Uma contribuição biopolítica ao debate

A biopolitical contribution to the debate

Una contribución biopolítica al debate

Ricardo Rodrigues Teixeira Sobre o autor

O artigo que ora se oferece ao debate apresenta os resultados de um estudo sobre Las Prácticas de Cuidado y la Participación de los Hombres-usuarios em um Grupo de Homens (GH) como um dispositivo de Promoção da Saúde (PS) alinhado a uma concepção que vincula a PS a um contexto de vida no medicalizada, o que requer do dispositivo una producción permanente de estrategias para fomentar la escucha, la acogida, el vínculo y valorizar las singularidades de los sujetos.

Há um emaranhado de questões interessantes e importantes que se desenrolam por meio desse dispositivo de Promoção da Saúde, questões que valem o debate. Ainda que o foco do estudo esteja no funcionamento do dispositivo e seus efeitos, as concepções de PS são muito importantes porque elas formulam o problema a que o dispositivo viria responder. E aqui, claramente, estamos diante de uma PS que pretende ser “reação à acentuada medicalização da vida social”11. Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):163-77. (Buss, 2000) e acredita que se possa escapar dessa medicalização mediante um ethos “humanizador”, que valorize a constituição de coletivos, a formação de vínculos, a escuta das dimensões subjetivas e o acolhimento das singularidades individuais.

São justamente essas duas proposições de base apresentadas como premissas do trabalho que pretendo problematizar. A começar, pelo vínculo estabelecido entre PS e contexto de vida no medicalizada, o que nos obriga a definir o que se entende por uma “vida não medicalizada”. Mas, também, problematizar o modo como se imagina poder escapar a esse contexto de vida no medicalizada.

O artigo dá a entender, em seus primeiros parágrafos, que uma “vida não medicalizada” seria aquela que escapa às investidas “normalizadoras” das práticas de saúde e que só pode ser acessada por um ethos “humanizador”, com práticas de PS atentas às dimensões subjetivas, valorizando o vínculo e as singularidades dos sujeitos. Mas teriam realmente tais práticas, por si sós, a força de fazer a vida escapar da medicalização ou de outros tipos de ações normalizadoras? Seria, no limite, possível escapar a um modo de vida medicalizado? E se nós colocássemos essas questões em uma perspectiva biopolítica?

*

Em palestra proferida no Rio de Janeiro em outubro de 1974 (e publicada como artigo em português em 2010), Michel Foucault22. Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve. 2010; 18:167-94. comenta a, então, recém-lançada obra de Ivan Illich, Nêmesis da Medicina – a expropriação da saúde, e demarca suas diferenças com a noção de medicalização trazida pelo autor. Destaca-se nessa demarcação que, para Illich, haveria a possibilidade de uma “arte desmedicalizada da saúde”, enquanto para Foucault nada escaparia à medicalização. Illich vislumbra a possibilidade da vivência bucólica de uma saúde não codificada pelo saber médico, ou seja, vislumbra contextos de vida no medicalizada, enquanto Foucault defende uma “medicalização indefinida”. Nas palavras de Foucault:

Illich e seus seguidores mostram que a medicina terapêutica, que intervém para responder a uma sintomatologia e bloquear os sintomas aparentes das doenças, é uma má medicina. Contrapõem-lhe uma arte desmedicalizada da saúde, a higiene, a alimentação, o ritmo de vida, as condições de trabalho, a moradia etc. Ora, o que é atualmente a higiene senão uma série de regras estabelecidas e codificadas por um saber biológico e médico, quando não é a própria autoridade médica, em sentido estrito, a portadora ou o centro de elaboração?22. Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve. 2010; 18:167-94.. (p. 184)

Não se trata de uma admissão cega da tese abstrata de uma “medicalização indefinida”, mas de seguir Foucault em suas análises sobre o biopoder que é o que nos permite compreender os desdobramentos concretos dessa tese no real, sem perder de vista a singularidade dos processos envolvidos. Não se trata de supor que a medicalização se insinuaria por um “salutarismo” raso, em que a preocupação com uma série de outras condições para a vida saudável (higiene, alimentação, trabalho, moradia etc.) já teriam sido codificadas pelo saber médico33. Crawford R. Salutarismo e medicalização da vida cotidiana. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2019; 13(1):100-21. doi: 10.29397/reciis.v13i1.1775.
https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.17...
– conforme uma PS ultrapassada, que sabemos não ser aquela efetivamente praticada no GH estudado. A medicalização não se daria apenas pela sobrecodificação de toda e qualquer vivência pelo saber médico, mas pelos efeitos propriamente biopolíticos de uma prática, isto é, pelos seus efeitos de poder sobre os corpos, na medida em que integram um dispositivo governamental, um conjunto complexo de mecanismos de governo da vida.

*

As diretrizes e os dispositivos da Política Nacional de Humanização que inspiram o trabalho seriam capazes de promover uma saúde que escapasse de investidas “normalizadoras” da vida e que se desacoplasse das estratégias do biopoder? Essa me parece uma das questões importantes neste debate e que, a meu ver, a pesquisa ajuda a responder.

O GH é pensado como um dispositivo de “clínica ampliada”, orientado pela diretriz de construir procesos colectivos para enfrentar las relaciones de poder, trabajo y afectos. No estudo em debate, o dispositivo é analisado segundo dois enfoques: como “espaço de comunicação” e considerando o “desenvolvimento de vínculos”. Ou seja: como um dispositivo conversacional de abertura à palavra baseado na escuta e no diálogo e, por isso mesmo, que aciona o campo dos afetos. O estudo identifica vários indícios sensíveis da força dos vínculos estabelecidos no GH e mostra como isso vai criando um “espaço protegido” para se falar e se escutar. No GH, os homens se sentiam estimulados a falar de assuntos sensíveis como a presença da violência na vida ou os efeitos do álcool e de outras drogas nas relações familiares e na sexualidade. O estudo também mostra, belamente, como a constituição desse espaço de segurança para compartilhar relatos sem medo de ser julgado vai permitindo a todos resignificar las experiencias de los sujetos frente a la referencia dominante de la masculinidad contemporánea.

O estudo toma como indicadores desse deslocamento subjetivo dos homens-usuários o fato de assumirem uma posição mais cuidadora, em especial de si mesmos, “fazendo cartão SUS”, procurando o serviço de saúde e falando de seus problemas mais íntimos. Em suma, assumindo uma relação com os serviços de saúde mais semelhante àquela habitualmente assumida pelas mulheres44. Pinheiro RS, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil. Cienc Saude Colet. 2002; 7(4):687-707.. Ora, aprendemos com Foucault que esse comportamento “feminino” mais cuidador, que se expressa em uma relação mais intensiva com os serviços de saúde, nada tem de “natural”, mas recorre de mecanismos biopolíticos de controle e regulação da reprodução humana, que fizeram dos corpos femininos alvos preferenciais da medicalização. Nesse ponto, não podemos deixar de ver o deslocamento em questão também de uma perspectiva biopolítica. Assim, o que pode ser lido como um deslocamento sensível em relação ao referencial dominante de masculinidade, também pode ser entendido como uma forma de “docilização” do corpo masculino, abrindo-o a novas possibilidades de consumo (médico). Como nos lembra Foucault na referida palestra sobre a “medicalização indefinida”.

O corpo humano se introduziu duas vezes no mercado: a primeira através do assalariado, quando o homem vendeu sua força de trabalho, e a segunda por intermédio da saúde.

O corpo humano, portanto, entra novamente em um mercado econômico enquanto suscetível às doenças e à saúde, ao bem-estar e ao mal-estar, à alegria ou ao sofrimento; na medida em que é sede de sensações, desejos etc22. Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve. 2010; 18:167-94.. (p. 188)

Nesse sentido, os indicadores de deslocamento subjetivo utilizados acabam por expressar movimentos que contribuem para a medicalização da vida desses homens. Por outro lado, o fato de o dispositivo abrir a possibilidade de um outro exercício da masculinidade é uma potência não desprezível nessa experimentação. Não julgo que o deslocamento em relação aos padrões dominantes de masculinidade valha menos do ponto de vista biopolítico do que uma “vida não medicalizada”. Com Foucault, também aprendemos que é “por dentro” dos dispositivos do biopoder que se poderá abrir o espaço da resistência e da produção de contracondutas que podem ser – por que não? – de contramasculinidades. Nesse sentido, a despeito do desejo de uma PS “desmedicalizada”, vemos que, de fato, uma certa “medicalização” da vida pode funcionar como um vetor importante de transformação das masculinidades.

Não se trata de negar a existência de um problema relacionado à medicalização da vida ou de uma aceitação resignada da tese da “medicalização indefinida”, mas de reconhecer que seu enfrentamento, talvez, possa ser ainda mais exigente. Quem sabe precisaremos nos deslocar da ideia de promover saúde para uma outra ideia, mais factícia, mais fabril, de produzir saúde(s) que nos abra para uma perspectiva em que não se separa a produção de saúde da produção de um mundo, da produção de um outro mundo e de outras saúdes, quiçá “não medicalizadas”55. Teixeira RR. Produzir saúde na produção do mundo. Rev Centro Pesq Formaçao. 2020; (10):43-62.. Mas isso já seria tema para um outro debate...

Referências

  • 1
    Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):163-77.
  • 2
    Foucault M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve. 2010; 18:167-94.
  • 3
    Crawford R. Salutarismo e medicalização da vida cotidiana. Rev Eletron Comun Inf Inov Saude. 2019; 13(1):100-21. doi: 10.29397/reciis.v13i1.1775.
    » https://doi.org/10.29397/reciis.v13i1.1775
  • 4
    Pinheiro RS, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil. Cienc Saude Colet. 2002; 7(4):687-707.
  • 5
    Teixeira RR. Produzir saúde na produção do mundo. Rev Centro Pesq Formaçao. 2020; (10):43-62.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2023
  • Aceito
    02 Mar 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br