Resumos
Buscou-se mapear a rede de cuidados em Saúde Mental em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de Salvador, Bahia, Brasil, traçando as relações do cuidado para compreender as convergências e controvérsias da abordagem psicossocial na Atenção Primária à Saúde. A cartografia, fundamentada na Teoria do Ator-Rede, acompanhou vivências de quatro pessoas com histórico de sofrimento psíquico por meio do diário de campo, de observação participante, entrevistas semiestruturadas e pesquisa documental. Analisaram-se: situação de agudização do sofrimento; relação entre pessoas da equipe de saúde; construção da responsabilização familiar; e embate entre agenciamento e determinação. Os elementos emergentes convergiram para o intuito de elaborar meios possíveis de lidar com o adoecimento, na relação consigo e com o outro, em vez de priorizar a adequação a uma norma social do que é o ser saudável.
Palavras-chave
Saúde Mental; Atenção Primária; Cuidado em rede; Teoria ator-rede
This study sought to map the mental health care network in a Family Care Center in Salvador, Bahia, Brazil, delineating care relations to understand the convergences and controversies involving the psychosocial approach in Primary Care. Drawing on the Actor-Network Theory, the analysis encompassed the experiences of four people with a history of psychic suffering using field diaries, participant observation, semi-structured interviews and a document search. The following aspects were analyzed: worsening of suffering; relations between health team members; construction of family accountability; and clashes between agency and determination. The emerging elements converged to enable the development of possible ways of dealing with illness in one’s relationship with oneself and with the other, instead of prioritizing adaption to a the social norm of what it is to be healthy.
Keywords
Mental health; Primary care; Network care; Actor-Network theory
El objetivo fue mapear la red de cuidados en salud mental en una Unidad de Salud de la Familia (USF) de Salvador, Bahia, Brasil, trazando las relaciones del cuidado para comprender las convergencias y controversias del abordaje psicosocial en la Atención Primaria de la Salud. La cartografía, fundamentada en la Teoría del Actor-Red, acompañó vivencias de cuatro personas con historial de sufrimiento psíquico, por medio del diario de campo, observación participativa, entrevistas semiestructuradas e investigación documental. Se analizó lo siguiente: situación de agudización del sufrimiento, relación entre personas del equipo de salud, construcción de la responsabilización familiar y embate entre diligencia y determinación. Los elementos emergentes convergieron para el objetivo de elaborar medios posibles de enfrentar la enfermedad, en relación consigo y con el otro, en lugar de priorizar la adecuación a una norma social de lo que es ser saludable.
Palabras clave
Salud mental; Atención primaria; Cuidado en red; Teoría actor-red
Introdução
O cuidar como categoria ampla vai além da dimensão biológica, abarcando atos não apenas considerados no âmbito do setor saúde, mas a heterogeneidade multifacetada de modos complexos de produção do cuidado no cotidiano11 Bonet O. Itinerações e malhas para pensar os itinerários de cuidado. A propósito de Tim Ingold. Sociol Antropol. 2014; 4(2):327-50.. Isso nos filia à lógica do cuidado utilizada pela médica e filósofa Annemarie Mol22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002.: prática relacional estabelecida entre pessoas em posições distintas, cuja potência dependerá das condições materiais dispostas e do conhecimento compartilhado nela.
Nessa perspectiva, a Atenção Primária à Saúde foi escolhida como cenário de investigação das distintas relações entre cuidadores-usuários, fugindo da acepção da apropriação de uma rede em Saúde Mental com funções previamente estabelecidas por profissionais em seus campos de trabalho, pela família ou pela pessoa em adoecimento. O enfoque deste artigo permite o acompanhamento de processos abertos e agenciamentos possíveis no curso de suas ações conformando uma rede em movimento33 Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Bauru: Edufba, Edusc; 2012..
A concepção da Estratégia Saúde da Família (ESF) tem formulação em base territorial geradora da capilarização de cuidados que atravessam a Rede de Atenção Psicossocial à Saúde (Raps). Há ações estratégicas, com centralidade nesse nível de atenção, que podem instrumentalizar o cuidado por meio de práticas preconizadas: realização de visitas domiciliares, uso do Projeto Terapêutico Singular (PTS) e agregação dos profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB)44 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017., por exemplo.
O Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. discorre sobre o uso dessas ferramentas mediante a realidade de saúde e o reconhecimento das demandas em Saúde Mental na Atenção Primária, âmbito de complexa abordagem com desafios constantes, como a adesão ao serviço, à rede de suporte social e ao diálogo multiprofissional.
Dentre os dispositivos empregados em Saúde Mental no nível primário, pode-se destacar a implementação do PTS como articulador de um conjunto de ações resultantes da construção coletiva e dialógica da equipe multiprofissional, levando em conta as necessidades, as expectativas, as crenças e o contexto social da pessoa, além do levantamento de rearranjos terapêuticos55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..
Na construção do planejamento de cuidado, para além da equipe de Saúde da Família, há possibilidade da agregação de profissionais do Nasf-AB44 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017., que ampliaram o leque de atuação sobre os problemas/necessidades em saúde das pessoas com base nos saberes e fazeres especializados66 Campos GWS. Saúde mental e atenção primária: apoio matricial e núcleos de apoio à saúde da família. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p 27-46.. Idealmente, esse apoio matricial propiciaria transformações na lógica de hierarquia entre as profissões da saúde e o trabalho colaborativo entre equipes interdisciplinares, com apoio técnico-pedagógico e interferência de diversas áreas de saber por meio das demandas do usuário-pessoa77 Dantas NF, Passos IZF. Apoio Matricial em Saúde Mental no SUS de Belo Horizonte: perspectiva dos trabalhadores. Trab Educ Saude. 2018; 16(1):201-20..
A abordagem em Saúde Mental, inserida na ótica da integralidade, aperfeiçoa-se com o auxílio da atenção em domicílio, onde se torna possível obter maior apropriação da complexidade dos casos, identificar cuidadores e avaliar o potencial de cada conduta terapêutica44 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.. Além disso, torna-se mais concreto o planejamento de uma atenção fora do complexo hospitalar, espaço com predomínio de condutas diagnósticas para realizar a (re) inserção de usuários em seus territórios existenciais88 Brasil. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde; 2005..
Este artigo buscou perseguir a rede de cuidados a fim de compreender como o nível primário de atenção performa modos de produção do cuidado propostos por Mol22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002., por meio das ações e dos discursos sobre as práticas de agentes envolvidos em sua construção no seu cotidiano de atuação.
Para tanto, partimos de quatro cenários propulsores, um para cada caso, referentes às relações entre sujeitos e a coprodução da Saúde Mental de pessoas em sofrimento ou portadores de transtornos mentais com base em: (i) variados espaços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps); (ii) atuação da equipe de saúde como agente coletivo do cuidado profissional; (iii) núcleo familiar; e (iv) cuidado de si mesmos.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e de cunho etnográfico. O trabalho de campo foi realizado durante os meses de novembro e dezembro de 2018 e fevereiro de 2019 em uma Unidade de Saúde da Família (USF) do município de Salvador.
Pautamo-nos na abordagem cartográfica, embasados na Teoria Ator-Rede (TAR)33 Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Bauru: Edufba, Edusc; 2012., objetivando a apreensão da realidade de forma não segmentada, traçando a rede de cuidado pelas associações que se perfilavam entre elementos heterogêneos de relações entre humanos, ao perseguirmos as práticas de cuidado em Saúde Mental sem hierarquizá-las.
Primeiramente, nossa aproximação se deu na tentativa de descrever as ações em Saúde Mental por meio dos relatos de experiências de adoecer, tanto em conviver com sua condição crônica e/ou de cuidar de nossos interlocutores de pesquisa, quanto em nossas vivências e observações no cotidiano do serviço de saúde, acrescentando as incursões pelo seu território99 Nunes M, Torrenté M. Entre etnografia e participação compondo uma estratégia metodológica. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: Política & Cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 300-26..
Nesse bojo, adotamos a observação participante e o registro das informações em um diário de campo complementados pela análise documental de prontuários e realização de entrevistas gravadas digitalmente para a construção de narrativas, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram identificadas histórias de pessoas que abrigavam diferentes formas de procura por cuidado, bem como processos variados de ruptura ao longo do curso do sofrimento psíquico. Segundo os critérios de aproximação, elas deveriam: (i) ter 18 anos de idade ou mais; (ii) estar ou ter estado em sofrimento psíquico e/ou transtorno em Saúde Mental; e (iii) ser ou ter sido acompanhadas na USF. Quatro entrevistas com usuários da USF foram realizadas: três pessoas do gênero feminino e uma do masculino; entre cinquenta e setenta anos de idade; três não haviam concluído o ensino fundamental e apenas uma possuía ensino superior completo.
A escolha do número de casos e a abordagem conferida buscaram explorar a realidade que se apresenta complexificada, na tentativa de fazer o rastreio da heterogeneidade de tensões possíveis22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002.,33 Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Bauru: Edufba, Edusc; 2012.. O recorte das relações na etnografia impossibilitaria a multiplicação dos processos e o emprego do exame ontológico do cuidado no acompanhamento das pessoas em sofrimento mental. Assim, a perspectiva de filosofia empírica adotada por Mol22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002. reitera a possibilidade de deslocamento do enfoque da aquisição de um conhecimento verdadeiro para a forma em que os objetos são encontrados na realidade. O percurso como fio condutor pretende, assim, conhecer a interação dos agentes e a produção das suas práticas.
A USF, durante a realização do trabalho de campo, estava com duas equipes mínimas completas, mas contando, na totalidade, com 17 agentes comunitários de saúde (ACS), cinco técnicos de enfermagem, uma técnica em saúde bucal, três enfermeiros, duas médicas e um odontólogo como profissionais em atuação no território. Em complementaridade, o Nasf-AB assistia matricialmente a duas unidades básicas do mesmo distrito sanitário e era composto por psicóloga, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e nutricionista.
Nossa interação deu-se precocemente, desde a entrega do ofício de autorização da pesquisa à gerente do serviço. Os agentes tomados não como fontes de ação em si mesmos, mas como entidades que, ao agirem acerca da prestação dos cuidados em Saúde Mental em simetria com usuários, familiares, instituições e outros actantes, compunham os cuidados em rede1010 Bonet O, Tavares FRG. O cuidado como metáfora nas redes da prática terapêutica. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: CEPESC-IMS/UERJ-ABRASCO; 2007. p. 263-77.. Nesse ínterim, três agentes terapêuticos sobressaíram-se e foram entrevistados: uma ACS; uma médica, com formação em Psicologia; e um enfermeiro, cofundador do grupo de geração de renda para pessoas na condição referida. Semanalmente, participamos das atividades em grupo voltado para pessoas com histórico de sofrimento mental, o que nos possibilitou acesso aos sujeitos de nossa pesquisa. Lá, realizavam trabalhos manuais com origamis, matéria-prima de luminárias a serem comercializadas. Ademais, frequentamos diariamente atendimentos individuais em saúde e semanalmente as reuniões de equipe, atividades grupais variadas de educação em saúde e visitas domiciliares. Nos casos narrados, preferimos adotar nomes fictícios para preservar a identidade de sujeitos vulneráveis ou vulnerabilizados.
O projeto de pesquisa foi aprovado pela Secretaria Municipal da Saúde de Salvador, parecer n. 054/2018 e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA (CEP-FMB), parecer n. 00233218.0.0000.5577.
Resultados e discussão
Os relatos apresentados a seguir figuram como espécies de “casos”, mas fugindo da descrição clássica da Biomedicina. A descrição de percursos não pretendeu atingir acurácia ou ser objetiva. Os encontros proporcionados no campo de pesquisa fizeram que emergissem as seguintes categorizações: a crise e o cuidado em rede; a atuação do ACS; a vinculação familiar; e o perfilamento de agenciamentos terapêuticos.
Cuidados em rede em situação de crise
O Caderno de Saúde Mental na Atenção Básica55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. adota a crise como fenômeno relacional, não como um fator episódico, garantindo um cuidado continuado. Com esse entendimento, a construção do suporte para lidar com as relações cotidianas da pessoa em sofrimento e a prevenção da crise serão discutidas adiante.
Sônia era acompanhada ali desde 2004, quando foi diagnosticada com transtorno bipolar. Ocorreu que precisou ser “internada de uma hora para outra, sem saber o que tava acontecendo”, segundo ela, após entrar em um quadro de crise. Dizia ter comprado um medicamento genérico, não encontrou o que fazia uso habitualmente, gerando desconfiança a respeito da efetividade. Acreditando no erro da compra, suspendeu o uso. Relatou também que: “algumas notícias que chegaram a mim que fez com que eu fosse acumulando uma série de coisas, assim, trazendo tristeza”. Sua afirmação coaduna a ideia de “[…] crise fazendo parte do cotidiano dos sujeitos que estão constantemente lidando com momentos que geram desorganização em sua vida”55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. (p. 100) – o conflito surgiu como uma quebra de consenso entre si e o outro, ou consigo, logo, o objetivo seria reestabelecer essa relação.
Apesar de trazer no discurso o entendimento dos acúmulos de tensão que resultaram na agudização da doença, carregava, também, o filtro da visão biomédica sobre a crise. A resposta quando perguntada sobre o que sentia naqueles episódios foi: “a serotonina alta”.
O internamento foi acompanhado por enfermeiros da USF. No local onde foi realizado o pronto-atendimento, alegou desconforto com o uso da contenção mecânica. Em relação à internação hospitalar, mostrou-se satisfeita, tendo elogiado o ambiente e as visitas que recebeu dos profissionais da unidade.
Sônia relatou seu vínculo com o Médico de Família e Comunidade, mencionando que o lugar onde estávamos conversando, na praça do bairro, era onde costumava dialogar com ele. Quando questionada sobre o que achava do atendimento atual na USF, respondeu:
[...] Ó, já foi melhor [...] antes eu participava de tudo quanto era coisa quando meu médico tava aí [...] Vinha quase todo dia pra cá [...] porque ele realmente não era meu médico. Não era da minha área, mas também cuidava de mim. Ele também era médico de família, né? Era médico psiquiatra também.
(Sônia, 12 de fevereiro de 2019)
O cenário remeteu-nos a Lancetti1111 Lancetti A. A clínica peripatética. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. ao afirmar a necessidade de uma clínica peripatética, transcendente ao espaço do consultório e ganhando movimento, por existirem pessoas que não se adaptam aos protocolos clínicos tradicionais. Entretanto, a mudança de valoração em relação ao atendimento no serviço de saúde demonstrava como o vínculo, atributo da Atenção Primária, ainda não tinha sido algo incorporado ao serviço, mas sim personalizado.
Semanas depois, Sônia nos abordou para acrescentar algo; falou que: “o cuidado começava em casa, não no hospital, e que as pessoas precisavam de carinho e de ajuda para organizar a vida”. Enxergava-se como alguém só, e aproveitou para relatar sua rotina: “saindo daqui vou ver o cigarro que sempre compro, depois vou no centro espírita, porque sou espírita, depois no mercado, ou talvez nem seja hoje, deixo pra amanhã, porque tenho que economizar”.
Ela formulava uma rede de suporte social, uma vez que a integralidade do cuidado não se concretizava tendo o serviço de saúde como único cenário. A promoção de saúde na lógica da Atenção Psicossocial exigia que os sistemas, organizados pela Atenção Primária, reconhecessem as variadas necessidades relacionadas à saúde para disponibilizar os recursos que vão abordá-las55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013..
Na reunião de matriciamento, diferentes profissionais compartilharam alterações percebidas no comportamento de Sônia, identificadas como antecessoras de uma crise: “o aumento da sexualidade”, por ela ter feito comentários com o técnico de enfermagem do Centro de Atenção Psicossocial (Caps); a necessidade de compras, sugerida por questionar quando seria o bazar de roupas mensal realizado no serviço, talvez procurando um motivo para “ficar rica assim que recebe o dinheiro e depois não ter mais nada”, como falou a enfermeira.
Com essa corresponsabilização, traços individualizados e percebidos em detalhes do cotidiano foram identificados, direcionando a atuação precoce no adoecimento de Sônia, como um trabalho artesanal de coleta de pistas recebidas, agregadas e interpretadas para agir de maneira preventiva. O matriciamento tornou possível expandir conhecimentos e ações historicamente restritas às áreas “psi” para os diferentes profissionais que atuam na construção de um Projeto Terapêutico1212 Silva AS, Sonzogno MC. O apoio matricial na Saúde Mental. In: Silva GTR, Santan MS, organizadores. O agir em saúde mental: política, atenção e formação. Salvador: Atualiza Editora; 2014.,1313 Trad LAB, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Carvalho LC. Família e cuidado em saúde mental no Brasil, corresponsabilidade e desafios tecnológicos na desinstitucionalização. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 175-200., planejando a atuação processual de forma conjunta por meio da inserção social daquela pessoa.
A agente comunitária de saúde e a disputa pelo cuidado
A experiência vivida tem como centralidade as atribuições do ACS: o trabalho com adscrição de famílias na comunidade, a identificação de casos novos, a orientação quanto ao uso dos serviços disponíveis e a realização de visitas domiciliares, fundamentais no acompanhamento e na adesão das pessoas aos serviços44 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.436, de 21 de Setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.. Para além disso, existe a disponibilidade de escuta e a criatividade na construção de vínculos, aspectos ainda mais fundamentais quando se trata de casos em Saúde Mental1414 Moreira CP, Amaral CEM. Ações dos agentes comunitários de saúde no cuidado em saúde mental. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 363-84..
O percurso seguido por intermédio da ACS foi o que me aproximou de Carla. Uma mulher de 53 anos que morava sozinha há 15 anos no território da USF: era negra, ex-professora, lésbica, em processo de distanciamento da religião evangélica e em agudização do quadro de esquizofrenia.
Nossa aproximação aconteceu após o convite da médica que a acompanhava a ir na visita domiciliar com a psicóloga, a ACS e um estagiário de Psicologia. O contato inicial foi conflituoso – ela se mostrou avessa à minha presença. Continuamos do lado de fora da casa, junto com a ACS, enquanto as outras profissionais de saúde realizavam a visita com o objetivo de iniciar a terapêutica medicamentosa.
Fomos percebendo diferentes nuances em relação ao atendimento. A proximidade da ACS da dinâmica comunitária poderia permitir uma intervenção diferenciada em comparação aos outros profissionais, devido à vinculação e à relação de confiança estabelecida entre o usuário da rede de saúde e a ACS1515 Santos GA, Nunes MO. O cuidado em saúde mental pelos agentes comunitários de saúde: o que aprendem em seu cotidiano de trabalho? Physis. 2014; 24(1):105-25.; entretanto, esse potencial não havia sido expresso até então.
Em uma segunda aproximação direcionada especificamente ao uso da via injetável da medicação na visita domiciliar, uma vez que Carla não havia aderido à via oral, houve um acolhimento diferente. Pudemos entrar na casa, ouvi-la expressar seu sofrimento em relação ao abandono da família, às decepções com a sua antiga religião, sua aversão ao tratamento em hospitais psiquiátricos e sua relação com a médica, pessoa pela qual dizia estar apaixonada.
Na casa, a solidão era quase palpável. Dizia não conseguir sair daquele estado por desacreditar em todos os mecanismos de suporte que já tinha tido na vida: a família, a religião, a medicina e não ter mais forças para criar expectativas, não acreditava mais “que existem pessoas boas no mundo”.
Apesar do papel da ACS ter sido de fundamental importância no acesso de Carla à USF, era perceptível que a agente tinha outra visão sobre a situação atual. Houve uma visita domiciliar não realizada, por exemplo, pelo fato de ela responder à médica que “não estava disposta a encontrar Carla”.
A situação foi discutida durante a reunião de equipe. A ACS trazia a percepção de que alguns casos, como os de duas pacientes em controle de diabetes, estavam deixando de receber atenção, desviada para Carla, uma vez “que não dá a menor importância. Está é xingando todo mundo na rua, saindo sem roupa, com a casa toda bagunçada e anda bebendo”.
Essa fala transpareceu uma visão a respeito do sofrimento mental correlacionada ao descontrole pessoal gerador de uma desordem no entorno comunitário. Santos e Nunes1515 Santos GA, Nunes MO. O cuidado em saúde mental pelos agentes comunitários de saúde: o que aprendem em seu cotidiano de trabalho? Physis. 2014; 24(1):105-25. associam a resistência ao acompanhamento de alguns casos por parte do ACS pelo medo do desconhecido. Devido à possibilidade de se deparar com um quadro de agressividade, ressaltam: “o fator gerador do medo, que se procura afastar, pode não ser o outro a ser cuidado, mas o desconhecimento acerca deste”.
Havia antagonismo de opiniões e a disputa por uma determinada noção de cuidado entre os membros da equipe. Especificamente a médica e o enfermeiro em um ponto concordante da discussão e a ACS, em outro. A postura de ambos foi de respeito à opinião da agente.
Entretanto, algumas questões foram levantadas: foi reiterado não existir uma priorização de atendimento, as visitas eram estrategicamente colocadas ao fim da manhã para que houvesse tempo de realizar outras previamente agendadas e que nunca deixaram de ser feitas. Carla estava usando uma medicação de depósito, que precisava ser aplicada quinzenalmente, seria a primeira medida para que “ela conseguisse ter crítica, para o seu subconsciente conseguir podar e dar um freio a ela”, segundo a médica.
Os dispositivos pontuados para o projeto de cuidado foram além do uso da medicação: a médica sugeriu sua participação no grupo de geração de renda para pessoas com histórico de sofrimento psíquico. A visão a respeito da sua biografia também foi elencada: “era uma mulher negra, lésbica, oprimida a vida inteira pela igreja, pela família, pela sociedade, coisas que estavam por trás de toda aquela desorganização’’.
Após as reuniões de equipe, numa conversa com a ACS, a sós, ela reforçou suas concepções anteriores ao diálogo com os outros profissionais:
[...] No meu ver, as pessoas dizem que Carla está descompensada, mas eu não acho. Isso é tudo por conveniência dela, porque quando uma pessoa tá bem, ela tá bem, Carla quando quer faz as coisas certas, sai pra comprar comida. Acho que tudo dela é por conveniência, mas quem sou eu pra dizer que não se os psicólogos e os médicos dizem que ela é descompensada?
(ACS, 14 de fevereiro de 2019)
Como mencionado, acreditava existir a tentativa de ausência de hierarquização no processo de trabalho, mas, pelo visto, não era uma percepção compartilhada. Os embates na atribuição de cada pessoa para a construção do PTS poderiam dizer respeito ao entendimento de que existiriam profissionais para “resolver o problema”, enquanto a ACS corresponderia ao lugar de “encaminhador” das demandas espontâneas1414 Moreira CP, Amaral CEM. Ações dos agentes comunitários de saúde no cuidado em saúde mental. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 363-84.,1616 Furlan PG. Intervenção “paidéia” com agentes comunitários de saúde: estratégia de educação permanente e apoio institucional no contexto das políticas públicas [dissertação]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2005..
A compreensão dessa disposição de funções respaldava um cuidado ainda centralizado na prática prescritiva. Incentivar a potencialidade de atuação da ACS era priorizar práticas da sua atuação que poderiam ser incorporadas à clínica de outras profissões, como: a escuta ampliada, o vínculo e o enfoque em estratégias de promoção de saúde. Dessa forma, diante dos questionamentos trazidos pela ACS, temos o entendimento da necessidade de deixar nítida a dimensão que sua atuação teria, o caráter político do cuidado ao contrapor a lógica de internamento com visitas domiciliares.
Além disso, ressaltar o preparo em relação ao olhar técnico no que dizia respeito à orientação de familiares, da comunidade e de usuários de Saúde Mental, sendo mais maleável ao lidar com os comportamentos discrepantes da norma. Poderia ser um dos instrumentos no processo de identificação de sujeitos1515 Santos GA, Nunes MO. O cuidado em saúde mental pelos agentes comunitários de saúde: o que aprendem em seu cotidiano de trabalho? Physis. 2014; 24(1):105-25., facilitado pela inserção da ACS no território, já que a identificação do sofrimento psíquico é entremeada por estigmas, e a agente acaba detectando casos que não chegariam de outra forma ao conhecimento da USF.
De tal modo, Moreira e Amaral1414 Moreira CP, Amaral CEM. Ações dos agentes comunitários de saúde no cuidado em saúde mental. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 363-84. reforçam o trabalho de integração da equipe, socializando saberes e práticas, desenvolvendo técnicas de cuidado inovadoras para superar um modelo medicalizante. Consideram não se tratar apenas de “necessidade de qualificação” desses profissionais, mas da incorporação de suas práticas de cuidado criadas conjuntamente aos que estão assistindo e que não são construídas pelo ensino formal de psicopatologia, por exemplo.
(Re)construção de vínculos familiares: responsabilidade conquistada
A inserção da família na rede de cuidado pode ser desafiadora e exercer potencial de proteção ou fragilização do cuidado mediante sua conformação1313 Trad LAB, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Carvalho LC. Família e cuidado em saúde mental no Brasil, corresponsabilidade e desafios tecnológicos na desinstitucionalização. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 175-200.. A reflexão trazida diz respeito à avaliação dessas dimensões do cuidado familiar em Saúde Mental.
Dolores, mulher de 70 anos, foi casada com um homem agressivo ao fazer uso abusivo de álcool. Teve três filhos com ele, dois já falecidos. Relatou ter trabalhado muito para ajudar o marido, que a agredia e não entendia as suas limitações por conta do quadro depressivo: “Ele não entendia que eu tava doente, quando ele tava bom entendia, quando tava tomando cachaça, entendia o que pelo amor de Deus? Jogou carro de mão nas minhas costas...”.
Pudemos perceber seu adoecimento como fator limitante em âmbitos de sua vida, com repercussões físicas: “Ah foi estresse, minha filha, foi depressão, tudo de vez. Não podia pegar nem um copo, eu arriava um copo lá no chão. Me tremia toda, eu dormia assim, abraçada assim, com medo”.
Os estigmas associados a um quadro depressivo são variados: melancolia, falta de energia, dificuldade de levantar da cama pela manhã e sensibilidade exagerada com a exigência de ser produtivo1717 Moreira V, Telles TCB. Experiências do estigma na depressão: um estudo transcultural. Psico-USF. 2008; 13(2):233-41.. A família é, em geral, o primeiro grupo a ter de lidar com as visões construídas a respeito do adoecimento, de forma que um maior nível de informação sobre o transtorno poderia diminuir a cobrança no quadro de Dolores. Entretanto, a disposição ao acolhimento de um sofrimento psíquico não era presente, o que acontecia era uma situação de violência doméstica e sobrecarga de funções relacionadas à dinâmica familiar.
Dolores conseguiu se separar e foi morar em outro bairro com o irmão. Disse que nessa época encontrou um emprego de copeira, tendo se afastado por conta do adoecimento mental. Relatou que trabalhava desde os 13 anos, já que não recebia apoio financeiro da família, “botava lata na cabeça para sobreviver”. Contou ter passado a morar com a irmã de criação, no bairro da USF. Entretanto, não foi uma convivência pacífica, sendo violentada por ela e colocada para fora de casa.
É necessário analisar criticamente o lugar ocupado pela família no processo de cuidado, considerando a diversidade de padrões familiares desde recursos culturais e econômicos até a dinâmica relacional, não pressupondo um processo afetivo. Para trabalhar em um modelo psicossocial com ênfase no território, que leve em consideração aspectos sociais, é fundamental a relação entre as esferas familiares e comunitárias1818 Nunes M. Torrenté M, Ottoni V, Moraes Neto V, Santana M. A dinâmica do cuidado em saúde mental: signos, significados e práticas de profissionais em um Centro de Assistência Psicossocial em Salvador, Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2008; 24(1):188-96. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2008000100019.
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200800... . Os desafios, entretanto, são variados: falta de tempo, de estrutura financeira, de conhecimento específico sobre a doença, ausência de suporte e de habilidade para lidar com situações de crise1313 Trad LAB, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Carvalho LC. Família e cuidado em saúde mental no Brasil, corresponsabilidade e desafios tecnológicos na desinstitucionalização. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 175-200..
As dificuldades econômicas, bem como um relacionamento com o papel de gênero feminino no lugar de submissão, presença de violência física e mental, além de dependência financeira, criaram um cenário de “fragilidade psicossocial da família que repercute na sua capacidade de proteção social”1313 Trad LAB, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Carvalho LC. Família e cuidado em saúde mental no Brasil, corresponsabilidade e desafios tecnológicos na desinstitucionalização. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 175-200.,1919 Trad LAB. A família e suas mutações: subsídios ao campo da saúde. In: Trad LAB, organizador. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010. p. 27-50.. Vacchia e Martins2020 Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface (Botucatu). 2009; 13(28):151-64. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832009000100013.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200900... sugerem ser preferível a criação do maior número de articulações em casos como esse do que usar concepções culpabilizantes como “família desestruturada”.
O que aconteceu foi a ruptura daquele núcleo familiar por parte da própria Dolores. Assim, sem emprego ou família, ela diz ter se visto sozinha no bairro e foi acolhida por uma moradora dali, cuja mãe era sua amiga. Tinha uma relação de gratidão com a pessoa que a acolheu, a qual soubemos futuramente também ser diagnosticada com transtornos mentais.
A percepção que a equipe de saúde da unidade tinha em relação a essa “adoção”, uma possível nova constituição familiar, era diferente. O que para Dolores se mostrava como algo de extrema importância em sua vida, para a equipe era visto com certa desconfiança, uma vez que a pensão salarial de Dolores ficava com a proprietária da residência e seu lugar de habitação era um quarto minúsculo, sem janela, nos fundos da casa, segundo a enfermeira.
O olhar da equipe mostrava preocupação com a rede de apoio social criada, apesar de entender que tais redes poderiam favorecer o apoio solidário aos problemas de Saúde Mental1313 Trad LAB, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Carvalho LC. Família e cuidado em saúde mental no Brasil, corresponsabilidade e desafios tecnológicos na desinstitucionalização. In: Nunes M, Landim FLP, organizadores. Saúde Mental na Atenção Básica: política & cotidiano. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 175-200.. Silva2121 Silva MVO. A clínica psicossocial das psicoses. Salvador: In-tensa Ex-tensa; 2007. discute a construção de corresponsabilização pelo cuidado não ser algo intrínseco aos diferentes arranjos familiares, expressando a necessidade de se reconstruírem relações vinculares, pois, sem elas, não adiantaria responsabilizar o outro.
Assim, nota-se que os lugares possíveis para a família são variados, de tal forma que sua existência pode inclusive agravar o adoecimento. Logo, uma vez que não há uma obrigação estritamente familiar, é necessária a conformação de uma abordagem em perspectiva vincular, entre múltiplos dispositivos dentro e fora da rede assistencial, para além da intrapsíquica, centrada no controle sintomático2121 Silva MVO. A clínica psicossocial das psicoses. Salvador: In-tensa Ex-tensa; 2007.. As diferentes inserções familiares às quais Dolores se integrou só poderiam ser fontes de responsabilidade sobre o seu cuidado caso se reconstituíssem as relações afetivas e emocionais, o que possivelmente não aconteceu conforme a equipe de saúde.
“Aquele não era um caso em que havia tanta identificação com a Saúde Mental”: construção da agência
Agência diz respeito à capacidade de processar uma experiência social e encontrar formas de enfrentamento por meio das limitações que surgem com ela. Trata-se de um processo relacional para além de uma escolha, definida por circunstâncias envolvidas em uma rede de atores e da gerência existente na relação entre eles33 Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Bauru: Edufba, Edusc; 2012..
A seguir estão embates por trás de agenciamentos terapêuticos.
A aproximação com José aconteceu após a participação no grupo de geração de renda. Percebi uma ausência de identificação com o conteúdo das perguntas sobre seu adoecimento mental. Ele dava respostas curtas, sem querer desenvolver nenhum assunto. José nos informou como acessou a unidade e a visão que tinha do atendimento ali. Mencionou a insistência da mãe para que buscasse ajuda, falou das visitas domiciliares feitas pela equipe de saúde, nas quais recebia convites para participar de espaços da USF, bem como para realizar exames. Respondeu que percebeu a influência da unidade em sua melhora.
Quando trouxemos ao enfermeiro a frustração a respeito da pouca abertura de José, ele informou que: “aquele não era um caso em que havia tanta identificação com a Saúde Mental, mas teve evoluções com o acompanhamento na unidade”. A impossibilidade de José criar um discurso por um cenário inédito para si, a construção da sua ideia de adoecimento, mostrava algumas limitações referentes à sua agência. Nascimento et al.2222 Nascimento YCML, Breda MZ, Albuquerque MCS. O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):479-90. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0194.
https://doi.org/10.1590/1807-57622014.01... discutiram as diferentes percepções do adoecimento por meio de si, dos outros e do Caps, e como contribuíram para a criação de um estigma. A pesquisa mostrou que o serviço de saúde poderia possibilitar às pessoas ser quem são, construindo uma ação autêntica e valorizada. Entretanto, não garantia por si só tal construção, uma vez que, fora daquele espaço, a visão da sociedade sobre seus adoecimentos ainda era historicamente construída por aspectos estigmatizantes2222 Nascimento YCML, Breda MZ, Albuquerque MCS. O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):479-90. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0194.
https://doi.org/10.1590/1807-57622014.01... .
Assim, tratava-se de um processo controverso para José, que exigia disposição para enfrentar determinações sociais do processo saúde-doença, construídas historicamente na coletividade humana2323 Laurell AC. A saúde-doença como processo social. Rev Latinoam Salud. 1982; 2(1):7-25., e, para além disso, questionar até que ponto a afirmação de um adoecimento era aspecto fundamental ou dispensável na garantia do cuidado.
Ao conversar com a ACS da área, a mesma que era responsável por Carla, ela trouxe um comparativo em relação à facilidade maior que teve com José do que com Carla, uma vez que, para ela “José é mais maleável pras coisas, é um ser humano mais sofrido. Mesmo com a mãe, ele sempre foi acumulador, sempre teve problemas e Carla, não”.
Contou que o via subindo e descendo a rua com latas na mão, a situação era vista de perto ao serem feitas as visitas para a sua mãe, pessoa com a qual “tinha uma relação simbiótica”, segundo o enfermeiro da USF. Viam-no lavar as mãos sempre, tomava vários banhos, não gostava que a mãe pegasse em suas coisas, até que a equipe foi se aproximando para tentar entender o que acontecia.
José começou a ser acompanhado em relação aos acúmulos de objetos que fazia em casa, como também a organização de estratégias para diminuí-lo. Tinha uma recusa em entender o acúmulo como excesso e sentia-se desconfortável com qualquer proposta de retirada dos materiais da sua vida. A intervenção da equipe servia para elaborar estratégias de criação de uma funcionalidade ao acúmulo e criar uma rotina para José.
Ao afirmar esse enfrentamento, emergia uma disputa de perspectiva entre o que os profissionais de saúde priorizavam como cuidado e a pessoa a ser cuidada desejava para si. O aspecto a ser ressaltado desse encontro é sua autonomia: “[...] é onde resisto que se localiza a minha capacidade de decidir o que desejo para mim”2424 Seixas CT, Baduy RS, Cruz KT, Bortoletto MSS, Slomp Junior H, Merhy EE. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface (Botucatu). 2019; 23(1):1-14. Doi: https://doi.org/10.1590/Interface.170627.
https://doi.org/10.1590/Interface.170627... (p.10).
O falecimento de sua mãe, com a qual dividia a casa em que morava e com quem possuía um vínculo estreito, foi um episódio de agravo em sua Saúde Mental, momento no qual se viu com um tensionamento financeiro mais presente. Decidiu pensar melhor a respeito da venda das latas de alumínio que acumulava, bem como entrar no grupo de geração de renda, decisão central na sua recuperação.
José passou a morar sozinho e a enfrentar grandes demandas financeiras; estava sem dinheiro para se alimentar, por exemplo. Além do problema relacionado à alimentação, também foi questionada a falta de uso sistemático dos medicamentos. A venda de latas foi revertida em uma fonte de renda, apesar de a equipe incentivar a descoberta de outra atividade laboral.
A lógica de reinserção social da pessoa com histórico de sofrimento mental pauta a construção constante de uma emancipação. A inserção no mercado de trabalho seria uma alternativa possível para catalisar esse processo, uma vez que o descrédito em relação ao potencial dessa população pode “[...] resultar em uma situação de dependência econômica, subordinação e imobilização, impedindo a conquista de seus direitos de cidadania”2525 Lussi IAO, Shiramizo CS. Oficina integrada de geração de trabalho e renda: estratégia para formação de empreendimento econômico solidário. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2013; 24(1):28-37. (p. 29).
Percebemos o papel do grupo de geração de renda nas muitas dimensões da vida de José – era seu espaço de convívio e suporte social. Foi perceptível como essas mudanças externas o impulsionaram a tomar um novo lugar diante das oportunidades ofertadas pelo serviço de saúde. Entretanto, apesar da importância da criação de espaços em que fosse possível inserir outra lógica de produção e consumo, havia o risco de (re)produzir a exclusão ao restringir a pessoa com transtorno mental aos espaços próprios de trabalho para essa população, compartimentalizando o contexto comunitário2626 Vechi LG, Chirosi PS, Prado JNC. A inserção social pelo trabalho para pessoas com transtorno mental: uma análise de produção científica. Rev Psicol Saude. 2017; 9(1):111-23..
No primeiro dia de acompanhamento do grupo, pudemos presenciar a divisão dos lucros da última venda de luminárias, cerca de R$ 70,00 para cada membro. A felicidade no rosto de José é o que temos de maior memória daquele momento, compreendendo quão longe poderia ir o cuidado.
Considerações finais
Retomando a perspectiva de reagregação social, a discussão aconteceu com base em ações que se davam em torno de ligações a serem “desemaranhadas’’33 Latour B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Bauru: Edufba, Edusc; 2012.. Contudo, não estava no objetivo desta pesquisa fazer o rastreamento de todas as conexões possíveis, mas sim trazer algumas tensões pertinentes dessa prática relacional e heterotípica que é o cuidado22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002..
Assim, analisando a atuação psicossocial55 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno de Saúde Mental para Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. pela abordagem praxiográfica de Mol22 Mol A. The body multiple: ontology in medical practice. Londres: Duke University Press; 2002., reconhecemos a importância da identificação precoce de características remetentes à agudização de um adoecimento mental, reforçando o cuidado longitudinal e multiprofissional da ESF, indo ao encontro dos atendimentos em outros níveis de atenção de atuação episódica em um quadro de crise.
Também identificamos a dificuldade em criar relações simétricas no trabalho em equipe que compartilha um projeto de cuidado, uma vez que a postura de enfrentamento ao acompanhamento do caso pela ACS sugeriu a inexistência de um consenso em torno do modelo a ser adotado pelos agentes envolvidos.
Foi visto que a configuração familiar poderia ser fator delineador do número de conexões a serem acionadas pela equipe de saúde por seu papel como responsável ser construído pela vinculação, condição também subordinada a outros fatores, como às possibilidades socioeconômicas, por exemplo.
Por fim, caracterizamos o agenciamento como uma ação pessoal submetida a uma série de condicionantes sobrepostos na rede psicossocial em que cada sujeito está inserido. Esse, portanto, pode ser um aspecto essencial da construção do cuidado, tendo o território da Atenção Primária como campo estratégico.
Diante disso, a despeito da multiplicidade de expressões do cuidado em Saúde Mental, a atenção psicossocial ganhou centralidade em sua performance mediante os modos de interação, continuidade, multiprofissionalidade, vinculação e individualidade. Os elementos emergentes convergiram para o intuito de elaborar meios possíveis de lidar com o adoecimento, na relação consigo e com o outro, em vez de priorizar a adequação a uma norma social do que é o ser saudável.
- Bezerra GP, Moreno Neto JL. Tecituras do cuidado: a Saúde Mental cartografada na Atenção Primária. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200544 https://doi.org/10.1590/interface.200544
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Nov 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
29 Jul 2020 - Aceito
02 Ago 2021