Processo de trabalho em Clínicas Populares de Saúde na perspectiva de médicos

El proceso de trabajo en Clínicas Populares de Salud bajo la perspectiva de médicos

Douglas Moraes Campos Ruth Helena de Souza Britto Ferreira de Carvalho Roman Eduardo Goldenzweig Joelmara Furtado dos Santos Pereira Maria Teresa Seabra Soares de Britto e Alves Sobre os autores

Resumos

O objetivo deste estudo foi compreender a perspectiva de médicos acerca do processo de trabalho em Clínicas Populares de Saúde. Para isso, realizamos uma pesquisa qualitativa na qual foram entrevistados oito jovens médicos especialistas que atuam nessas empresas em São Luís, Maranhão. Identificamos condições precarizadas de trabalho, mas com pouca resistência por parte dos médicos, considerando que essas empresas são encaradas como espaços de projeção no mercado de trabalho local. Devido às limitações do modelo assistencial do tipo queixa-conduta, os entrevistados acionam uma rede informal e os usuários das Clínicas Populares de Saúde são encaminhados para o Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, o processo de trabalho do médico é desafiado por esse modelo assistencial fragmentado, o que faz borrar os limites nas interfaces público-privado na medida em que uma dupla porta de entrada para o SUS é naturalizada.

Profissional de saúde; Mão de obra em saúde; Edifícios de consultórios médicos; Sociologia médica


El objetivo de este estudio fue comprender la perspectiva de médicos sobre el proceso de trabajo en Clínicas Populares de Salud. Para ello, realizamos una investigación cualitativa en la que fueron entrevistados ocho jóvenes médicos especialistas que actúan en esas empresas en São Luís, Maranhão. Identificamos condiciones precarias de trabajo, pero con poca resistencia por parte de los médicos, considerando que esas empresas son consideradas como espacios de proyección en el mercado de trabajo local. Debido a las limitaciones del modelo asistencial del tipo queja-conducta, los entrevistados ponen en acción una red informal y los usuarios de las Clínicas Populares de Salud son derivados para el Sistema Brasileño de Salud (SUS). De tal forma, el proceso de trabajo del médico es desafiado por ese modelo asistencial fragmentado, lo que borra los límites de las interfaces público-privado a medida que se naturaliza una doble puerta de entrada al SUS.

Profesional de salud; Mano de obra en salud; Edificios de consultorios médicos; Sociología médica


Introdução

As crises econômica e política em curso no Brasil, sobretudo desde a segunda metade da década passada, produziram cortes significativos nos gastos públicos com saúde e um crescente aumento das taxas de desemprego e dos vínculos informais 11. Cunha MF, Meirelles JML. Os impactos da crise econômica brasileira no setor da saúde suplementar. Quaestio Iuris. 2018; 11(2):1378-97. . Essa sobreposição de crises coaduna com um movimento pendular do Estado que investiu no fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS), como na implementação do Programa Mais Médicos, em 2013, e, na sequência, a partir do impeachment em 2016, foram favorecidas propostas de abertura de mercado para a iniciativa privada no setor saúde, por meio de estratégias de desregulamentação e criação de seguros e planos de saúde mais baratos com coberturas limitadas 22. Bahia L, Scheffer M, Poz MD, Travassos C. Private health plans with limited coverage: the updated privatizing agenda in the context of Brazil’s political and economic crisis. Cad Saude Publica. 2016; 32(12):1-5. .

Essas ações criaram um cenário favorável aos setores empresariais que apresentam o mercado como solução para as crises. A “salvação” via mercado foi um argumento que deu sustentação às medidas de austeridade fiscal adotadas pelo Estado, especialmente aquelas resultantes do aprofundamento neoliberal do governo Temer (2016-2018) e que têm ampla repercussão no mundo do trabalho, fragilizando a proteção social dos profissionais em geral, incluindo os da saúde 33. Souza DO, Abagaro CP. A uberização do trabalho em saúde: expansão no contexto da pandemia de Covid-19. Trab Educ Saude. 2021; 19(1):1-15. .

Os impactos desses acontecimentos têm sido objeto de estudo na Saúde Coletiva 22. Bahia L, Scheffer M, Poz MD, Travassos C. Private health plans with limited coverage: the updated privatizing agenda in the context of Brazil’s political and economic crisis. Cad Saude Publica. 2016; 32(12):1-5. , 44. Russo G, Levi ML, Alves MTSSB, Oliveira BLCA, Carvalho RHSBF, Andrietta LS, et al. How the ‘plates’ of a health system can shift, change and adjust during economic recessions: a qualitative interview study of public and private health providers in Brazil’s São Paulo and Maranhão states. PloS One. 2020; 15(10):1-20. no que tange às diferentes respostas e adequações nas relações público-privado 22. Bahia L, Scheffer M, Poz MD, Travassos C. Private health plans with limited coverage: the updated privatizing agenda in the context of Brazil’s political and economic crisis. Cad Saude Publica. 2016; 32(12):1-5. , 44. Russo G, Levi ML, Alves MTSSB, Oliveira BLCA, Carvalho RHSBF, Andrietta LS, et al. How the ‘plates’ of a health system can shift, change and adjust during economic recessions: a qualitative interview study of public and private health providers in Brazil’s São Paulo and Maranhão states. PloS One. 2020; 15(10):1-20. , nas transformações no mercado de trabalho médico e, também, na expansão de Clínicas Populares de Saúde em algumas capitais brasileiras 44. Russo G, Levi ML, Alves MTSSB, Oliveira BLCA, Carvalho RHSBF, Andrietta LS, et al. How the ‘plates’ of a health system can shift, change and adjust during economic recessions: a qualitative interview study of public and private health providers in Brazil’s São Paulo and Maranhão states. PloS One. 2020; 15(10):1-20. .

Clínicas Populares de Saúde são empresas que ofertam consultas com médicos especialistas e exames diagnósticos de baixa e média complexidade a preços, ditos, ‘populares’ 55. Jurca RL. Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2018. , 66. Victalino APVD. Consultório privado para população de baixa renda: o caso das “clínicas populares” na cidade do Recife [dissertação]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004. . Essas são as apostas comerciais e as características que marcam suas especificidades nos mercados locais de saúde.

A produção científica sobre essas empresas 55. Jurca RL. Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2018.

6. Victalino APVD. Consultório privado para população de baixa renda: o caso das “clínicas populares” na cidade do Recife [dissertação]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004.

7. Godoy CV. A geografia dos serviços e equipamentos da saúde: a expansão das “clínicas médicas populares” no centro em Fortaleza - CE [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2015.

8. Lapa MR. As clínicas populares como uma alternativa à saúde no Brasil: um estudo de caso em uma clínica popular [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2014.

9. Soares FRWB. Clínicas médicas populares: estudo das variáveis de satisfação que influenciam na lealdade do usuário [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2018.
- 1010. Godoy CV. As clínicas médicas populares privadas: uma alternativa para a crise da saúde? Os casos de Fortaleza (CE) e Belém (PA). Rev Contrib Cienc Soc. 2019; 1-14. confirma que há, em sua organização e seu funcionamento, uma centralidade na força de trabalho médico. Entretanto, tais estudos não se dedicam a conhecer a perspectiva desses profissionais acerca das condições e relações de trabalho nesses estabelecimentos.

O processo de trabalho em saúde é compreendido, aqui, como um campo complexo de subjetivação, sobretudo na relação trabalho-trabalhador, uma vez que modula o sujeito ao mesmo tempo que pelo sujeito é modulado 1111. Merhy EE, Franco TB. Trabalho em saúde. In: Pereira IB, Lima JCF, organizadores. Dicionário da educação profissional em saúde. 2a ed. Rio de Janeiro: EPSJV; 2008. p. 427-32. . A organização social do espaço, a dinâmica do serviço, os meios de trabalho são tomados como as condições materiais pelas quais esse processo de subjetivação ganha forma. Além disso, a organização do processo de trabalho em saúde tem base na política pública do Estado, o que não o isenta das pressões do mercado, posicionando-o em constante interação com o cenário de saúde, sociedade civil e relações de consumo 1212. Pires D. Processo de trabalho em saúde no Brasil, no contexto das transformações atuais na esfera do trabalho [tese]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 1996. , 1313. Deslandes SF. Frágeis Deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002. .

O objetivo deste estudo foi compreender a perspectiva de médicos sobre o processo de trabalho a que estão submetidos e, também, os modos que caracterizam esses estabelecimentos em São Luís, Maranhão.

Buscamos contribuir para o debate acerca das condições de trabalho de profissionais de saúde. Paralelamente, pretendemos compreender o sentido das ações empreendidas por médicos na produção de cuidado em serviços que seguem uma lógica mercadológica, como as Clínicas Populares de Saúde.

Metodologia

Participaram desta investigação qualitativa médicos que trabalham em Clínicas Populares de Saúde na cidade de São Luís, Maranhão.

Foram incluídos profissionais que, na data da entrevista, trabalhavam ou que haviam trabalhado nessas empresas nos últimos seis meses, período considerado satisfatório para o detalhamento da descrição da estrutura físico-organizacional e do processo de trabalho.

O trabalho de campo ocorreu entre os meses de maio a julho de 2021. A pandemia da Covid-19 nos impôs limitações, por isso todo trabalho de campo foi realizado on-line, por meio digital.

Um informante-chave viabilizou a conexão entre nós e os possíveis interlocutores. Esse mediador contribuiu para que os médicos aceitassem participar da pesquisa. Foi utilizada a técnica de bola de neve, uma estratégia em que um entrevistado indica outros e, a partir das indicações, criam-se cadeias de referência 1414. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Tematicas. 2014; 22(44):203-20. com base na afinidade entre esses sujeitos.

Tal estratégia criou condições para aceitação da entrevista, uma vez que nosso contato era precedido pelo de um colega, alguém conhecido com quem o potencial entrevistado mantinha certa relação de proximidade. Isso deu condições também de transferir a confiança presente entre os colegas médicos para os entrevistadores. Essa situação viabilizou o trabalho de campo, possibilitando que os participantes se sentissem à vontade para compartilhar informações sobre sua trajetória profissional, o cotidiano de trabalho nas Clínicas Populares de Saúde, suas reflexões sobre a assistência e o futuro de suas carreiras.

Mediante interesse em participar do estudo, um convite informal era feito via aplicativo WhatsApp. Esse convite era formalizado por e-mail com data e horário da entrevista pactuados previamente, termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e um formulário Google Forms para caracterização dos entrevistados: idade, gênero, raça/cor, local e período de formação, especialidade médica e as Clínicas Populares de Saúde em que atuava.

Cada um dos participantes foi entrevistado individualmente, por meio de um roteiro semiestruturado que abordava situações ligadas ao cotidiano do trabalho médico, que incluía as condições e as relações de trabalho no espaço das interações entre gestores e profissionais e desses com a clientela. Todas as entrevistas foram realizadas utilizando a plataforma Google Meet, gravadas em áudio e vídeo e, posteriormente, transcritas na íntegra.

O trabalho de campo foi finalizado quando notamos que a técnica bola de neve não permitia mais expandir a heterogeneidade do perfil de entrevistados. Embora configure uma limitação da técnica, a semelhança entre os participantes refletia a configuração de um campo relacional, se não pessoal, pelo menos profissional entre eles e, consequentemente, durante a pesquisa de campo, viabilizou entrevistas mais detalhadas.

Analisamos os relatos mediante a articulação de diferentes abordagens teóricas, combinando a análise frequentemente marxista do processo de trabalho a conceitos e autores de outras áreas do conhecimento, como a Antropologia e a Sociologia 1313. Deslandes SF. Frágeis Deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002. . Essa escolha teórico-metodológica 1313. Deslandes SF. Frágeis Deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002. nos possibilitou descrever o processo de trabalho médico em sua materialidade (organização, dinâmica, instrumentos), bem como compreender as perspectivas desses profissionais sobre o trabalho em Clínicas Populares de Saúde, a saber: as dimensões relacionais que tomam forma nas micropolíticas da produção de cuidado 1313. Deslandes SF. Frágeis Deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2002. , 1515. Franco TB. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2006. p. 459-74. , 1616. Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6. .

Micropolítica 1515. Franco TB. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2006. p. 459-74. , 1616. Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6. é por nós compreendida como as ações de produção do cuidado que não estão formalizadas pelas normas e limitações dos serviços de saúde. Essas ações são representadas pelos agentes como sendo baseadas em valores adquiridos na formação profissional e, ao mesmo tempo, resultado da criatividade prática e estratégica incorporada ao habitus profissional, no cerne das interações cotidianas entre os trabalhadores da saúde e deles com os seus pacientes 1515. Franco TB. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2006. p. 459-74.

16. Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6.
- 1717. Wacquant L. Habitus. In: Catani AM, Nogueira MA, Hey AP, Medeiros CCC, organizadores. Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Ed. Autêntica; 2017. p. 213-7. .

Este estudo é um desdobramento da pesquisa intitulada “Como a atual crise reconfigura o sistema de saúde no Brasil? Um estudo sobre serviços e força de trabalho em saúde nos estados de São Paulo e Maranhão”, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Maranhão, sob número de certificado de apresentação de apreciação ética (CAAE) 00761118.2.0000.5087. Seguindo todas as recomendações da Resolução n. 510 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa.

Os participantes foram nomeados utilizando o prefixo ‘MED’ mais um número, por exemplo, ‘MED5’. Para preservar o anonimato dos entrevistados, suprimimos propriedades sociais específicas, tais como gênero, raça/cor da pele, local de formação e especialidade médica que, de alguma forma, pudessem identificá-los.

Resultados e discussão

O trabalho de campo e as escolhas metodológicas produziram oito entrevistas. Esses participantes eram médicos jovens, na faixa de idade entre 25 e 35 anos, graduados em Medicina na década passada. Quanto às características profissionais, foram entrevistados especialistas recém-formados, com término de residência a partir do ano de 2020. Ademais, todos os entrevistados possuíam vínculo com até três Clínicas Populares de Saúde, e cinco desses interlocutores também trabalhavam no Sistema Único de Saúde (SUS).

Houve uma concentração de especialistas da área da Saúde das Mulheres, dado que nosso informante-chave atua nessa área do conhecimento, direcionando indicações de colegas com a mesma expertise .

Os resultados e as discussões estão concentrados em três seções. “O trabalho médico em Clínicas Populares de Saúde” apresenta o modelo de contratação, a organização do processo de trabalho em saúde e a rotina nessas empresas. “Micropolíticas do trabalho médico em Clínicas Populares de Saúde” analisa a produção de cuidado, considerando as normas e os rearranjos informais no cotidiano laboral. “Levar o nome e treinar a mão” dialoga sobre os sentidos, potencialidades e limitações à assistência nessas empresas.

O trabalho médico em Clínicas Populares de Saúde

Apresentamos aqui elementos que configuram a objetividade do processo de trabalho médico nas Clínicas Populares de Saúde, considerando as condições de trabalho e de remuneração das práticas laborais e como essas condições foram submetidas a processos de precarização em decorrência do contexto político e econômico recente.

Inicialmente, a maneira como os médicos relataram seu recrutamento para essas empresas chamou a nossa atenção. Eles eram contratados ainda na condição de pós-graduandos, no final de suas residências. O convite de trabalho era mediado por um colega médico que já atuava na empresa contratante, ou seja, o modo de captação da força de trabalho ocorreu, majoritariamente, por meios informais, “por indicação”, com base em relações pessoais. Os participantes esclareceram que as empresas entravam em contato, apresentavam as condições de trabalho e as formas de remuneração, mas eles só aceitavam a proposta após conhecer as estruturas física e gerencial da clínica.

Quanto à estrutura física, as clínicas da parte central da cidade estão situadas em casas e pequenos prédios mais antigos, adaptados à nova função. As que estão localizadas em bairros fora da região central são mais recentes e utilizam prédios novos, empresariais. Nos dois modelos, as clínicas dispõem de uma recepção e uma sala de espera para a clientela, salas de consultório, geralmente pequenas, sala de procedimentos, sala de coleta e análise de materiais biológicos e laboratório próprio. Para os funcionários, sala da administração e copa.

Segundo os relatos, há um conjunto de critérios considerados mínimos exigido pelos profissionais para trabalharem nas Clínicas Populares de Saúde. O participante MED1, em tom de indignação durante a entrevista, nos contou o porquê de não trabalhar em um número maior de clínicas e esclareceu estes critérios:

[...] eu cheguei ainda a uma terceira clínica para trabalhar, também por indicação de colegas médicos [...] Só que aí, ao chegar lá, eu vi que o perfil da clínica era um perfil de produção [fabril]. Tinha uma estrutura ruim, a sala era insalubre, mínima, pequenininha, com um pouco de aspecto de suja. Tinha o material, mas um material guardado de um jeito ruim. Eu também só fui uma tarde e depois eu não fui mais. (MED1)

Com relação às dinâmicas de trabalho, a ‘flexibilidade’ dos turnos permite a conciliação com outros vínculos empregatícios, já que as consultas são organizadas em uma agenda elaborada pela própria clínica, com consentimento de cada profissional. Os médicos entrevistados atendem em média de oito a vinte pacientes por turno, em consultas com duração de 15 a quarenta minutos, dependendo da complexidade do caso. Em caso de consultas de retorno, sua duração diminui para cerca de cinco minutos.

No que se refere aos meios de trabalho disponíveis, insumos básicos, como luvas, máscaras, álcool em gel, gases e material de escritório, estavam sempre disponíveis e eram facilmente repostos, segundo os entrevistados. Recursos como maca, mesa ginecológica, biombo, esfigmomanômetro, balança e demais instrumentos necessários para a atividade clínica foram citados como disponíveis pelos participantes.

Segundo os entrevistados, o modelo de assistência é o da queixa-conduta, isto é, o profissional atende o cliente na sua especialidade, não havendo encaminhamentos para outros especialistas e menos ainda discussão de casos em uma perspectiva multiprofissional. Além disso, as relações dos médicos limitam-se à interação com gestores e demais funcionários que dão suporte às demandas rotineiras dos médicos para agendar e viabilizar a gestão administrativa dos atendimentos, como os operadores de call center , recepcionistas, seguranças e profissionais de limpeza.

As empresas desenvolvem estratégias de captação e fidelização da clientela. Há os cartões-convênio que têm o objetivo de atrair clientes com uma proposta de pagamento de um valor fixo mensal que dá acesso a consultas e exames a valores promocionais. Nos locais em que MED2 e MED3 trabalham, o valor do repasse proveniente de consultas com cartão-convênio é menor. Embora essa estratégia de fidelização tenha a proposta de oferecer vantagens aos clientes, na prática produz uma diferenciação entre os usuários, considerando que os médicos podem escolher se querem ou não atender os pacientes que utilizam esses cartões.

Criticados pelos entrevistados, os combos de exames são conjuntos de procedimentos/exames comprados por um valor promocional, geralmente alusivos às especialidades médicas como o “combo da mulher”. As empresas adotam o vocabulário de campanhas nacionais de promoção da saúde, apresentando-as e representando-se como se houvesse uma relação de continuidade entre os sistemas público e privado, uma afinidade eletiva, tal como o “combo outubro rosa”.

[...] já teve clínica que eu trabalhei antes que fazia combo outubro rosa, combo novembro azul e, por exemplo, mulher que nem tinha indicação de mamografia tava fazendo mamografia ou, então, o que eu achava até mais grave, combo saúde da mulher, combo outubro rosa. Aí tinha lá: ultrassom transvaginal, ultrassom das mamas e o preventivo Papanicolau e não tinha mamografia. Então, o principal exame de rastreio de câncer de mama não é o ultrassom, é a mamografia para mulher que tem a faixa etária indicada. Aí, a mulher tem aquela falsa sensação de que está protegida. (MED3)

A forma de remuneração dos médicos é o sistema chamado 60/40, ou seja, 60% do valor recebido pelas consultas é repassado aos profissionais e o restante para a clínica. Algumas empresas trabalhavam com um sistema 70/30, sendo a maior parte para os médicos e a menor, para as empresas, porém não é o mais usual. Há, ainda, um sistema chamado de co-working ; nesse modelo o médico paga um aluguel mensal pelo uso da sala do consultório e paga também uma porcentagem sobre cada consulta realizada.

Há ainda formas de repasse de custos dessas empresas aos profissionais, como o valor da taxa de processamento das máquinas de cartão, em consultas pagas na modalidade crédito, que é descontado do médico, segundo MED2. Outra situação diz respeito aos instrumentos de trabalho profissional. A empresa não disponibiliza equipamentos de biópsias, mas oferece e cobra pelo serviço. O profissional recebe pela consulta e pelo exame, mas recai sobre ele o custo do equipamento, de sua manutenção e do desgaste.

A pistola [da biópsia] é um equipamento bem caro. Eu tive um problema com um outro aparelho e tive que comprar um outro agora que é bem caro. O custo é meu, [...] ninguém me repassa esse dano por um equipamento que foi quebrado durante o atendimento (MED3)

Opera nessas empresas um modelo assistencial centrado no médico. Esse modelo pode impactar diretamente a qualidade do cuidado dispensado e é uma de suas principais limitações, uma vez que o trabalho colaborativo de múltiplos atores contribui de maneira mais eficaz para o enfrentamento dos complexos desafios da saúde 1818. Souza HS, Mendes ÁN. A terceirização e o “desmonte” do emprego estável em hospitais. Rev Esc Enferm USP. 2016; 50(2):286-94. .

Os médicos entrevistados avaliam a flexibilidade do trabalho como algo vantajoso, pois dá a eles a impressão de que controlam suas agendas, uma certa liberdade individual que se sobrepõe à fragilidade dos vínculos laborais, representando essa fragilidade como disponibilidade de gerenciamento. A “flexibilização”, nos marcos aqui analisados, implicaria “uniprofissionalização” e, sobretudo, isolamento do profissional médico; isolamento que é apresentado pelas empresas e representado pelos médicos como “margem de autonomia”.

Como expresso na fala de MED1, os entrevistados fazem uma avaliação das condições mínimas para a prática laboral e pouco citam a influência dos termos da contratação na decisão de trabalhar nessas empresas. Esses médicos se comportam como autônomos e são contratados como pessoas jurídicas, modalidade de contratação chamada de “pjotização”.

O movimento da “pjotização” da medicina no Brasil é balizado nos argumentos de uma suposta autonomia e flexibilidade dos trabalhadores e de seus vínculos empregatícios. Esses médicos prestam serviços como pessoa jurídica, sem os direitos garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) 1919. Alvim JLR, Viana JP. A precarização das relações de trabalho no cenário sócio-político contemporâneo: análise do tratamento médico-jurídico dado à Síndrome de Burnout. Pleiade. 2021; 15(33):63-74. , o que os torna vulneráveis ao repasse de custos do serviço, como elucidaram MED2 e MED3.

Contudo, esse movimento traz concomitantemente uma precarização dos contratos e condições de trabalho, posto que deixa de existir o vínculo empregador-empregado e o conjunto de garantias a ele associados. Esse arranjo é visto como vantajoso tanto para os médicos, uma vez que possibilita o acúmulo de múltiplos vínculos empregatícios, quanto para as Clínicas Populares de Saúde, que não têm custos fiscais das leis trabalhistas para manutenção desses profissionais em seus quadros de funcionários.

Como toda força de trabalho em saúde, o labor médico encontra-se inserido nas formas de reposição e exploração pelo capital e, embora o modelo de contratação “pjotizado” dê a sensação de exercício autônomo e liberal, esses profissionais estão submetidos às condições “contratualistas” de um serviço privado, que os priva de direitos e precariza suas atividades 22. Bahia L, Scheffer M, Poz MD, Travassos C. Private health plans with limited coverage: the updated privatizing agenda in the context of Brazil’s political and economic crisis. Cad Saude Publica. 2016; 32(12):1-5. , 2020. Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde: algumas contribuições conceituais para uma análise crítica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017. .

As estratégias comerciais são alguns dos resultados do movimento de mercantilização que ganhou ainda mais força com as crises econômica e política em curso no país. As ações neoliberais, que embora se anunciem como direcionadas ao controle dessas crises, ocasionaram forte segmentação das práticas assistenciais, com apelo ao cuidado excessivamente especializado e individual 2121. Morais HMM, Albuquerque MSV, Oliveira RS, Cazuzu AKI, Silva NAF. Organizações Sociais da Saúde: uma expressão fenomênica da privatização da saúde no Brasil. Cad Saude Publica. 2018; 34(1):1-13. , 2222. Correia MVC, Santos VM, Alves PKL. A mercantilização da saúde no enfrentamento da Covid-19: o fortalecimento do setor privado. Rev Humanid Inov. 2021; 8(35):71-85. , tal qual o modelo assistencial oferecido pelas Clínicas Populares de Saúde. E, como dito por MED3, causam a falsa sensação de que esses pacientes estão protegidos e que suas necessidades de saúde são supridas satisfatoriamente com esse modelo de serviço.

Micropolíticas do trabalho médico em Clínicas Populares de Saúde

Esta seção é resultado de questionamentos sobre autonomia médica. Para isso, ensaiávamos um espaço de diálogo para que os entrevistados apresentassem suas condições de trabalho e eventualmente falassem sobre a existência ou não de condutas subordinadas aos interesses das empresas em que trabalhavam, especialmente quando solicitavam exames e faziam encaminhamentos.

Foram apresentadas por eles as dimensões subjetivas do trabalho e suas micropolíticas, muitas vezes implícitas. E, como ensina Strathern 2323. Strathern M. The relation: issues in complexity and scale. Cambridge: Prickly Pear Press; 1995. , as relações são ao mesmo tempo objeto de análise e meios pelos quais chegamos a compreender o seu funcionamento. Por isso, as relações e as trocas intersubjetivas entre médicos e desses com sua clientela foram tomadas como objeto de estudo para entender os rearranjos realizados por esses profissionais em suas rotinas laborais.

Segundo os nossos entrevistados, a gerência não os obriga a solicitar apenas os exames disponíveis nas empresas e não lhes impõe explicitamente protocolos que limitam a autonomia de suas condutas e o raciocínio clínico. Porém, apesar de afirmarem sua autonomia com relação às suas condutas, com alguma frequência desenvolvem ações sem o conhecimento da gestão/administrativo dessas clínicas. Isso acontece não em termos de uma autonomia consensuada e legitimada, mas como forma irregular de defesa dessa autonomia, como forma de preservação de um critério clínico de cuidado.

Os entrevistados MED3 e MED7 nos referiram a necessidade de um exame de imagem de boa qualidade para traçar condutas apropriadas, particularmente nos casos de diagnóstico de câncer de mama. Por isso, em empresas onde a qualidade da radiografia não é boa, esses especialistas recomendavam outros estabelecimentos para realização do exame, em prol do melhor cuidado a ser prestado.

[...] em lugares que eu vejo que o exame não é um exame tão minucioso assim eu direciono para outros lugares. Geralmente, eu faço uma lista de lugares com exames mais confiáveis. Hoje mesmo eu fiz isso, inclusive. Às vezes, eu fico com um pouco de receio, do que a parte administrativa de alguma clínica [faria se] soubesse disso. Como seria essa abordagem? Mas, ao mesmo tempo, eu penso que [...] eu faço isso por uma necessidade clínica desse paciente de ser avaliado de forma bem mais minuciosa por um especialista mesmo de radiologia mamária. Então, eu penso que o benefício disso supera esse risco. (MED3)

As limitações apresentadas são características da própria precariedade do serviço que, nesse caso, apresenta uma qualidade questionável para exames primordiais no diagnóstico de doenças e agravos críticos. Ademais, o receio sobre a reação do setor administrativo reflete a fragilidade do vínculo empregatício e a lógica mercantil que opera nesses estabelecimentos.

Uma vez identificadas suspeitas diagnósticas graves, os médicos entrevistados declararam encaminhar pacientes das Clínicas Populares de Saúde para os serviços do SUS. Em certa medida, é como se houvesse uma rede informal de trabalho que funciona de acordo com a especialidade de cada médico. Os profissionais com duplo vínculo, nessas empresas e no sistema público, encaminhavam pacientes para si mesmos, no SUS. Os demais acionavam colegas médicos da mesma especialidade que trabalhavam no serviço público de saúde.

Quando não conseguiam por meio dessa rede informal, esses profissionais instruíam os pacientes sobre trâmites e caminhos menos demorados para conseguir assistência nos grandes hospitais públicos da cidade. De acordo com relatos, os clientes das empresas, uma vez atendidos em suas necessidades de saúde, demonstravam satisfação e gratidão aos médicos e a essas empresas pelo atendimento prestado, mesmo quando o problema de saúde havia sido resolvido no SUS, por meio de um encaminhamento informal.

Ao tratar a saúde como um bem de consumo, algo comum em sociedades neoliberais 2424. Santos PLP. Mercantilização da saúde e cidadania perdida: o papel do SUS na reafirmação da saúde como direito social. Rev Unifebe. 2013; 1(11):1-19. , as Clínicas Populares de Saúde não conseguem assegurar a qualidade terapêutica de seus serviços, considerando que são os próprios médicos que se encarregam dessa tarefa por meio de rearranjos informais.

Essas medidas informais friccionam, mas, ao mesmo tempo, preservam a lógica mercantil de funcionamento das Clínicas Populares de Saúde, dado que potencializam tanto situações vistas como problemáticas pelos médicos, quanto provocam reflexões e atitudes diante de casos, por exemplo, como os exames divulgados como “solução dos problemas de saúde”, mas que apresentam qualidade questionável. Isso ocasiona um certo movimento, seja na relação médico-empresa, seja na relação médico-paciente, e consequentemente na produção do cuidado 1515. Franco TB. As redes na micropolítica do processo de trabalho em saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Gestão em Redes: práticas de avaliação, formação e participação na saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; 2006. p. 459-74. , 1616. Malta DC, Merhy EE. A micropolítica do processo de trabalho em saúde - revendo alguns conceitos. REME Rev Min Enferm. 2003; 7(1):61-6. .

O rearranjo articulado pelos médicos é vantajoso para as empresas, uma vez que contribui para a “resolutividade” do serviço ofertado, satisfazendo a necessidade de saúde do cliente sem investimentos na qualidade do serviço. Portanto, os médicos contribuem para o próprio caráter contraproducente da saúde nessas empresas sem que delas se desvinculem.

Um argumento presente na literatura sobre Clínicas Populares de Saúde é que esses estabelecimentos seriam uma “alternativa ao SUS” 55. Jurca RL. Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2018.

6. Victalino APVD. Consultório privado para população de baixa renda: o caso das “clínicas populares” na cidade do Recife [dissertação]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004.

7. Godoy CV. A geografia dos serviços e equipamentos da saúde: a expansão das “clínicas médicas populares” no centro em Fortaleza - CE [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2015.

8. Lapa MR. As clínicas populares como uma alternativa à saúde no Brasil: um estudo de caso em uma clínica popular [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2014.
- 99. Soares FRWB. Clínicas médicas populares: estudo das variáveis de satisfação que influenciam na lealdade do usuário [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2018. . A oferta de consultas com médicos especialistas a preços mais baixos, com maior agilidade, por meio do agendamento direto 55. Jurca RL. Individualização social, assistência médica privada e consumo na periferia de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2018.

6. Victalino APVD. Consultório privado para população de baixa renda: o caso das “clínicas populares” na cidade do Recife [dissertação]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004.

7. Godoy CV. A geografia dos serviços e equipamentos da saúde: a expansão das “clínicas médicas populares” no centro em Fortaleza - CE [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2015.

8. Lapa MR. As clínicas populares como uma alternativa à saúde no Brasil: um estudo de caso em uma clínica popular [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2014.
- 99. Soares FRWB. Clínicas médicas populares: estudo das variáveis de satisfação que influenciam na lealdade do usuário [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2018. , é apresentada em oposição a um serviço público de saúde “ineficaz” e “superlotado” 66. Victalino APVD. Consultório privado para população de baixa renda: o caso das “clínicas populares” na cidade do Recife [dissertação]. Recife (PE): Universidade Federal de Pernambuco; 2004.

7. Godoy CV. A geografia dos serviços e equipamentos da saúde: a expansão das “clínicas médicas populares” no centro em Fortaleza - CE [dissertação]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2015.

8. Lapa MR. As clínicas populares como uma alternativa à saúde no Brasil: um estudo de caso em uma clínica popular [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2014.
- 99. Soares FRWB. Clínicas médicas populares: estudo das variáveis de satisfação que influenciam na lealdade do usuário [monografia]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2018. . Tal argumento tem caráter de justificação e parece não se descolar do senso comum.

Os encaminhamentos informais contrariam essa ideia, considerando que o acesso a exames ou procedimentos de alta complexidade de pacientes dessas empresas é realizado no SUS, como no caso de possíveis diagnósticos de câncer.

Ademais, não é possível que as Clínicas Populares de Saúde solucionem o problema do SUS quando, efetivamente, causam um outro: os encaminhamentos informais dão agilidade ao processo de resolução das demandas dos usuários dessas empresas, contornando etapas e procedimentos formais para encaminhamento de pacientes no SUS, ao passo que desaceleram o fluxo de espera daqueles que já aguardam atendimento no sistema público de saúde.

Tal estratégia possibilita a criação de nichos dependentes – e não alternativos – da estrutura do SUS e simultaneamente enfraquece a dimensão impessoal que sustenta as formas de organização do acesso a diferentes níveis de atenção, baseadas na lógica da racionalidade e da integralidade da assistência à saúde.

A demonstração de satisfação e gratidão às Clínicas Populares de Saúde, mesmo quando o problema de saúde foi resolvido no setor público de saúde, é particularmente curiosa e nos conduz à reflexão de que isso se dá pela maneira como a concepção de um SUS “sucateado” e “ineficaz” é midiatizada 2525. Menezes K. As representações do SUS na mídia. In: Braga CF, Cirino JAF, organizadores. Representações sociais e comunicação: diálogos em construção. Goiânia: UFG/FIC/PPGCOM; 2015. p. 117-34. e está presente no imaginário social. Essas representações veiculam interesses de deslegitimação/legitimação, considerando que é mercadologicamente vantajosa a narrativa de um SUS dito “ineficaz”, quando a Atenção Primária à Saúde, por exemplo, consegue suprir 80% das necessidades de saúde da população 2626. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Atenção primária é capaz de resolver 85% das demandas de saúde [Internet]. Brasília: CONASS; 2019 [citado 23 Abr 2022]. Disponível em: https://www.conass.org.br/atencao-primaria-e-capaz-de-resolver-85-das-demandas-de-saude/
https://www.conass.org.br/atencao-primar...
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As micropolíticas, portanto, enredam o processo de trabalho 2727. Araujo MD. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. Trab Educ Saude. 2004; 2(2):388-91. dos médicos entrevistados e, particularmente, nos ajudam a compreender a complexidade dos dilemas do exercício médico na busca por responder a interesses dicotômicos: enquadrar suas condutas ao caráter mercantil de funcionamento das Clínicas Populares de Saúde, ao mesmo tempo que buscam atender às necessidades de saúde dos pacientes dentro desse serviço com modelo assistencial limitado.

Levar o nome e treinar a mão

Nesta seção, apresentamos os motivos que levaram nossos entrevistados a trabalhar em Clínicas Populares de Saúde, como caracterizam esses estabelecimentos e o que planejam para suas carreiras.

Todos os participantes são médicos jovens, recém-formados em suas especialidades e em busca de seu próprio espaço no mercado de trabalho local. Por isso, o principal motivo enunciado por eles para a permanência nessas empresas está ligado à projeção profissional viabilizada pelas Clínicas Populares de Saúde, ou seja, “levar o nome”:

[...] me proporcionou levar o meu nome e isso foi o principal pra mim, né? No final das contas, se eu pudesse elencar e escolher um só [motivo]. Então, o principal foi isso, né, eu poder atender, engatinhando aos pouquinhos, né, e me fazer ser conhecido como [...] médico. Hoje a minha renda é principalmente dos plantões [...], mas essa projeção que a Clínica Popular me deu e me dá eu considero muito importante. (MED1)

Principalmente as empresas localizadas em bairros periféricos e populosos eram vistas como aquelas que tornavam os médicos conhecidos do grande público. Outros participantes também argumentavam que essas clínicas foram sua primeira experiência exercendo suas especialidades médicas. Nesses casos, serviam como campo para desenvolvimento da expertise na especialidade recém-concluída, sendo, portanto, lugar de “treinar a mão” daqueles que foram contratados ainda no final de suas residências.

O aspecto financeiro também era motivador de manutenção de vínculo com essas empresas.

Uma coisa que chama muita atenção dos médicos é a questão financeira, querendo ou não a maior parte dessas Clínicas Populares te pagam no dia. Então, ou seja, tu tens um retorno já imediato. (MED8)

Todavia, nenhum dos entrevistados planejava no futuro atender na mesma frequência que atendiam no momento da entrevista, ou seja, gostariam de diminuir ou até parar de trabalhar nessas empresas. Todos eles almejavam rotinas de trabalho menos exaustivas e vínculos empregatícios mais estáveis. Planejavam abrir os próprios consultórios, prestar concurso para a Saúde Pública ou ainda seguir carreira acadêmica.

O modo como a saúde é praticada nesses estabelecimentos foi refletido por nossos entrevistados, especialmente quando falavam do esforço que os pacientes de bairros populares faziam para pagar as consultas. Assim, MED3 passou a não cobrar pelas punções de pequenos cistos feitas durante as consultas. Tal procedimento, no entanto, não era declarado ao setor administrativo. Já MED4 costuma não cobrar consultas de retorno para entrega de exames que ultrapassam o prazo de trinta dias. Mesmo contrariando práticas institucionais, os participantes acabavam legitimando o discurso dessas empresas que afirmam ter uma “função social” ao supostamente garantir acesso à saúde a preços mais baixos.

O adjetivo “popular”, incluído no nome dessas empresas, dá a esses médicos a impressão de que estão trabalhando em serviços que contribuem para a coletividade, que possuem uma função quase filantrópica. Contudo, é possível observar que quem garante o “acesso” e até a continuidade do cuidado é o próprio médico e sua rede de relações pessoais e profissionais, entranhadas e vinculadas ao SUS.

Em razão da necessidade de “fazer o nome”, o frágil modelo de contratação e os pagamentos tornaram-se atrativos em curto e médio prazos, uma vez que, ao planejarem o futuro, essas características dão lugar à busca por estabilidade e direitos garantidos pela legislação trabalhista. Essas ambições futuras nos ajudam a entender que esses profissionais enxergam o vínculo estabelecido como algo temporário ou transitório.

Na prática dos médicos, esses efeitos apontam para a dimensão do que Bourdieu 2727. Araujo MD. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. Trab Educ Saude. 2004; 2(2):388-91. chama de interesse desinteressado. Segundo o autor: “por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados [...]” (p. 152) 2828. Bourdieu P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus; 1996. . Esse conceito se mostrou profícuo, sobretudo na compreensão de como esses profissionais estão engajados em atender bem os seus pacientes ao mesmo tempo em que buscam acumular mais capital simbólico.

O capital simbólico é aqui compreendido como o conhecimento e o reconhecimento construídos pelos médicos nas Clínicas Populares de Saúde. Para os entrevistados, essas empresas são campo de experiência prática do conhecimento adquirido em suas residências recém-finalizadas, espaço para construção de clientela e produção de networking . Assim, serão reconhecidos pelos pacientes e pares-concorrentes 2929. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004. .

A acumulação de capital simbólico é concomitante com o investimento em capital social, isto é, o conjunto de relações e de espaços de socialização profissional 2929. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004. . Nesse âmbito, podemos pensar nas formas de recrutamento e nas funções práticas exercidas nas clínicas, incluindo acessar o colega do SUS, o qual está em condições de acolher e fornecer prestações e contraprestações de serviços na esfera pública para seus clientes da esfera privada. A articulação e a combinação dessas espécies de capital é fundamental para os médicos com pouco tempo de experiência em suas especialidades e dadas as características de distribuição de mão de obra médica em São Luís e no Maranhão.

O Maranhão possui o segundo pior registro em distribuição de mão de obra médica do país; há, apenas, 1,08 médico para cada mil habitantes. Do total de todos os médicos que atuam no estado (7.642), 51% (3.899) são especialistas e a maioria desses profissionais está concentrada na capital, São Luís 3030. Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM; 2020. . Por esse motivo, nos anos iniciais da atuação como especialistas, e perante as expectativas de rendimentos desses tipos de capital, submetem-se ao modelo de vinculação e trabalho em Clínicas Populares de Saúde.

Embora os entrevistados reconheçam que a mão de obra do médico é explorada, essas empresas encontram pouca resistência por parte desses profissionais. Isso, por um lado, se dá porque há por parte das empresas um “processo de exploração” mais sutil, sem que se retire de maneira abrupta a autonomia, o status social e o sentimento de protagonismo desses profissionais no processo de trabalho em saúde 2020. Gomes RM. Humanização e desumanização no trabalho em saúde: algumas contribuições conceituais para uma análise crítica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017. . Por outro lado, contraditoriamente, essa exploração é o meio possível para acumulação de capital simbólico.

Considerações finais

Foi possível compreender que existem dilemas na atuação dos médicos em Clínicas Populares de Saúde, uma vez que ao cumprirem com a lógica mercadológica dessas empresas se deparam com um serviço de extensão limitada e, por isso, rearranjam informalmente algumas ações do processo de trabalho no ensejo de prestar um cuidado mais resolutivo e ético. Todavia, são essas empresas que mais se beneficiam desses mecanismos informais, tendo em vista que recebem o bônus de “serviço resolutivo”, mesmo quando as necessidades de saúde de seus clientes só foram resolvidas por meio de atendimento no SUS.

Ao buscarem esses médicos no final de suas residências, as Clínicas Populares de Saúde abrem o mercado de trabalho para os novos especialistas, que são muito bem-vindos em um contexto de distribuição de mão de obra médica tão desigual. Simultaneamente, esses profissionais replicam a narrativa que tornam esses estabelecimentos um sucesso comercial e, portanto, também “levam o nome” dessas empresas.

As ações que constituem o processo de trabalho de médicos em Clínicas Populares de Saúde se contextualizam em um âmbito maior: as políticas neoliberais para controle das crises, como a Emenda Constitucional n° 95, de 2016, diminuindo a oportunidade de desenvolvimento profissional no interior do sistema público de saúde, fragilizam as condições de trabalho em vínculos com a iniciativa privada.

Por fim, com base nesta pesquisa, não observamos substancialidade na ideia de que o serviço privado seria mais “resolutivo” que o serviço público de saúde, como é pregado pelos setores empresariais. Pelo contrário, a maneira naturalizada que a dupla porta de entrada para o SUS é construída de forma oficiosa e insidiosa nos fornece instrumentos para problematizar a posição “salvadora” em que o mercado se posiciona. Além disso, contribui para pensar problemáticas maiores, como as relações público-privado na saúde, levando em consideração que esse contexto possibilita a criação de nichos assistenciais, como as Clínicas Populares de Saúde, que são fortemente dependentes do SUS, mas que se beneficiam da degradação de sua imagem.

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  • Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001 e pelo edital n. 009/2018 Confap-MRC – Call For Health Systems Research Networks; Fapema Processo COOPI-00709/18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br