Resumo
Processos formativos para fortalecer a segurança alimentar e nutricional (SAN) como política são demandas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Objetivamos descrever e analisar práticas educativas desenvolvidas pelos docentes, visando refletir e propor ajustes para aprimorar o processo formativo a distância em SAN no contexto da CPLP. O curso foi composto por alunos do Brasil; Cabo Verde; Moçambique e São Tomé e Príncipe. A pesquisa é aplicada, teve abordagem qualitativa e natureza descritiva e explicativa, empregando videoaulas como materiais de estudo, principalmente, com base na Análise Textual Discursiva. A proposta indica que cursos de mesma natureza requerem da gestão educacional formação docente; reconhecimento do conhecimento dos discentes; inserção de dialogia nas videoaulas; oferecimento de atividades locais capazes de gerar compreensão da realidade; criação de sequência para elaboração do Trabalho de Conclusão (TCC); e desenvolvimento do TCC visando à transformação da realidade.
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; Educação a distância; Práticas educativas; Segurança alimentar e nutricional
Resumen
Procesos formativos para fortalecer la Seguridad Alimentaria y Nutricional (SAN) como política son demandas de la Comunidad de los Países de Lengua Portuguesa (CPLP). El objetivo es describir y analizar prácticas educativas desarrolladas por los docentes, con el objetivo de reflexionar y proponer ajustes para el perfeccionamiento del proceso formativo a distancia en SAN en el contexto de la CPLP (Brasil, Cabo Verde, Mozambique y Santo Tomé y Príncipe). Se realizó la investigación, con abordaje cualitativo y naturaleza descriptiva y explicativa, empleando videoclases como material de estudio, principalmente con base en el Análisis Textual Discursivo. La propuesta indica que cursos de la misma naturaleza demandan de la gestión educativa: formación docente, reconocimiento del conocimiento de los discentes, inserción de dilogía en las videoclases, ofrecimiento de actividades locales capaces de generar comprensión de la realidad, creación de secuencia para elaboración del Trabajo de Conclusión (TCC) y desarrollo del TCC con el objetivo de transformación de la realidad.
Comunidad de los países de lengua portuguesa; Educación a distancia; Prácticas educativas; Seguridad alimentaria y nutricional
Introdução
A atenção à segurança alimentar e nutricional (SAN) das populações tem se tornado mais relevante nos debates nacionais e internacionais, principalmente quanto ao desenvolvimento de políticas públicas voltadas à sua promoção11. Abbas M. (In) segurança alimentar e território em Moçambique: discursos políticos e práticas. Rev Nera. 2017; 20(38):106-31. .
A preocupação com a SAN no mundo torna-se ainda maior com os dados alarmantes divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)22. Food and Agriculture Organization, International Fund for Agricultural Development, United Nations International Children’s Emergency Fund, World Food Programme, World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: FAO; 2021. .
A insegurança alimentar moderada ou grave, baseada na vivência do indivíduo e das famílias em não ter recurso suficiente para se alimentar, cresceu exponencialmente entre os anos de 2020 e 2021, equivalendo à taxa de aumento dos cinco anos anteriores22. Food and Agriculture Organization, International Fund for Agricultural Development, United Nations International Children’s Emergency Fund, World Food Programme, World Health Organization. The state of food security and nutrition in the world 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: FAO; 2021. , 33. Food and Agriculture Organization. Voices of the Hungry. Escala de experiencia de inseguridad alimentaria [Internet]. Rome: FAO; 2022 [citado 6 Jan 2022]. Disponível em: https://www.fao.org/in-action/voices-of-the-hungry/fies/es/
https://www.fao.org/in-action/voices-of-... .
Ainda segundo o relatório, há grandes desigualdades regionais. Vinte por cento da população sofreu de fome na África durante 2021, número que excede em mais de duas vezes o de qualquer outra região mundial.
Esse quadro ressalta a importância de ações locais e promotoras da SAN. Nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), bem como no Brasil, está em processo, em maior ou menor avanço, a institucionalização das políticas de SAN, por meio de leis, conselhos e câmaras institucionais especializadas44. Sarmento F, Pinto J. Construção e implementação da Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP: histórico, balanço e perspectivas [Internet]. Rio de Janeiro: Ceresan; 2015 [citado 16 Out 2021]. Disponível em: https://ceresan.net.br/wp-content/uploads/2016/docs/Estrategia_de_SAN_CPLP.pdf
https://ceresan.net.br/wp-content/upload... .
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) elaborou em 2011 a Estratégia de SAN (ESAN-CPLP), que, por sua vez, criou seu Conselho (CONSAN-CPLP), objetivando promover a participação social e a intersetorialidade na coordenação das ações, políticas e projetos da ESAN.
Um dos meios de atuação do Conselho, o Mecanismo de Facilitação da Participação das Universidades (MU-CONSAN-CPLP), tem identificado demandas para difusão do conhecimento, capacitação e formação de agentes para atuarem no fortalecimento e na institucionalização da SAN como política em todos os níveis de governo55. Mecanismo de Facilicitação das Universidades no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Quem somos [Internet]. Redenção: MU-CONSAN-CPLP; 2019 [citado 6 Jan 2022]. Disponível em: https://muconsancplp.unilab.edu.br/quem-somos
https://muconsancplp.unilab.edu.br/quem-... . Nesse contexto, a educação a distância (EAD) tem sido uma ferramenta para promoção e acesso a processos formativos.
A EAD66. Lévy P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34; 1999. , 77. Silva JCA. A integração das TIC no ensino secundário em Cabo Verde: um estudo de caso [dissertação]. Lisboa: Universidade Aberta; 2014. possibilita oportunidade de integração, proximidade e troca de experiências entre comunidades virtuais com interesses, necessidades e desejos comuns, independentemente das barreiras físicas, geográficas ou domínios institucionais. Além disso, favorece o barateamento dos custos, a flexibilização do tempo, o uso de variados tipos de mídias e a valorização da adaptação curricular.
Assim, a EAD pode ser pertinente para vivência de experiências de ensino e de aprendizagem segundo formação de comunidade de aprendizagem colaborativa e, como tal, exige, por exemplo, que os docentes estejam pedagogicamente atentos para o fato de que a EAD não se baseia especialmente em um conjunto de técnicas, mas sim em um processo marcado pela interação existente entre a natureza colaborativa (social) e construtivista (cognitiva)88. Garrison DR, Anderson T. E-Learning in the 21st Century: a framework for research and practice. London: Routledge; 2003. , 99. Rourke L, Anderson T, Garrison DR, Archer W. Assessing social presence in asynchronous text-based computer conferencing. J Dist Educ. 2001; 14(2):50-71. .
Segundo essa perspectiva, não basta integrar a EAD nos contextos de aprendizagem para assegurar a melhoria da sua qualidade. Os processos formativos dependem dos saberes técnicos, epistemológicos, pedagógicos e disciplinares aprendidos e mobilizados por docentes e discentes em situações de aprendizagem, cuja construção leva em conta a realidade vivida e as condições reais de ensino1010. Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. 13a ed. Petrópolis: Vozes; 2012. .
Nesse sentido, processos formativos com base na EAD igualmente atrelam-se à ideia de prática educativa, conforme posta por Paulo Freire1111. Freire P. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.
12. Scorsolini-Comin F. Diálogo e dialogismo em Mikhail Bakhtin e Paulo Freire: contribuições para e educação a distância. Educ Rev. 2014; 30(3):245-65. - 1313. Menezes MG, Santiago ME. Contribuição do pensamento de Paulo Freire para o paradigma curricular crítico-emancipatório. Pro-Posições. 2014; 25(3):45-62. , uma vez definida a última como sendo o entendimento de que envolve a apreensão da realidade, o que implica em reconhecer os múltiplos saberes e as experiências que articula1111. Freire P. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011. .
Levando isso em conta é que desenvolvemos a investigação da segunda edição do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Segurança Alimentar e Nutricional, oferecido a distância e para discentes da CPLP do Brasil, de Cabo Verde, de Moçambique e de São Tomé e Príncipe. Tal curso aconteceu em dois grupos com dupla titulação: um com alunos da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab); e outro com alunos da Unesp e da Universidade Zambeze (UniZambeze), Moçambique.
O curso foi vivenciado entre agosto de 2019 e fevereiro de 2022 e composto por 485 horas, divididas em dez módulos, incluso o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Os dez módulos do curso comportavam 35 disciplinas e cada uma delas contou, ao menos, com uma videoaula, além de indicação de materiais complementares, um texto elaborado pelo docente responsável, um fórum de discussão e uma tarefa avaliativa.
Este curso foi destinado a profissionais com formação superior que atuassem ou tivessem interesse nas políticas públicas de SAN. Com 180 matriculados, o corpo discente foi composto por brasileiros (16%), cabo-verdianos (3,5%), santomenses (8%) e moçambicanos (72,5%). Os discentes africanos compunham 84% dos alunos.
Os PALOP possuem dificuldades quanto ao acesso à internet e às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), por questões financeiras e de sinal de internet. Acrescenta-se ainda a diferença de fuso horário entre o Brasil e esses países (variando de duas a cinco horas), o que atrapalha a vivência de atividades síncronas no período noturno (preferido pelo envolvidos, dado que a maioria trabalha durante o dia). Nesse cenário, o uso de ferramentas assíncronas é imprescindível e valioso.
A elaboração do material didático foi de responsabilidade de 41 docentes em trabalho de cooperação, não remunerado. Trinta e um eram brasileiros e sete, portugueses. No continente africano, doze docentes se envolveram na articulação, tutoria e orientação de trabalhos de conclusão, sendo que três também ministraram aula.
Objetivamos neste trabalho descrever as práticas educativas desenvolvidas pelos docentes, visando refletir e propor ajustes para aprimorar o processo formativo a distância em SAN no contexto da CPLP. Nesse sentido, partimos do reconhecimento de que o ciclo gnosiológico associado à construção de práticas educativas exige consciência do inacabamento, reflexão critica sobre a prática e tomada de decisões. Além disso, valorizamos a translacionalidade, por permitir aproximação entre pesquisador e campo de atuação, visto que ela oportuniza novos conhecimentos e novas tecnologias para a prática educativa1414. Cabral Filho JE, Silva JR Jr, Agra KF. Pesquisa Translacional e a importância da sua difusão. Rev Bras Saude Mater Infant. 2013; 13(4):293-6. .
O referencial teórico utilizado é constituído por autores que destacam a importância da construção de práticas educativas que tenham como base a mobilização de vários saberes1010. Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. 13a ed. Petrópolis: Vozes; 2012. , o exercício da autonomia1111. Freire P. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011. e o questionamento do pensamento abissal1515. Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud Cebrap. 2007; 79:71-94. . Também empregamos autores que destacam a necessidade de pensar a construção de conhecimento por meio das TIC na contemporaneidade66. Lévy P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34; 1999. , 1616. Canclini NG. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras; 2008.
17. Coll C, Monereo C. Psicologia da educação virtual: aprender e ensinar com as Tecnologias da Informação e da Comunicação. Porto Alegre: Artmed; 2010. - 1818. Silva B. A tecnologia é uma estratégia. In: Dias P, Freitas V, organizadores. Actas da II Conferência Internacional de tecnologias de informação e comunicação na educação. Braga: Centro de Competência da Universidade do Minho do Projecto Nónio; 2001. p. 839-59. .
Finalmente, cumpre assinalar que este trabalho foi desenvolvido sob um ângulo de análise específico: daqueles envolvidos na gestão, tutoria e docência do curso; e orientação de TCC. Apresentar e compreender a perspectiva discente, a partir de entrevistas e análises de fóruns de discussão ou outras ações desenvolvidas no curso, é algo importante. Contudo, essa tarefa foge ao escopo existente, posto que a reflexão dos dois grupos (docentes e discentes) requer dedicação igualmente cuidadosa de escrita, que extrapola os limites de único texto.
Método
A pesquisa1919. Alves-Mazzotti AJ, Gewandsznajder F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira; 1999. , 2020. Gamboa SS. Pesquisa educacional: quantidade-qualidade. São Paulo: Cortez; 1997. concilia exploração e descrição; e é qualitativa, aplicada e de natureza qualitativa, partindo da ideia de que:
[...] não há uma última resposta, uma solução definitiva, não há compreensão e interpretações plenamente desenvolvidas e que dão conta de todas as dimensões do fenômeno interrogado. Mas há sempre o “andar em tomo... outra vez e outra ainda...”. Há sempre o andar cuidadoso, que solicita rigor e sistematicidade2121. Bicudo MAV. Pesquisa em educação matemática. Pro-Posições. 1993; 4(1):18-23. . (p. 18)
É pesquisa de abordagem aplicada, pois objetivou gerar conhecimentos dirigidos à implantação de uma política universitária voltada para cursos de pós-graduação lato sensu a distância.
Ao mesmo tempo, a pesquisa conciliou exploração e descrição porque foi promovida sem hipóteses formalizadas a priori e envolveu caso específico e mobilização de dados empíricos, visando apresentar o entendimento dos sujeitos e realidades sociais estudadas.
Do ponto de vista dos métodos e materiais, registra-se triangulação2222. Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009. (levada a cabo por ambos os autores deste manuscrito) com base na realização de análises bibliográficas (conforme as referências citadas) e documentais (com base nas videoaulas do curso estudado).
Para apoiar a análise das práticas educativas nas vídeoaulas, desenvolvemos um roteiro construído a partir de exigências ao educador1111. Freire P. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.:
Reporta-se (“rompe quarta parede”/dodiscência) aos discentes?
Considera as diferenças dos discentes (como as relacionadas a classe, gênero, geração, raça/etnia, nacionalidade/regionalidade, formação acadêmica)?
Aguça a curiosidade dos discentes?
Incentiva o exercício da crítica (em outras palavras, traz o conteúdo pronto e acabado ou o constrói com o aluno)?
Propõe desafios?
Estabelece relação entre o conteúdo e a realidade? E essa realidade é construída pelo docente ou pelo aluno?
Propõe mudança na realidade, ou seja, favorece novas interpretações de aspectos da vida em sociedade?
As videoaulas foram o principal material analisado, posto que o curso foi vivenciado com base nesse suporte. Secundariamente, diálogos promovidos por meio da troca de e-mails, de chats e de mensagens de WhatsApp também foram analisados. Optou-se por analisar principalmente as videoaulas por estas estarem presentes em todos os módulos do curso, serem atividades assíncronas e possibilitarem diálogos, uma vez que proporcionavam contato com a figura do professor em som e/ou imagem. Em outras palavras, as videoaulas, quando bem aproveitadas pelo docente, favorecem a escuta ativa, o compartilhamento e a construção conjunta de saberes.
O preparo das videoaulas foi feito mediante orientação da gestão do curso. Ela disponibilizou vídeo contendo a apresentação pessoal dos discentes, bem como organizou manual aos docentes (voltado ao cuidados com a gravação e a construção de uma linguagem compreensível por diversas áreas do conhecimento). Foram utilizados para gravação dessas aulas câmeras de celular ou de computador, além de softwares como o Google Meet e o PowerPoint.
Assistimos 66 videoaulas completas, duas vezes seguidas, no mínimo, totalizando 987 minutos, com média de 15 minutos cada aula e desvio padrão de 9. Ouvimos as falas dos docentes quantas vezes fosse necessário para seu entendimento e transcrição literal.
Em seguida, passamos às etapas previstas na Análise Textual Discursiva (ATD)2323. Moraes R. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual discursiva. Cienc Educ (Bauru). 2003; 9(2):191-211. , 2424. Medeiros EA, Amorim GCC. Análise textual discursiva: dispositivo analítico de dados qualitativos para a pesquisa em educação. Laplage Rev. 2017; 3(3):247-60. . A desconstrução – primeira etapa – permitiu a derivação do corpus de análise em elementos textuais significativos, para que as possibilidades de sentidos fossem compreendidas. Assim, surgiram as unidades de análise (unitarização), guiadas pelos objetivos da pesquisa, sendo esta a segunda etapa. As articulações entre as unidades de análise criaram as categorias de análise, sendo fundamental o roteiro construído a partir de exigências ao educador – terceira etapa. Por último, construímos o texto descritivo e interpretativo a partir dessas categorias. A fase da comunicação delineou de forma sistematizada as compreensões alcançadas em toda a análise realizada. A proposta final da pesquisa foi elaborada a partir do conhecimento dos materiais de análise e das nossas premissas teóricas. Não utilizamos softwares para transcrição e análise.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (parecer n. 2.689.78) e considerou os preceitos éticos de confidencialidade, sigilo e anonimato. Assim, para identificação das falas trazidas no presente texto, empregarmos a expressão “docente” seguida de uma letra.
Resultados
Após a transcrição e realização da ATD, organizamos o material em três categorias: subjetivação, vivência da autonomia e educação transformadora ( tabela 1 ).
Cada disciplina foi formada por números diferentes de videoaulas, que estavam integradas pelo tratamento de um mesmo tema. A média do tempo de cada vídeoaula foi de 15 minutos (desvio padrão de 9). Percebe-se que a categoria “subjetivação” esteve presente em maior número de módulos (9 em 10), seguida da “vivência da autonomia” (7 em 10) e da “educação transformadora” (4 em 10).
Subjetivação
Identificamos a categoria “subjetivação” ao perceber nos docentes o reconhecimento do Outro, representado pelos discentes. Ao se reportar a eles, considerar suas diferenças e estabelecer relação entre conteúdo e realidade, os docentes indicaram preocupação e acolhimento.
A primeira observação que fizemos foi a “quebra da quarta parede”, identificada quando os docentes se dirigiam diretamente aos discentes. Exemplos disso são expressões como: “a partir daí, pessoal”, “eu falei para vocês agora há pouco” ou “é importante que vocês observem”.
A forma mais visível de se respeitar as diferenças foi relacionada à nacionalidade, durante as saudações iniciais e em menções aos países participantes. Exemplo disso ocorreu quando docente brasileiro saudou “irmãos de língua portuguesa”, colocando suas ligações com a África e relembrando a comemoração do fim do colonialismo dos povos africanos. Também identificamos, em imagens apresentadas em slides, nas quais constavam o mercado de alimentos de Cabo Verde, o pôr do sol em território moçambicano e a preparação de um prato tradicional de um dos países africanos (a cachupa de São Tomé e Príncipe).
O trecho a seguir mostra a consideração das diferentes nacionalidades:
Esse curso está sendo dado para Brasil; Cabo Verde; São Tomé e Príncipe; e Moçambique. Cada um desses países tem realidades que são distintas, tem histórias que são diferentes na forma de produzir […]. (Docente A)
Identificamos também a preocupação com os nomes atribuídos aos alimentos em outros países:
O inhame que vocês conhecem como matabala. (Docente B)
Aqui no Brasil nós costumamos chamar essas sementes tradicionais de sementes crioulas. Não sei se é uma terminologia que é aplicada nos demais países. (Docente B)
Notamos ainda, na fala de uma professora, a preocupação com a formação acadêmica e a regionalidade dos discentes:
Como aqui nós temos pessoas com diversas formações, é importante que vocês compreendam o que significa essa irrigação. Então eu coloquei aqui uma definição que é bem ampla... [exibição do conceito]. Na ausência de uma precipitação, principalmente aqui nas nossas regiões áridas e semiáridas e como é o caso também de alguns países africanos […]. (Docente C)
Consideramos formas de respeito à formação acadêmica o emprego por parte do docente de uma linguagem construída pela perspectiva do cotidiano, da explicação de termos específicos de algumas áreas e da apresentação dos significados de siglas:
Existem algumas perguntas que eu peço para vocês anotarem e responderem. A primeira é: você teve alguma dúvida ao ler o estudo de caso? Tem alguma palavra que você não sabe o que significa? (Docente D)
O curso é multidisciplinar. A extensão não se restringe somente à relação engenheiro agrônomo-produtor rural. Também, ela pode ser transpassada para outras áreas do conhecimento, como o público beneficiário com o qual se trabalha e o técnico, qual seja a formação que ele tenha: nutricionista, agrônomo, veterinário, economista, administradores, sociólogo. (Docente A)
Alguns docentes brasileiros relataram certa dificuldade em se apropriarem da política e da cultura dos PALOP. A saída escolhida por dois deles foi oportunizar roteiro para que os discentes trouxessem o panorama de seus países. Assim, o Brasil foi tratado como exemplo e a discussão sobre os demais países foi encaminhada no fórum do curso, para que os discentes trouxessem suas percepções, como mostram os seguintes trechos:
Os professores selecionaram informações que fazem sentido para nós, brasileiros, mas é importante que cada um olhe para a realidade a partir do seu país, que comentem nos fóruns, que estudem, que aprofundem seu conhecimento e que nos façam conhecer essa realidade. (Docente E)
Como nós estamos considerando países com realidades econômicas, graus de desenvolvimento e localização geográfica diversos, eu vou, mais do que fazer um diagnóstico desses países, apresentar um roteiro para que esse diagnóstico seja feito. (Docente F)
No PowerPoint, vocês vão encontrar também indicadores dessas dimensões específicas para o Brasil, que servem de roteiro para outros países, servem de um exemplo que pode ser usado para monitorar a situação de SAN, dos planos de SAN de outros locais. (Docente F)
Identificamos o estabelecimento da relação entre conteúdo e realidade pelo docente, como, por exemplo:
Vamos procurar entender a agrobiodiversidade não como algo distante, mas como algo que nós convivemos no nosso dia a dia. Nós inclusive fazemos parte e uso cotidiano da agrodiversidade. (Docente B)
Também verificamos preocupação com essa relação em propostas a serem respondidas pelos discentes:
O que é que se vende no supermercado? O que se vende na loja da esquina? Que tipo de alimento está disponível? O que pode ser feito para melhorar isso? É uma ação da política pública? É uma ação entre produtor e consumidor? (Docente E)
Vamos pensar o seguinte: o que é importante para mim em São Tomé? O que é importante para mim no Brasil? O que é importante para mim na Guiné? Ou em Moçambique? Em todos os países. Em um país, a banana pode ser extremamente importante; no outro, os recursos pesqueiros, os peixes, o marisco; no outro, a criação animal. (Docente B)
Vivência da autonomia
A segunda categoria – Vivência da Autonomia – agrupa provocações dos docentes aos discentes, visando aguçar a curiosidade, o incentivo à crítica e a proposição de desafios.
Indagações relacionadas ao conteúdo foram bastante utilizadas, como em: “Por que alguns alimentos duram mais que outros?” (Docente G) e “Como transformar a forma de produção de alimentos para que a gente consiga alimentos para todas as pessoas e não destrua a Terra?” (Docente H).
O incentivo à crítica foi trazido por docentes na apresentação de conceitos divergentes, como os de agricultura familiar e campesinato; os diferentes posicionamentos em relação à produção de alimentos transgênicos; e o presente no questionamento direcionado aos discentes: “Como a política pública de SAN chega ali no território que você atua?” (Docente E).
Convites à leitura, à reflexão, à experimentação, à descoberta, à participação e à análise da realidade local foram expressos como desafios aos discentes:
Convido vocês para lerem, refletirem, participarem ativamente. (Docente I)
Vamos olhar o alimento como aquilo que sustenta a vida. Que nós saibamos cuidar, produzir de forma sustentável, sem envenenar os alimentos, sem envenenar as águas. (Docente H)
É importante que vocês tomem esse documento, ele é de amplo acesso, e compreendam o contexto e entendam e possam se aprofundar mais em cada uma dessas diretrizes. (Docente J)
Educação transformadora
A terceira categoria – Educação Transformadora – faz referência à proposição de mudança de aspectos da realidade.
Identificamos a partilha de experiência de docentes a partir de suas vivências em comunidades, trazendo situações-problemas vivenciadas e preocupações com desdobramentos do tema na prática, considerando o território dos discentes.
Como exemplo, um dos docentes trouxe questões relacionadas ao desenvolvimento econômico local, a partir de experiência vivida por agricultores do Vale do Ribeira, que se organizaram para vender alimentos às prefeituras da grande São Paulo:
Qual é a capacidade desses recursos de contribuírem para o desenvolvimento local? O desenvolvimento local depende do consumo, depende do mercado local que vai absorver os produtos dos agricultores familiares. Seria interessante que nessas regiões se pensasse em organizar os agricultores locais não só para aquela região, mas [para] cidades e regiões próximas que teriam uma grande população. É uma alternativa interessante e aqueles países que ainda não tem deveriam pensar em criar uma legislação desse tipo porque é uma alternativa válida para a melhoria da qualidade nutricional e para aumento da renda dos agricultores. (Docente F)
Outro docente partilhou sua experiência com assistência técnica a agricultores, afirmando que para a mudança da realidade ser efetiva e duradoura é necessário que a construção seja feita de forma conjunta:
É o alerta que eu faço nesse processo de transformação, e que essa transformação tem que ser algo construído junto. Aquilo que é construído junto se caminha junto. Aquilo que se constrói de cima para baixo, quando você tira o profissional de nível superior, a situação regride ao patamar original. Não se tem avanço. (Docente A)
Registrou-se ainda a preocupação com a identificação das responsabilidades locais e a busca de soluções para o combate à desnutrição infantil no território dos discentes:
De quem é a responsabilidade? Quais são as ações públicas de promoção, prevenção e intervenção? Quais são as ações, programas, políticas e projetos que temos para garantir a sobrevivência infantil adequada? E qual a sugestão para melhoria da situação? (Docente D)
Discussão
A identificação da categoria “subjetivação” favoreceu a percepção no curso da necessidade de, em suas próximas edições, contar com um ambiente assíncrono (devido às particularidades técnicas e sociais apresentadas) capaz de proporcionar abordagens ainda mais autônomas da temática a ser trabalhada pelos docentes em cada um dos módulos. A ideia é a de proporcionar maior espaço para registro da visão de mundo dos discentes, visando potencializar o reconhecimento do educando como sujeito igualmente significante para a produção do aprendizado. Esse ambiente poderia contar com a atualização e o incentivo constante dos tutores do curso.
Disso decorre o esforço para o maior estabelecimento de relação entre conteúdo e realidade. Para tanto, cumpre superar o desconhecimento da realidade africana pelos docentes brasileiros. Isso poderá ser enfrentado a partir da maior valorização do diálogo e, portanto, do aprofundamento da ideia de que ensinar exige construção e reconstrução do conhecimento. Além disso, caberá pensar em formação continuada, capaz de superar esse desconhecimento dos países africanos2525. Sodré M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes; 2017. , 2626. Binja EJ. Tradição oral em África: valores, movimento e resistência [Internet]. In: Anais do 3o Seminário Nacional de Sociologia - Distopias dos Extremos: Sociologias Necessárias; 2020; São Cristóvão (SE). São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2020 [citado 10 Nov 2021]. p. 1-20. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13866/2/TradicaoOralAfrica.pdf
https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13866/... .
Determinados temas podem ser vislumbrados nessa formação continuada: aspectos culturais (etnias, línguas e religiões); formas de organização social; produção e comercialização de alimentos; situação alimentar e nutricional da população; e ações, programas e políticas públicas.
Ainda sobre a necessidade de conhecer a realidade africana, devemos pensar na participação de docentes africanos na organização e apresentação das disciplinas. Reconhecemos, portanto, a importância do envolvimento local para a construção de conteúdo significativo e que envolva o cotidiano, o contexto cultural, educacional e social3131. Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Relatório técnico DAV - avaliação multidimensional de programas de pós-graduação. Brasília: CAPES; 2019. dos PALOP. Dessa forma, aos conteúdos científicos somam-se as experiências e os saberes dos territórios1515. Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud Cebrap. 2007; 79:71-94. .
Durante o curso, foi pequena a participação de docentes na África. Isso se deu por conta da regulamentação da pós-graduação lato sensu , que inseria o curso na modalidade “especialização” na universidade que o certifica no Brasil2727. São Paulo (Estado). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Resolução Unesp nº 90, de 27 de Novembro de 2019. Dispõe sobre o Regulamento da Pós-graduação Lato Sensu, modalidade Especialização, prevista no Regimento Geral da Pós-graduação da UNESP. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 5 Dez 2019. . Nela consta que o corpo docente deve ter “titulação mínima de doutor com perfil adequado ao curso e comprovada produtividade acadêmica e científica” e ser formado por no mínimo 50% do quadro de docentes da universidade. Consta ainda que pode haver a aprovação de profissionais com reconhecimento acadêmico ou técnico-científico, de forma excepcional.
Cabe, nesse ponto, propor à universidade certificadora uma configuração diferente do saber acadêmico, incluindo outras formas de conhecimento1515. Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estud Cebrap. 2007; 79:71-94. . A concepção vigente dificulta a participação de docentes das universidades parceiras, como as inseridas no contexto dos PALOP, dada a pouca existência de docentes que possuem titulação. Explica-se, assim, por exemplo, o fato de 17 docentes de universidades situadas em Moçambique se inscreverem como alunos no curso.
A partir dessas constatações e considerando os limites do possível, verificou-se que a gestão promoveu a participação de convidados dos PALOP nas disciplinas ou em momentos adicionais, no formato de lives. A participação de integrantes de movimentos e organizações sociais ou do poder público suscitou a discussão sobre questões que dissessem respeito a aspectos da realidade dos países envolvidos.
Percebemos, igualmente, a falta de condições para que a autonomia seja vivenciada, conforme nossa segunda categoria. Para isso, sugerimos a discussão sobre a produção de registros das atividades discentes por meio da fala e do aparelho celular. Esses registros podem tornar-se conteúdo do curso e, assim, permitir a ampliação de discussões e reflexões pautadas em realidades similares ou distintas nas relações discentes-discentes e discentes-docentes.
O incentivo para o estabelecimento da relação entre conteúdo e realidade pode ser ampliado no curso por meio da vivência de um número menor de tarefas e a maior relação delas com o universo social e ambiental dos discentes. Dessa forma, a criação de situações de aprendizagem em atividades que permitam a pesquisa e a exploração prática de temas pode propiciar o protagonismo dos discentes no processo de elaboração do conhecimento das disciplinas.
O celular foi uma importante ferramenta para os discentes, que o usaram para assistir videoaulas, realizar tarefas solicitadas nas disciplinas e se comunicar com tutores e docentes, com destaque para o uso do Whatsapp. A gravação de áudios visou dirimir dúvidas sobre prazos e atividades e orientar a realização do TCC.
O emprego do celular favorece a comunicação oral e o compartilhamento de ideias e conhecimentos, tão valorizados pelas sociedades tradicionais africanas, em que a história, os saberes e a cultura são transmitidos e conservados pela tradição oral. Os rituais envolvidos com a fala, os gestos e a interação com os ouvintes têm mais vivacidade em comunicações orais. Além disso, a oralidade está gravada no pensamento coletivo e presente no cotidiano, constituindo uma forma própria de existir2525. Sodré M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes; 2017. , 2626. Binja EJ. Tradição oral em África: valores, movimento e resistência [Internet]. In: Anais do 3o Seminário Nacional de Sociologia - Distopias dos Extremos: Sociologias Necessárias; 2020; São Cristóvão (SE). São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; 2020 [citado 10 Nov 2021]. p. 1-20. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13866/2/TradicaoOralAfrica.pdf
https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/13866/... .
Os registros que os discentes produzirem com os celulares podem ainda retroalimentar o curso destinado a tratar da realidade dos PALOP aos docentes. Deve-se igualmente considerar que trazer o conteúdo prático para reflexão integra a pesquisa translacional e, nesse processo, o aprendizado é vinculado à cotidianidade e, por conta disso, ganha sentido para as pessoas envolvidas2828. Colombo IM, Comitre F. Pesquisa translacional e a pedagogia freireana. Rev Iluminart. 2019; 17:107-26. .
O curso contou com atividades diversas. A modalidade de avaliação para cada disciplina foi sugerida pela gestão a partir da ideia de que a natureza de alguns temas possibilita ganhos e vivências com discussões direcionadas ou atividades desenvolvidas em campo, enquanto outros podem ser trabalhados por meio de questões dissertativas ou de múltipla escolha. Contava nas decisões a necessidade de se gerenciar o tempo para conclusão do curso.
A partir de nossa reflexão neste trabalho, percebemos que atividades práticas locais podem substituir questionários de múltipla escolha, de modo a ampliar as possibilidades de estabelecimento de relação entre conteúdo e realidade. Entretanto, isso requer planejamento pela equipe gestora, que passa a ser responsável pela partilha e discussão dos registros.
A inserção das atividades que geram reflexões sobre a realidade dos discentes também demandaria maior cuidado por parte dos docentes. Por isso, sugerimos o delineamento de um segundo módulo de formação continuada dos docentes, composto, basicamente, da seguinte indagação: como cumprir tarefas exigidas no curso de pós-graduação, usando o celular e com base em aplicativos de gravação de voz e de imagens? Esse segundo módulo se trata, portanto, de enfrentar a pouca experiência dos docentes com as TIC1717. Coll C, Monereo C. Psicologia da educação virtual: aprender e ensinar com as Tecnologias da Informação e da Comunicação. Porto Alegre: Artmed; 2010. e, consequentemente, com a cibercultura66. Lévy P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34; 1999. ; e de reconhecer que os discentes são cada vez mais leitores, espectadores e internautas1616. Canclini NG. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras; 2008. .
As propostas que apresentamos guardam relação com a educação transformadora, terceira categoria levantada e identificada pela proposição de mudança de aspectos da realidade por parte dos discentes.
Cabe aqui relatar que é exigência do curso estudado que o TCC seja desenvolvido a partir de pesquisas inseridas na localidade dos discentes, contando, de preferência, com o protagonismo da comunidade local, de modo que as pesquisas vinculem-se aos processos de mudança da realidade.
Por conta disso, reconhecemos a importância do TCC, mas também identificamos a necessidade de integrá-lo às demais atividades, especialmente às tarefas solicitadas pelos docentes durante as disciplinas que formam os módulos do curso. Nesse caso, cabe à gestão recomendar que tais atividades sejam delineadas e articuladas em um processo que igualmente possibilite aos discentes o aprendizado significativo e a transformação da realidade.
Essa maneira de entender o TCC incentiva a reflexão a respeito de um terceiro componente da formação continuada dos docentes, voltado ao enfrentamento do esvaziamento teórico da formação pedagógica1010. Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. 13a ed. Petrópolis: Vozes; 2012. . No caso do curso em questão, deve-se ainda levar em conta a ausência de formação pedagógica, propriamente dita, dado que muitos docentes possuem formação básica em cursos de graduação na modalidade bacharelado, como Nutrição, Engenharia Agronômica, Engenharia de Alimentos e Veterinária.
Contudo, certos fatores dificultam a vivência da educação transformadora2929. Schlesener AH, Lima MF. Reflexões sobre a precarização do trabalho docente no Ensino Superior brasileiro. Praxis Educ. 2020; 16:1-17. , 3030. Sanchez HM, Sanchez EGM, Barbosa MA, Guimarães EC, Porto CC. Impacto da saúde na qualidade de vida e trabalho de docentes universitários de diferentes áreas de conhecimento. Cienc Saude Colet. 2019; 24(11):4111-22. . Por exemplo, a participação dos docentes neste curso se deu de forma solidária, sem remuneração. Tais docentes possuem grande número de atividades nas instituições de Ensino Superior em que trabalham. Soma-se a isso a precarização contemporânea do trabalho, a avaliação do desempenho acadêmico baseada na lógica produtivista e a fadiga emocional e mental provocadas pela pandemia.
As reflexões sobre o curso estudado guardam relação com a autoavaliação proposta pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para os programas de pós-graduação do Brasil desde 2018. A importância dessa auto avaliação se dá por ter característica formativa e considerar a participação dos envolvidos na própria avaliação para superação dos problemas e, consequentemente, melhoria dos programas3131. Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Relatório técnico DAV - avaliação multidimensional de programas de pós-graduação. Brasília: CAPES; 2019. , 3232. Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Auto-avaliação de programas de pós-graduação. Brasília: CAPES; 2019. .
É a autoavaliação que dota a avaliação quadrienal da Capes sobre os programas de pós-graduação, por exemplo, de uma nova perspectiva – sendo esta menos quantitativa e mais qualitativa –, de modo que a prioridade deixa de ser os resultados e passa a ser os processos: “A autoavaliação é o processo de se avaliar a si próprio, por vezes também chamada avaliação interna ou avaliação institucional, quando referida às organizações. Seu principal objetivo é formativo, de aprendizagem.”3131. Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Relatório técnico DAV - avaliação multidimensional de programas de pós-graduação. Brasília: CAPES; 2019. (p. 7).
Embora o curso aqui abordado envolva a pós-graduação lato sensu , entende-se que as preocupações em torno da autoavaliação apresentadas pela Capes são válidas para a busca de qualificação.
Considerações finais
Promover processos formativos segundo a constituição de uma educação libertadora é desafiador quando toma-se como base a EAD e, mais especificamente, as aulas assíncronas. Ressente-se, neste caso, da ausência de vínculo presencial e da distância física entre educador e educando. Por outro lado, tais lacunas podem ser dirimidas quando a prática pedagógica se baseia na promoção da interação do indivíduo com seu mundo, o que exige partir do conhecimento histórico-social-cultural, criar situações coletivas de produção de conhecimento e atribuir à educação o papel inequívoco de transformar a realidade.
A partir das videoaulas do curso de pós-graduação, pudemos identificar três categorias que apoiaram nossa análise: subjetivação, autonomia e educação transformadora. Refletir sobre cada uma delas possibilitou a elaboração de uma proposta de aprimoramento do processo formativo, na perspectiva da atuação docente e no intuito de vencer as lacunas existentes na EAD e nas aulas assíncronas. É o reconhecimento e a problematização da presença das categorias mencionadas nas práticas pedagógicas dos docentes, na verdade, que torna possível reconhecer a possibilidade de processos formativos dessa natureza serem marcados, cada vez mais, pelas preocupações da educação libertadora.
A proposta que tomou como base a reflexão sobre a prática educativa envolve a formação dos docentes e o planejamento da equipe gestora. Para os docentes, sugerimos um curso que aborde a realidade dos PALOP, a criação de situações de aprendizagem em atividades locais que permitam a pesquisa e a exploração prática de temas do curso, usando a gravação da voz, a obtenção de imagens pelo celular e o fortalecimento da formação pedagógica. Para a equipe gestora, a proposta demanda a criação de ambiente que proporcione abordagens dialógicas das temáticas trabalhadas e o planejamento das atividades inseridas na realidade de seus discentes, de modo a integrá-las na elaboração do TCC.
A proposta apresentada neste trabalho não esgota as possibilidades para superar as limitações encontradas, mas as enfrenta, no intuito de alargar a presença das preocupações associadas à educação libertadora. Nesse sentido, busca ultrapassar algumas barreiras para a construção de práticas educativas no curso estudado, uma vez que uma terceira edição está sendo implantada e outras são vislumbradas. Além disso, a proposta também objetiva contribuir com processos formativos realizados em contextos que apresentem características similares, como presença de diversidades socioculturais, diferença significativa de fuso horário, dificuldades com a conexão da internet e instabilidade no fornecimento de energia elétrica.
Para ampliar as possibilidades da EaD e das aulas assíncronas, ressaltamos a importância de se percorrer alguns passos. O primeiro é reconhecer a importância da autoavaliação. Compõe o segundo passo realizar uma pesquisa que entenda a realidade dos discentes e docentes, bem como as possibilidades e os recursos disponíveis. Por fim, o terceiro passo consiste em assumir o papel fundamental da gestão na busca pela totalidade (compreensão dilatada do real, possível graças ao diálogo de vários conhecimentos e saberes), a partir do envolvimento da equipe (composta por docentes, tutores, colaboradores e a própria gestão) e pela integração das atividades.
Agradecimentos
Agradecemos a todos os envolvidos na execução da segunda edição do Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Segurança Alimentar e Nutricional; e os discentes, docentes, pesquisadores, bolsistas e instituições parceiras do MU-CONSAN-CPLP.
Referências
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- Financiamento: Bolsa de pós-doutorado sênior do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), convênio n. 821825/2015; e do Centro de Ciência, Tecnologia e Inovação para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (INTERSSAN-Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Jun 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
27 Ago 2022 - Aceito
26 Jan 2023