“O nome era de homem, mas era um corpo de mulher”: a população transexual na Estratégia Saúde da Família

“It was a man’s name but a woman’s body”: the transexual population in the family health strategy

“El nombre era de hombre, pero era un cuerpo de mujer”: la población transexual en la estrategia de la salud de la familia

Bárbara Cristina de Léo Spadim Carolina Siqueira Mendonça Eliana Goldfarb Cyrino Sobre os autores

Resumos

Apesar da criação de políticas que buscam equidade para as pessoas transexuais, reconhece-se uma realidade alarmante evidenciada pela elevada vulnerabilidade. Ao buscar assistência à saúde, essas pessoas vivenciam experiências que produzem barreiras a esse acesso. Objetiva-se analisar os desafios no cuidado à saúde dessa população nos serviços de Estratégia Saúde da Família, em um município de São Paulo, caracterizando as representações dos profissionais, ofertas de cuidado e capacitações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e exploratória, realizada a partir de entrevistas semiestruturadas. A investigação é referenciada pela análise de conteúdo segundo Minayo e por estatística descritiva. Os núcleos elaborados foram: “A demanda existe”, “O vazio formativo” e “Ecos da violência”. Os relatos apontam para estigmas, falta de políticas públicas, preconceitos e violências associadas às pessoas transexuais.

Palavras-chave
Educação em saúde; Transexual; Vulnerabilidade; Pesquisa qualitativa


Despite the creation of policies that seek to promote equality for transexuals, an alarming reality exists characterized by a high level of vulnerability. When seeking health care, transexuals have experiences that create barriers to access. The aim of this study was to analyze the health care challenges for this group in family health strategy services in the municipality of São Paulo, characterizing the representations of professionals, availability of care and training. We conducted an exploratory study using a qualitative design based on semi-structured interviews. The data were analyzed using content analysis as proposed by Minayo and descriptive statistics, resulting in the following units of analysis: demand exists; the training void; and echoes of violence. The interviewees’ accounts point to stigma, lack of public policy, prejudice and violence against transexuals.

Keywords
Health education; Transexual; Vulnerability; Qualitative research


A pesar de la creación de políticas que buscan equidad para los transexuales, se reconoce una realidad alarmante puesta en evidencia por la alta vulnerabilidad. Al buscar asistencia para la salud, ellos viven experiencias que producen barreras para el acceso. El objetivo es analizar los desafíos en el cuidado de la salud de esa población en los servicios de Estrategia de Salud de la Familia, en el municipio de São Paulo, caracterizando las representaciones de los profesionales, ofertas de cuidado y capacitaciones. Se caracteriza una investigación cualitativa y exploratoria, realizada por entrevistas semiestructuradas. La referencia del análisis es el análisis de contenido según Minayo y la estadística descriptiva. Los núcleos elaborados fueron: la demanda existe. El vacío formativo; Ecos de la violencia. Los relatos señalan estigmas, falta de políticas públicas, prejuicios y violencias relacionadas a los transexuales.

Palabras clave
Educación en salud; Transexual; Vulnerabilidad; Investigación cualitativa


Introdução

Apesar da criação e do reconhecimento de políticas públicas e portarias na área da Saúde que buscam uma cobertura mais completa de equidade para a população LGBTI+, pesquisas recentes indicam que ainda existem barreiras e obstáculos a serem percorridos para efetivar a consolidação e implementação de tais políticas11 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70. doi: 10.1590/S0104-12902017157712.
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. Esses entraves se fortalecem em razão da própria ausência de recursos e iniciativas do governo, bem como de uma cultura ainda patriarcal, discriminatória e com visão predominantemente heteronormativa. Essa visão reproduz, dentro dos serviços de saúde, que a heterossexualidade é a única orientação sexual aceitável. Estudos recentes mostram que, em alguns casos, o profissional de saúde muitas vezes nem questiona a respeito da orientação do paciente, uma vez que se assume que a consulta é para um heterossexual, ou mesmo porque essa informação não é relevante no momento22 Albuquerque GA, Garcia CL, Alves MJH, Queiroz CMHT, Adami F. Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil. Saude Debate. 2013; 37(98):516-24.

3 Mello L, Perilo M, Braz CA, Pedrosa C. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexual Salud Soc. 2011; (9):7-28. doi: 10.1590/S1984-64872011000400002.
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4 Catalán Águila M. Principales barreras de acceso a servicios de salud para personas lesbianas, gay y bisexuales. Cuad Med Soc. 2018; 58(2):43-7.
-55 Hernández Valles J, Arredondo López A. Barreras de acceso a los servicios de salud en la comunidad transgénero y transexual. Horiz Sanit. 2020; 19(1):19-25. doi: 10.19136/hs.a19n1.3279.
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. Além disso, destaca-se que a falta de capacitação do profissional também se torna um importante obstáculo a ser superado66 Andrade CAA, Loureiro AR, Lima Neto ER, Vasconcelos EMR, Araújo EC. Requisitos de Autocuidado de mulheres transexuais em uso de hormônios sexuais segundo Teoria de Orem. Cogitare Enferm. 2018; 23(3): e55748.-77 Granados Cosme JA, Hernández Ramírez PA, Olvera Muñoz OA. Mujeres trans: medicalización y proceso de adecuación sexo-genérica. Salud Problema. 2016; 10(20):10-29. .

Pesquisas indicam que os atendimentos ofertados pelo sistema de saúde aos transexuais são marcados por entraves, uma vez que essa população já encontra barreiras na busca pela oferta à saúde, deparando-se com situações, que contribuem para a manutenção de obstáculos no acesso deste serviço66 Andrade CAA, Loureiro AR, Lima Neto ER, Vasconcelos EMR, Araújo EC. Requisitos de Autocuidado de mulheres transexuais em uso de hormônios sexuais segundo Teoria de Orem. Cogitare Enferm. 2018; 23(3): e55748.. A discriminação e a estigmatização são os principais entraves e a transfobia institucional surge como uma violência direcionada a esse grupo, sendo que o principal indutor dessa situação é a inflexibilidade, o desprezo, a rejeição e repulsa11 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70. doi: 10.1590/S0104-12902017157712.
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,55 Hernández Valles J, Arredondo López A. Barreras de acceso a los servicios de salud en la comunidad transgénero y transexual. Horiz Sanit. 2020; 19(1):19-25. doi: 10.19136/hs.a19n1.3279.
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,88 Heck JE, Sell RL, Gorin SS. Health care access among individuals involved in same-sex relationships. Am J Public Health. 2006; 96(6):1111-8. doi: 10.2105/AJPH.2005.062661.
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,99 Moreno-Gutiérrez NI. Situación de salud sexual y reproductiva, hombres y mujeres homosexuales: Hospital María Auxiliadora 2006. Rev Peruana Obstet Enferm. 2007; 3(1):2-16.. Essa oferta traçada por condutas inadequadas, crenças e estigmas contribui para o preconceito, a invisibilidade e ausência dessa população nos serviços, bem como sua exclusão social e a alta vulnerabilidade1010 Magalhães LG. Barreiras de acesso na atenção primária à saúde à travestis e transexuais na região central de São Paulo [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.. Destaca-se que a falta de procura pela AB é preocupante, uma vez que ela é uma das portas de entrada para o sistema e local de maior permanência do usuário.

Além disso, em decorrência dessas condutas, casos de transexuais que buscam alternativas adversas, [LP1] são cada vez mais frequentes. A injeção do silicone industrial no corpo, por exemplo, pode resultar em graves problemas de saúde, como infecções, outros agravos ou até na morte. Sabe-se também que outras substâncias consideradas inadequadas também são injetadas para o preenchimento corporal e que há o uso indiscriminado de medicamentos sem a orientação de um profissional da saúde1111 Silva AD, Alcântara AM, Oliveira DC, Signorelli MC. Implementação da política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (PNSI LGBT) no Paraná, Brasil. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190568. doi: 10.1590/interface.190568.
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,1212 Pinto TP, Teixeira FD, Barros CR, Martins RB, Saggese GS, Barros DD, et al. Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2017; 33(7):e00113316. doi: 10.1590/0102-311x00113316.
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. Diante desse cenário alarmante no âmbito da saúde, é de extrema importância analisar os avanços e desafios no cuidado à saúde da população transexual em serviços de saúde. Com base nessa assertiva, buscou-se, nesta pesquisa, caracterizar as representações dos profissionais sobre o tema; e identificar modos de produção de cuidado e a existência de capacitações oferecidas aos profissionais da Enfermagem.

Procedimentos metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória que se contextualiza no reconhecimento da organização assistencial e análise da percepção de profissionais da Enfermagem em relação à saúde integral da população transexual, ofertadas pelas 14 Unidades de Saúde da Família, localizadas em um município do interior de São Paulo. O município em questão tem destaque pelo lastro científico da Faculdade de Medicina e do Hospital das Clínicas, tornando-se referência nacional e internacional no cenário da saúde.

Ademais, a escolha pelo campo das Unidades Saúde da Família se deu em função da oferta e do atendimento integral e continuado, que tem como foco a família e o território1313 Levcovitz E, Garrido NG. Saúde da Família: a procura de um modelo anunciado. Cad Saude Familia. 1996; 1(1):3-9.. Já a escolha pelos enfermeiros se dá em razão de seu importante papel enquanto responsáveis pelo gerenciamento dessas unidades na maioria do país, incluindo a coordenação das atividades de qualificação dos profissionais1414 Costa MBS, Lima CB, Oliveira CP. Atuação do enfermeiro no programa saúde da família (PSF) no estado da Paraíba. Rev Bras Enferm. 2000; 53(spe):149-52. doi: 10.1590/S0034-71672000000700025.
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,1515 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: Ministério da Saúde; 2006.. A tabela a seguir foi elaborada para apresentar algumas características dos sujeitos participantes deste estudo. Foram entrevistados, ao todo, vinte enfermeiros pertencentes às Unidades de Saúde do município.

Quadro 1
Características dos participantes.

No âmbito das técnicas e dos métodos para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais, gravadas e compostas por perguntas abertas e fechadas sobre as características da atenção ofertada pelos serviços de saúde, a capacitação do enfermeiro e os desafios no cuidado das pessoas transexuais. As entrevistas foram realizadas pessoalmente nas Unidades de Saúde, entre maio e setembro de 2020. Após a análise e transcrição das entrevistas realizadas, houve a necessidade de se buscar mais informações a respeito do perfil dos entrevistados. Assim, foi elaborado e aplicado um novo formulário sociodemográfico, com o intuito de conhecer mais a fundo os profissionais da saúde, bem como levantar dados relevantes para a discussão desta pesquisa. Nesse novo instrumento, foram elaboradas perguntas que buscassem mais informações a respeito dos entrevistados, tais como ano de conclusão de graduação de cada profissional; tempo de atuação na Atenção Primária e na unidade atual; religião; atuação em preceptoria (graduação ou/e residência); e cursos realizados com foco na saúde LGBTQI+. Destaca-se que, durante a aplicação desse instrumento, foi possível realizar o preenchimento de apenas 19 formulários, uma vez que um profissional não o respondeu.

Para preservar o anonimato dos participantes, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios que representam uma pequena parcela das centenas de transexuais que foram assassinada(o)s de forma violenta no Brasil no ano de 20201616 Benevides B, Nogueira SNB. Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE; 2021.. Na sessão dos resultados, os trechos das narrativas e dados coletados serão apresentados por estatística descritiva e por meio de uma categoria e de três subcategorias. Destaca-se que esses dados produzidos foram transcritos integralmente e analisados pelo método de Análise de Conteúdo de Minayo1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010.. Esse método se baseia em descobrir os núcleos de sentidos, buscando compreender os significados no contexto da fala para o objetivo visado, tornando possível a objetivação de crenças, representações sociais, subjetivação, relações e ações humanas sob a perspectiva dos participantes da pesquisa, possibilitando uma construção e relação com o conhecimento científico1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010.,1818 Minayo MC. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):621-6. doi: 10.1590/S1413-81232012000300007.
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. Assim, ao longo do processo, foram realizadas a a decomposição das falas; a categorização por temas; e a inferência, análise, descrição e interpretação do conteúdo das entrevistas, que não ocorreram, necessariamente, de forma sequencial, pois foram construídas de forma integrada e continuada; e realizadas ao longo das três etapas que compõem o método: a) pré-análise; b) exploração do material; e c) tratamento e interpretação dos resultados1717 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010.,1919 Minayo MC. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10a ed. São Paulo: Hucitec; 2007..

O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos, conforme o Comitê de Ética em Pesquisa, sob o parecer de n. 4.065.028.

Resultados e discussão

Conforme a tabela, dos 19 enfermeiros que participaram da pesquisa e que preencheram o formulário, houve uma grande diversidade de idades e gêneros. Ao todo, houve 18 mulheres e apenas um homem, com idades entre 25 e 52 anos. Além disso, dez assinaram o catolicismo como pertencimento religioso, sendo essa a resposta mais predominante, seguida pela doutrina evangélica, que foi selecionada por seis profissionais. Em razão da diferença entre as faixas etárias, o período de atuação na Atenção Primária e na unidade é diversificado. Assim, dos 19 profissionais que responderam o formulário, seis afirmaram que atuam na Atenção Primária em um período entre um e cinco anos; quatro, entre seis e dez anos; e nove afirmaram que atuam há mais de 11 anos.

É importante salientar que, em decorrência da pandemia de Covid-19, que teve início em março de 2020, houve a necessidade de remanejamento dos profissionais em Unidades de Saúde da Família, uma vez que alguns enfermeiros apresentavam mais comorbidades, gerando, assim, um maior risco de morte. Assim, durante a coleta, foi possível observar que, em razão dessa mudança, alguns profissionais estavam há pouco tempo atuando naquela Unidade de Saúde. Logo, dos 19 profissionais, sete deles estão há menos de um ano na unidade atual.

Também foi questionado se os profissionais já tiveram alguma capacitação ou formação voltada para o público LGBTQI+ e se eles já tiveram algum relacionamento afetivo-sexual com pessoas do mesmo sexo. Houve uma grande predominância de profissionais que afirmaram não terem tido contato com o tema, sendo que, dos 19 enfermeiros questionados, 16 afirmaram que não tiveram capacitação sobre o conteúdo LGBTQI+ no curso da graduação e 18 profissionais negaram terem tido algum curso sobre esse conteúdo durante a especialização/pós-graduação. Finalmente, todos os profissionais que responderam o formulário negaram já terem tido algum relacionamento afetivo-sexual com uma pessoa do mesmo sexo.

O compilado da análise qualitativa das entrevistas coletadas e transcritas fez surgir um eixo principal como resultado, apresentado por uma categoria intitulada “Como lidar com aquele que nem sei o que é”. Essa categoria engloba o início de todo o processo de cuidado que se dá pelo acolhimento do usuário e de suas necessidades e demandas de saúde. Nas falas apresentadas pelos profissionais, observam-se obstáculos desde o início da busca pelo acesso a saúde, uma vez que a heteronormatização permeia essas relações em que os profissionais veem o outro como anormal, colocando-o em um “não lugar”, ou seja, no não reconhecimento de si pelo outro77 Granados Cosme JA, Hernández Ramírez PA, Olvera Muñoz OA. Mujeres trans: medicalización y proceso de adecuación sexo-genérica. Salud Problema. 2016; 10(20):10-29. ,2020 Trindade M. Violência institucional e transexualidade: desafios para o serviço social. Rev Praia Vermelha. 2015; 25(1):209-33. .

Essa categoria foi subdividida em três subcategorias e núcleos de sentido, que são: “A demanda existe”, “O vazio formativo” e “Ecos da violência: preconceito e transexualidade, a gente precisa falar sobre isso!”.

A demanda existe

Não chega! Não chega! Às vezes eu acho que eles falam que faltam serviço, porque não tem demanda. Mas a demanda existe! É que ela não está conseguindo chegar.

(Enfermeira Bianca)

Não é uma demanda tão usual de todo dia, como o papanicolau... daquilo que vem diariamente. Então, a gente atende e acaba deixando aquilo lá de lado. Mas a qualquer momento pode aparecer um paciente desse e daí a gente vai ter que ir lá e buscar.

(Enfermeira Marcela)

Mas com esse tipo de público transexual, eu tive pouco contato nas minhas consultas. Dá para contar nos dedos da mão... essa população até evita de vir aqui, né...

(Enfermeira Luana)

Esta subcategoria evidencia a trajetória de invisibilidade da população transexual e os estigmas sociais associados a ela. Pensar na saúde da população transexual ainda não é uma realidade no nosso país, uma vez que o atendimento na AB é negligenciado e invisibilizado11 Angonese M, Lago MCS. Direitos e saúde reprodutiva para a população de travestis e transexuais: abjeção e esterilidade simbólica. Saude Soc. 2017; 26(1):256-70. doi: 10.1590/S0104-12902017157712.
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. Relatos como o da enfermeira Bianca, que atua há sete anos na AB, evidenciam que o público heterossexual ainda é o mais predominante na busca por ajuda e atendimentos. Já o público transexual não consegue chegar até as unidades, apesar de existir essa demanda e urgência na área da saúde. Essa invisibilidade da população transexual faz com que o sujeito seja impedido de agir, gerando consequências nas vidas dessas pessoas, como a vulnerabilidade; e a perda de humanidade e da autonomia. Consequentemente, resta apenas a morte simbólica (ou seja, a perda de seus direitos, uma vez que não procura os serviços ofertados); a física, visto que esse público vive em situações de mortes precoces; e a morte social, que isola o indivíduo do meio social (representado, por exemplo, pela família, pela escola, por serviços de saúde e pelo trabalho), impedindo-o de viver a sua liberdade como cidadão2121 Araujo IS, Moreira ADL, Aguiar R. Doenças negligenciadas, comunicação negligenciada: apontamentos para uma pauta política e de pesquisa. Rev Eletr Com Info Inov Saude. 2013; 6(4). doi:10.3395/reciis.v3i4.329pt.
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.

Conforme os relatos dos entrevistados, observa-se que, por meio dos discursos dos participantes, há outro estigma que aprisiona a população transexual: a ideia de que todos eles possuem uma Doença Sexualmente Transmissível (DST). Nos relatos, independentemente da demanda e/ou necessidade da realização de testes sorológicos, o profissional da saúde recorre ou encaminha o transexual ao programa de DST do município:

Normalmente, quando eu recebo esse tipo de demanda, eu sempre faço discussão com o programa DST, às vezes com a própria equipe médica, os outros profissionais de nível superior. Ou para o próprio programa, que está sempre à disposição para estar nos orientar. Então, sempre que há necessidade que precisam, eu ligo e converso... então, eu sempre procuro resolver já no momento da consulta aquilo que for possível e mesmo que seja discutindo já por telefone com o DST no momento para ir agilizando.

(Enfermeiro Théo)

Mas assim, eu não saberia passar as informações, mas aí iria procurar... por exemplo, ligar para o DST, e ver como que faz isso, porque essas coisas são muito específicas. Daí a gente não tem todo dia para poder falar... diferente você atender um pré-natal ou puericultura. Você faz isso todo dia, que fica acostumado na prática. Então, na prática, como isso aí é uma coisa mais nova, eu teria que pedir ajuda do pessoal do DST mesmo.

(Enfermeira Isabelle)

Apesar da alta prevalência do público transexual com a doença HIV/Aids, não cabe ao profissional da saúde criar uma associação direta com o HIV/Aids e aprisioná-lo nesse estigma. Ao encaminhar o paciente para o programa de DST do município sem a demanda ou a necessidade especifica para tal, o profissional da saúde contribui para a barreira do acesso aos serviços. Esse elemento discriminatório dentro do serviço de saúde é a associação direta do paciente com o HIV/Aids, uma vez que o profissional associa o atendimento desse público à soropositividade da doença2222 Muller MI, Knauth DR. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”! Cad EBAPEBR. 2008; 6(2):1-14. doi: 10.1590/S1679-39512008000200002.
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, ocasionando a fuga desse público dos serviços e levando à automedicação2323 Pereira LBC, Chazan ACS. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Familia Comun. 2019; 14(41):1795. doi: /10.5712/rbmfc14(41)1795.
https://doi.org/10.5712/rbmfc14(41)1795...
. Essa associação se torna uma barreira para a equidade, uma vez que esses obstáculos favorecem para o direcionamento de trajetórias de usuários que buscam cuidados alternativos ou serviços particulares sempre que possível2424 Souza MHT, Signorelli MC, Coviello DM, Pereira PPG. Itinerários terapêuticos de travestis da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Cienc Saude Colet. 2014; 19(7):2277-86. doi: 10.1590/1413-81232014197.10852013.
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. Essa baixa acessibilidade desse público aos serviços e a estigmatização dos profissionais ainda são reflexos de um sistema de saúde fragmentado, focalizado em um único público e não integral. Além disso, a ausência de equidade e de acolhimento nesses serviços aumenta quando a oferta e a qualificação profissional são escassas2323 Pereira LBC, Chazan ACS. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Familia Comun. 2019; 14(41):1795. doi: /10.5712/rbmfc14(41)1795.
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.

O vazio formativo

Não! Nada! Eu fico aqui me perguntando sobre um monte de coisa! Eu assumo que eu não sei nada e eu me questiono: gente, o que é quem? O que é quem?

(Enfermeira Duda)

Isso passa longe do meu conhecimento. Eu vou entender e vou achar que tem alguma coisa ali que não é algo que é comum, mas assim, certinho... eu sou sincera que eu não sei. A pessoa falou que é tal coisa, aí eu vou pesquisar o que significa. É literalmente correr atrás da coisa. Então, eu não sei como seria para a gente fazer. Não sei se algum médico iria prescrever alguma coisa pra ser feita aqui. Mas assim, eu não sei se tem alguém que faz isso até por falta de estudar mesmo e saber o que fazer diante disso. Entendeu?

(Enfermeira Isabelle)

Dentre as políticas e ações criadas para assegurar os direitos do público LGBTQIA+, destaca-se a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que tem como um dos objetivos realizar a orientação e atenção à saúde ofertada a essa população, além de promover a equidade2525 Silva LKM, Silva ALMA, Coelho AA, Martiniano CS. Uso do nome social no Sistema Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a travestis e transexuais. Physis. 2017; 27(3):835-46. doi: 10.1590/S0103-73312017000300023.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201700...
. Nela, uma das estratégias apresentadas como necessária para a sua efetiva implementação diz respeito à educação permanente dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde, com destaque para o fortalecimento da qualificação dos profissionais e a inserção de temas relacionados à orientação sexual, à identidade de gênero e ao planejamento de ações em saúde no âmbito da prevenção, diagnóstico e assistência2626 Brasil. Ministério da Saúde. Atenção integral à saúde da população trans: conteúdo para profissionais de saúde/trabalhadores do SUS [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2016 [citado 13 Maio 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cuidar_bem_saude_populacao_trans.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
. Frente a esse cenário, protocolos foram elaborados com o intuito de capacitar esses profissionais e assegurar o atendimento adequado às especificidades da população LGBTQI+. Entretanto, apesar da iniciativa, destaca-se que o grupo transexual possui outras especificidades de saúde que o diferenciam do restante do coletivo2323 Pereira LBC, Chazan ACS. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Familia Comun. 2019; 14(41):1795. doi: /10.5712/rbmfc14(41)1795.
https://doi.org/10.5712/rbmfc14(41)1795...
. Diante dessas particularidades, o Estado vem criando e implementando outras leis e protocolos que atendam diretamente à população transexual, que necessita de atenção especial2323 Pereira LBC, Chazan ACS. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Familia Comun. 2019; 14(41):1795. doi: /10.5712/rbmfc14(41)1795.
https://doi.org/10.5712/rbmfc14(41)1795...
. Nesse contexto, o documento intitulado de ”Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo”, por exemplo, foi elaborado em 2020 e tem como objetivo apoiar a Atenção Primária à Saúde (APS) no atendimento, acolhimento e cuidado específico para com essa população, bem como orientar a atribuição de responsabilidade para cada profissional que atua no estado de São Paulo2727 São Paulo. Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação da Atenção Primária à Saúde. Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde/SMS/PMSP; 2020.. Nele, é atribuição do enfermeiro da AB orientar sua equipe; e realizar o atendimento do paciente, a manutenção da saúde, a orientação do paciente, os encaminhamentos necessários para o processo transexualizador e os acompanhamentos periódicos para prevenção de agravos à saúde oriundos de práticas inadequadas e não orientadas durante esse processo. Cabe ao enfermeiro, assim, dialogar com o usuário sobre as transformações no corpo, para aqueles que já estão no processo e fazendo a utilização de hormônio, entre outras responsabilidades2727 São Paulo. Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação da Atenção Primária à Saúde. Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde/SMS/PMSP; 2020.. Apesar da criação do documento, os relatos das entrevistas coletadas se contrapõem e destoam do que é proposto e assegurado pelas políticas instituídas e pelo protocolo elaborado, já que as falas demonstram a falta de conhecimento sobre o tema, bem como carência de capacitação:

Posso falar para você? Eu acho isso super confuso. Ainda assim... a gente tem uma proximidade com a política, mas eu fico sempre confusa quanto à orientação e identidade de gênero, né? Tanto que, quando chega alguns documentos, eu tenho que pensar o que seria cada um. Então, eu tenho dificuldade sim!

(Enfermeira Duda)

O que é trans? O que é gay? O que a gente faz em um caso? E o que a gente faz no outro?

(Enfermeira Paola)

Eu nem sabia que os trans usavam ou injetavam o silicone.

(Enfermeira Isabelle)

Nos relatos das enfermeiras Paola (atuante na AB por um ano) e Isabelle (21 anos na AB), observa-se que o conhecimento a respeito da população transexual é escasso, evidenciando que essas profissionais não têm o conhecimento de como proceder, acolher e ofertar o cuidado. Nota-se a falta de entendimento em aspectos que são relevantes à qualidade do serviço que está sendo ofertado, como a confusão de não saber qual pronome usar com o paciente ou até mesmo diferenças básicas e importantes, a respeito da identidade de gênero (“O que é trans? O que é gay?”).

O pequeno relato da enfermeira Isabelle, quatro anos de atuação na AB, destaca-se nessa pesquisa, uma vez que ela afirma que não tinha nem o conhecimento de que esse público injetava ou usava silicone. As graves consequências dessa falta de entendimento podem resultar em problemas sérios à saúde1212 Pinto TP, Teixeira FD, Barros CR, Martins RB, Saggese GS, Barros DD, et al. Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2017; 33(7):e00113316. doi: 10.1590/0102-311x00113316.
https://doi.org/10.1590/0102-311x0011331...
. Cabe ao profissional saber orientar o paciente sobre essas consequências, alertando-o sobre os riscos envolvidos, bem como explicar quais são os cuidados básicos necessários para a aplicação (como condições de higiene e repouso), caso o paciente opte por realizar mesmo assim esse procedimento. É também de sua responsabilidade solicitar a realização de exames como radiografias, mamografias, exames dermatológicos e outros que possam identificar problemas a tempo de realizar um tratamento menos traumático.

Evidencia-se nos relatos que os profissionais não reconhecem as reais necessidades de saúde ou apresentam dificuldades para ofertar atenção integral e humanizada2828 Carvalho LS, Philippi MM. Percepção de lésbicas, gays e bissexuais em relação aos serviços de saúde. Universitas Cienc Saude. 2013; 11(2):83-92. doi: 10.512/UCS.V11I2.1837.
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,2929 Marques Filho EG, Moura VRL, Martins JGBA, Júnior MCR, Holanda JS, Figueiredo LS, et al. Despatologização de gênero no Sistema Único de Saúde: garantias de direitos humanos de transexuais e travestis no Brasil. Interfaces Cientif Humanas Soc. 2021; 9(2):55-70. doi: 10.17564/2316-3801.2021v9n2p55-70.
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. Assim, existe um déficit de profissionais especializados nessas necessidades e a desinformação sobre o tema contribui para os agravos e vulnerabilidade dessa população55 Hernández Valles J, Arredondo López A. Barreras de acceso a los servicios de salud en la comunidad transgénero y transexual. Horiz Sanit. 2020; 19(1):19-25. doi: 10.19136/hs.a19n1.3279.
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.

Os trechos não legitimam a AB como um equipamento para o cuidado das populações trans. Além disso, pode-se afirmar a necessidade e urgência da criação de novas e mais efetivas políticas de capacitação e treinamento específico para os profissionais, de modo a garantir e buscar o bem-estar biopsicossocial a esse grupo intensamente marcado pela violência e a quebrar as barreiras de acesso para essa população2323 Pereira LBC, Chazan ACS. O acesso das pessoas transexuais e travestis à atenção primária à saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Familia Comun. 2019; 14(41):1795. doi: /10.5712/rbmfc14(41)1795.
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,3030 Ramos ALBM, Azevedo NO, Oliveira MCC, Mendonça GJMG, Pecorelli DG, Tissiani AA, et al. Abordagem dos profissionais de saúde frente à transexualidade no sistema único de saúde. Rev Eletr Acervo Saude. 2021; 13(11):e9121. doi: 10.25248/reas.e9121.2021.
https://doi.org/10.25248/reas.e9121.2021...
.

Ecos da violência: preconceito e transexualidade, a gente precisa falar sobre isso!

Tem preconceito sim! Em relação ao nome social, tem sim. Eu sei que tem também um casal homoafetivo de homens aqui na unidade que veio se tratar. E daí ficam as fofocas. E do trans, é a mesma coisa... mas com certeza! Veio o casal homossexual e as pessoas ficam comentando. É muito tradicional. São pessoas restringidas intelectualmente. Fica complicado trabalhar com isso, porque tem certos comportamentos que até fica difícil como enfermeira ou gerente, que fala “nossa, não acredito que essa pessoa faz isso” e comentam entre eles. Os médicos também! Não querendo ter preconceito ou fazendo segregação... separando, né! Mas tem muitos! Muito de tirar sarro, fazer piada... “viado”, “sapatão”, ”credo”... é bem isso! A pessoas às vezes chegam aqui de um jeito mais assim, e as outras pessoas já olham de jeito diferente. Não é igual você, que se você chegar aqui, as pessoas vão olhar normal. Com eles, tem um olhar diferente, é um olhar de reprovação.

(Enfermeira Luana)

Esta subcategoria engloba os trechos e análises das entrevistas que denunciam o preconceito vivenciado pela população transexual dentro dos serviços de saúde e que podem se tornam grandes marcas vivenciadas. A vivência constante de episódios discriminatórios faz com que esse grupo aceite a condição de exclusão e não se reconheça como sujeito de direitos, que incluem o acesso à saúde como forma de prevenção e/ou tratamento.

Essa população é a que mais sofre com situações discriminatórias no acesso à saúde, comprometendo a qualidade do serviço ofertado. Isso ocorre em razão dos serviços de saúde se mostrarem contrários ao acolhimento e cuidado da população3131 Fernandes B. Educação popular em saúde: um diálogo da sociedade civil com os postos de saúde em Goiânia. Tempus. 2017; 11(1):29-39. doi: 10.18569/tempus.v11i1.2358.
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. Nos trechos relatados pelos enfermeiros, é possível observar que são frequentes as situações preconceituosas praticadas pela equipe profissional diante do atendimento de uma pessoa transexual:

Eu me lembro que quando estava ainda na graduação no quarto ano, com estágio supervisionado, tinha um paciente trans que tinha apanhado na rua. E os funcionários estavam em uma UBS [Unidade Básica de Saúde], e eles não quiseram muito atender ele e daí colocaram eu. É esse preconceito velado, que a gente sabe que tem de alguns funcionários, sabe? E daí eu acabei atendendo e daí depois ele veio outro dia na unidade, com outro problema, mas não era comigo e ele me cumprimentou e tal. E o pessoal ficou falando que eu estava com amizade com isso aí.

(Enfermeira Luana)

Luana, em seu relato, denuncia que já presenciou situações discriminatórias dos profissionais da saúde ao se depararem com uma pessoa transexual. Ressalta-se que essa profissional está atuando apenas há um ano na AB. Essas atitudes, além de preconceituosas e pejorativas, dificultaram o cuidado que deveria ser ofertado ao paciente. A população transexual é estigmatizada e vive situações preconceituosas no cotidiano da saúde, a ponto de não ter a garantia fundamental da equidade, como se tivesse menos direito.

Quando o profissional interpreta o outro como estranho, errado ou inadequado, provoca a exclusão, o afastamento ou até mesmo a eliminação desse público do serviço de saúde, contribuindo para as dificuldades no acesso deste32,33.

No decorrer da coleta de dados, observam-se trechos que relatam o preconceito:

Eles tiram zarro, sempre em off ou quando não está ninguém e só está eles. Mas, na frente do paciente, não. Mas, assim, alguns ficam mais sérios, não conversam... do que se fosse um outro paciente, vamos dizer assim, normal.

(Enfermeira Luana)

Mas lá na outra unidade tinha uma trans que ela pediu pra ser chamada pelo nome feminino, né? E aí toda vez que chamava o nome masculino [...] ela ia lá e falava assim: “Olha, não sou eu!”. E ela corrigia de maneira muito tranquila, tanto que os outros já estavam acostumados.

(Enfermeira Kareen)

A paciente trans falava que não gostava muito de ir no posto de saúde porque tem gente que não sei... podem achar que, por ela ser profissional do sexo, pode ser suja... então, assim, tadinha... mas ela tem essa concepção. Assim, é uma vulnerabilidade de todos os aspectos... individual, programática, de acesso... é muito complicado! A equipe tem que tomar cuidado... olhar no espelho e ver o que ela passa e sente!

(Enfermeira Bianca)

Percebe-se, nos relatos das enfermeiras, que aceitação e o respeito pela escolha do nome social não acontecem em alguns casos dentro dos serviços de saúde. São relatados acontecimentos que causam constrangimento e olhares ao paciente transexual, que precisa aceitar ser chamado pelo nome de registro (atraindo olhares dos outros pacientes na recepção) ou corrigir o profissional que não soube respeitar, atentar-se ou entender o nome social. Essas situações são percebidas pelo público na sala de espera, pelos profissionais e até mesmo pela recepção, ocasionando constrangimentos.

Além disso, momentos em que o profissional faz piada/comentários preconceituosos e olha de forma julgadora evidenciam a gravidade das atitudes da violência institucional que envolve a população transexual. Essa violência recai sobre as pessoas como forma de violações e abusos sistemáticos, decorrentes de atitudes e omissões escoradas pela relação de poder e motivadas pelas desigualdades de condições socioeconômicas, raça/etnia, idade, religião, gênero, entre outras.

Conclui-se que a violência institucional que ocorre dentro dos serviços de saúde é reflexo do preconceito enraizado que também ocorre na sociedade em si e que atinge essa população de maneira ainda mais contundente, contribuindo para a própria vulnerabilidade programática, que se torna cada vez maior, uma vez que os recursos sociais e políticos se mostram escassos e limitados para ofertar a qualidade e integridade à proteção para essa população. Reconhece-se que, para que o cuidado seja satisfatório e igualitário, é necessário que as diferenças sejam acolhidas3434 Lima F, Cruz KT. Os processos de hormonização e a produção do cuidado em saúde na transexualidade masculina. Sexual Salud Soc. 2016; (23):162-86. doi: 10.1590/1984-6487.sess.2016.23.07.a.
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. Para ocorrer o avanço e a mudança na produção de cuidado; na promoção da saúde; e em programas e ações em saúde para essa população, é necessário o avanço dos princípios ético-políticos de uma reforma sanitária brasileira, como os princípios de equidade, integralidade e universalidade3535 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, Duarte MJO, Sodré F. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0023469. doi: 10.1590/1981-7746-sol00234.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol002...
.

Considerações finais

A análise dos resultados denuncia que as barreiras e os desafios que essa população enfrenta são reais; e que as transformações são necessárias e urgentes. Os trechos relatados pelos profissionais representam a escassez da falta de capacitação e de treinamento profissional, bem como a insuficiência de políticas públicas e recursos financeiros que possam suprir as demandas do público transexual. A marginalização dos corpos e a deslegitimação das vivências desse público, que não se encaixa no padrão heteronormativo, contribuem para a manutenção da hegemonia do modelo biomédico e discriminatório que é ofertado dentro dos serviços de saúde. Revela-se a necessidade de novos investimentos e recursos que possam favorecer as necessidades intrínsecas dessa comunidade, contemplando desde procedimentos, instrumentos e educação em saúde para os profissionais até novas estratégias em assistência, acolhimento, promoção e prevenção da saúde. O público transexual clama e luta por atendimentos integrais, humanizados e sem discriminação. Dar voz a essa população é garantir a ela o direito à saúde e resgatar sua dignidade e qualidade de vida, que ainda se encontra fortemente fragilizada.

Destaca-se também a dificuldade e a complexidade em realizar essa pesquisa apresentada, uma vez que as lacunas e limitações em falar do tema são reais. Além disso, alguns profissionais entrevistados se demonstraram inflexíveis quando questionados sobre o tema, revelando certa resistência em falar sobre algo que não têm conhecimento. Revela-se neste estudo a necessidade de treinamento desses profissionais, que já se encontram atuando nos serviços, bem como os que ainda estão cursando a graduação, que não são contemplados com esse tema.

Além disso, é reconhecida a falta de investimentos em pesquisas com o objetivo de buscar melhores ações de atenção e articulações que englobem a saúde integral da população transexual. Diante desse cenário, é imprescindível que novos estudos sejam realizados para que essa população possa ser vista, ouvida e acolhida tanto pelas políticas públicas quanto pelos profissionais que estão nos serviços de saúde.

Agradecimentos

A todos que nos apoiaram ao longo destes anos de esforço e pesquisa. Somos gratas pela parceria de todos os colegas. À Unesp e aos seus funcionários, que permitiram a realização desta pesquisa, nosso muito obrigado!

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2022
  • Aceito
    19 Fev 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br