Experiências de mulheres transexuais no sistema de saúde: visibilidade em direção à equidade

Experiencias de mujeres transexuales en el sistema de salud: visibilidad en dirección a la equidad

Mariana Karolina Martins Rosa de Jesus Isabella Alves Azevedo Moré Rosimar Alves Querino Vitor Hugo de Oliveira Sobre os autores

Resumo

Com o objetivo de compreender o modo como mulheres transexuais têm sido atendidas em instituições do Sistema Único de Saúde, o estudo adotou o delineamento qualitativo. A análise de conteúdo temática de entrevistas e de grupo focal resultou em três categorias: utilização de serviços de saúde por mulheres trans; violência na Atenção à Saúde; falta de atendimento especializado. As participantes referiram não possuir vínculos com a Atenção Primária e buscar atendimento no ambulatório vinculado ao hospital de ensino e em pronto atendimento. Casos de violência institucional, negligência e preconceito permeiam suas experiências. Atendimento humanizado; credenciamento do hospital para o processo transexualizador; investimento no bem-estar do trabalhador; criação de protocolos de atendimento e canais de denúncia foram sugeridos. A equidade e a atenção integral requerem ampliação e qualificação dos serviços. Investimentos em Educação Permanente são essenciais.

Equidade em saúde; Minorias sexuais; Atenção à saúde

Resumen

Con el objetivo de comprender la forma en que las mujeres transexuales han sido atendidas en instituciones del Sistema Único de Salud, el estudio adoptó la delineación cualitativa. El análisis de contenido temático de entrevistas y de grupo focal resultó en tres categorías: Utilización de servicios de salud por mujeres trans; Violencia en la atención de la salud; Falta de atención especializada. Las participantes refirieron que no tenían vínculos con la atención primaria y que buscaban atención en el ambulatorio vinculado al hospital escuela y en urgencias. Casos de violencia institucional, negligencia y prejuicios atraviesan sus experiencias. Se sugirieron la atención humanizada, la acreditación del hospital para el proceso de transexualidad, la inversión en el bienestar del trabajador y la creación de protocolos de atención y canales de denuncia. La equidad y la atención integral requieren aplicación y calificación de los servicios. Son esenciales inversiones en educación permanente.

Equidad en salud; Minorías sexuales; Atención de la salud

Introdução

Historicamente associados à naturalização dos critérios da realidade corporal, os corpos têm sido classificados, ordenados e definidos. Estudos desenvolvidos por Butler11. Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 22a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2003. apontam que o gênero é construído e determinado culturalmente, sendo tal construção responsável pela expressão do que se compreende como “essência” do indivíduo.

A identidade de gênero é a experiência interna e individual que pode corresponder ao sexo atribuído no nascimento (cisgênero) ou não (transgênero). A expressão de gênero indica a manifestação social por meio da “imagem corporal”. Sexo biológico define-se por características genéticas, fenotípicas e hormonais. Assim, sexo biológico por si não determina a identidade ou a expressão de gênero, que são dimensões distintas22. Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes A Jr, organizadores. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole; 2021. Introdução à sexualidade humana e diversidade; p. 12-17..

Estudos sobre gênero expandem a compreensão sobre as diferentes identidades, porém os padrões discursivamente naturalizados da binaridade feminino ou masculino, perpetuados pela cisnormatividade, ainda ecoam multidimensionalmente a vida dos inconformes33. Simakawa VV. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.. As inúmeras faces da violência têm perpassado as experiências de pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queer, intersexo, assexuais, pansexuais e outros (LGBTQIAP+). Todavia, estudos têm demonstrado que são as pessoas transexuais que enfrentam maiores e mais graves casos de preconceito e hostilidade dentro da população LGBTQIAP+44. Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38.,55. Miskolci R, Signorelli MC, Canavese D, Teixeira FB, Polidoro M, Moretti-Pires RO, et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos. Cienc Saude Colet. 2022; 27(10):3815-24..

Na realidade cisnormativa, corpos travestis, transexuais e transgêneros (trans) transformam-se em objetos pejorativamente “anormais”, logo, descartáveis66. Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica; 2018.. Dentre as possíveis situações de vulnerabilidade se encontra a falta de amparo familiar e comunitário77. Silva BB, Cerqueira-Santos E. Apoio social na autoestima e identidade social de pessoas trans brasileiras. Psico (Porto Alegre). 2018; 49(4):422-32.. Em relação à saúde, destacam-se o sofrimento psíquico, o abuso de substâncias lícitas e ilícitas88. Santana JCB, Dutra BS, Salum GB. Vivências de travestis sobre a prostituição em um município do interior de Minas Gerais. REME Rev Min Enferm. 2016; 5(2):108-26., o desconhecimento e o não uso de métodos preventivos contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), o uso inadequado de hormônios, os procedimentos estéticos e cirúrgicos clandestinos, entre outros99. Borret RH, Oliveira DOPS, Amorim ALT, Baniwa BA. Vulnerabilidades, interseccionalidades e estresse de minorias. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A, organizadores. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole; 2021. Cap. 8, p. 60-72.,1010. Hanauer OFD, Hemmi APA. Caminhos percorridos por transexuais: em busca pela transição de gênero. Saude Debate. 2019; 43(8):91-106..

Instituições públicas, por vezes, reiteram a violência institucional e o desrespeito ao ofertar redução do número de serviços especializados e despreparo profissional para atender a diversidade sexual e de gênero1111. Caravaca-Morera JA, Padilha MI. Necropolítica trans: diálogos sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(2):e3770017..

Nesse cenário, a Política Nacional de Saúde Integral LGBT (PNSILGBT) representa um marco para a promoção da saúde, o combate à discriminação e ao preconceito institucional e a redução das desigualdades1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Consequentemente, a PNSILGBT deve ser entendida como um amparo institucional que carece de iniciativas e engajamento dos gestores, instituições e profissionais para se efetivar.

Estudos ressaltam que, apesar dos avanços na implementação da PNSILGBT, os usuários da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) se deparam com situações que ferem os princípios do SUS e sinalizam o desconhecimento, a insegurança e a falta de habilidade para executá-la, o que contribui para o distanciamento entre a população e o serviço1313. Silva ACA, Alcântara AM, Oliveira DC, Signorelli MC. Implementação da política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (PNSILGBT) no Paraná, Brasil. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190568. doi: 10.1590/Interface.190568.,1414. Nogueira FJS, Aragão TAP. Política Nacional de Saúde Integral LGBT: o que ocorre na prática sob o prisma de usuários (as) e profissionais de saúde. Saude Pesqui. 2019; 12(3):463-70..

Visando auxiliar a sedimentação dos estudos sobre a efetivação da PNSILGBT e os avanços na organização da Atenção à Saúde dessas minorias, a questão norteadora do estudo foi assim delineada: Como mulheres transexuais têm vivenciado o atendimento em serviços da Rede SUS?

Desse modo, o presente estudo objetivou compreender como mulheres transexuais têm sido atendidas em instituições da Rede SUS de um município do interior de Minas Gerais.

Métodos

Trata-se de estudo descritivo e exploratório com abordagem qualitativa1515. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010.. Esse delineamento primou por instituir processos de escuta das mulheres transexuais que permitissem captar nuanças de sua experiência na rede SUS, fundamentais diante da importância de compreender a efetivação da PNSILGBT e o modo pelo qual as barreiras para a equidade em saúde têm sido superadas nas diferentes localidades.

O estudo dirigiu-se, assim, pelo entendimento de que a pesquisa qualitativa no campo da Saúde Coletiva pode contribuir para “elucidação e superação dos problemas sociossanitários”, tarefa que requer “amplo acesso aos resultados e o direcionamento da investigação, aproximando academia, serviços, gestão e comunidade”1616. Bosi MLM. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: panorama e desafios. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):575-86. (p. 584).

O cenário do estudo foi o ambulatório de Endocrinologia de um hospital de ensino do interior de Minas Gerais. O hospital não é credenciado para o processo transexualizador, mas oferta atendimento em Endocrinologia. O convite às participantes foi feito pessoalmente, na sala de espera do ambulatório. As convidadas atendiam aos seguintes critérios de inclusão no estudo: ter idade igual ou superior a 18 anos e se identificar como transexual. Os critérios de exclusão consistiam em: estar em tratamento de saúde que fosse impeditivo do comparecimento ao encontro; ser coordenadora ou profissional de saúde; residir em município diferente daquele que sedia o ambulatório no qual o recrutamento ocorreu.

Dez pessoas manifestaram interesse em participar do estudo, entretanto apenas quatro compareceram ao encontro de grupo focal e concederam entrevistas.

Na construção de dados foram empregados os seguintes instrumentos: (a) formulário de caracterização sociodemográfica elaborado pelos pesquisadores; (b) técnica do grupo focal (GF); (c) entrevista semiestruturada (ENT). A técnica de GF contribui para a construção coletiva de informações sobre temas específicos. Como diferencial, o método baseia-se na capacidade que o ser humano possui de comunicação e de construção de posicionamentos em conjunto1717. Barbour R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed; 2009.. Já as entrevistas tiveram por função ampliar pontos pouco explorados no GF.

A reunião do GF aconteceu em novembro de 2019, em espaço da instituição de ensino, com condições de sigilo e privacidade. O encontro de GF foi conduzido pela pesquisadora com formação em Ciências Sociais e experiência em pesquisas qualitativas e contou com a observação de alunas de Graduação em Enfermagem e em Psicologia.

O GF foi norteado por roteiro que visava fomentar o diálogo sobre as experiências das participantes no SUS. Nesse intento, aplicaram-se as seguintes questões: “Ao procurar o serviço de saúde me sinto ”; “Quando eu procuro o serviço de saúde, eu sou tratado com ”; “Eu não procuro o serviço de saúde, pois ”; “Eu tenho os meus problemas resolvidos quando ”; “Conhece algum programa/ação municipal que aborde os direitos de igualdade social da população LGBT?”; “Que sugestões faria para melhorar o atendimento à população LGBT no SUS?”. Por sua vez, as entrevistas visaram elucidar singularidades sobre as experiências das participantes no SUS.

Elas consentiram com a audiogravação do GF e das entrevistas e foram informadas sobre as responsabilidades quanto ao sigilo das informações compartilhadas no grupo.

Os dados das ENT e dos GF foram compreendidos conjuntamente, segundo um método de triangulação1818. Santos KS, Ribeiro MC, Queiroga DEU, Silva IAP, Ferreira SMS. O uso de triangulação múltipla como estratégia de validação em um estudo qualitativo. Cienc Saude Colet. 2020; 25(2):655-64.. A análise de dados seguiu as diretrizes da análise de conteúdo temática estabelecidas por Braun et al.1919. Braun V, Clarke V, Hayfield N. Análise temática. In: Smith JA. Psicologia qualitativa: um guia prático para métodos de pesquisa. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 10, p. 295-327., envolvendo seis fases. A primeira e a segunda fases foram realizadas individualmente, o que consiste na “familiarização” dos dados obtidos e na leitura ativa. A “codificação” realizada posteriormente permitiu a organização do conjunto de dados em grupos, com a finalidade de encontrar padrões. Partindo dessa codificação, foi realizada a procura por “temas”, na qual os códigos foram agrupados em candidatos a temas potenciais, buscando formas de associá-los a um tema abrangente. A quarta, a quinta e a sexta fases foram desenvolvidas em equipe. Procedeu-se à “revisão dos temas”, refinando o conjunto de dados, definindo e denominando os temas; logo, foi possível captar o sentido do que foi codificado e a seleção de trechos elucidativos de cada categoria. No fim, houve a narrativa e a interpretação dos dados para a escrita final com base na literatura.

Há ainda que se contextualizar a posição epistemológica da pesquisa referente à questão da parcialidade inerente ao processo. Tendo em vista que as pesquisadoras partem de um lugar identitário culturalmente normativo, problematizam-se, no campo de pesquisa, as influências desse lugar na interpretação de experiências trans. Nesse sentido, adota-se a posição de Favero2020. Favero SR. Pesquisando a dor do outro: os efeitos políticos de uma escrita situada. Pesqui Prat Psicossociais. 2020; 15(3):1-16. de que não basta somente a identificação de um lugar de fala para se cumprir uma exigência de esclarecimento da parcialidade, mas deve-se, sobretudo, discutir as trocas estabelecidas e seu potencial de criar fissuras nas barreiras que impedem a abertura da dor do outro. Assume-se uma posição de estranhamento, na qual se problematiza a formação da própria identidade, permitindo a abertura de um “entre” cis-trans que explicite as experiências das participantes nos contextos de saúde2020. Favero SR. Pesquisando a dor do outro: os efeitos políticos de uma escrita situada. Pesqui Prat Psicossociais. 2020; 15(3):1-16..

A pesquisa atendeu aos preceitos e diretrizes da Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Parecer 4.081.363. Cada participante manifestou consentimento em termo específico do qual recebeu uma cópia. Visando garantir o sigilo, os trechos extraídos das entrevistas são indicados por ENT e os do grupo focal por GF, seguidos pelo nome fictício escolhido pela participante.

Resultados

O Quadro 1 apresenta a caracterização das participantes. Foram quatro mulheres trans com idades entre 25 e 32 anos. Três se autodeclararam brancas e uma, parda. As profissões referidas foram: auxiliar de veterinária, cabeleireira, decoradora e segurança. Uma delas era aposentada e as demais estavam inseridas no mercado informal de trabalho.

Quadro 1
Caracterização das participantes do estudo

Quanto à orientação sexual, três participantes se declararam heterossexuais e uma lésbica; três estavam solteiras e uma, em união estável. A moradia de duas participantes é compartilhada com familiares e as demais moram sozinhas. A renda familiar declarada foi de até um salário mínimo. Todas concluíram o Ensino Médio, tendo duas interrompido o Ensino Superior. Nenhuma possuía convênio médico.

O processo de análise dos dados construídos no grupo focal resultou no delineamento de três categorias: a) Utilização dos serviços de saúde por mulheres trans; b) Violência na Atenção à Saúde; c) Falta de atendimento especializado. Os resultados são apresentados de acordo com as categorias.

Utilização de serviços de saúde por mulheres trans

Em relação aos serviços de saúde da Rede SUS, as participantes referiram não possuir vínculos com a Atenção Primária à Saúde (APS), buscar atendimento no ambulatório vinculado ao hospital de ensino e, por vezes, acesso às unidades de pronto atendimento (UPA).

Antigamente eu tinha o hábito de buscar a [unidade de saúde], marcar consultas, essas coisas e eu deixei de ir, não fui mais [...]. Às vezes eu vou umas quatro vezes e eu perco a vaga [ouço] “Agora só daqui um mês” e às vezes dependendo do grau de situação que você está, você não espera, isso desanima. (ENT Ágatha)

Às vezes uso a UBS só que, geralmente, eu quase não vou, porque como eu procuro pela especialidade específica, eu já venho direto para o hospital [referência ao ambulatório]. (GF Rosa)

Nos relatos das participantes identificaram-se experiências marcadas por barreiras no acesso aos serviços: necessidade de judicialização para atendimento cirúrgico, demora no atendimento, ausência de ambulatório para atendimento especializado ao público trans.

A última [instituição de saúde] que eu utilizei de verdade foi a UPA. Eu fiquei 25 dias internada com problema renal [...] e para conseguir a cirurgia, eu tive que entrar com mandado de segurança, ou seja, eu tive que entrar na justiça para conseguir. (GF Ágatha)

Faz cinco meses que consegui atendimento e [fiz] os exames. Agora, não consigo atendimento para ver os resultados dos exames. (GF Ágatha)

Não tem uma grade específica aberta para as pessoas trans, entendeu? Eles [no ambulatório de endocrinologia] estão encaixando a gente “Ah tem horário? Encaixa. Não tem horário? Paciência”. (GF Rosa)

As participantes exploraram também a importância de avanços na despatologização, vistos como necessários para a superação da transfobia, e no reconhecimento de direitos. Identificaram que o “diagnóstico” tem sido a garantia para o acesso ao SUS.

A transexualidade não é doença, mas a sociedade nos adoece por sermos trans. Então, a despatologização foi errada porque vai barrar a cirurgia de redesignação, a partir do momento em que não está vinculada a um CID [Classificação Internacional de Docenças], ela vai passar a ser estética, e o SUS não vai ser obrigado a custear mais. (GF Rosa)

Sou totalmente contra a despatologização da transexualidade e da homossexualidade porque o fato de você despatologizar, você simplesmente está afirmando que essa pessoa não precisa do SUS. (ENT Rosa)

Uma das participantes também se referiu ao acolhimento em hospital psiquiátrico por ocasião de tentativa de autoextermínio.

O sanatório foi crucial na minha vida [...] foi onde eu tive todo o apoio que precisei pelo período da minha transição [...], foi no meu primeiro quadro de depressão que eu tive a tentativa de autoextermínio. [No sanatório] eu tive acesso a tudo aquilo que toda trans precisa no âmbito da saúde, que era uma equipe multiprofissional, que é um serviço social, uma psicologia, a psiquiatria, clínico geral, todo aquele corpo de enfermagem. Tudo isso que a gente precisa eu tive ali. Eles passaram a ter sensibilidade de me encaminhar para tudo aquilo que eu poderia precisar e que fosse favorável para minha transição. Quando eu saí do sanatório, eles me encaminharam para o CAPS [Centro de Atenção Psicossocial]. (ENT Rosa)

Violência na Atenção à Saúde

De acordo com as participantes, a violência na Atenção à Saúde pode ser velada ou não se manifestar em meio a situações preconceituosas, negligentes ou desmazeladas.

Mesmo sendo problema renal, eu passei por preconceito [...]. Eles perguntavam ou eu ouvia “Muito magra, ah usa droga.”, mas eu sempre tive esse corpo [...] E eu ouvi enfermeira falando “Ah usuária de droga, ah ela bebe [...]. (GF Ágatha)

A dra. [do ambulatório] comentou comigo que dentro do hospital tem muitos médicos que falam: “Como? Você é louca de atender esse povo!”. (GF Ágatha)

Diuturnamente, o uso do nome social é violado e o uso do nome de registro é utilizado especialmente em tom alto e, mesmo após as devidas solicitações e os esclarecimentos das participantes, foi relatado como violência.

Eu incluí o nome social em todos os documentos que eu tinha, sempre procurei ter o respaldo de documentar. [...] No cartão do SUS constava o nome de batismo e o nome social, mas na hora que joga no sistema e sai a ficha, sai com nome de batismo, não tem nome social junto. Quando vinha, vinha com letras minúsculas, lá no cantinho, sabe, um rodapé de cabeça pra baixo, quase desse jeito. Então, muitas vezes, a pessoa chamava [pelo nome de registro]. (GF Rosa)

Internada passei por preconceito, o enfermeiro ficava tirando sarro, gritando o nome que não era social no meio de todo mundo e me colocaram na ala masculina para dormir com os homens, mandavam eu não usar o banheiro de mulher, usar o de homem. (ENT Ágatha)

A negligência no atendimento em saúde pode ser observada na fala a seguir:

Quando eu fiz a cirurgia [renal] eu fiquei em choque porque não conseguia sair da maca, aí fui para sala [de recuperação]. [...] Fiz minha cirurgia três horas da tarde e eles [enfermeiros] foram abrir a sonda uma hora da manhã. Eu gritava de dor. Quando eu olhei, estava toda ensanguentada, eles não tinham aberto a sonda, fiquei com o cateter e, depois, o médico me tratou como se eu fosse um cachorro de rua. Eu tomei trauma de hospital [...]. (GF Ágatha)

Tentativas de autoextermínio foram relatadas por três das participantes. Nesses momentos delicados, em vez de se sentirem acolhidas, relataram atendimentos permeados por preconceitos, descaso e punições.

Eu tomei 40 comprimidos de um remédio tarja preta e, depois [...] eu me joguei em um buraco. Fiquei 8 horas lá. Então, os comprimidos que eu já tinha tomado já tinham sido absorvidos [...] O próprio médico olhou e falou assim: “Não tem absolutamente nada no seu estômago, mas mesmo assim faz uma lavagem.”. Para? Se já não havia nada no meu estômago, vai fazer uma lavagem para eu sentir dor? [...] Na hora de passar a sonda, a enfermeira enfiou com tanta força, que a sonda dobrou no meu nariz [...]. Falei “Tá dobrada.” e ela “Ah, está dobrada?” Ela deu um tranco e puxou e a sonda desceu e desceu sangue junto. (GF Estapélia)

Teve uma outra vez que a entrada [no SUS] foi emergencial. Numa situação na qual eu tive uma crise depressiva e tentei suicídio. Nessa vez, eu não fui tratada pelo nome social em momento algum e, para falar a verdade, nem com muito respeito me trataram. (GF Estapélia)

Eu estava entubada, quando eu comecei a voltar, eu mesma arranquei minha sonda, arranquei meus acessos e a minha mãe chamou a enfermeira [...]. Eu estava voltando à consciência, foi uma coisa que me marcou, [ela] falou assim [com ar arrogante]: “Você está desse jeito é porque já está ficando boa [...]. (GF Rosa)

Diferentemente das demais, uma das participantes referiu ter experiências positivas no SUS:

Eu fui super bem tratada [nos serviços públicos], graças a Deus, nunca aconteceu nenhum caso de me tratarem diferente. Eu também deixava bem claro a maneira como eu gostaria de ser chamada, [...] eu tinha uma certa paciência, porque eu sei que não é todo mundo que entende, mas a maneira como você chega também [interfere], [...] não sei se foi por sorte ou por pegar pessoas com uma consciência um pouco mais aberta [...]. (GF Parveti)

Falta de atendimento especializado

As participantes enfatizaram a falta de atendimento especializado para o público trans na Rede SUS local. Demonstraram conhecer as diretrizes do Ministério da Saúde (MS) sobre o processo transexualizador e a expectativa de que o hospital federal de ensino se organize para ser credenciado.

O ambulatório [da universidade] precisa de pessoas capacitadas para dar andamento no atendimento [para pessoas trans]. [...] O processo transexualizador deixa bem clara a lista dos profissionais e do que precisa para ser realizado e aqui [instituição de ensino] tem tudo, só falta a vontade de fazer e instaurar, porque ele engloba a cirurgia de mudança de sexo, implante mamário, acompanhamento e cirurgia, fonoaudiólogo, feminização facial. Engloba tudo isso, e não é obrigatório a trans fazer tudo [...]. (GF Rosa)

Algumas das limitações que a gente tem é porque não tem profissional capacitado para atender a nossa realidade. Existe psicólogo? Existe psicólogo. Tem endócrino? Tem endócrino. Tem urologista? Tem urologista. Só que não são especializados na área da andrologia, entendeu? (GF Rosa)

A queixa de falta de atendimento especializado para o público transexual também foi referida em relação às instituições e aos profissionais privados por uma das participantes.

Eu tenho um falso atendimento no serviço privado [...] Eu cheguei [no serviço privado] e [o médico] passou 12 exames hormonais. Progesterona e estrogênio, que eu estava tomando e que podia me matar, ele não passou para avaliar [...]. Então, ele não sabe o que está fazendo. [...] Na prática, ele não tem a mínima ideia do que está acontecendo com o meu corpo ou com a transição de gênero a qual eu estou fazendo [...]. (GF Estapélia)

O entendimento de que os profissionais precisam ser especializados também foi reportado em relação à Psicologia, posto que duas participantes tinham experiências anteriores de atendimento com psicóloga especializada em sexualidade e gênero. Segundo elas, o acompanhamento psicológico pode ser um grande aliado para o enfrentamento dos conflitos de reconhecimento e entendimento de sua identidade de gênero.

Eu acho muito necessário o acompanhamento no caso de pessoas trans para poder ajudar no que está acontecendo, porque é um momento que precisa de muita atenção [...]. Então, a psicóloga especializada em transgêneros pode estar auxiliando nesse processo, se for outro tipo de psicóloga eu acredito que pode aumentar a confusão, porque ela não vai entender, a gente vai ter dificuldade e vai deixar tudo confuso. (GF Rosa)

Com atendimento particular, eu já me senti muito mais à vontade, já demonstrei que era trans [...] e o atendimento particular principalmente com a X, que é especialista em sexualidade e gênero, foi fantástico. (GF Estapélia)

Nessas redes de apoio [...] ter um apoio psicológico, para poder chegar a uma conclusão do que [você] é [...]. A aceitação de si mesmo e de como é o mundo lá fora [...], até mesmo a família, fora do seu corpo, fora do seu “eu” [...] Eu acho que mudar as pessoas não vai, então tem que tratar quem vive na forma que quer viver. Eu acredito que seria esse tipo de apoio através das redes de apoio ou instituições. (ENT Ágatha)

Ante tal realidade de falta de atendimento especializado, as participantes nutrem expectativas de credenciamento do hospital para atendimento do processo transexualizador. Além disso, sugeriram ações para incentivar e qualificar trabalhadores, assim como coibir as situações de violência e negligência como as experimentadas.

Em âmbito hospitalar, eu acho que uma das formas de melhorar é o credenciamento, unir forças em prol de um benefício comum, porque querendo ou não o ambulatório transgênero é para o processo transexualizador, porque não é só a cirurgia de redesignação, porque o processo transexualizador engloba todas as especialidades cirúrgicas e ambulatoriais [...] Porque é um procedimento que tem que ter aqui, porque público já tem, pessoas capacitadas para comandar a cirurgia já tem [...] Então, o credenciamento é a principal vertente. (GF Rosa)

E eu acho que melhorar o salário deles, porque parece que eles não estão felizes fazendo o trabalho deles. Então, eu desejo que eles estejam felizes e a base disso é tendo um salário melhor. (GF Parveti)

Eu não sei se existe, por exemplo, [...] comitê de ética e responsabilidade [...]. Podia existir isso sobre o trabalho no SUS, porque tem certas atitudes antiéticas, igual o que eu passei no ato da enfermeira [na UPA], foi antiética [...]. (GF Estapélia)

Discussão

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) até o momento não incluiu em suas pesquisas meios para mensurar escolaridade, faixa salarial, situação familiar e estimativa de vida da população trans2121. Benevides BG, Nogueira SNB, organizadoras. Dossiê dos assassinatos e da violência contra pessoas Trans em 2020. São Paulo: Expressão Popular; 2021.. A ausência desses dados gera obstáculos para a implementação de políticas públicas que atendam às suas demandas. Há que se investir na produção de conhecimentos no campo da Saúde Coletiva e, também, de outras áreas que permitam a elaboração de programas e ações que fomentem a equidade2222. Paranhos WR, Willerding IAV, Lapolli EM. Formação dos profissionais de saúde para o atendimento de LGBTQI+. Interface (Botucatu). 2021; 25:e200684. doi: 10.1590/interface.200684..

Referente à utilização dos serviços de saúde pelas participantes do estudo, verificou-se a predominância de serviços de pronto atendimento e especializados, com inexistência de vínculo com instituições da APS. A experiência das mulheres acena para um desafio do SUS que é garantir a articulação em rede, graças ao fortalecimento da APS e de seus atributos2323. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2a ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011..

No SUS, a busca por atendimento é guiada pela manifestação e pela identificação de um sintoma ou uma queixa clínica. A priorização das condições agudas gera barreiras para a integralidade da atenção2323. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. 2a ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2011.. Cabe analisar a experiência das mulheres trans no município estudado como uma possibilidade de reconhecer que a integralidade da atenção, em todos os pontos da rede, é um desafio para a efetivação da PNSILGBT.

A judicialização para garantir atendimentos, a demora, a superlotação e a escassez de profissionais especialistas não são problemas exclusivos dos usuários LGBTQIAP+, mas sim de toda a população que utiliza os serviços da Rede SUS, o que não deslegitima as queixas relatadas pelas participantes do estudo. Há um impacto desigual das questões institucionais, tendo em vista que a cisnormatividade inferioriza essa população e a coloca em piores condições de saúde comparadas às de indivíduos heteronormativos, vivências que transgridem o princípio da equidade em saúde por posicionar a população LGBTQIAP+ em mais um lugar de restrição de direitos2424. Lara M, Fernandes CMS, Penteado VP, Serra MC. Direito à saúde e judicialização no acesso a tratamentos de média e alta complexidade pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Res Soc Dev. 2021; 10(3):e16010313091.

25. Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. doi: 10.1590/Interface.180279.
-2626. Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Ribeiro MC Jr, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no sistema único de saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cient Hum Soc. 2021; 9(2):55-70..

As participantes exploraram a questão da Classificação Internacional das Doenças (CID) como elemento que contribui para a estigmatização do acesso aos serviços de saúde, tangente à patologização da orientação sexual e da identidade de gênero impostas como “perversões sexuais”, que restringem o entendimento e a atuação dos profissionais e gestores de saúde, dificultando o acolhimento e o atendimento de diversas demandas de pessoas LGBTQIAP+33. Simakawa VV. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.,2626. Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Ribeiro MC Jr, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no sistema único de saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cient Hum Soc. 2021; 9(2):55-70.,2727. Favero SR, Souza FH. (Des)patologizar é (des)diagnosticar? inquietações sobre as disputas por autonomia no campo político. Rev Periodicus. 2019; 1(11):303-23..

Desde 2008, a Organização Mundial da Saúde (OMS) trabalha para uma nova reclassificação não patologizante da transexualidade por meio da CID, anteriormente incluída em “transtornos mentais” e, hoje, encontra-se em “condições relacionadas à saúde sexual” classificada como “incongruência de gênero”, em uma revisão realizada em 20182626. Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Ribeiro MC Jr, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no sistema único de saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cient Hum Soc. 2021; 9(2):55-70.. A despatologização é necessária para consolidar a autonomia das pessoas transexuais, reconhecendo-as como indivíduos capazes de decidir sobre seus corpos, dando-lhes, novamente, o direito de escolha sobre si. As pessoas transexuais, com incongruência de gênero, são reconhecidas e classificadas dentro da CID sem o peso de carregar consigo a taxação de possuir um “transtorno mental” ou de serem “disfóricas”. Contudo, a despatologização é vista, também, como uma ameaça e uma barreira aos seus direitos garantidos pelo processo transexualizador, posto que nesse caso não caberia ao Estado custear o tratamento. Diante disso, a discussão em torno do combate à (des)patologização e ao (des)diagnosticar mantém-se indefinida, haja vista o paradoxo da existência de um movimento no campo da saúde que não mais taxa a população trans como doentes, e da necessidade institucional de um diagnóstico para o acesso a seus direitos2626. Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Ribeiro MC Jr, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no sistema único de saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cient Hum Soc. 2021; 9(2):55-70.,2727. Favero SR, Souza FH. (Des)patologizar é (des)diagnosticar? inquietações sobre as disputas por autonomia no campo político. Rev Periodicus. 2019; 1(11):303-23..

O corpo trans é diferente do padrão cisnormativo de gênero e causa estranheza diante dos olhares normativos. Ao procurar os serviços de saúde, esses indivíduos podem experimentar diversas intercorrências (preconceitos, negligências e violências institucionais) que contribuem para o afastamento dessa população da rede SUS, agravando ainda mais as situações de vulnerabilidade44. Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38..

A fabricação desse corpo feminino passável socialmente (hormonização, uso de implante de silicone industrial injetável), geralmente feita em clínicas clandestinas por causa da inexistência de serviços especializados ou da dificuldade de acesso, resulta em complicações fisiológicas ao usuário33. Simakawa VV. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.,2828. Fuchs JJB, Hining APS, Toneli MJF. Psicologia e cisnormatividade. Psicol Soc. 2021; 33:e220944.. A construção desse corpo se associa à adoção de um nome que concretiza sua identidade de gênero, sendo essa a validação e o reconhecimento do seu “eu” interior exibido ao meio exterior. A Portaria n. 1820/2009 do MS tornou obrigatório o preenchimento do nome social em documentos, registros e prontuários de identificação dos usuários do serviço do SUS em campo específico, e a PNSILGBT em suas diretrizes normatizou esse direito1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. Contrário a eles, rotineiramente os direitos das pessoas trans são desrespeitados e elas passam por discriminação, preconceito, inferiorização e violência44. Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38.,55. Miskolci R, Signorelli MC, Canavese D, Teixeira FB, Polidoro M, Moretti-Pires RO, et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos. Cienc Saude Colet. 2022; 27(10):3815-24.,2525. Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. doi: 10.1590/Interface.180279..

O uso do nome social pelas pessoas trans promove acesso aos serviços de saúde e favorece o atendimento humanizado. O desrespeito ao nome social apresenta-se como o principal impedimento ao acesso universal, integral e equânime. Nesse contexto, seu uso fomenta caminhos para a concretização da atenção integral à saúde. No entanto, a conquista do nome social como obrigatório, apesar de um avanço importante para as questões trans, por si só modifica a dificuldade de acesso ao sistema de saúde, especialmente no que diz respeito à atenção2929. Silva LKM, Silva ALMA, Coelho AA, Martiniano CS. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis. 2017; 27(3):835-46..

A violência institucional é uma ação praticada por órgãos e agentes públicos, cuja função deveria ser a de garantir o zelo, a proteção e a defesa dos cidadãos. Essa violência se revela de forma verbal, por meio de negligências, tratamentos desumanizados, ameaças, punições, repreensões, abuso de poder, não alívio da dor e abuso sexual1111. Caravaca-Morera JA, Padilha MI. Necropolítica trans: diálogos sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(2):e3770017.. Estudo mapeou que 37% da população trans estudada sofreu homofobia; 36% tiveram ausência de atendimento; 27%, recusa e abuso de poder; 24%, demora excessiva no atendimento; e 40% sofreram algum tipo de violência física ou psicológica dentro do serviço de saúde3030. Bonassi BC, Amaral MS, Toneli MJF, Queiroz MA. Vulnerabilidades mapeadas, violências localizadas: experiências de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Quad Psicol. 2015; 17(3):83-98.. Toda essa plêiade de situações incide em demandas de Saúde Mental para o público trans. Por vezes, o consumo alcoólico e o abuso de tabaco e de outras drogas apresentam-se como forma de lidar com o sofrimento. Quando o indivíduo atinge o ápice do sofrimento, como tentativas de autoextermínio, ao adentrar o serviço de saúde o acolhimento é em geral demasiadamente doloso44. Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38.,55. Miskolci R, Signorelli MC, Canavese D, Teixeira FB, Polidoro M, Moretti-Pires RO, et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos. Cienc Saude Colet. 2022; 27(10):3815-24.,3030. Bonassi BC, Amaral MS, Toneli MJF, Queiroz MA. Vulnerabilidades mapeadas, violências localizadas: experiências de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Quad Psicol. 2015; 17(3):83-98..

Assim, os relatos encaminham para pensar o acesso à saúde como sendo interpelado por processos normativos que, devido a suas interpretações patologizantes, promovem a exclusão de pessoas trans. Os estudos sobre a cisnormatividade, que encontram em Vergueiro3131. Vergueiro V. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: Messeder S, Castro MG, Moutinho L, organizadores. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA; 2016. Cap. 13, p. 249-70. um aporte fundamental, propõem a cisgeneridade como uma das possibilidades de gênero em posição igualitária às outras, processo que as subjuga. Assim, ao olhar para as questões da saúde pela ótica da cisnormatividade, pode-se tensionar os saberes já construídos e investigar como a cisgeneridade se revela nas práticas profissionais, mesmo que não nomeada33. Simakawa VV. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2015.,3030. Bonassi BC, Amaral MS, Toneli MJF, Queiroz MA. Vulnerabilidades mapeadas, violências localizadas: experiências de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Quad Psicol. 2015; 17(3):83-98..

Nota-se que a abordagem das questões de gênero no atendimento à saúde evidencia dificuldades em separar o que é política de gênero e política para mulheres e homens. O binarismo normativo, que ainda permanece nessas discussões, causa a exclusão do atendimento à saúde ao público trans, transparecendo o preconceito institucionalizado excludente1111. Caravaca-Morera JA, Padilha MI. Necropolítica trans: diálogos sobre dispositivos de poder, morte e invisibilização na contemporaneidade. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(2):e3770017..

Visando ampliar esse debate, foram construídas políticas específicas para o público LGBTQIAP+, bem como políticas específicas para a população trans. Um dos exemplos é a Portaria n. 2803/2013 que redefine e amplia o processo transexualizador no SUS1212. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013. e estabelece critérios para a execução de procedimentos (ambulatoriais e hospitalares) a fim de atender às demandas da população trans. O atendimento não é limitado ou centralizado nas cirurgias de transgenitalização e engloba, dentre as inúmeras demandas, a hormonioterapia. Prima-se pelo atendimento interdisciplinar e multiprofissional em diversas áreas, com porta de entrada na APS, mas o acolhimento do usuário do serviço deve ser pautado nas políticas de humanização, livre de discriminação, por meio da sensibilização dos profissionais e demais trabalhadores da unidade a fim de respeitar as diferenças e preservar a dignidade do ser humano em todos os níveis de Atenção à Saúde2525. Paulino DB, Rasera EF, Teixeira FB. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180279. doi: 10.1590/Interface.180279.,2929. Silva LKM, Silva ALMA, Coelho AA, Martiniano CS. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis. 2017; 27(3):835-46.,3030. Bonassi BC, Amaral MS, Toneli MJF, Queiroz MA. Vulnerabilidades mapeadas, violências localizadas: experiências de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Quad Psicol. 2015; 17(3):83-98..

Para um melhor atendimento, torna-se estratégico considerar a importância da conscientização das peculiaridades dos usuários LGBTQIAP+ desde a formação profissional, a fim de preparar os profissionais para lidar com os usuários de forma humana e integral em todas as esferas dos serviços de saúde, público e privado, aproximando esse público dos serviços de saúde2626. Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Ribeiro MC Jr, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no sistema único de saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cient Hum Soc. 2021; 9(2):55-70..

A literatura tem indicado inúmeros desafios da fluidez do gênero acompanhada por conflitos familiares. Como apontado pelas participantes do estudo, faz-se necessário que as equipes multiprofissionais e, especialmente, os profissionais de Psicologia tenham conhecimento amplo das peculiaridades dessa população a fim de contribuir no enfrentamento das dificuldades do viver sendo uma pessoa trans22. Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes A Jr, organizadores. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole; 2021. Introdução à sexualidade humana e diversidade; p. 12-17.. O processo de formação de profissionais da saúde deve, portanto, ser voltado à compreensão das especificidades de cuidado da população LGBTQIAP+, incluindo o sofrimento contínuo produzido pela estrutura cisnormativa e heteronormativa que permeia a atuação profissional. Assim, atuar dentro dos princípios de universalidade, integralidade e equidade implica a construção de, nos dizeres de Favero1919. Braun V, Clarke V, Hayfield N. Análise temática. In: Smith JA. Psicologia qualitativa: um guia prático para métodos de pesquisa. Petrópolis: Vozes; 2019. Cap. 10, p. 295-327., “uma metodologia que é feita de encontros”.

Atendimento humanizado; credenciamento do hospital para o processo transexualizador; investimento no bem-estar do trabalhador; criação de protocolos de atendimento; e canais para denúncia de casos de violência e negligência, são desejos comuns da população trans e vão ao encontro de resultados encontrados em outros estudos44. Ferreira BO, Nascimento EF, Pedrosa JIS, Monte LMI. Vivências de travestis no acesso ao SUS. Physis. 2017; 27(4):1023-38.,55. Miskolci R, Signorelli MC, Canavese D, Teixeira FB, Polidoro M, Moretti-Pires RO, et al. Desafios da saúde da população LGBTI+ no Brasil: uma análise do cenário por triangulação de métodos. Cienc Saude Colet. 2022; 27(10):3815-24.,1313. Silva ACA, Alcântara AM, Oliveira DC, Signorelli MC. Implementação da política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (PNSILGBT) no Paraná, Brasil. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190568. doi: 10.1590/Interface.190568.,1414. Nogueira FJS, Aragão TAP. Política Nacional de Saúde Integral LGBT: o que ocorre na prática sob o prisma de usuários (as) e profissionais de saúde. Saude Pesqui. 2019; 12(3):463-70.. A amplitude das sugestões apresentadas permite antever os inúmeros desafios a serem enfrentados pelo SUS para garantir o atendimento à saúde de mulheres trans.

Considerações finais

A construção da pesquisa com amplo processo de escuta de mulheres trans permitiu explorar em minúcias suas experiências no SUS, traçando detalhadamente o enredamento das questões vivenciais com a estrutura excludente que permeia os processos em saúde. Embora o estudo aborde vivências em um município do interior de Minas Gerais, ele permite refletir quanto elas, atravessadas por inúmeras situações de violência institucional, negação de direitos e negligência, reiteram a estrutura de exclusão. Isso permite problematizar quanto os avanços ocorridos no campo jurídico e nas políticas públicas esbarram, em sua efetivação, na transfobia e na cisnormatividade.

Criar serviços especializados e ampliar o credenciamento de instituições para o processo transexualizador requerem investimentos financeiros e mobilização das equipes, e representarão avanços na medida em que estiverem ancorados no amplo acesso ao SUS.

A atenção integral às minorias é tarefa de toda a rede e da sociedade, na medida em que deve ser abordada no bojo do combate às iniquidades sociais e à cisnormatividade que produzem adoecimento. Assim sendo, uma atuação sensível e pautada no respeito à diversidade é fundamental para a efetivação da PNISLGBT. Nesse intento, investimentos na formação e na Educação Permanente de profissionais podem contribuir para o aumento da visibilidade das demandas da população trans, fomentando melhorias no atendimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br