Série televisiva “Unidade Básica”: uma celebração da Saúde Coletiva e da Democracia

Television series “Unidade Básica”: a celebration of Collective Health and Democracy

Serie de televisión “Unidade Básica”: una celebración de la Salud Colectiva y la Democracia

Gustavo Tenorio Cunha Sobre o autor

Há alguns anos, em uma visita domiciliar com estudantes da graduação de Medicina, deparamo-nos com duas crianças assistindo televisão na sala. Por alguns instantes, a mulher que nos recebera de forma amistosa relutou em apagar a TV, e pudemos compartilhar brevemente daquela experiência televisiva no meio da tarde. O filme na televisão invadia a sala com cenas de um país distante, shopping center, casas enormes e pessoas brancas. Estávamos em um bairro da periferia de uma grande cidade, e, mais especificamente, em um trecho que era quase um pequeno povoado, que concentrava os migrantes de uma mesma cidade no interior de Minas Gerais. Em algum momento a mulher nos contou que não sabia ler e saía pouco do bairro. O marido, mais velho e pedreiro já estabelecido na cidade, conhecera a esposa na sua terra natal, anos depois de ter saído de lá. Ela se dizia feliz ali, porque a vida em sua terra sempre fora muito difícil. “Só vi luz elétrica na minha casa quando tinha vinte anos”, “Lá não tem serviço de saúde, como tem aqui”, “Lá não tem trabalho”. As conexões com a terra natal se mantinham pelo trânsito semanal de um ônibus clandestino, que “levava e trazia de tudo”, segundo nos contaram os profissionais da Unidade Básica. Não era raro receberem presentes trazidos pelos moradores.

Essa cena me veio à mente em meio à leitura do artigo “Grande mídia e comunicação sobre Saúde Coletiva e Atenção Primária: o desafio da produção da série televisiva Unidade Básica”. Logo após aquela visita domiciliar, na conversa com os estudantes, surgiram perguntas que ainda parecem pertinentes ao debate. Por exemplo, em que momento seria possível para uma família como aquela reconhecer-se na televisão? Em qual horário encontrariam, em alguma medida, o seu modo de vida, o sotaque, os desafios e soluções inventados na diversidade da base da pirâmide social brasileira? Ausência total? Não. Eles estão sim presentes, de forma negativa, nos programas policiais, religiosos e supostamente humoristicos. Invisibilidade e estigmatização são as duas faces da mesma cena.

Por proximidade e compromisso, em situação semelhante, estão talvez a maior parte dos que trabalhamos e ou ensinamos nas Unidades Básicas do país: também não estamos representados na grande mídia. Também predominam abordagens negativas sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) e raramente o espaço midiático permite algum aprofundamento no debate sobre os impasses das políticas de saúde brasileiras. É difícil dimensionar com precisão as consequências deste cenário na satisfação dos trabalhadores do setor público de saúde. É difícil saber quantos percursos profissionais são desviados para o espaço hospitalar e para especializações mais valorizadas simbolicamente (e economicamente) por causa das representações midiáticas? Também é difícil avaliar o efeito negativo cumulativo na legitimidade social das políticas públicas de saúde, no financiamento e na disputa pela saúde como um direito (e não uma mercadoria). O que é simples de constatar é que a contribuição da grande mídia para a Saúde Pública não é positiva, nem aleatória.

Jessé Souza11 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya; 2017. assim se refere à esfera midiática submetida aos fins da elite econômica, alcunhada por ele de “elite do atraso”:

É incrível que, em um país onde se fala sempre da privatização do público como seu problema principal, nunca ninguém tenha sequer refletido seriamente acerca da privatização da opinião pública, como efeito da colonização da esfera pública pelo interesse econômico. Enquanto a privatização do Estado por uma suposta elite estatal é o embuste do patrimonialismo como jabuticaba brasileira, a privatização do espaço público, que é real, é tornada invisível. Por sua vez, é a privatização da opinião pública que permite a continuidade da privatização do Estado pelo interesse econômico11 Souza J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya; 2017.. (p. 74)

Nessa perspectiva, que destaca a colonização quase absoluta da mídia por interesses econômicos, a simples existência de uma série como Unidade Básica tem um significado muito grande.

Como contribuição à formação de profissionais de saúde, a série se converteu em um instrumento didático precioso. O modelo atinge com facilidade jovens estudantes acostumados a essa linguagem. Como apontado no artigo, a perspectiva de um cuidado mais integral e a explicitação dos limites da abordagem clínica biomédica, muito presente até mesmo na Atenção Primária, é de um valor inestimável. Também foram muito pertinentes a escolha dos casos (sempre sensível ao que costuma ser mais prevalente), a construção cuidadosa dos diálogos e os desfechos dos episódios. Como citado no artigo, também muito foi importante a construção de um protagonista complexo, recusando o lugar do “exemplo a ser seguido” (abrindo, didaticamente, possibilidades de compreensão da clínica como um encontro entre seres humanos reais). Também se destaca a atuação sobre os determinantes sociais (representado, por exemplo, no episódio da leptospirose, pelo diálogo com um Conselho Local) e a perspectiva territorial, contribuindo com a análise e compreensão dos problemas. O episódio “Eraldo” é um bom exemplo: aborda o alcoolismo, alguns tipos de condição feminina na comunidade, a hiperutilização do serviço de saúde, o manejo da agenda, a capacidade de acolhimento dos usuários que apresentam maior necessidade de cuidado, instrumentos de abordagem familiar, entre outros. Particularmente, o genograma familiar é utilizado com uma finalidade analítica, sendo esta a forma mais rica, mais complexa e menos frequente de utilização do instrumento. Em uma cena preciosa, parte da equipe se reúne com a família e possibilita que ela perceba padrões de comportamento que se repetiam. Mais do que a realidade das Unidades Básicas de Saúde, em grande medida, a série é um compêndio de boas práticas e temas desafiadores na Atenção Primária e no SUS. Fica evidente que um resultado como este não é simples de ser obtido e que um saber especial e pioneiro foi desenvolvido, permitindo conciliar o rigor conceitual dos diagnósticos e das ações em saúde praticadas em cada episódio com as limitações da linguagem televisiva dominante e o tempo disponível. É um saber que foi muito além da área de Saúde Coletiva e da capacidade de buscar as boas histórias com os profissionais que trabalham ou trabalharam na Atenção Primária.

Por outro lado, o artigo destaca a intenção dos autores de disputar, na grande mídia, as narrativas sobre profissionais e serviços de saúde. Também nesse campo, embora os autores apontem que muitos aspectos poderiam ter sido melhores, o saldo positivo também é inequívoco. Duas diferenças com a tradição parecem se destacar: a centralidade do objeto de investimento do profissional de saúde nas pessoas, em oposição ao fetiche do diagnóstico médico e da tecnologia, tão comuns nas abordagens hospitalares; e a representação, sem depreciação – mas também sem idealização – da parte majoritária e invisibilizada do povo brasileiro.

Até aqui podemos dizer que a série tem um mérito político porque é um avanço na luta pela democratização dos meios de comunicação (que é em grande medida a luta pela própria democracia), que ela é um excelente instrumento pedagógico na formação de profissionais de saúde e um contraponto na estética dominante na grande mídia, que exclui e/ou deprecia a base da pirâmide social brasileira.

No entanto, o tempo parece ter se acelerado desde a primeira temporada da série. Novas modalidades de manipulação, centradas em algoritmos de grandes empresas que monopolizam a internet, não mais necessitam da invisibilidade para produzir efeitos de controle. A hipertrofia de uma ilusão especular produzida por várias das grandes máquinas da internet e a possibilidade de conciliar a valorização de afetos identitários com uma grande capacidade de manipulação colocam o campo político democrático diante desafios que, se não são totalmente novos, estão colocados de forma nova. Aparentemente, essas formas de controle e manipulação da informação e da subjetividade não excluem a grande mídia, ao contrário. A desastrosa experiência política recente no Brasil demonstra claramente a retroalimentação e a superposição entre grande mídia e a internet. Da mesma forma que a série Unidade Básica foi possível também porque existiram políticas de estímulo à produção audiovisual nacional, os novos avanços em direção a uma internet comprometida com a democracia dependerão da formulação e implementação de políticas que garantam transparência e compromisso democrático nos algoritmos que comandam a internet.

Referências

  • 1
    Souza J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya; 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    18 Maio 2021
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