Resumos
O objetivo deste artigo é analisar e avaliar a roda de conversas como instrumento participativo e educativo capaz de impactar na percepção de diminuição do bullying entre adolescentes no contexto escolar. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado por meio de entrevistas semiestruturadas com 18 adolescentes de uma escola do ensino fundamental do Estado de São Paulo. Os resultados foram analisados à luz da práxis freireana e demonstraram que esse instrumento contribuiu para ampliar o entendimento sobre esse tipo de comportamento agressivo, favoreceu a quebra do silenciamento das agressões até então não verbalizadas, e impactou a percepção de diminuição do bullying. Ressalta-se que não se trata de conceber a roda como instrumento resolutivo e estanque em si, mas como participativo, complementar, apoiador e potencialmente capaz de contribuir para desnaturalizar a violência no cenário escolar e promover a emancipação dos envolvidos.
Roda de conversas; Bullying; Adolescência; Violência escolar
The aim of this study was to analyze and assess conversation circles as a participatory and educational tool capable of having an impact on the perception of declining school bullying among adolescents. Using semi-structured interviews, we conducted a qualitative study with 18 middle school students in the state of São Paulo. The results were analyzed through the lens of Freirean praxis and demonstrated that the tool fostered a broaden understanding of this type of aggressive behavior, helped break the silence on hitherto non-verbalized bullying and had an impact on the perception of declining bullying. It is highlighted that conversation circles are not conceived as a tool for resolving and stemming bullying, but rather a complementary participatory method of support that can help denormalize school violence and promote the emancipation of the individuals involved.
Conversation circles; Bullying; Adolescence; School violence
El objetivo de este artículo es analizar la rueda de conversaciones como instrumento participativo y educativo capaz de impactar la percepción de la disminución del bullying entre adolescentes en el contexto escolar. Se trata de un estudio de abordaje cualitativo, realizado por medio de entrevistas semiestructuradas con 18 adolescentes de una escuela de la enseñanza fundamental del Estado de São Paulo. Los resultados se analizaron a la luz de la praxis freireana y demostraron que este instrumento contribuyó para ampliar el entendimiento sobre este tipo de comportamiento agresivo, favoreció la ruptura del silencio sobre las agresiones que hasta aquel entonces no eran verbalizadas e impactó la percepción de disminución del bullying. Se subraya que no se trata de concebir la rueda como instrumento de resolución y estanque en sí mismo, sino como participativo, complementario, apoyador y potencialmente capaz de contribuir para la desnaturalización de la violencia en el escenario escolar y promover la emancipación de los envueltos.
Rueda de conversaciones; Bullying; Adolescencia; Violencia Escolar
Introdução
Programas direcionados ao enfrentamento do bullying cresceram mundialmente a partir das décadas de 1980 e 199011. Olweus D. Bullying at school: what we know and what we can do. New York: Blackwell; 1993.,22. Smith PK. England and Wales. In: Smith PK, Morita Y, Junger-Tas J, Olweus D, Catalano R, Slee P, editors. The nature of school bullying: a cross-national perspective. London and New York: Routledge; 1999. Chap. 5, p. 68-90.. No Brasil, desde o início do século XXI, apesar da vasta literatura publicada33. Pigozi PL, Machado AL. Bullying during adolescence in Brazil: an overview. Cienc Saude Colet. 2015; 20(11):3509–22. doi: 10.1590/1413-812320152011.05292014.
https://doi.org/10.1590/1413-81232015201... ,44. Marcolino EC, Cavalcanti AL, Padilha WWN, Miranda FAN, Clementino FS. Bullying: prevalência e fatores associados à vitimização e à agressão no cotidiano escolar. Texto Contexto Enferm. 2018; 27(1):e5500016. doi: 10.1590/0104-07072018005500016.
https://doi.org/10.1590/0104-07072018005... acerca da ocorrência do fenômeno, as estratégias para seu enfrentamento foram divulgadas com mais frequência a partir da segunda década55. Alencastro LCS, Silva JL, Vilela AV, Bernardino FBS, Mello FCM, Silva MAI. Teatro do oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Rev Bras Enferm. 2020; 73(1):e20170910. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0910.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
6. Yoshinaga ACM. Bullying e o trabalho do enfermeiro no contexto escolar: validação de um programa de intervenção através do método Delphi [dissertação]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 2015. doi: 10.11606/D.22.2015.tde-27072015-161153.
https://doi.org/10.11606/D.22.2015.tde-2... -77. Sampaio JMC. Bullying no contexto escolar: avaliação de um programa de intervenção [tese]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 2015. doi:10.11606/T.22.2016.tde-04032016-193910.
https://doi.org/10.11606/T.22.2016.tde-0... . Vale destacar que o esforço recente na implementação de ações deve-se a esse tipo de comportamento agressivo22. Smith PK. England and Wales. In: Smith PK, Morita Y, Junger-Tas J, Olweus D, Catalano R, Slee P, editors. The nature of school bullying: a cross-national perspective. London and New York: Routledge; 1999. Chap. 5, p. 68-90.,88. Lisboa CS, Brandão D, Lamarca-Pigozi P, Wendt GW. Avaliação em situações de violência escolar, bullying e cyberbullying. In: Hutz CS, Bandeira DR, Trentini CM, Giordani JP, organizadores. Avaliação psicológica no contexto escolar e educacional. Porto Alegre: Artmed; 2022. Cap. 19. ter sido reconhecido como problema de Saúde Pública e como forma de violação dos direitos humanos fundamentais. O bullying é caracterizado por ser agressivo, intencional, sistemático e com notável assimetria de poder entre os envolvidos11. Olweus D. Bullying at school: what we know and what we can do. New York: Blackwell; 1993.,22. Smith PK. England and Wales. In: Smith PK, Morita Y, Junger-Tas J, Olweus D, Catalano R, Slee P, editors. The nature of school bullying: a cross-national perspective. London and New York: Routledge; 1999. Chap. 5, p. 68-90.. As consequências mais frequentes são ter dificuldades na socialização, maior ansiedade e depressão, bem como baixa autoestima99. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. School violence and bullying: global status and trends, drivers and consequences. Paris: UNESCO; 2018.. Pensamento suicida, tentativa e suicídio consumado, embora raros, podem resultar das repetitivas agressões1010. Romo ML, Kelvin EA. Impact of bullying victimization on suicide and negative health behaviors among adolescents in Latin America. Rev Panam Salud Publica. 2016; 40(5):347–55.,1111. Ai K, Oh H, Carvalho AF, Smith L, Haro JM, Vancampfort D, et al. Bullying victimization and suicide attempt among adolescents aged 12–15 years from 48 countries. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2019; 58(9):907–18. doi: 1016/j.jaac.2018.10.018..
De acordo com o relatório mundial da Unesco99. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. School violence and bullying: global status and trends, drivers and consequences. Paris: UNESCO; 2018., 34% dos estudantes de 11 a 14 anos relataram ter sofrido bullying no mês anterior, cuja prevalência no Brasil também é expressiva, em torno de 19,8% para estudantes que praticam e de 7,2% para os vitimizados1212. Malta DC, Mello FCM, Prado RR, Nogueira de Sá ACMG, Marinho F, Pinto IV, et al. Prevalence of bullying and associated factors among Brazilian schoolchildren in 2015. Cienc Saude Colet. 2019; 24(4):1359–68.,1313. Brasil. Ministério da Saúde. Pesquisa nacional de saúde do escolar 2015 [Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2016 [citado 28 Jul 2023]. Disponível em: https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/PENSE_Saude%20Escolar%202015.pdf
https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.i... . Apesar disso, muitos desses dados podem ser subestimados, uma vez que os envolvidos (vítimas, praticantes, vítimas-praticantes, testemunhas) podem omitir o envolvimento com bullying ou mesmo desconhecer quais são as características do fenômeno1414. Smith PK. Understanding school bullying: its nature & prevention strategies. London: SAGE Publications; 2014. 224 p.. Logo, a pertinência de abordagens abrangentes e participativas ganha destaque ao viabilizar um lugar de fala para o adolescente e demais envolvidos com o bullying, visando fortalecer o conhecimento e colaborar com a quebra do ciclo da violência pela ruptura do silenciamento e pelo empoderamento dos mais diversos atores implicados no processo.
Por décadas, os estudos do bullying ficaram restritos aos autorrelatos e quantificação numérica33. Pigozi PL, Machado AL. Bullying during adolescence in Brazil: an overview. Cienc Saude Colet. 2015; 20(11):3509–22. doi: 10.1590/1413-812320152011.05292014.
https://doi.org/10.1590/1413-81232015201... . Tais estudos permitiram conhecer quanto e quando ocorre o fenômeno, por exemplo, mas são igualmente acompanhados por relatos de aumento desse processo. O que estaria acontecendo? Os adolescentes de hoje estariam mais propensos ao envolvimento com bullying? Há elementos intra e extramuros da escola que explicam tal aumento? Para obter essas respostas, novas perguntas devem ser feitas. Nesse sentido, estudos com abordagens participativas de pesquisa têm apresentado resultados satisfatórios ao sensibilizar o adolescente sobre um dado assunto, aumentando sua participação e propiciando a formulação de novas perguntas com base em determinadas questões de pesquisa55. Alencastro LCS, Silva JL, Vilela AV, Bernardino FBS, Mello FCM, Silva MAI. Teatro do oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Rev Bras Enferm. 2020; 73(1):e20170910. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0910.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0... ,1515. Smith PK, Bauman S, Wong D, editors. Interventions to reduce bullying and cyberbullying. Basel: MDPI; 2019.. No cenário da escola, sabe-se que o uso de ferramentas participativas pode contribuir para a diminuição das agressões e dos conflitos1414. Smith PK. Understanding school bullying: its nature & prevention strategies. London: SAGE Publications; 2014. 224 p.,1616. Gorski GG. Pesquisa-intervenção e seus efeitos transformadores. In: Castro LR, Besset VL, organizadoras. Pesquisa-intervenção na Infância e juventude. Rio de janeiro: Nau; 2008. p. 559–66..
Com vistas a facilitar a reflexão, imprimindo dinamicidade à discussão de variadas temáticas e oportunizando a participação dos estudantes, a roda de conversas tem sido escolhida por muitos trabalhadores e pesquisadores da área da Educação e Saúde no espaço escolar1717. Sampaio J, Santos GC, Agostini M, Salvador AS. Limites e potencialidades das rodas de conversa no cuidado em saúde: uma experiência com jovens no sertão pernambucano. Interface (Botucatu). 2014; 18:1299-311. doi: 10.1590/1807-57622013.0264.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02... ,1818. Moura AF, Lima MG. A reinvenção da roda: roda de conversa, um instrumento metodológico possível. Temas Educ (João Pessoa). 2014; 23(1):95-103.. Menezes, Arcoverde e Libardi1919. Menezes JA, Arcoverde LR, Libardi SS. A pesquisa-intervenção com adolescentes: oficina como contexto narrativo sobre igualdade e diferença. In: Castro LR, Besset VL, organizadoras. Pesquisa-intervenção na Infância e juventude. Rio de Janeiro: Nau; 2008. p. 205-23. dizem que a roda é capaz de produzir uma espécie de narratividade livre de censura em que os sujeitos se posicionam e reposicionam conforme são mediatizados pelo processo dialógico que é próprio do instrumento. Ademais, ela tem sido adotada com o propósito de lançar determinado tema para discussão, de garantir o direito à fala, à expressão de si e do outro, e de uma vivência singular inerente àquele indivíduo e ao coletivo. Evita-se a normatização de “condutas” ou a mera transferência de conhecimento1717. Sampaio J, Santos GC, Agostini M, Salvador AS. Limites e potencialidades das rodas de conversa no cuidado em saúde: uma experiência com jovens no sertão pernambucano. Interface (Botucatu). 2014; 18:1299-311. doi: 10.1590/1807-57622013.0264.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02... ,1818. Moura AF, Lima MG. A reinvenção da roda: roda de conversa, um instrumento metodológico possível. Temas Educ (João Pessoa). 2014; 23(1):95-103.,2020. Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18:983-95. doi: 10.1590/1807-57622013.0324.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.03... .
Neste estudo, aposta-se em sua utilização por uma perspectiva freireana, em que se instauram processos dialógicos que permitem aos sujeitos transitar de um local de passividade para outro de maior potência emancipatória, no qual podem contribuir plenamente com criticidade, reinterpretações imagético-simbólicas e consequente ressignificação do saber-fazer2020. Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18:983-95. doi: 10.1590/1807-57622013.0324.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.03... . Assim, inseridos em uma malha de conversações, o sujeito freireano relê seu próprio mundo, gerando um movimento de ação-reflexão-ação com potencial poder transformador de situações não mais toleráveis por aqueles que as experienciam. Sobre a prática educativa libertadora, Paulo Freire diz que “(...) não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática”2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. (p. 29). A prática, nesse sentido, subjaz a perspectiva político-emancipatória, a qual não se propõe a uma análise superficial e inócua do fenômeno em si – como o bullying –, mas sim a um entendimento de seus múltiplos determinantes.
Ademais, vale destacar que a ferramenta das rodas de conversas tem sido pouco avaliada do ponto de vista dos impactos na diminuição da violência escolar, com especificidade para o bullying. Na presente investigação, apostou-se que a roda de conversas – operacionalizada à luz da práxis freireana, numa perspectiva ação-transformadora da inter-relação entre teoria e prática – contribuiria para ampliar o conhecimento do adolescente acerca do bullying, especialmente ao instrumentalizá-lo para a ação pelo compartilhamento de suas experiências nessa problemática.
Assim, este estudo pretendeu analisar e avaliar, pela perspectiva do adolescente, o uso da roda de conversas como instrumento participativo e educativo capaz de impactar a percepção de diminuição do bullying entre adolescentes no contexto escolar. Buscou-se compreender em profundidade a experiência de ter participado de uma roda de conversas que teve como principal objetivo fortalecer o protagonismo do adolescente para lidar com situações de bullying e com suas implicações ulteriores.
Metodologia
Desenho do estudo
Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado por entrevistas semiestruturadas com alunos de uma escola do Ensino Fundamental do Estado de São Paulo. Vale destacar que o propósito deste estudo é analisar e avaliar o uso do instrumento da roda de conversas; portanto, o foco não é analisar o conteúdo do que foi discutido durante a realização da roda e sim de ampliar a compreensão da percepção dos adolescentes sobre ter participado da atividade e seu impacto na diminuição do bullying.
Contexto da pesquisa
Participaram do estudo 18 adolescentes entre 11 e 14 anos de uma escola estadual localizada em Juquitiba (SP). Eles cursavam do 6º ao 9º ano do ensino fundamental (4 do 6º ano, 4 do 7º ano, 7 do 8º ano e 3 do 9º ano). Desses, 11 eram do sexo feminino e 7, do masculino. A escolha pelo cenário deu-se por conveniência, considerando os alunos que haviam participado de forma mais direta das atividades desenvolvidas por um programa prévio com o propósito de diminuir o bullying escolar. A roda de conversas foi um dos instrumentos utilizados dentro de um programa intersetorial, que teve a participação de educadores, alunos e profissionais de saúde (enfermeiras e agentes comunitários de uma Unidade de Saúde da Família da área de abrangência da escola).
O programa intersetorial participativo tinha o propósito de melhorar o clima escolar, diminuir os conflitos e promover a Saúde Mental dos adolescentes. Um dos propósitos da roda de conversas foi fortalecer o protagonismo dos adolescentes a fim de se tornarem mais preparados para lidar, não tolerar e deixar de praticar as agressões. De modo importante, o instrumento não foi utilizado com o propósito de transferir conhecimento ao adolescente, mas sim de problematizar o tema pela realidade do jovem, da escola e de seu entorno. Os profissionais de saúde buscaram discutir as consequências e o que poderia ser feito para cessar o bullying, considerando especialmente o conhecimento prévio dos adolescentes e seus modos de agir no contexto das agressões.
Coleta dos dados
O convite para participar da pesquisa foi feito diretamente aos alunos pela pesquisadora, no cenário da escola, de forma presencial. Foi acordado com a direção da escola e com os professores a melhor forma de liberação dos alunos para que não houvesse problemas na rotina das aulas. O Termo de Assentimento e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foram lidos com uma linguagem acessível aos adolescentes e seus pais e/ou responsáveis. Os detalhes e as questões éticas relevantes para o estudo foram apresentados e todos consentiram em participar. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, conforme a Resolução n. 466/2013, do Conselho Nacional de Saúde, sob parecer número 19769313.1.0000.5392.
As entrevistas foram realizadas em salas de aula e ocorreram ao longo de novembro e dezembro de 2019. Neste estudo, a saturação dos dados foi atingida após a entrevista de 18 adolescentes; nas duas últimas entrevistas não surgiram novos dados e esclarecimentos. Um áudio-gravador registrou as falas. As entrevistas tiveram duração média de 25 minutos. A pergunta aberta “O que você achou de ter participado da roda de conversas ou como foi sua experiência em participar da roda de conversas” visou obter uma perspectiva geral da vivência do aluno na utilização do instrumento em análise, com foco no conhecimento e no preparo adquirido para lidar com situações de bullying.
A pesquisadora, com o propósito de evitar pontos de vista pré-concebidos e desdobrar uma ampla gama de respostas, utilizou perguntas curtas como, “Você poderia falar mais sobre isso?”, “Você se lembra de outra coisa...” e “Você gostaria de dar alguma sugestão...”. Ao longo do processo de entrevista, as respostas dos participantes foram exploradas e analisadas repetidamente a fim de verificar sua validade2222. Kvale S, Brinkmann S. Interviews: learning the craft of qualitative research interviewing. 2nd ed. London: SAGE Publications; 2009..
Análise dos dados
A análise temática foi utilizada para analisar as transcrições, as quais foram feitas na íntegra, verbatim, com dados gravados em áudio. Clarke e Braun2323. Clarke V, Braun V. Teaching thematic analysis: overcoming challenges and developing strategies for effective learning. The Psychologist. 2013; 26(2):120–3. consideram a análise temática um método analítico flexível que permite identificar dados detalhados das transcrições. Os autores propõem que a análise seja realizada em seis etapas: 1. Obter uma visão geral dos dados – neste estudo, as entrevistas transcritas foram lidas pelo menos duas vezes por dois pesquisadores; 2. Codificar – as ideias principais foram destacadas e o material foi codificado considerando os pontos essenciais previamente delineados no objetivo e, além disso, códigos de códigos surgiram nesse processo (o software de análise de dados qualitativos NVivo 12 foi utilizado como ferramenta de apoio à codificação); 3 e 4. Examinar e revisar os temas cuidadosamente – o material já codificado foi exaustivamente lido, verificado e avaliado diversas vezes, a fim de interpretar o significado dos códigos e subcódigos e obter os temas; 5. Definir e nomear os temas – três temas principais emergiram no processo; 6. Escrever e contextualizar os temas com a literatura vigente.
Resultados e discussão
Os resultados foram analisados à luz da práxis freireana, que tem como prerrogativa a construção do conhecimento e a transformação social por meio de processos dialógicos efetivamente participativos, horizontais e democráticos2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.,2424. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários e práticas educativas. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 117 p.. As categorias temáticas versaram especialmente sobre o fortalecimento do conhecimento acerca desse comportamento agressivo (ou seja, o bullying), a quebra do silenciamento sobre as agressões até então não verbalizadas por alguns alunos, e ainda sobre o impacto na percepção da diminuição do bullying no cenário escolar.
Assim, três principais temas foram identificados: (a) Compreensão e identificação do bullying; (b) Quebra do silenciamento e a visibilidade das agressões; e (c) Impacto na percepção da diminuição do bullying.
Ter participado da roda colaborou para ampliar a compreensão naturalística e ecologicamente válida acerca do bullying. Os adolescentes se mostraram mais capazes de subjetivar como os atos agressivos emergem no cotidiano, seus diferentes tipos e a natureza de suas consequências. O tipo de bullying mais mencionado foi perpetrado de forma direta, verbal (apelidos, xingamentos, falas desagradáveis etc.) e fisicamente (brigas, empurrões, chutes etc.). Todos os alunos envolvidos em situações de bullying (praticantes, vítimas, vítimas-praticantes e testemunhas) ampliaram o entendimento acerca das consequências dos atos, especialmente pela verbalização de sofrimento dos envolvidos. A maioria relatou ter entendido que o ato não era uma simples brincadeira e que estavam se empenhando para não praticar. Intenções em colaborar na cessação da agressão foram identificadas no caso das testemunhas.
Os alunos demonstraram encorajamento e empoderamento para ocupar um lugar de fala e para compartilhar incômodos e angústias. A roda parece ter operacionalizado um poder de fala para todos os entrevistados, principalmente aqueles que se autorreferiram como calados e que se sentiam pouco confortáveis para verbalizar algo que lhes causava incômodo na relação entre os colegas. Os participantes reforçaram que o encorajamento e o sentimento de proteção foram provenientes da percepção de coletividade, escuta atenta e cooperação enquanto participavam da roda de conversas.
Na percepção dos alunos, houve diminuição do bullying na escola, especialmente no ambiente da sala de aula. A verbalização do sofrimento de alguns alunos que frequentemente eram alvos de bullying parece ter contribuído para o declínio da agressão direcionada a esses estudantes. Para a maioria dos entrevistados, após a realização da roda, houve diminuição principalmente do bullying verbal, relacionado com aspectos físicos e com a aparência das pessoas. Desnaturalizaram-se determinados padrões estéticos e comportamentais na medida em que a miríade de consequências ligadas ao bullying foi posta em discussão. Segundo um aluno, os colegas que não participaram da roda estavam menos sensíveis ao assunto, possivelmente colaborando menos para a cessação das agressões entre pares.
Compreensão e identificação do bullying por meio da multiplicidade do conhecimento
Instrumentos, métodos e práticas que, com a participação ativa de indivíduos e coletivos, são utilizados com o propósito de alterar certa dinâmica institucional, dentro de uma lógica que busca entender as dinâmicas de poder, conhecimento e afeto, podem contribuir fortemente para ampliar a capacidade desses sujeitos em lidar com situações conflituosas, tomar decisões e expandir possibilidades de agir sobre suas relações2020. Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18:983-95. doi: 10.1590/1807-57622013.0324.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.03... . Paulo Freire2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. diz que os processos geradores de conhecimento com potencial transformador se dão com a tomada de consciência e da autocrítica dos próprios sujeitos. Quando o ser humano assume um lugar de crítica do seu próprio mundo tem condições de mudar sua condição de vida e as situações opressoras que o assolam. Não se trata, portanto, de transmissão do conhecimento de pessoa a pessoa, mas de uma releitura da própria realidade, que está em movimento e é passível de ser reinterpretada e modificada.
Como mencionado anteriormente, na percepção de todos os alunos entrevistados, houve aumento da resposta ao bullying em decorrência do conhecimento e da problematização sobre a temática e, especialmente, da mensagem de não tolerância às agressões e do acolhimento daqueles que estavam em situação de violência. Não se trata de conceber a roda de conversas como solução de todos os problemas; entretanto, tomando o exemplo de programas de bullying desenvolvidos de forma participativa e dialógica, caso a roda esteja inscrita em um contexto de garantia de fala e não violação de direitos, tem-se potencial de ampliar a compreensão dos efeitos e consequências das violências para a Saúde Mental, contribuindo para o aumento da empatia e da solidariedade entre pares2525. Garandeau CF, Laninga-Wijnen L, Salmivalli C. Effects of the KiVa Anti-Bullying Program on affective and cognitive empathy in children and adolescents. J Clin Child Adolesc Psychol. 2022; 51(4):515-29. doi: 10.1080/15374416.2020.1846541.
https://doi.org/10.1080/15374416.2020.18... ,2626. Hamilton J, Purdy N, Willems RA, Smith PK, Culbert C, Brighi A, et al. Using the quality circle approach to empower disadvantaged youth in addressing cyberbullying: an exploration across five european countries. Pastor Care Educ. 2020; 38(3):254-72. doi: 10.1080/02643944.2020.1788127.
https://doi.org/10.1080/02643944.2020.17... .
Desloca-se um padrão subjetivo dominante do indivíduo por si mesmo – solitário e individualista – para um agir e pensar solidarizado por meio do que o outro traz como experiência1717. Sampaio J, Santos GC, Agostini M, Salvador AS. Limites e potencialidades das rodas de conversa no cuidado em saúde: uma experiência com jovens no sertão pernambucano. Interface (Botucatu). 2014; 18:1299-311. doi: 10.1590/1807-57622013.0264.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02... ,2020. Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18:983-95. doi: 10.1590/1807-57622013.0324.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.03... . Em outras palavras, isso constitui um aprender a agir e a se posicionar em relação ao bullying com aspectos coletivizados. Em conjunto, essas práticas permitem dividir “o fardo” e evitam que um indivíduo, usualmente a vítima, suporte sozinho as opressões e suas consequências drásticas à saúde física e mental.
Como efeito, houve estímulo à reformulação do conhecimento da agressividade. Isso se traduziu por uma forma dialógica e relacional mais democrática entre os adolescentes, propulsionando maior responsabilidade, agência, autonomia e cuidado de si (e do outro). Assim, segundo os entrevistados, o assunto disparado nas rodas também se estendeu aos bastidores das salas de aula. Os adolescentes relataram outras possibilidades de lidar com os conflitos de modo mais conectado com a sua própria realidade e identidade.
Instrumentos participativos possibilitam diferentes graus de engajamento e comprometimento, e o empoderamento e a prontidão para a resolução de problemas parecem ser proporcionais à proatividade e à mobilização dos sujeitos2727. Antunes ÂB, Pini FRO, Gadotti M, Padilha PR. Princípios ecopolíticos pedagógicos da práxis freireana. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 1, p. 39-48.,2828. Toledo RF, Giatti LL. Challenges to participation in action research. Health Promot Int. 2015; 30(1):162–73. doi: 10.1093/heapro/dau079.
https://doi.org/10.1093/heapro/dau079... . Toledo e Giati2828. Toledo RF, Giatti LL. Challenges to participation in action research. Health Promot Int. 2015; 30(1):162–73. doi: 10.1093/heapro/dau079.
https://doi.org/10.1093/heapro/dau079... assinalam que, nas pesquisas participativas, o empoderamento da sociedade surge da mobilização social, da confiança e da reciprocidade entre sujeitos e pesquisadores, especialmente em condições que propiciam o fluxo de interações entre os participantes. Segundo Campos2020. Campos GWS, Figueiredo MD, Pereira Junior N, Castro CP. A aplicação da metodologia Paideia no apoio institucional, no apoio matricial e na clínica ampliada. Interface (Botucatu). 2014; 18:983-95. doi: 10.1590/1807-57622013.0324.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.03... , que tem vasta experiência com o método da roda de conversas (método Paideia), no contexto da saúde, o instrumento amplia a capacidade de as pessoas compreenderem a si mesmas e lidarem com diferentes situações, já que se desenvolve em conjunto, com e entre os sujeitos, e parte de uma “prática menos prescritiva e mais negociada”, “sustenta ao mesmo tempo que empurra o outro” para um saber-fazer mais positivo e afetivo.
Sobre a composição do conhecimento pelo processo dialógico, Paulo Freire2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.,2727. Antunes ÂB, Pini FRO, Gadotti M, Padilha PR. Princípios ecopolíticos pedagógicos da práxis freireana. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 1, p. 39-48. fala da necessidade da diluição do saber centrado no conhecimento acadêmico hegemônico na sociedade, de modo que dê lugar a movimentos mais dinâmicos de aprendizagem por meio da valorização dos múltiplos conhecimentos. Pressupõe-se, portanto, que o pesquisador/professor/profissional da saúde deve abandonar a construção do conhecimento apenas com base em uma visão hegemônica e construir um saber-fazer com a valorização da palavra e das ações dos adolescentes. Atenção deve ser dada especialmente ao que o próprio indivíduo ou a coletividade compreende acerca de uma dada problemática, quais ações devem ser tomadas e o que de fato faz sentido naquele momento (de acordo com a realidade dele/dela) a fim de tornar os processos decisórios mais simétricos e justos2929. Giatti LL. O caráter adaptativo da pesquisa participativa: rompendo com a monocultura de saberes. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 2, p. 49-64..
A quebra do silenciamento e a visibilidade das agressões como produto do processo dialógico
Usualmente, adolescentes envolvidos com o bullying tendem a não compartilhar suas angústias e raramente solicitam ajuda11. Olweus D. Bullying at school: what we know and what we can do. New York: Blackwell; 1993.,1414. Smith PK. Understanding school bullying: its nature & prevention strategies. London: SAGE Publications; 2014. 224 p.. As razões podem ser variadas e estão especialmente relacionadas com a naturalização desse fenômeno expressa por frases do tipo “isso é frescura” ou “coisa comum entre crianças”. Além disso, em contextos e culturas marcados pela violência, com raízes históricas fundadas no patriarcado, no militarismo, no machismo e no racismo, como o Brasil3030. Ribeiro D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras; 2019., a frequência das agressões escolares tende a ser normalizada e intensificada1919. Menezes JA, Arcoverde LR, Libardi SS. A pesquisa-intervenção com adolescentes: oficina como contexto narrativo sobre igualdade e diferença. In: Castro LR, Besset VL, organizadoras. Pesquisa-intervenção na Infância e juventude. Rio de Janeiro: Nau; 2008. p. 205-23.,3131. Lisboa C, Ebert G. Violência na escola: reflexão sobre as causas e propostas de ações preventivas e focais. In: Habigzang LF, Koller SH. Violência contra crianças e adolescentes: teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. Cap. 14, p. 190-202..
No estudo em questão, a roda parece ter possibilitado o encorajamento da fala e a ruptura do silenciamento, especialmente daqueles alunos que usualmente não se posicionavam quanto ao sofrimento escolar. O processo de bullying envolve justamente uma complexa malha de silêncios, representações sociais, desentendimentos, raiva e culpabilizações no ambiente escolar1414. Smith PK. Understanding school bullying: its nature & prevention strategies. London: SAGE Publications; 2014. 224 p.. Logo, o ato de privilegiar a fala e a escuta atenta, em uma lógica de construção do conhecimento com base na experiência do outro e no que ele traz como sujeito, suscitou processos de entrosamento, identificação e esclarecimento de acontecimentos, usualmente não percebidos e entendidos pela maioria. Para Sampaio1717. Sampaio J, Santos GC, Agostini M, Salvador AS. Limites e potencialidades das rodas de conversa no cuidado em saúde: uma experiência com jovens no sertão pernambucano. Interface (Botucatu). 2014; 18:1299-311. doi: 10.1590/1807-57622013.0264.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.02... , a roda tem a potência de horizontalizar as relações de poder ao permitir que os envolvidos não somente integrem a atividade, mas conduzam os diálogos por sua própria visão de mundo.
Tal relato demonstra que o “estar junto”, no coletivo, contribuiu para reconfigurar as relações entre pares. Parece ter havido, portanto, uma certa diluição da assimetria de poder, pilar característico do bullying11. Olweus D. Bullying at school: what we know and what we can do. New York: Blackwell; 1993.. Ao criar espaços de fala pautados em processos dialógicos de não violência, permitiu-se, de algum modo, a ressignificação de relações simbólicas e hierárquicas marcadas pela submissão e pelo silêncio, fortemente enraizadas na história do país e de suas instituições reprodutoras do status quo. Parece-nos óbvio que não se trata de unir aqui partes ou soma de falas como solução última para o fenômeno do bullying. Cabe a constituição de uma totalidade, que vai se compondo e modificando o cenário – antes marcado por receio, medo e desconfiança – para um no qual a troca, a cooperação e a confiança mútua são possíveis2424. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários e práticas educativas. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 117 p.,2626. Hamilton J, Purdy N, Willems RA, Smith PK, Culbert C, Brighi A, et al. Using the quality circle approach to empower disadvantaged youth in addressing cyberbullying: an exploration across five european countries. Pastor Care Educ. 2020; 38(3):254-72. doi: 10.1080/02643944.2020.1788127.
https://doi.org/10.1080/02643944.2020.17... ,2727. Antunes ÂB, Pini FRO, Gadotti M, Padilha PR. Princípios ecopolíticos pedagógicos da práxis freireana. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 1, p. 39-48.. Trata-se de uma mudança sutil e lenta, mas potencialmente transformadora.
Na lógica da transformação social, a potência da roda deve se inscrever em uma postura ético-política do facilitador (pesquisador, educador ou profissional de saúde) de não reprodução da violência, mas antes de problematização dela3232. Giatti LL. O caráter adaptativo da pesquisa participativa: rompendo com a monocultura de saberes. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 2, p. 49-64.. Os relatos indicam, portanto, que a roda permitiu “um vivenciar” a violência de uma outra ótica, talvez um pouco mais compartilhada, com menos receio da “denúncia”, que abriu espaço para expressão, reflexão, seriedade, surpresa, estranhamento e até de alívio. Além disso, destaca-se que o instrumento procurou oportunizar aos adolescentes a expressão do incômodo e do que há tempos estava escondido, travestido de angústia.
Em outras palavras, dinâmicas que possibilitam a livre narratividade também problematizam a existência e projetam os sujeitos para um repensar a prática de certos atos cotidianos, repetitivos e mecanizados2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.,2424. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários e práticas educativas. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 117 p.,2727. Antunes ÂB, Pini FRO, Gadotti M, Padilha PR. Princípios ecopolíticos pedagógicos da práxis freireana. In: Toledo RF, Rosa TEC, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde; 2018. Cap. 1, p. 39-48.. Vale destacar que o caráter sistemático do bullying está também conectado com um outro aspecto que o caracteriza, que é a dificuldade que a vítima tem em se defender11. Olweus D. Bullying at school: what we know and what we can do. New York: Blackwell; 1993., cessar a agressão, sendo que isso pode envolver pedir ajuda, se comunicar. Nesse sentido, a escolha de instrumentos para pesquisas que visam trabalhar com as violências, especialmente as escolares, deve ser pautada por uma aprendizagem libertadora, tecida na dialogicidade, em que o sujeito-adolescente é agente autônomo de sua palavra e é livre para compartilhá-la com o mundo, sem medo de repressão ou represálias55. Alencastro LCS, Silva JL, Vilela AV, Bernardino FBS, Mello FCM, Silva MAI. Teatro do oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Rev Bras Enferm. 2020; 73(1):e20170910. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0910.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0... ,2626. Hamilton J, Purdy N, Willems RA, Smith PK, Culbert C, Brighi A, et al. Using the quality circle approach to empower disadvantaged youth in addressing cyberbullying: an exploration across five european countries. Pastor Care Educ. 2020; 38(3):254-72. doi: 10.1080/02643944.2020.1788127.
https://doi.org/10.1080/02643944.2020.17... ,2828. Toledo RF, Giatti LL. Challenges to participation in action research. Health Promot Int. 2015; 30(1):162–73. doi: 10.1093/heapro/dau079.
https://doi.org/10.1093/heapro/dau079... . Neste estudo, a roda parece ter cumprido o propósito de transformar situações com base no “pensar autêntico”, quando o retiram do isolamento e o lançam ao processo de comunicação, de intercomunicação e de agência. Assim, pelo encorajamento da fala e das experiências do sujeito, como ponto de partida, vislumbrou-se a possibilidade da quebra do silêncio com possível desvelamento da violência.
O impacto na diminuição dos atos agressivos
Além de contribuir para fortalecer o conhecimento acerca do tema e encorajar os estudantes a falar sobre o assunto, outros entrevistados entenderam a roda como eficaz para diminuir o bullying escolar.
A roda, portanto, parece ter imediatamente impactado na percepção de diminuição dos conflitos decorrentes da discriminação repetitiva entre pares. Até o momento, não há evidência na literatura nacional que verse especificamente sobre a roda de conversas e seu impacto na redução do bullying. Entretanto, há robustez de estudos explicando que o uso dessa ferramenta, ao privilegiar a fala e o compartilhamento de vivências, é capaz de engajar os adolescentes, ampliar o olhar sobre o outro e resultar na percepção de um clima escolar mais protetivo3131. Lisboa C, Ebert G. Violência na escola: reflexão sobre as causas e propostas de ações preventivas e focais. In: Habigzang LF, Koller SH. Violência contra crianças e adolescentes: teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. Cap. 14, p. 190-202.,3333. Koptcke LS, Padrão MRAV, Rocha FG, Caixeta IA, Dalbosco C. Reflexões sobre o uso de material para educação entre pares no Programa Saúde na Escola. Com Cienc Saude. 2017; 28(02):178–87.,3434. Melo MCH, Cruz GC. Roda de conversa: uma proposta metodológica para a construção de um espaço de diálogo no ensino médio. Imagens Educ. 2014; 4(2):31. doi: 10.4025/imagenseduc.v4i2.22222.
https://doi.org/10.4025/imagenseduc.v4i2... .
Recentemente, pesquisadores brasileiros e estrangeiros têm optado pela escolha de instrumentos participativos para trabalhar a temática do bullying55. Alencastro LCS, Silva JL, Vilela AV, Bernardino FBS, Mello FCM, Silva MAI. Teatro do oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Rev Bras Enferm. 2020; 73(1):e20170910. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0910.
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0... ,2626. Hamilton J, Purdy N, Willems RA, Smith PK, Culbert C, Brighi A, et al. Using the quality circle approach to empower disadvantaged youth in addressing cyberbullying: an exploration across five european countries. Pastor Care Educ. 2020; 38(3):254-72. doi: 10.1080/02643944.2020.1788127.
https://doi.org/10.1080/02643944.2020.17... . O propósito é incluir os adolescentes como “gestores do espaço escolar”, com autonomia e responsabilidade para decidir e opinar. Hamilton et al.2626. Hamilton J, Purdy N, Willems RA, Smith PK, Culbert C, Brighi A, et al. Using the quality circle approach to empower disadvantaged youth in addressing cyberbullying: an exploration across five european countries. Pastor Care Educ. 2020; 38(3):254-72. doi: 10.1080/02643944.2020.1788127.
https://doi.org/10.1080/02643944.2020.17... , em estudo com 237 adolescentes de dez escolas localizadas em regiões de alta vulnerabilidade social de cinco países europeus, objetivaram engajar os estudantes e criar recursos para lidar e cessar a prática de cyberbullying. A pesquisa demonstrou que a “abordagem dos círculos de qualidade” (quality circle approach) contribuiu para elevar o conhecimento acerca das habilidades para lidar com a agressão virtual e a segurança eletrônica, aprimorar a capacidade de resolução de problemas, aumentar os níveis de confiança e aperfeiçoar as habilidades de trabalho em grupo2424. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários e práticas educativas. 25a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1996. 117 p..
De modo semelhante, na presente pesquisa, parece ter havido sensibilização para um pensar ativo sobre o agir, posicionar-se contra as agressões, não permitir ser agredido e não mais agredir durante e depois de ter participado da roda. Fiori3535. Fiori EM. Prefácio: aprender a dizer a sua palavra. In: Freire, P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011., ao prefaciar a “Pedagogia do Oprimido”, diz que “Os caminhos da liberação são os do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgata, é sujeito que se deve autoconfigurar responsavelmente”.
Em outras palavras, espaços participativos que criam condições favoráveis de visibilização da violência, por vezes oculta, podem favorecer a construção conjunta de estratégias de enfrentamento e impactar a percepção dos adolescentes de não tolerância das agressões no espaço escolar. Sobre isso, a autora Djamila Ribeiro3030. Ribeiro D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras; 2019. diz que “...praticar pequenos exercícios de percepção pode transformar situações de violência que antes do processo de conscientização não seriam questionadas”.
Menezes, Arcoverde e Libardi1919. Menezes JA, Arcoverde LR, Libardi SS. A pesquisa-intervenção com adolescentes: oficina como contexto narrativo sobre igualdade e diferença. In: Castro LR, Besset VL, organizadoras. Pesquisa-intervenção na Infância e juventude. Rio de Janeiro: Nau; 2008. p. 205-23. afirmam que o registro da informação pelos adolescentes, se circunscritos por uma lógica ético-política de convivência, tem potencial de transformação e mobilização social. Trata-se, portanto, mais de problematização do que apreensão isolada do conhecimento. Aposta-se que as mudanças são possíveis, mas ocorrem no ritmo do cotidiano e das relações, em que cada qual tem seu tempo de aprender e ser afetado pelo que é posto nas conversas. Os autores reforçam ainda que, para a mobilização social acontecer, é fundamental “problematizar e desestabilizar o indiscutível”, questionar as lógicas homogeneizadoras de gênero, raça e classe social, para que, assim, se vislumbre um reposicionar de subjetividades pela via do acolhimento das pluralidades e não do “aniquilamento do diferente”.
Conclusão
Este estudo possibilitou conceber a roda de conversas como instrumento participativo e educativo capaz de impactar a percepção de diminuição do bullying escolar pelos/pelas adolescentes. O processo dialógico e menos formal, inerente ao instrumento, favoreceu o aumento da comunicação e da confiança entre pares, o encorajamento da fala e o desvelamento de cenas de violência, que antes pareciam estar ocultas. Ao problematizar as cenas e levantar possibilidades de enfrentamento, a roda contribuiu para elevar o nível de conhecimento dos/das adolescentes e desnaturalizar o bullying como brincadeira cotidiana, do cenário escolar. Tais ações parecem ter colaborado para alterar a percepção dos estudantes sobre a ocorrência das agressões, com impacto na percepção da redução dos conflitos e discriminações diversas.
Vale ressaltar que programas e estratégias de enfrentamento ao bullying exigem abordagens multiprofissionais e intersetoriais que usualmente reúnem uma gama de ações. Para ter impacto na ocorrência das agressões, tais esforços devem ocorrer em longo prazo (com anos de implementação, acompanhamento e avaliação) e de modo contínuo1515. Smith PK, Bauman S, Wong D, editors. Interventions to reduce bullying and cyberbullying. Basel: MDPI; 2019.. Portanto, não se pode conceber a roda como instrumento resolutivo e estanque em si, mas como ferramenta complementar, apoiadora e potencialmente capaz de diluir a assimetria de poder entre os envolvidos. É preciso extremo cuidado para não reproduzir violências, atentando para o preparo do facilitador em programas que visam desnaturalizar a violência nesse contexto.
A tônica das conversações pode imprimir um caráter libertador e não deve conceber os estudantes como meros repositórios e depósitos de informação. Desse modo, não se trata de uma inundação de conteúdo, mas de disparar perguntas, entender a visão de mundo e estimular o pensar. Nas palavras de Freire seria “qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar pelas visões parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto ao outro, ou um problema ao outro”, agir para humanizar e não desumanizar.
O processo dialógico surge como substância de reinterpretação do próprio mundo e se faz potente ação transformadora ao disparar processos de antialienação2121. Freire P. Pedagogia do oprimido. 50a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011.. Entendemos, portanto, que somente assim a roda poderá irromper com processos de silenciamento coletivo e individual e ser utilizada como ferramenta de apoio para enfrentamento das violências no contexto escolar.
Agradecimentos
À Escola Estadual Bairro Nossa Senhora da Conceição pelo apoio durante o desenvolvimento deste estudo.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Out 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
05 Jan 2023 - Aceito
20 Jul 2023