O Teatro como estratégia de engajamento de jovens no enfrentamento da Aids

El teatro como estrategia de compromiso de jóvenes en el enfrentamiento del Sida

Carla Almeida Luiz Bento Gabriela Jardim Marina Ramalho Luís Amorim Carolina Habergric Folino Sobre os autores

Resumos

Apesar dos avanços no enfrentamento à Aids, registra-se, na última década, o aumento de infecções por HIV entre jovens. Isso motivou o Museu da Vida a produzir uma peça sobre HIV/Aids voltada a esse público. Neste artigo, apresentamos resultados de estudo conduzido com o público do espetáculo, com idades de 11 a 19 anos, baseado na observação de nove apresentações, cinco debates pós-peça e 220 questionários. Além de recepção positiva e forte adesão dos espectadores, verificamos que a peça foi capaz de engajá-los no debate sobre HIV/Aids. Contudo, observamos que faltam espaços de diálogo sobre o assunto, o que pode estar associado à manutenção de estigma e discriminação. Concluímos que a estratégia de unir Saúde e Teatro em uma atividade de divulgação científica foi bem-sucedida, mas ainda há muitos desafios relacionados ao enfrentamento do HIV/Aids, sobretudo entre os jovens.

Palavras-chave
Divulgação científica; Ciência e arte; Saúde e teatro; HIV/Aids


A pesar de los avances en el enfrentamiento del Sida, en la última década se registra un aumento de infecciones por VIH entre los jóvenes. Esto motivó al Museo de la Vida a producir una obra de teatro sobre VIH/Sida dirigida a ese público. En este artículo presentamos resultados del estudio realizado con el público de 11 a 19 años del espectáculo, basado en la observación de nueve presentaciones, cinco debates posfunción y 220 cuestionarios. Además de la recepción positiva y de la fuerte adhesión de los espectadores, verificamos que la obra teatral fue capaz de hacerlos participar en el debate sobre VIH/Sida. No obstante, observamos que faltan espacios de diálogo sobre la cuestión, lo que puede estar asociado al mantenimiento del estigma y de la discriminación. Concluimos que la estrategia de unir salud y teatro en una actividad de divulgación científica fue exitosa, pero que hay todavía muchos desafíos relacionados al enfrentamiento de VIH/Sida entre los jóvenes.

Palabras clave: Salud Mental. Covid-19. Brasil.

Palabras clave
Divulgación científica; Ciencia y arte; Salud y teatro; VIH/Sida


Introdução

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), pegou o mundo de surpresa na década de 1980, tornando-se rapidamente uma emergência de saúde global devido à sua acelerada disseminação e ao seu alto índice de letalidade. Na época, as autoridades sanitárias previram que os cientistas desenvolveriam uma cura para a doença em poucos anos, o que não ocorreu. Estima-se que 32 milhões de pessoas tenham morrido por complicações relacionadas à Aids11 UNAIDS Brasil. Relatório informativo - Atualização Global da Aids [Internet]. Brasília: UNAIDS; 2019 [citado 2 Set 2019]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2019/07/2019_UNAIDS_GR2019_FactSheet_pt_final.pdf
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Apesar disso, o desenvolvimento de terapias antirretrovirais, as campanhas de informação e prevenção e as ações articuladas dos movimentos sociais foram capazes de garantir melhores condições para as pessoas com HIV e diminuir o número global de novas infecções e mortes relacionadas à Aids. Tais avanços levaram as autoridades sanitárias a vislumbrar o fim da epidemia. Em 2016, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas firmaram a meta de acabar com ela até 2030, assumindo compromissos de “zero nova infecção por HIV”, “zero morte relacionada à Aids” e “zero discriminação”22 UNAIDS. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Política sobre HIV e AIDS: acelerar a resposta para lutar contra o HIV e acabar com a epidemia de AIDS até 2030 [Internet]. Nova York: Unaids; 2016 [citado 7 Fev 2019]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2016/11/2016_Declaracao_Politica_HIVAIDS.pdf
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(p. 5).

A despeito das conquistas e do otimismo, o HIV e a Aids continuam sendo um grande desafio, global e nacional. O Brasil tem registrado uma média de 40 mil novos casos nos últimos cinco anos33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2018 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [citado 2 Fev 2019]; 49(53). Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2018/boletim-epidemiologico-hivaids-2018
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. Se, por um lado, a taxa geral de detecção do vírus vem caindo gradativamente no país, seguindo tendência mundial, os índices de novos casos aumentam em alguns segmentos da população. Entre 2006 e 2015, observou-se um crescimento da taxa de detecção entre homens, principalmente adolescentes e jovens de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anos; quase triplicando no primeiro grupo e mais que duplicando no segundo44 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016 [citado 7 Fev 2019]; 5(1). Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016
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Cabe ressaltar, porém, que o vírus não afeta as pessoas da mesma forma. Por trás desses números se escondem situações diversas de desigualdade. No mundo, e particularmente no Brasil, as populações empobrecidas e marginalizadas estão mais suscetíveis à infecção por HIV55 Monteiro S. Que prevenção? Aids, sexualidade e gênero em uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002.. Além disso, a epidemia de Aids é também uma epidemia de significados, construídos por meio das respostas sociais, culturais e políticas a ela. Essa face da epidemia é marcada por estigma e discriminação, que não são solucionados no mesmo ritmo dos avanços biomédicos66 Daniel H, Parker R. AIDS: a terceira epidemia. São Paulo: Iglu Editoria; 1991..

Como parte dos esforços da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) direcionados ao enfrentamento da epidemia de Aids(g(g)Mais sobre os esforços da Fiocruz no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids em: https://agencia.fiocruz.br/hiv-aids.) e em face do aumento do número de casos entre jovens, o Museu da Vida, espaço de divulgação científica da Fiocruz, em parceria com o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas – também vinculado à fundação –, produziu um espetáculo teatral sobre Aids voltado ao público jovem. Inspirada na história “O rapaz da rabeca e a moça da camisinha”, do cordelista cearense José Mapurunga, e dirigida por Leticia Guimarães(h(h)Ficha técnica completa disponível em: http://www.museudavida.fiocruz.br/index.php/noticias/518-ultima-semana-da-peca-o-rapaz-da-rabeca-e-a-moca-rebeca.), a peça “O rapaz da rabeca e a moça Rebeca” parte de um romance proibido para sensibilizar espectadores em relação à prevenção do HIV e ao combate ao estigma. Neste artigo, apresentamos resultados de estudo conduzido com o público do espetáculo. Com base neles, buscamos compreender o potencial da peça para engajar jovens no debate sobre HIV/Aids e a relação desses jovens com o tema, visando contribuir para o esforço empreendido pela Fiocruz e pelo país na tentativa de controlar a epidemia.

O Teatro no enfrentamento da Aids

Campanhas de informação e prevenção à Aids do Ministério da Saúde (MS) estão entre as principais estratégias de comunicação sobre a doença do governo brasileiro. Instituídas na década de 1980, baseiam-se na produção científica e nos dados epidemiológicos sobre HIV/Aids no Brasil. Apesar da relevância de tais campanhas, há críticas sobre o discurso a elas associado, focado no uso do preservativo, em informação técnica pouco contextualizada e na responsabilização do indivíduo55 Monteiro S. Que prevenção? Aids, sexualidade e gênero em uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002.. O tom alarmista das primeiras campanhas e o teor moralista das propagandas atuais também são alvo de questionamentos77 Wolfgang SM, Portinari DB, Ferreira PC. Campanhas educacionais de prevenção ao HIV no Brasil de 1987 a 2002. Rev Carioca Cienc Tecnol Educ. 2017; 2(1):1-11.,88 Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. Governo usa medo como mote de campanha contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST); especialistas criticam [Internet]. Rio de Janeiro: AABIA; 2019 [citado 1 Jun 2020]. Disponível em: http://abiaids.org.br/governo-usa-medo-como-mote-de-campanha-contra-infeccoes-sexualmente-transmissiveis-ist-especialistas-criticam/33643
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Uma estratégia menos tradicional de comunicação sobre HIV/Aids é o uso do Teatro. Por meio de sua linguagem e estética, as artes cênicas têm sido capazes de aproximar, sensibilizar e provocar, estimulando o olhar crítico do público sobre esse e outros temas de Saúde e Ciência. Nesse contexto, uma série de dramaturgias tem sido produzida para divulgar informações sobre essa temática, conscientizar sobre a importância da prevenção e do tratamento e desconstruir o estigma a ela associado99 Brasil. Ministério da Saúde. Teatro de rua contra a Aids: seis textos para serem encenados. Fortaleza: Instituto de Saúde e Desenvolvimento Social; 2001.,1010 Souza D, Porto M. Aids e teatro: 15 dramaturgias de prevenção. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio; 2004. (Coleção Valores e Atitudes).. O uso dessa estratégia torna a comunicação com o público mais direta e dialógica, além de agregar a ela criatividade e sensibilidade1010 Souza D, Porto M. Aids e teatro: 15 dramaturgias de prevenção. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio; 2004. (Coleção Valores e Atitudes).. O teatro sobre a Aids tem conseguido ainda extrapolar o discurso informativo e preventivista, abordando temas como sexualidade, amor, responsabilidade, respeito, solidariedade e diversidade1111 Pennafort R. Em crescimento assustador entre os jovens, HIV é retratado em três peças no Rio. O Globo [Internet]. 2019 [citado 10 Out 2019]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/em-crescimento-assustador-entre-os-jovens-hiv-retratado-em-tres-pecas-no-rio-23574628
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O Museu da Vida, situado no campus da Fiocruz em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, tem investido sistematicamente em iniciativas integradoras de Ciência, Saúde e Teatro desde sua inauguração em 1999. Por meio do Ciência em Cena, o museu oferece, em sua programação permanente, produções teatrais com motes científicos. O projeto conta com uma equipe multidisciplinar, que inclui profissionais das artes cênicas e das ciências, e com dois espaços físicos, a Tenda da Ciência Virgínia Schall e o Epidauro.

O espetáculo “O rapaz da rabeca e a moça Rebeca” foi encenado na Tenda da Ciência Virgínia Schall entre 2015 e 2017, sendo visto por 3.712 visitantes. A peça é encenada em formato de arena, com diferentes elementos que remetem ao universo do cordel e do Nordeste, como figurino colorido, texto rimado e música típica cantada e tocada ao vivo. Quatro atores interpretam os quatro personagens da peça: o narrador, João Tapeba, Rebeca Wanderlei e seu pai, Visconde. Na história, que se passa na cidade fictícia de Cantinguba-dos-Aflitos, os Tapebas, pobres, não podem se casar com os Wanderleis, ricos. No entanto, João e Rebeca se apaixonam e vivem um amor proibido, contra a vontade do Visconde. No primeiro encontro do casal, Rebeca, que sempre carrega consigo um preservativo, saca da roupa uma camisinha e entrega a João. Ao flagrar os dois, Visconde expulsa João da cidade. Antes de partir, ele promete voltar e casar-se com sua amada. Rebeca decide, fielmente, esperar por ele. Tocando sua rabeca pelo mundo, João torna-se um músico famoso. Nesse período, ele tem relações sexuais sem preservativo, é infectado pelo HIV e acaba desenvolvendo a Aids. Quando retorna a Cantinguba-dos-Aflitos, sua doença torna ainda mais difícil a aprovação do relacionamento pelo Visconde. Contudo, a aparição de um ser divino, o Pavão Misterioso, leva a todos a mensagem de que a Aids não é maldição, tampouco sentença de morte ou castigo, e que não se deve ter preconceito em relação à doença. A fala do pavão transforma Visconde, fazendo-o compreender que sua filha poderá se casar com João e não se infectar, contanto que o casal se previna. Visconde, por fim, cede, dá um pacote de camisinhas para a filha e abençoa o casamento.

A apresentação da peça durava quarenta minutos e era seguida, durante os dias úteis, de um debate entre os atores e o público, com duração média de vinte minutos. A proposta do debate, como em outras produções do Ciência em Cena, é abrir um espaço de troca com os espectadores, em que eles são estimulados a fazer comentários e perguntas relacionados ao espetáculo. No caso específico de “O rapaz da rabeca...”, os atores aproveitavam esse momento para falar sobre o conceito de prevenção combinada(i(i)“A Prevenção Combinada é uma estratégia que faz uso simultâneo de diferentes abordagens de prevenção (biomédica, comportamental e estrutural) aplicadas em múltiplos níveis (individual, nas parcerias/relacionamentos, comunitário, social) para responder a necessidades específicas de determinados segmentos populacionais e de determinadas formas de transmissão do HIV.” Fonte: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/prevencao-combinada/o-que-e-prevencao-combinada.), indo além do uso da camisinha, explorado no espetáculo, e abordando outros métodos preventivos, como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), e para discutir mais profundamente a questão do estigma e da discriminação. Cabe mencionar que os atores passaram por um processo de formação para abordar esses temas no debate.

Figura 1
Os quatro personagens da peça. Em pé, da esquerda para a direita, o narrador (Pablo Aguilar), João Tapeba (Roberto Rodrigues) e Rebeca Wanderlei (Leticia Guimarães). Sentado, o Visconde (Luiz Paulo Barreto).
Figura 2
Música cantada e tocada ao vivo pelos atores da peça. Da esquerda para a direita: João (Yves Baeta), Rebeca (Leticia Guimarães) e o narrador (Pablo Aguilar).
Figura 3
Primeira relação sexual de João (Yves Baeta) e Rebeca (Leticia Guimarães), representada por uma dança com a camisinha.
Figura 4
Rebeca (Leticia Guimarães) espera João Tapeba voltar para com ela se casar.
Figura 5
O Pavão Misterioso (Roberto Rodrigues).

Marcos teóricos e procedimentos metodológicos

Este trabalho se desenvolve na área da divulgação científica, entendida aqui como campo prático e teórico que busca tanto compreender quanto fortalecer e enriquecer as conexões entre Ciência e Sociedade. Ele é parte de um esforço mais amplo de pesquisa que se propõe a investigar as múltiplas facetas da interface Ciência e Teatro como estratégia de divulgação científica1212 Almeida C, Lopes T. Ciência em cena: teatro no Museu da Vida. Rio de Janeiro: Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz; 2019..

Há diversas formas de conceber as conexões entre Ciência e Sociedade. Utilizamos como norte o movimento de engajamento público na Ciência, que começou a se delinear na Europa e nos Estados Unidos nos anos 1990 e ganhou força nas últimas décadas em diversos países1313 Gregory J, Miller S. Science in public: communication, culture and credibility. Nova York: Plenum Trade; 1998.,1414 Miller S. Public understanding of science at the crossroads. Public Understanding Sci. 2001; 10(1):115-20.. Tal movimento tem como bandeira a construção de espaços de diálogo marcados menos pela transmissão de conhecimento científico dos especialistas para o público e mais pela apropriação por parte do público da ciência que lhe convém1515 Brossard D, Lewenstein BV. A critical appraisal of models of public understanding of science. Using practice to inform theory. In: Kahlor L, Stout PA, organizadores. Communicating science. New agendas in communication. New York: Routledge; 2010. p. 11-39.. Do ponto de vista teórico, ele politiza a divulgação científica, enfatizando a importância da participação cidadã na produção do conhecimento e na definição dos rumos da Ciência e a necessidade dessa participação para o bom funcionamento da democracia. Assim, o conceito de engajamento usado neste artigo está associado à comunicação dialógica entre especialistas e não especialistas e à participação ativa dos cidadãos na governança da Ciência e da Saúde. Recorremos a ele particularmente para entender se e como o espetáculo em questão é capaz de envolver emocionalmente e cognitivamente os espectadores de modo que se apropriem dos conhecimentos em jogo e participem ativamente do debate sobre HIV/Aids.

Ainda em termos teórico-metodológicos, partimos do pressuposto de que os espectadores do teatro, ao mobilizar seus sentidos e experiências, dialogam com peças teatrais de forma única. Para De Marinis1616 De Marinis M. En busca del actor y del espectador: comprender el teatro II. Buenos Aires: Galerna; 2005., a interação entre espetáculo e espectador é marcada pela produção conjunta de valores cognitivos e afetivos, sem imposições de um polo a outro. Na visão de Desgranges1717 Desgranges F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec; 2015. (p. 31), a participação ativa do espectador na obra teatral se efetiva “na cumplicidade que ele estabelece com o palco, na vontade de compactuar com o evento, na atenção às proposições cênicas, na atitude desperta, olhar aceso”. Assim como na divulgação científica, no Teatro, investe-se cada vez mais no engajamento do público e, por meio dele, na formação de cidadãos críticos, prontos para questionar a realidade e dispostos a transformá-la1717 Desgranges F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec; 2015..

Reunindo, portanto, conceitos do engajamento público na Ciência e colocando o foco na figura do espectador do Teatro, analisamos a recepção da peça “O rapaz da rabeca e a moça Rebeca” pelo público do Museu da Vida. Utilizamos instrumentos metodológicos quantitativos e qualitativos, abrangendo as diversas etapas de criação do espetáculo. Neste trabalho, apoiamo-nos em dados obtidos por meio de fichas de observação, debates pós-peça e questionários. Enfocamos, porém, a análise nesse último instrumento, visto que os dados obtidos por ele servem mais diretamente aos propósitos deste artigo.

O trabalho de campo foi realizado em duas etapas, primeiramente com público escolar (PEsc), em junho de 2016, depois com público espontâneo (PEsp), em um fim de semana de novembro e outro de dezembro do mesmo ano. Em ambos os casos, a pesquisa era apresentada aos visitantes do Museu da Vida anteriormente à atividade e o caráter voluntário da participação era ressaltado, seguindo-se os preceitos da Resolução n. 510, de 2016, do MS1818 Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 510, de 7 de Abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União. 24 Maio 2016.. A análise baseou-se em um total de nove apresentações – sete em dias úteis e duas em fins de semana –, das quais resultaram nove fichas de observação e 346 questionários preenchidos (274 de PEsc e 72 de PEsp), além da gravação de cinco debates. Porém, para a análise realizada neste artigo, focada no público adolescente e jovem, consideramos apenas os 220 questionários respondidos por espectadores entre 11 e 19 anos (175 de PEsc e 45 de PEsp).

Por meio de fichas de observação, preenchidas durante o espetáculo por pelo menos dois pesquisadores – posicionados estrategicamente em meio à plateia –, foram registradas reações imediatas dos espectadores. A ficha foi dividida por cenas da peça e, em cada uma, avaliou-se o nível de atenção/dispersão dos espectadores, de interação – entre si, com os atores e o espetáculo – e de engajamento com a música e as cenas de humor. Foram registrados também sinais de encantamento e cansaço e comentários feitos pelo público ao longo e no fim da peça. Já os debates tiveram seus áudios gravados, que foram transcritos para análise. Nessa etapa, buscou-se examinar os tópicos mais discutidos e as impressões sobre a peça. Também foi verificado se os jovens pareciam confortáveis para debater o tema e se houve sinais de constrangimento. Os questionários, por fim, eram compostos por perguntas abertas e fechadas sobre a peça, sobre gostos e hábitos culturais e sobre informações pessoais. Todos os 220 questionários foram tabulados e analisados. Para análise dos dados quantitativos, usamos o programa Microsoft Excel. Para análise qualitativa, recorremos a procedimentos indutivos de análise, buscando identificar padrões de respostas e formular explicações para eles.

Resultados e discussão

Perfil dos espectadores consultados

Com base nos dados dos questionários, pudemos constatar que, em nosso corpus, havia diferenças sutis entre o perfil do público escolar e o do público espontâneo. Assim, apresentamos cada um deles separadamente. Entre o público escolar, os espectadores consultados eram majoritariamente mulheres (112), tinham entre 12 e 19 anos e estavam distribuídos entre os 8º e 9º anos do ensino fundamental (86) e todas as séries do ensino médio (83). Quase um terço morava na zona oeste do Rio de Janeiro (55). Os demais moravam na zona norte (43), Baixada Fluminense (38) e no interior do estado (24). A zona sul e outras cidades do Grande Rio foram representadas por apenas um espectador em cada uma. Quanto ao público espontâneo, as mulheres também eram maioria (27) entre os entrevistados, que tinham de 11 a 18 anos, cursavam sobretudo o ensino fundamental (27) e se dividiam igualmente entre moradores da zona oeste do Rio de Janeiro e de outras cidades do Grande Rio (19 cada uma). Zona norte e zona sul foram representadas por apenas dois espectadores cada uma, sendo apenas um do centro da cidade(j(j)Para a categorização dos locais de moradia dos participantes da pesquisa, utilizamos a divisão em zonas e regiões usada nos Cadernos Museu da Vida. Ver, por exemplo: http://www.museudavida.fiocruz.br/images/Publicacoes_Educacao/PDFs/Cadernos ).

Verificamos que grande parte do público espontâneo (20) estava assistindo a uma peça de teatro pela primeira vez. Entre os que haviam ido ao teatro nos 12 meses que precederam a pesquisa (19), a maioria (10) havia visto entre uma e três peças no período. Entre o público escolar, dos que foram ao teatro no ano anterior à pesquisa (79), a maior parte (55) também havia visto entre uma e três peças no período. Independentemente do contato com as artes cênicas, a maioria do público consultado disse gostar ou gostar muito de teatro (78% entre o público escolar e 97% entre o público espontâneo). Apenas uma parcela minoritária, e somente entre o público escolar, afirmou não gostar ou detestar esse tipo de arte (14).

O perfil do público consultado neste estudo coincide em diversos aspectos com o perfil do visitante do Museu da Vida, composto majoritariamente por estudantes de regiões periféricas da cidade e do estado do Rio de Janeiro e provenientes de famílias historicamente excluídas da fruição de atividades culturais, como a ida a museus e teatros1919 Guimarães V. O público em números. In: Almeida C, Lopes T, organizadoras. Ciência em cena: teatro no Museu da Vida. Rio de Janeiro: Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz; 2019. p. 138-49.. Por outro lado, contrasta fortemente com o perfil dos usuais frequentadores do teatro no Rio de Janeiro: homens e mulheres brancos, com ensino superior, pertencentes às classes A e B e moradores da zona sul da cidade2020 Jleiva Cultura & Esporte. Seminário Perfil Cultural dos Cariocas [Internet]. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura; 2016 [citado 5 Abr 2019]. Disponível em: http://www.culturanorio.com.br/wp-content/uploads/2016/07/MESA_2_Artes_C%C3%AAnicas.pdf
http://www.culturanorio.com.br/wp-conten...
. Nossos dados reforçam, portanto, a importância do teatro do Museu da Vida como meio de inclusão social e cultural, além de divulgação científica.

Apreciação geral da peça

Também com base nos dados dos questionários, verificamos que a maioria dos espectadores consultados, tanto entre o público escolar quanto entre o espontâneo, declarou ter considerado a peça muito boa, conferindo-lhe nota máxima na escala de 1 a 5 (82% e 87%, respectivamente). Vale ressaltar que o percentual de espectadores que deu pontuação máxima à peça foi significativamente maior do que os respondentes que declararam interesse máximo pelo teatro, o que sugere que a peça superou as expectativas de parte do público.

Pedimos para os respondentes justificarem as “notas” que deram à peça e apontarem pontos positivos e negativos da montagem. O espetáculo foi elogiado tanto por seu aspecto cômico quanto por seu caráter informativo, educativo e conscientizador. Os espectadores enalteceram a boa interação entre forma e conteúdo. Um discurso recorrente foi o de que a peça é bem-sucedida porque aborda, de forma “leve” e “divertida”, um tema “importante”, “pesado” e que ainda é “tabu” na sociedade – nas palavras dos jovens.

Nas respostas do público escolar (a perguntas abertas) sobre os pontos positivos e negativos do espetáculo, algumas impressões se repetiram. A escolha do tema da peça, abordando Aids, preconceito e formas de prevenção da doença, foi considerada um dos grandes acertos do espetáculo, por se tratar de um “assunto sério”, “real”, “atual” e “pouco falado”. Outros pontos positivos destacados foram a utilização de música, dança e humor, o enredo e o desempenho dos atores. Os visitantes espontâneos (que tiveram opções fechadas de respostas) destacaram, em primeiro lugar, o enredo da peça; em segundo, o desempenho dos atores; e, em terceiro, empatados, a música e o humor. Poucos mencionaram aspectos negativos. A maioria deixou em branco ou simplesmente escreveu “nenhum”, “nada”, “eu gostei de tudo”. As poucas críticas apresentadas referiam-se a problemas técnicos ou eram questões isoladas.

Assim, podemos afirmar que, no geral, os espectadores de “O rapaz da rabeca e a moça Rebeca” tiveram uma apreciação bastante positiva da peça, apesar de a maioria não ter escolhido ver o espetáculo (público escolar), não ter o teatro entre as preferências de lazer ou como hábito cultural e de o espetáculo abordar um tema “sério” e “pesado”. Isso por si só já seria um resultado assertivo no que diz respeito à interface Saúde e Teatro no contexto da divulgação científica e da promoção da saúde. Por outro lado, o fato de os jovens consultados considerarem HIV/Aids um “assunto sério”, “pesado” e “pouco falado” levanta questões importantes para o debate mais amplo sobre o tema, como discutiremos adiante.

Adesão ao jogo teatral

Por meio das fichas de observação, identificamos um alto nível de atenção e interação entre palco e plateia durante as apresentações. Nesse sentido, vale destacar a escolha acertada de encenar a peça no formato arena. O envolvimento físico no espetáculo propiciado por esse formato parece ter contribuído para a concentração do público e para as diversas trocas ocorridas entre ele e os atores. A música, cantada e tocada ao vivo, tendeu a cativar e envolver a plateia, que acompanhou, muitas vezes, o ritmo se mexendo na poltrona, batendo palmas e os pés. O humor, por sua vez, teve bom retorno do público, provocando diversos momentos de risada. Observamos ainda que os momentos-chave da peça tenderam a gerar surpresa, tensão e outras reações imediatas. Ao fim, os aplausos variaram entre medianos e efusivos, sendo muitas vezes complementados por gritos de “muito bom!” e “urrú”.

Pudemos constatar, assim, que houve por parte da plateia estudada uma vigorosa adesão ao jogo teatral2121 Guéneoum DO. Teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva; 2014.. Mais do que uma entrega passiva, testemunhamos uma vontade de fazer parte do espetáculo, mesmo se tratando de jovens sem familiaridade com o teatro, ou seja, sem domínio dos signos e dos instrumentos linguísticos que seriam, para alguns autores1919 Guimarães V. O público em números. In: Almeida C, Lopes T, organizadoras. Ciência em cena: teatro no Museu da Vida. Rio de Janeiro: Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz; 2019. p. 138-49., pré-requisitos para uma experiência significativa do espectador teatral. Nesse sentido, vale reforçar o papel da peça na formação de plateia, dada a experiência positiva no teatro vivenciada por um público que, como vimos, tende a ser excluído da fruição de atividades culturais como as artes cênicas. Desse modo, a opção por um tema que implica os jovens diretamente, abordado no palco em uma história de amor, contada de forma bem-humorada, inserida no universo nordestino e embalada com músicas típicas desse universo, pode ter sido importante para proporcionar essa aproximação do público com o universo teatral e ao mesmo tempo contribuir para um maior domínio da linguagem do teatro.

Engajamento com a temática

O verdadeiro envolvimento do espectador com a obra, porém, ultrapassa o jogo físico e verbal que ocorre ao longo da encenação. A troca significativa de valores afetivos e cognitivos que acontece na sala1616 De Marinis M. En busca del actor y del espectador: comprender el teatro II. Buenos Aires: Galerna; 2005. se estende para além dos aplausos finais, estimulando a apropriação, a reflexão e a tomada de posição crítica em relação aos temas abordados na peça, que podem e devem ser extrapolados para a realidade do espectador1616 De Marinis M. En busca del actor y del espectador: comprender el teatro II. Buenos Aires: Galerna; 2005.,2222 Rosenfeld A. Brecht e o Teatro Épico. São Paulo: Perspectiva; 2012.. Observamos, sobretudo pelos dados dos questionários, que a peça também foi capaz de proporcionar esse tipo de envolvimento do público com a obra, de modo que identificamos nele o participante ativo tal qual conceituado por Desgranges1717 Desgranges F. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec; 2015., ou seja, autor de um ato criativo e produtivo de interpretação da obra, bem como aquele almejado pelo movimento do engajamento público na Ciência1414 Miller S. Public understanding of science at the crossroads. Public Understanding Sci. 2001; 10(1):115-20.,1515 Brossard D, Lewenstein BV. A critical appraisal of models of public understanding of science. Using practice to inform theory. In: Kahlor L, Stout PA, organizadores. Communicating science. New agendas in communication. New York: Routledge; 2010. p. 11-39., visto que se apropria dos conhecimentos compartilhados na atividade e adere ao debate proposto, tomando posição e mobilizando argumentos para defendê-la.

Nesse sentido, verificamos que as mensagens que mais ressoaram entre os espectadores consultados – sendo endossadas por eles – foram as de prevenção, de desconstrução do tabu em torno da sexualidade e da Aids e a de que é preciso acabar com o estigma associado à doença. É interessante notar que, em alguns comentários e respostas, essas mensagens emergiram juntas, como no trecho a seguir, extraído de um questionário do público escolar: “Para nos prevenir. E por falar abertamente sobre o assunto; para nós jovens ficarmos mais atentos, nos abrirmos mais com nossos pais e amigos”. A identificação dos jovens com as mensagens da peça é importante para que se apropriem delas de forma significativa e as incorporem a seus hábitos, vivências e discursos.

Observamos também que a peça suscitou reflexões relacionadas a questões de gênero. Por exemplo, ao serem questionados sobre a atitude da protagonista de andar sempre com preservativo, todos, sem exceção, a consideraram positiva, chamando-a de responsável, inteligente e prudente, mobilizando argumentos racionais associados à responsabilidade da mulher na prevenção a infecções sexualmente transmissíveis (IST) – “Rebeca mostra o novo papel da mulher na relação sexual, tendo participação ativa e consciente. Muito bom.” – e ao empoderamento feminino – “... é uma forma de sempre estar se prevenindo de DST, e também é uma forma de empoderamento, pois o senso comum admite que o homem que deve levar o preservativo”. Alguns argumentaram questionando os papéis associados a gêneros estabelecidos na sociedade – “Achei uma atitude bastante ousada já que o preconceito marca muito as relações e isso partir da figura feminina foi muito interessante”. A tomada de posição e a construção de argumentos que reforçam o papel da mulher na prevenção do HIV é de extrema relevância no contexto de uma sociedade ainda marcada pelo machismo estrutural, na qual as jovens, por motivos diversos, ainda se encontram em posição de vulnerabilidade em relação à Aids e são tolhidas na expressão de sua sexualidade.

Um tema que desencadeou opiniões e posições mais diversificadas foi o relacionamento entre pessoas sorodiferentes. Estimulados por uma pergunta sobre a decisão da Rebeca de se casar com João sabendo que ele era soropositivo, os espectadores tenderam a considerá-la, além de correta, “bonita”, “admirável” e “corajosa”. A maior parte posicionou-se favoravelmente à decisão, apresentando argumentos tanto racionais quanto emocionais. Alguns defenderam, por exemplo, que é possível se prevenir dentro de relações com parceiros sorodiferentes – “Nada contra, pois se ela ama João ela pode casar e transar com ele, apenas deve usar preservativo” –, enquanto outros enfocaram a importância da decisão para se desconstruir o estigma associado à Aids – “Uma decisão importante para mostrar a todos que o preconceito é desnecessário”. Entre os argumentos da ordem do emocional, destacamos aqueles que defenderam o amor acima de tudo – “Acho que para o amor não tem justificativa. Ela ficou com ele mesmo sabendo dos riscos, consequência que poderia ter. Isso é amor”. Por outro lado, alguns espectadores julgaram a decisão arriscada, oferecendo argumentos mais neutros, sem tomar posição – “Só podemos falar de uma situação quando vivemos, pois é uma decisão muito difícil”. Identificamos, assim, certo receio em relação à possibilidade de transmissão de HIV em uma relação entre pessoas sorodiferentes. Nessa linha, uma minoria se posicionou contrariamente à decisão da Rebeca, ressaltando os riscos de transmissão – “Perigosa, pois tem risco de se infectar”. De todo modo, cabe ressaltar que, mesmo que uma maioria tenha se posicionado favoravelmente à decisão de Rebeca, parte dos argumentos mobilizados para defendê-la revela um olhar romantizado dos jovens no que diz respeito às relações sexuais, além da falta de conhecimento sobre os diferentes métodos de prevenção para casos de relacionamentos entre pessoas sorodiferentes – no geral, apenas o preservativo é mencionado. Esse desconhecimento também pode ajudar a explicar as posições mais receosas e negativas sobre o tema.

Sobre os jovens, o HIV e a Aids

Pelos dados produzidos pelos diferentes instrumentos usados na pesquisa, procuramos entender melhor alguns aspectos da relação dos jovens consultados com o tema HIV/Aids. Uma constatação que nos surpreendeu inicialmente foi a de que esses jovens carecem de informações básicas sobre o vírus e a doença. Os comentários e as respostas dos questionários, somados às perguntas feitas pelos espectadores durante o debate – por exemplo, se existe risco de infecção pelo beijo na boca, se tem tratamento para a doença e se há outras formas de prevenção além do uso do preservativo –, evidenciam que, mesmo com tanta informação disponível sobre o tema, ela não está sendo apropriada por uma parcela dos jovens. Verificamos também que a maioria dos participantes desconhecia as estratégias da atual política global de saúde em HIV, como a prevenção combinada, e o fato de ela estabelecer que os sujeitos em condição indetectável – cujo tratamento reduz ao mínimo sua carga viral – não transmitem o vírus. Nossos dados indicam, no entanto, que essa lacuna de informação não é fruto de desinteresse ou falta de motivação, pelo contrário. Como vimos, a peça despertou interesse e proporcionou uma experiência prazerosa aos espectadores consultados, corroborando dados de outros estudos, como o de Freitas e Dias2323 Freitas KR, Dias SMZ. Percepções de adolescentes sobre sua sexualidade. Texto Contexto Enferm. 2010; 19(2):351-7., que mostrou uma boa recepção de atividades sobre sexualidade entre outros jovens, principalmente em momentos que podem falar sem se sentirem julgados.

Ao buscar motivos para essa falta de informação, chegamos a outro ponto importante: o fato de o assunto ainda ser um grande tabu. Nossos dados corroboram os de estudos e experiências que mostram quanto HIV, Aids e sexualidade são ainda temas interditos, pouco discutidos nas famílias, nas escolas e mesmo entre casais2424 Amaral A, Santos D, Paes HCS, Dantas IS, Dos Santos DSS. Adolescência, gênero e sexualidade: uma revisão integrativa. Rev Enferm Contemp. 2017; 6(1):62-7.,2525 Martines EALM, Rossarolla JN. Sexo e sexualidade: tabu, polêmica ou conceitos polissêmicos? Reflexões sobre/para a formação de educadores. Rev Exitus. 2018; 8(2):273-99.. Na nossa pesquisa, isso se refletiu nas reações dos espectadores às cenas da peça em que havia menção a sexo ou nas quais o preservativo era exibido. Nesses momentos, eram comuns os risinhos envergonhados ou debochados, os olhares cruzados e os cochichos entre espectadores. Nos debates, risadas em momentos mais “explícitos” – por exemplo, quando ocorre a demonstração da colocada e retirada do preservativo – reforçam o constrangimento que o assunto gera nos espectadores. A dificuldade de se falar sobre o assunto, sobretudo entre casais jovens, pode ser um motivo importante por trás da baixa adesão dos adolescentes ao uso de preservativos, como sugerem Alves e Lopes2626 Alves AS, Lopes BM. Conhecimento, atitude e prática do uso de pílula e preservativo entre adolescentes universitários. Rev Bras Enferm. 2008; 61(1):11-7.. A falta de informações sobre HIV/Aids pode também reforçar o estigma relacionado à doença, na medida em que o desconhecido gera medo e rejeição. Assim, reforçamos a importância do debate com os atores após a peça, espaço em que os jovens podem perguntar, escutar e refletir sobre essas questões sem se sentirem julgados.

Identificamos ainda em nossos dados uma visão romantizada do relacionamento amoroso-sexual, associada a um discurso sobre o papel do destino e dos sentimentos no rumo de nossas vidas, em detrimento de decisões tomadas racionalmente. No nosso estudo, ao serem estimulados a pensar sobre a decisão da Rebeca de se casar com João, sabendo que ele era soropositivo, vimos que alguns espectadores, sobretudo do sexo feminino, a consideraram correta e corajosa, atribuindo essa decisão ao amor. Isso não surpreende, considerando o papel central que o amor desempenha nas sociedades ocidentais, sendo entendido como basilar nas interações sociais e a chave das escolhas humanas, bem como um sentimento atribuído às mulheres2727 Neves ASA. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do “amor confluente” ou o retorno ao mito do “amor romântico”? Estud Fem. 2007; 15(3):609-27.. Cabe ressaltar, no entanto, quanto essa visão do amor romântico e feminino pode induzir um ideal de intimidade que tolhe a liberdade sexual de mulheres, inibindo seus desejos e prazeres2727 Neves ASA. As mulheres e os discursos genderizados sobre o amor: a caminho do “amor confluente” ou o retorno ao mito do “amor romântico”? Estud Fem. 2007; 15(3):609-27.. Se, por um lado, a peça reforça essa visão – com uma história na qual a mocinha espera fielmente o mocinho voltar, enquanto ele se lança em aventuras sexuais –, por outro, ao contar a história de um casal sorodiferente com final feliz, pode contribuir para a desconstrução do estigma em torno da Aids, como os próprios espectadores argumentaram. Além disso, a construção de uma protagonista decidida, forte e proativa no que tange à prevenção de IST, capaz de conquistar a empatia do público, pode estimular o empoderamento de jovens adolescentes no que diz respeito a sua saúde e sua sexualidade.

Considerações finais

Podemos concluir que a estratégia de unir Saúde e Teatro em uma atividade de divulgação científica foi bem-sucedida, tendo recepção positiva e forte adesão do público-alvo. Nesse sentido, nosso estudo reforça o potencial da arte como aliada importante nesse campo; não como uma ferramenta para se transmitir conteúdo, e sim como uma linguagem capaz de sensibilizar, produzir afetos e construir novos olhares e visões de mundo.

Constatamos também que o espetáculo “O rapaz da rabeca e a moça Rebeca” foi capaz de engajar jovens do Rio de Janeiro no debate sobre HIV/Aids – considerando o modelo conceitual do engajamento público na Ciência –, ao estimular reflexões e atitudes críticas sobre diferentes aspectos da epidemia de Aids. Apoiando-nos em conceitos contemporâneos da divulgação científica1313 Gregory J, Miller S. Science in public: communication, culture and credibility. Nova York: Plenum Trade; 1998.,1414 Miller S. Public understanding of science at the crossroads. Public Understanding Sci. 2001; 10(1):115-20., também acreditamos que a peça tenha contribuído para o exercício da cidadania científica. A apropriação de conhecimentos atuais sobre HIV/Aids e a discussão de aspectos relacionados ao tema, que vão além das questões biomédicas e epidemiológicas, favorecem a formação de cidadãos mais críticos, empoderados e preparados para tomar posições e decisões sobre saúde no seu cotidiano e para participar da governança no setor.

Por outro lado, verificamos que faltam informações e diálogo sobre HIV/Aids, fatores que podem estar associados à manutenção do estigma e da discriminação, a casos não diagnosticados da infecção por HIV e à não adesão dos jovens ao uso de preservativos, além de dificultarem o acesso às diversas estratégias de prevenção que integram a política atual de saúde em HIV.

Esses resultados reforçam a importância da intensificação de ações de comunicação voltadas ao enfrentamento da epidemia de Aids, especificamente destinadas a adolescentes e jovens, a fim de não apenas conscientizá-los sobre o sexo seguro e informá-los sobre os medicamentos disponíveis, mas também de fazê-los refletir sobre questões mais amplas relacionadas ao tema, envolvendo aspectos socioeconômicos, políticos e culturais. Entretanto, é preciso repensar meios, linguagens e conteúdos dessas ações, considerando o contexto dos públicos a serem atingidos, para que sejam mais efetivas do que as campanhas oficiais de prevenção – a exemplo da atividade teatral analisada. Além disso, fazemos coro com Monteiro2828 Monteiro S. Prevenção ao HIV/Aids: lições e dilemas. In: Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 251-69. quando ressalta que as políticas de prevenção do HIV precisam ter outros enfoques que não apenas a responsabilização individual e estar mais articuladas com a saúde pública, os direitos humanos e as transformações na estrutura social.

Por fim, seria importante considerar o envolvimento de adolescentes e jovens, inclusive daqueles vivendo com HIV, em ações de enfrentamento da epidemia. A representatividade do público-alvo na concepção dessas ações é um fator favorável para a sua relevância e eficácia. No caso da Aids, em particular, a história revela um protagonismo importante de pacientes, familiares e movimentos sociais na produção de conhecimento sobre a doença, no monitoramento de políticas para o seu enfrentamento e na defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV2929 Epstein S. The construction of lay expertise: Aids activism and the forging of credibility in the reform of clinical trials. Sci Technol Human Values. 1995; 20(4):408-37.,3030 Parker R. O fim da Aids? [Internet]. In: Abertura do 8o Encontro Estadual das ONGs/AIDS do Rio de Janeiro; 2015; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: abiaids; 2015 [citado 8 Maio 2020]. Disponível em: http://abiaids.org.br/o-fim-da-aids/28618#_ftn5
http://abiaids.org.br/o-fim-da-aids/2861...
. O trabalho articulado desses atores continua sendo essencial no controle da epidemia e será indispensável para se alcançar o seu tão almejado – mas ainda distante – fim.

Agradecimentos

A toda a equipe do Museu da Vida que deu apoio e suporte à realização da pesquisa, em especial àqueles envolvidos diretamente com a montagem da peça analisada, Leticia Guimarães, que dirigiu e atuou no espetáculo, e Pablo Aguilar, que trabalhou como ator na peça. Agradecimento especial também à Mônica Santos Dahmouche, da Fundação Cecierj, que apoiou a realização da pesquisa, fruto de uma parceria entre o Museu Ciência e Vida, vinculado à Fundação Cecierj, e o Museu da Vida, da Fiocruz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2020
  • Aceito
    05 Dez 2020
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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