem de sinecuras, mas de atividades povoadas de exercícios, ou ainda de Serres55 Serres M. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004., ao declarar que, para subir as montanhas e vivenciar a plenitude, dever-se-ia praticar o exercício do corpo incansavelmente. Isso quer dizer que, para conquistar para si o corpo-em-fluxo, demandaria trabalho, empenho e dedicação, com práticas diárias que levariam tempo para acontecer, como uma forma de artesania, processual e singular, na qual cada participante criaria o seu percurso.

Foram também utilizados diversos jogos e dinamizações, como o pega-pega, quando o trabalho lúdico era acionado para despertar as cadeias musculares responsáveis pela modulação e gradação de tensão, tornando os praticantes passíveis de transformação e de serem atravessados por outras forças presentes no espaço. Percebia-se a respiração ampliada e a pulsação acelerada, que faz o corpo expandir e vibrar, como se uma pressão interna empurrasse as paredes do corpo (a pele) para fora, fazendo com que expandisse e saísse uma espécie de energia pelos poros, obtendo-se a percepção clara do corpo-filtro, poroso, referenciado por Laurence Louppe2626 Louppe L. A poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro; 2012..

Nessa etapa do trabalho, consegue-se ver com mais clareza o limiar entre o atleta e o artista, pois, nas artes da cena, o movimento do artista não para no próprio movimento, no corpo: ele se lança no espaço se desdobrando em outras formas, sem forma. Ao mesmo tempo em que se faz o movimento, ele também faz algo contigo, faz-te tremer um pouco a carne, vibrá-la, como diria Larrosa3333 Larrosa J. Tremores: escritos sobre experiência. 2a reimp. Belo Horizonte: Autêntica; 2016. sobre o espaço da experiência, e assim ressoar em si e no espaço algo a mais, que já não é o movimento mecânico. Por isso, a metáfora de o ator ser um “atleta do coração”, como defendida por Artaud3434 Artaud A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes; 1993., pode aqui ser utilizada como uma possível imagem para o trabalho, que não pretende a eficiência mecânica do atleta, mas a fisicalidade permeada de afeto, quando é a si mesmo atravessado por seu próprio movimento.

Ressalta-se a importância, após as atividades de despertar e ativar o corpo, de os participantes estarem trabalhando não somente em relação consigo mesmos, em uma escuta sensível, mas em relação com o outro, seja o colega de trabalho, um objeto ou o próprio espaço, ampliando sua consciência e percepção do todo, para que, assim, pudessem se sentir pertencentes ao ambiente. Nesse sentido, realizaram-se também diversas atividades ao ar livre, utilizando o próprio espaço da universidade para desenvolvimento das propostas. Lidava-se com diferentes relevos, superfícies e inclinações do solo, além de interferências sonoras, táteis e visuais. A escuta deveria estar ampliada e a concentração voltada para a atividade, de forma que evitassem acidentes e pudessem criar com o espaço vivo da cidade, em suas mais diversas interações. Nesse ponto, destaca-se a relação com alguns elementos naturais, quando os estudantes eram estimulados a sentir o calor do sol com a palma das mãos, o vento com o corpo, as diferentes texturas do chão com os pés descalços e os sons do ambiente, por exemplo.

Após esse último momento do trabalho, os discentes relatavam sentirem-se acesos, alertas, com energia, concentrados, mais pulsantes, vibrantes e acordados. Via-se que o corpo estava engajado na ação, em comunhão com o grupo e o espaço, pois o ambiente já lhes dizia respeito, eram parte integrante.

O processo criativo desenvolvido na segunda disciplina optativa, que culminou em uma intervenção urbana coreográfica partilhada com o público no fim do semestre letivo, deu-se por meio de laboratórios corporais realizados no horário de aula e ao longo de quatro dias consecutivos, como uma imersão artística. A autora, como diretora e condutora da proposta, atuou por meio de áudios gravados, que serviam como provocações, indicando ações a serem realizadas que os estudantes escutavam individualmente com seus fones de ouvido e simultaneamente com os demais colegas. Esses áudios tinham em torno de 30 a 40 minutos de duração e serviam como práticas de indeterminação, referido por Louppe2626 Louppe L. A poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro; 2012., originando estados inesperados de movimento, por objetivarem tirar os estudantes de uma zona de conforto e controle, para que pudessem experienciar outras possibilidades de movimento, não costumeiras, e fossem ao encontro do movimento acrobático.

A cada semana se criava um áudio diferente que guiava a prática para uma experiência diversa, conduzindo-os a adentrar no campo de imanência da dança, como propõe José Gil2121 Gil J. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio d’Água; 2001.; um plano dançado, em que corpo e pensamento do bailarino se tornam um só, em um ato de fusão, tornando seu movimento infinito e possível de se agenciar com outros corpos. Isso permite ao espectador entrar nesse plano e receber o movimento com seu corpo inteiro sem precisar entendê-lo por um processo racional, mas por uma via sensível e corporal.

Interessava, na busca deste corpo-em-fluxo que adentra no plano dançado, a possibilidade de produzir encantamento e de ser encantado: na ordem do sensível e do sutil, muitas vezes de forma invisível, mas perceptível, gerar gestos e movimentos que fossem para além do corpo, desdobrando-se pelo espaço; e ser tocado e afetado de alguma forma por tudo aquilo que está ao redor e que lhe diz respeito. Seria perceber a arte como uma magia, aquilo que transforma; gera beleza e poesia; e cria novas perspectivas – muito próximo ao que Serres55 Serres M. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004. expõe em relação à escalada, quando, ao tocar a rocha, em um processo de encantamento, sente que ela perde sua dureza e ganha doçura.

Assim, as práticas criativas, realizadas muitas vezes ao ar livre, compondo com o espaço da própria universidade, tendo constantemente transeuntes como testemunhas e público, serviram como espaço de criação e transformação, corroborando para integração do coletivo.

Partilhas sensíveis: reflexões sobre as práticas de ensino analisadas

Tomando-se como base os instrumentos de coleta citados e o desenvolvimento do referencial, puderam ser observadas três questões fundamentais:

  1. Relação arte e vida: constatou-se que as disciplinas não se limitaram ao conteúdo formal em relação à dança, enquanto formação de artistas, mas também abordaram o desenvolvimento do ser humano de maneira geral, na perspectiva do trabalho somático. Os estudantes, apesar de reconhecerem e agradecerem pelos ensinamentos – sejam estes técnicos, teóricos ou práticos –, valorizaram, acima de tudo, o prazer que sentiram novamente em viver. Relataram também que as práticas de treinamento adotadas influenciavam diretamente em seus corpos, em suas danças, mas, sobretudo, em suas vidas.

  2. Potência de transformação: foram percebidas mudanças significativas na forma como os estudantes se viam, tendo sido criadas outras expectativas consigo mesmos. Alguns participantes afirmaram saírem das aulas (apesar de acontecerem no fim de uma semana atribulada) com mais energia, dispostos, vibrando e com vontade de continuar dançando e correndo, corroborando o que apresenta Mihaly Csikszenmihalyi44 Csikszentmihalyi M. Fluir: a psicologia da experiência optima, medidas para melhorar a qualidade de vida. Lisboa: Relógio D’água Editores; 2002. em relação à experiência de fluxo, pois, quando se consegue passar por este estágio que traz a sensação de amplitude e alegria que se busca na vida, não se quer dele sair. As transformações pessoais relatadas foram percebidas em uma tríplice vertente: físico-mental-emocional. Alguns estudantes afirmaram acreditar ainda que certos exercícios foram mágicos, pois transformaram uma sensação de angústia, por exemplo, em uma sensação de plenitude e alegria. Percebiam também a dança como uma magia, que possibilitava a transformação das emoções.

  3. Sensação de integração com o grupo: pode-se inferir que as disciplinas serviram como uma porta de entrada para as transformações individuais, que, ao longo do semestre, acarretaram uma transformação no coletivo, que se via mais íntegro e coeso. Os participantes relataram que obtiveram uma percepção mais clara de si e do mundo e consideraram que, desde então, sentiam-se um pouco mais felizes por terem mais liberdade e menos medo de se relacionar com os outros, aspecto ocasionado pela sensação de pertencimento, como se pudessem estar em conexão com as pessoas ao redor. No fim do semestre, via-se que o grupo encontrava-se em sintonia, com escuta, cumplicidade, parceria, confiança e entrega. As aulas eram vistas como um espaço de troca e generosidade, a partir da construção coletiva, em que cada participante tinha sua contribuição e importância.

Conforme citado anteriormente na descrição das aulas, nos momentos de pausa e escuta de si para auto-observação, os estudantes afirmaram que se sentiam diferentes, com qualidades corporais ainda não vivenciadas, que muitas vezes não conseguiam nem sequer nomear. Percebiam que algo se transformava em seus corpos, em suas mentes e em suas vidas. Gradualmente, com o passar das aulas, experienciando cada atividade proposta, podiam se ver com outros contornos, volumes, tamanhos e cores; e com outros desejos, motivações, impulsos e sensações. Muitas vezes não se reconheciam nesta nova imagem. Era como se fossem outros. Isso trazia estranheza a eles, mas abria portas para outras formas e arranjos de vida. Permitiam-se então serem outros e se transformarem, habitando o corpo-em-fluxo e ampliando seus campos de atuação.

Os apontamentos mencionados não querem dizer que os discentes tenham avaliado as disciplinas como simplistas e com atividades fáceis de serem realizadas, mas que, com um trabalho árduo e rigoroso, agregaram aprendizados que uniram a arte e a vida, abrindo portas e revelando possibilidades, em um campo de transformação e bem-estar. Nesse sentido, o trabalho em direção a uma Dança Acrobática que não fosse meramente formal e reprodutora de padrões, mas que impulsionasse a criação, como gatilho para a transformação pessoal, foi efetivado. A partir de habitar o corpo-em-fluxo, foi possível que os participantes, cada qual a sua maneira e respeitando suas subjetividades, pudessem se transformar, emancipar-se e, assim, curar-se.

A busca por viver vidas melhores: breves considerações

Muitos artistas descreveram percursos profissionais que integravam seus trabalhos a suas vidas, de forma a se aproximarem da parte mais humana da arte, com ocupações, muitas vezes, terapêuticas, de uma pulsão de vida, distanciando-se e até mesmo recusando possibilidades representativas e exibicionistas que estivessem vinculadas a alguma questão material ou que desconsiderassem o artista enquanto ser humano. É o caso de Rudolf Von Laban, que estendeu o estudo do movimento para as formas de atuação do homem na sociedade; de Lígia Clark, com seus objetos relacionais, que propunha a estruturação do self de seus pacientes em sessões terapêuticas; e de Jerzy Grotowski, na última fase de seu trabalho, em que não produzia mais espetáculos, mas encontros e acontecimentos entre os presentes.

De fato, parece que a busca está nesta “arte de viver vidas melhores”, como proclama Shusterman1414 Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Sci Stud. 2011; 9(1):11-27. ao falar do conhecimento do próprio corpo para este propósito. A busca por algum tipo de emancipação, ou de felicidade, seria o ponto de encontro com o que se nomeia neste artigo de cura dentro do trabalho das artes corporais. Cura como uma maneira de potencializar a vida e de gerar vitalidade, possibilitando outros arranjos e novas formas de sensibilidade. Não se fala da clínica ou da cura de uma patologia, mas da percepção de que o fazer do artista e do educador envolve uma dimensão curativa, por lidarem com corpos em vida, com seres humanos permeados de afetos e atravessamentos, em transformação, e que trabalhar com dança é trabalhar com a Medicina (de si mesmo).

No entanto, esta busca por viver vidas melhores ou por algum tipo de emancipação é individual e bastante variável. Longe de querer servir como um método ou receita para a felicidade, este trabalho tem como objetivo partilhar, a partir do estudo de um caso específico, reflexões e considerações sobre práticas pedagógicas artísticas, que revelaram uma conexão entre dança, educação e saúde.

Conclui-se que as propostas de Dança Acrobática empreendidas nas duas disciplinas analisadas foram possíveis e geraram “resultados” sensíveis, na ordem da cura como potência de transformação, em que os estudantes envolvidos puderam se emancipar de uma condição e chegaram a outras perspectivas de vida. Percebeu-se que, mesmo de forma momentânea, desidentificaram-se de padrões, conseguiram se perceber de outras maneiras e criaram para si mesmos outros contornos e paragens.

Constatou-se ainda que os participantes puderam melhorar suas vidas quando afirmaram sentirem-se mais felizes por terem expandido suas mentes; feito o corpo fluir e circular; e vivido o presente, conectando-se com o outro, com o meio e com si mesmos. Além disso, sentiram-se pertencentes ao espaço que habitavam, tornando-se parte do mundo e sendo responsáveis por ele, de forma que suas ações (e pensamentos) se tornassem ecológicos.

Agradecimentos

À Maria Alice Amorim Garcia pelo apoio, leitura atenta e revisão do texto.

Referências

  • 1
    Ferracini R, organizador. Corpos em fuga, corpos em arte. São Paulo: Hucitec, Fapesp; 2006.
  • 2
    Santos BS. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. 3a ed. São Paulo: Cortez; 2010.
  • 3
    Góis EJ, Soares CL, Silva VTD. Corpo-máquina: diálogos entre discursos científicos e a ginástica. Movimento. 2015; 21(4):974-984.
  • 4
    Csikszentmihalyi M. Fluir: a psicologia da experiência optima, medidas para melhorar a qualidade de vida. Lisboa: Relógio D’água Editores; 2002.
  • 5
    Serres M. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2004.
  • 6
    Guattari F. As três ecologias. 21a ed. São Paulo: Papirus; 2012.
  • 7
    Vianna K. A dança. 3a ed. São Paulo: Summus; 2005.
  • 8
    Resende C. O que pode um corpo? O método Angel Vianna de conscientização do movimento como um instrumento terapêutico. Physis. 2008; 18(3):563-574.
  • 9
    Champignion P. Aspectos biomecânicos: cadeias musculares e articulares, método GDS - noções básicas. São Paulo: Summus; 2003.
  • 10
    Godelive DS. Cadeias musculares e articulares: o método GDS. São Paulo: Summus; 1995.
  • 11
    Bertazzo I. Corpo vivo: reeducação do movimento. São Paulo: Edições SESC; 2010.
  • 12
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2007.
  • 13
    Safatle V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2a ed. São Paulo: Editora Autêntica; 2015.
  • 14
    Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Sci Stud. 2011; 9(1):11-27.
  • 15
    Neves TI. A cura em psicanálise como potência política de transformação [tese]. Recife (PE): Universidade Católica de Pernambuco; 2018.
  • 16
    Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009.
  • 17
    Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 4a ed. Petrópolis: Vozes; 1999.
  • 18
    Heidegger M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; 1989.
  • 19
    Shusterman R. Consciência corporal. São Paulo: É Realizações; 2012.
  • 20
    Hanna T. What is somatics? J Behav Optom. 1991; 2(2):31-35.
  • 21
    Gil J. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio d’Água; 2001.
  • 22
    Fortin S. Educação somática: novo ingrediente da formação prática em dança. In: Cadernos do GIPE-CIT. Salvador: UFBA/PPGAC; 1999. p. 40-55.
  • 23
    Gravina HC. Eu tenho um corpo, eu sou um corpo: abordagens somáticas do movimento na graduação em dança. Rev Bras Estud Presença. 2015; 5(1):233-258.
  • 24
    Souza ET. Embodiment (corporalização), soma e dança: alguns nexos possíveis. Rev Bras Estud Presença. 2020; 10(4):1-30.
  • 25
    Domenici E. O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamentos epistemológicos sobre as teorias do corpo. Pro-Posições. 2010; 21(2):69-85.
  • 26
    Louppe L. A poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro; 2012.
  • 27
    Borges H. A poética do corpo: uma leitura do trabalho de Angel Vianna. Performatus. 2013; 2(7):1-16.
  • 28
    Foucault M. Verdade e subjectividade. Rev Comun Linguagem. 1993; 1(19):203-223.
  • 29
    Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra; 2014.
  • 30
    Andrieu B, Nobrega TP. A emersologia do corpo vivo na dança contemporânea. Holos. 2016; 3:371-384.
  • 31
    Rolnik S. Lygia Clark e o híbrido da arte/clínica. Concinnitas. 2015; 1(26): 104-112.
  • 32
    Herrigel E. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Editora Pensamento; 1999.
  • 33
    Larrosa J. Tremores: escritos sobre experiência. 2a reimp. Belo Horizonte: Autêntica; 2016.
  • 34
    Artaud A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes; 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2020
  • Aceito
    13 Dez 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br