Diálogos com o cotidiano do território: o princípio da ação em uma comunidade ampliada de pesquisa-ação

Diálogos con el cotidiano del territorio: el principio de la acción en una comunidad ampliada de investigación-acción

Marize Bastos da Cunha Fatima Pivetta Marcos Thimoteo Dominguez Fabiana Melo Sousa Sobre os autores

Resumos

Tendo como base as experiências de pesquisa-ação em favelas e na periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o artigo discute os caminhos da Educação Popular como princípio da ação, refletindo sobre a relação entre território e cotidiano, bem como apresentando o método da Comunidade Ampliada de Pesquisa-Ação (CAP) por nós desenvolvido como caminho artesanal de mediação com o território. Consideramos que a dimensão artesanal, dialógica e espiralar do método vem permitindo responder aos problemas colocados no campo da pesquisa pelo cotidiano do território onde se desenvolve. Assim, vai se configurando um método, cujo princípio da ação contribui para o debate sobre os modos de fazer pesquisas no campo da Educação Popular, bem como sobre as possibilidades de uma vigilância popular, em que o centro do movimento se encontra nos agentes sociais locais.

Keywords
Comunidade ampliada de pesquisa-ação; Território; Cotidiano; Favelas


Teniendo como base las experiencias de investigación acción en favelas y en la periferia de la región metropolitana de Río de Janeiro, el artículo discute los caminos de la educación popular como principio de la acción, reflexionando sobre la relación entre territorio y cotidiano, así como presentando el método de la Comunidad Ampliada de Investigación Acción desarrollado por nosotros como camino artesanal de mediación con el territorio. Consideramos que la dimensión artesanal, dialógica y espiralada del método le permite responder a los problemas planteados en el campo de la investigación y por el cotidiano del territorio donde se desarrolla. De tal forma, se configura en un método cuyo principio de la acción contribuye al debate sobre los modos de realizar investigaciones en el campo de la educación popular, así como sobre las posibilidades de una vigilancia popular, en donde el centro del movimiento se encuentra en los agentes sociales locales.

Keywords
Comunidade ampliada de pesquisa-ação; Território; Cotidiano; Favelas


Introdução

Neste artigo, na forma de ensaio, fazemos uma reflexão teórica e metodológica mediante um projeto de pesquisa que buscou conhecer a experiência de moradores de favelas do Rio de Janeiro no enfrentamento da pandemia por Covid-19, considerando a memória coletiva a respeito de outras situações-limite por eles vividas.

É também a tradução de um diálogo entre os autores, resultante de experiências que nos aproximam da Educação Popular e de métodos capazes de incorporar princípios freirianos no modo de fazer pesquisa em favelas e periferias, para melhor compreender o cotidiano dos territórios junto de pessoas que lá vivem. Esse é o eixo que nos move em projetos de pesquisa participante.

Nos últimos anos, incorporamos a vigilância popular em saúde a nossa agenda, a fim de decifrar a participação de agentes sociais em redes de produção e circulação de conhecimento em saúde e em ações voltadas para a melhoria das condições de vida e saúde nas localidades, bem como para a expansão e a qualidade dos serviços públicos em territórios de favelas e periferias.

Apontamos a necessidade de ressignificar a participação social no Sistema Único de Saúde (SUS), na perspectiva da promoção emancipatória da saúde (PES)11 Porto MFS, Pivetta F. Por uma promoção da saúde emancipatória em territórios urbanos vulneráveis. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 207-29., trazendo para o centro do debate as redes sociais configuradas por moradores e coletivos do lugar, alimentadas por conhecimentos e experiências, assim como práticas sociais capazes não apenas de subsidiar o sistema de informação do SUS, mas também fazê-lo respirar vida.

Integramos, pois, um conjunto de reflexões, experiências de pesquisa e debates voltados para a vigilância popular em saúde de base territorial, que vem se fortalecendo e indicando um caminho em que o foco está no protagonismo dos movimentos e práticas populares22 Machado JMH, Pivetta F, Silva JFS, Bonetti OP. Vigilância popular em saúde em tempos de pandemia: proposta de um caminho. In: Freitas CM, Barcellos C, Villela DAM, editores. Covid-19 no Brasil: cenários epidemiológicos e vigilância em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021 [citado 30 Jul 2022]. p. 397-411. Disponível em: https://books.scielo.org/id/zx6p9/pdf/freitas-9786557081211.pdf
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3 Porto MFS. Pode a vigilância em saúde ser emancipatória? um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise. Cienc Saude Colet. 2017; 22(10):3149-59.
-44 Sevalho G. Apontamentos críticos para o desenvolvimento da vigilância civil da saúde. Physis. 2016; 26(2):611-32.. Compreendemos a “vigilância popular” como um campo em construção, que se movimenta por meio de tensões e contradições, que envolve confrontar a realidade social, as interpretações a respeito da saúde das populações e de seus projetos de vida.

Para nós, a vigilância popular vem se constituindo na enunciação dos processos e formas por meio dos quais pessoas, que vivem e atuam em favelas e periferias, constituem redes de proteção da vida e incluem práticas cotidianas de suporte social. Essas conexões, que tornam possíveis a produção e a circulação de conhecimentos, visibilizam problemas locais, questionam as condições dos serviços de saúde no SUS e, mesmo, interrogam e relativizam dados e conclusões do conhecimento acadêmico.

“O padrão não nos atende”, é um questionamento de Camila Santos, moradora que está à frente do coletivo “Mulheres em Ação no Alemão”(e(e)https://pt-br.facebook.com/mulheresemacaonoalemao/, https://www.instagram.com/meaa.oficial/), sobre a padronização de protocolos sanitários na pandemia de Covid-19. Tal afirmação, seguida de argumentos no debate de uma situação-problema local, aciona conhecimentos sobre o modo e a dinâmica das vidas na favela que ajudam, também, a questionar a análise de temas como o gênero, a violência doméstica ou o enfrentamento da pandemia.

Em diálogo com “o padrão não nos atende”, nos interrogamos e fomos interrogados em nossas pesquisas sobre o uso da expressão vigilância popular no cotidiano da pesquisa com moradores: Essa palavra pode produzir estranhamento e afastamento em projetos desenvolvidos em territórios sob intensa opressão, violência armada e onde os moradores vivem sob insegurança, estando todos sob o alvo da suspeição generalizada? Nesse caso, vigilância não é uma expressão que pode produzir desconfiança, desconforto e mesmo medo?

Por isso, mais do que um tema de pesquisa-ação e conceito, para nós a vigilância popular tem se configurado como um dispositivo de enunciação no debate acadêmico no campo da Saúde Coletiva. Enunciação no sentido de questionar e visibilizar reflexões relativas à produção compartilhada de conhecimento, de base freiriana, como caminho fundamental para o avanço no campo e na elaboração de políticas públicas. A vigilância popular apresenta-se como movimento instituinte, que propõe agendas aos serviços locais de saúde para que, de fato, deem respostas à dinamicidade do território em suas urgências e necessidades55 Cunha MB, Pivetta F, Porto MFS, Zancan L, Souza FM, Francisco MS, et al. Vigilância popular em saúde: contribuições para repensar a participação no SUS. In: Botelho BO, Vasconcelos EM, Carneiro DGB, Prado EV, Cruz PJSC, organizadores. Educação popular no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 79-101. .

Sob essa perspectiva, neste ensaio objetivamos contribuir para o debate sobre a vigilância popular por meio de nosso lugar como pesquisadores em favelas e periferias urbanas e sujeitos políticos, em diálogo com o espaço acadêmico e com políticas públicas. A base da reflexão é a experiência do Laboratório Territorial de Manguinhos (LTM), bem como investigações voltadas a práticas populares de saúde e ambiente em loteamentos urbanos nas periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro66 Dominguez M, Cunha MB. A produção do espaço na metrópole do Rio de Janeiro: a disputa pela água no Jardim Catarina, São Gonçalo. In: Amoroso M, Brum M, Gonçalves R, organizadores. Olhares contemporâneos sobre bairros populares, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2022. p. 163-87.. Revisitamos os relatórios, artigos produzidos a partir daí, e o material de campo da última pesquisa realizada, dialogando em particular com as questões trazidas por moradores.

Abordaremos três eixos de análise das questões que nos parecem fundamentais ao debate da vigilância popular em saúde: 1) Território, cotidiano e a produção da vida; 2) O método como princípio de ação: a comunidade ampliada de pesquisa-ação; 3) Reinvenção: entre limites e utopias.

Território, cotidiano e a produção da vida

Refletimos aqui sobre território e sua relação com o cotidiano, tendo como base os conceitos de “Espaço do vivido” de Henri Lefebvre77 Lefebvre H. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing; 2013. e de “Território usado” de Milton Santos88 Santos M. O retorno do território. Observ Soc Am Lat [Internet]. 2005 [citado 20 Out 2021]; 6(16):1-13. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/ppgdtsa/files/2014/10/Texto-Santos-M.-O-retorno-do-territorio.pdf
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. A concepção dos autores tem nos guiado na leitura dos territórios populares, marcados historicamente por processos de desumanização, como a provisoriedade, desenraizamento e invisibilidade66 Dominguez M, Cunha MB. A produção do espaço na metrópole do Rio de Janeiro: a disputa pela água no Jardim Catarina, São Gonçalo. In: Amoroso M, Brum M, Gonçalves R, organizadores. Olhares contemporâneos sobre bairros populares, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital; 2022. p. 163-87.,99 Pivetta F, Cunha MB, Porto MFS, Zancan L. Promoção da saúde e conhecimentos emancipatórios: aprendizados com pesquisa-ação nos territórios de favelas. In: Figueiredo GLA, Martins CHG, Akerman M, organizadores. Vulnerabilidades e saúde: grupos em cena por visibilidade no espaço urbano. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 383-403.. Lugares atravessados por um estado de permanente vigilância, em razão das violências de Estado, principalmente as operações policiais presentes na vida ordinária da população.

Considerando a particularidade da favela e da periferia do Rio de Janeiro, buscamos um breve diálogo com esses conceitos, ancorados no processo de produção e reprodução da vida nos diferentes espaços que estudamos e nos quais trabalhamos.

Henri Lefebvre, em sua teoria sobre o urbano, apresenta o espaço como produto social. Para ele, mais do que resultante da dialética entre temporalidades e espacialidades, a produção do espaço urbano é fruto da própria práxis, vista como um movimento capaz de abrir fissuras no interior das estruturas sociais, o que possibilita trazer à superfície elementos pouco visíveis da realidade. Ao pensar o espaço social desses territórios urbanos, essas perspectivas se entrecruzam por meio do encontro e do confronto das ações e projetos de vida dos diversos agentes sociais que, de certa forma, vão produzir distintas territorialidades em diferentes contextos históricos.

As lutas cotidianas ocorrem no “espaço do vivido” por meio da experiência prática e do enfrentamento histórico de problemas urbanos estruturais. Para o autor, mesmo diante da opressão que os territórios populares sofrem devido à imposição de representações hegemônicas do espaço (produzido por planejadores, agentes econômicos e do Estado), haverá sempre um movimento remanescente, do possível, que no espaço do vivido se expressa por meio da prática social.

Assim, podemos compreender o conhecimento popular também como resultante da dialética entre a dimensão do vivido e do percebido, entre o tempo “lento”1010 Valla VV. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes populares. Educ Realidade. 1996; 21(2):177-90, da experiência, e o tempo da provisão, apoiado na realidade social que conjuga um passado de carências e um presente de necessidades emergenciais1010 Valla VV. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes populares. Educ Realidade. 1996; 21(2):177-90. Ao se estabelecer no cotidiano, esse conhecimento escancara como territórios e práticas populares vêm sendo historicamente apagados e invisibilizados, inclusive como espaços de referência para a construção e a implementação de políticas públicas. Na favela, o modo de vida popular se insurge e aponta possibilidades de construção de espaços de representação e novos processos comunicativos entre os territórios da cidade.

Outro pilar teórico que evidencia a relação cotidiano/território é o conceito de “território usado” de Milton Santos1111 Santos M. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec; 1994., compreendido como uma mediação entre o mundo, a sociedade e o local. É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. “É a partir dessa realidade que encontramos no território as possibilidades da nova construção do espaço e do novo funcionamento do território”1111 Santos M. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec; 1994. (p. 255).

Ao longo da pandemia por Covid-19, observamos esse acontecer solidário nas localidades que pesquisamos, trazendo novas dinâmicas aos territórios e concorrendo para o crescimento de redes de suporte e apoio, assim como para a ressignificação de medidas preventivas. Ao mesmo tempo, essas dinâmicas fizeram emergir certos conflitos, como tensões entre coletivos e alguns moradores, que questionavam os limites ou critérios das doações de alimentos e produtos de limpeza.

Apresentamos, em outro estudo1212 Dominguez M, Klink J. Metrópoles em tempos de pandemia: mapeando territórios subversivos nas RMSP e RMRJ. Cad Metrop. 2021; 23(52):927-47., que o “espaço do vivido” entrava em contradição com medidas preventivas de saúde em um contexto de crise sanitária e social. É o caso, por exemplo, das orientações determinadas por uma perspectiva hegemônica no campo da epidemiologia clássica1313 Castiel LD. Ensaio sobre a pandemência: quando personagens e micróbios da ficção-científica saem do filme e invadem o planeta, um acompanhamento crítico de enunciados sobre a Covid-19 em meios de comunicação leigos e técnicos [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020 [citado 30 Jul 2020]. Disponível em: http://observatoriodamedicina.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/05/ENSAIO-SOBRE-A-PANDEM%C3%8ANCIA.pdf.
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, apoiada em uma visão de saúde que restringe a dimensão social e cultural na determinação do processo saúde-doença.

Podemos supor que essas tensões, vividas como experiências de conflitos locais, traduzem sobretudo as contradições entre o território usado e o mundo social, que expõem os limites da ação em uma sociedade marcada pela desigualdade, injustiça e violência. A esse respeito, lembramos que, para Santos, o cotidiano é o quadro de ação e o lugar dos limites da ação, que potencializa ou constrange a atividade política e o exercício da cidadania1414 Santos M. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência. Bol Gaucho Geografia. 1996; 21(1):7-14..

O cotidiano, como síntese entre espacialidades e temporalidades vividas, permite-nos compreender a pluralidade dos agentes sociais e a multiplicidade dos lugares onde se dá a ação política. E, ainda, pensar a experiência social e os fatos culturais, políticos e ideológicos, aí identificados, como instituintes do movimento social e do saber popular de onde emergem as impossibilidades e os limites do mundo social, bem como as possibilidades de produção da saúde e da vida.

Sob essa ótica, imersos no cotidiano, onde desenvolvemos pesquisas e por ele fomos afetados, buscamos conhecer e compreender as formas de existência e reprodução da vida, conhecer-reconhecer todas as possibilidades de existir em suas diferenças, obrigando-nos a dar estatuto de existência a esses lugares e às suas potencialidades1414 Santos M. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência. Bol Gaucho Geografia. 1996; 21(1):7-14.. Movidos por essa perspectiva, vamos traçando os caminhos de uma PES, com o trabalho artesanal de produção compartilhada de conhecimentos por meio da CAP junto de moradores de favelas. É por meio das veredas do território que podemos construir alternativas emancipatórias como “inéditos viáveis”1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

O método como princípio de ação: a comunidade ampliada de pesquisa-ação (CAP)

O desenvolvimento de uma metodologia capaz de incorporar o território usado como uma dimensão fundamental para a produção de conhecimentos sobre diferentes problemas, que emergem de favelas e periferias urbanas, é um desafio fundamental na vigilância popular ao qual buscamos responder desde 2003. Apresentamos e refletimos, aqui, sobre o caminho pelo qual trabalhamos uma comunidade ampliada de pesquisa-ação, a fim de contribuir para o debate metodológico da vigilância popular.

Vimos constituindo o Método CAP, como mediação com o território para a produção de conhecimentos sobre as diferentes temáticas que emergem do lugar, ancorados nos encontros presenciais e nas ferramentas artesanais elaboradas para a realização de pesquisas e de intervenções em imersão no território1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.. Ele é a engrenagem da PES concebida pelo LTM, fundamentada nas abordagens da Determinação Social da Saúde (DSS) e da Educação Popular, cuja ideia-força está na aproximação com o cotidiano do lugar, buscando compreender os processos de produção saúde-doença, e no compartilhamento das informações e reflexões resultantes do exercício de compreensão com os moradores55 Cunha MB, Pivetta F, Porto MFS, Zancan L, Souza FM, Francisco MS, et al. Vigilância popular em saúde: contribuições para repensar a participação no SUS. In: Botelho BO, Vasconcelos EM, Carneiro DGB, Prado EV, Cruz PJSC, organizadores. Educação popular no Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec; 2018. p. 79-101. .

Trata-se de um desafio epistêmico, que aponta a necessidade de superar o fosso existente entre, de um lado, o plano macroestrutural e coletivo, e, de outro, as condições e potencialidades dos sujeitos em planos mais pessoais e comunitários vinculados ao cotidiano e ao lugar1616 Porto MFS, Rocha DF, Finamore R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Cienc Saude Colet. 2014; 19(10):4071-80.. Essa perspectiva dialoga com a Educação Popular freiriana, sustentada na dialogicidade crítica e na comunhão da libertação1717 Freire P. Pedagogia do oprimido. 30a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2001., e, na prática, significa o aproximar-se do território para a leitura do mundo pela troca de saberes entre pesquisadores e moradores. “Ler o mundo”, conceito central de Paulo Freire, dá o sentido que configuramos à palavra compartilhada na produção de conhecimentos como ação dialógica.

Segundo nos indicam Victor Valla e Eduardo Stotz1818 Valla VV. Educação popular e conhecimento: a monitoração civil dos serviços de saúde e educação nas metrópoles brasileiras. In: Valla VV, Stotz EN. Participação popular, educação e saúde: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1993. p. 101-12., é a vida – isto é, os problemas que os homens enfrentam para garantir sua sobrevivência – , a referência para a Educação Popular e para nossa atuação regular no território.

A CAP é um modo de produzir conhecimentos compartilhadamente, espaço de aproximação com o cotidiano do território por meio do encontro entre moradores e pesquisadores, com seus conhecimentos e experiências. Por intermédio dela, busca-se compreender as dinâmicas territoriais e avançar em uma perspectiva compartilhada, construindo uma visão compreensiva e dialógica das condições de vida e saúde do território.

O Método CAP estrutura-se em três dimensões principais: 1) O cotidiano como engrenagem da dinâmica da CAP, 2) Os agentes sociais em movimento; e 3) O trabalho artesanal em espiral e suas ferramentas. São princípios do método que possibilitam incorporar, em sua dinâmica de pesquisa, os problemas, as situações-limite e os inéditos viáveis experimentados por moradores, bem como pela própria equipe de investigação, em diálogo com eles1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

O cotidiano como escala de ação e relação é o espaço de observação e de análise, que delimita o espaço-tempo em que atuamos e define a lente pela qual percebemos o território, permitindo não só identificar e vivenciar, mas compreender as situações-limite enfrentadas no território. Da vivência do cotidiano decorre a percepção dessas situações, cuja conversão em temática para produção de conhecimentos se dá processualmente e é elaborada pela CAP como objeto de reflexão-ação, isto é, o objeto da práxis.

A noção de situação-limite tem a potência da expressão popular “os becos sem saída”, que nos colocam diante de nossos limites e desafios para a compreensão dos processos de determinação social da saúde, identificando não apenas os eventos extraordinários do território, mas também seus efeitos profundos e no longo prazo nas condições de vida e de saúde das pessoas1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

Em termos metodológicos, a interlocução e a mediação têm lugar em diferentes momentos e envolvem uma diversidade de agentes sociais em movimento1919 Cunha MB, Pivetta F, Dominguez MT, Sousa FM, Costa VC. Lugar de fronteira e de conhecimento nas pesquisas em educação popular: uma reflexão sobre os agentes sociais em movimento. In: Marteleto RM, David HMSL, organizadoras. Cultura, conhecimento e mediação de saberes em saúde: diálogos da informação e da educação popular [Internet]. Rio de Janeiro: IBICT; 2021 [citado 22 Out 2023]. Disponível em: http://ridi.ibict.br/handle/123456789/1229
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. Ou seja, moradores que desenvolvem ações no território e, a despeito de não terem papel institucionalizado, têm uma posição de observação particular do que acontece em suas localidades, construindo daí uma visão reflexiva e crítica sobre suas vidas e o mundo em que se movimentam1919 Cunha MB, Pivetta F, Dominguez MT, Sousa FM, Costa VC. Lugar de fronteira e de conhecimento nas pesquisas em educação popular: uma reflexão sobre os agentes sociais em movimento. In: Marteleto RM, David HMSL, organizadoras. Cultura, conhecimento e mediação de saberes em saúde: diálogos da informação e da educação popular [Internet]. Rio de Janeiro: IBICT; 2021 [citado 22 Out 2023]. Disponível em: http://ridi.ibict.br/handle/123456789/1229
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. Estabelecidos em pontos, em que “as estruturas sociais” estão em ação, segundo Bourdieu2020 Bourdieu P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes; 2008., há uma visibilidade crítica e um conhecimento que nos apoiam na tarefa de compreender as dinâmicas do modo de vida e as respostas sociais desses territórios, no âmbito de processos mais amplos que marcam a cidade.

Com efeito, eles são a chave de interlocução da CAP no e com o território, porque, diferentemente das lideranças estabelecidas, facilitam e ampliam o diálogo com o território diante dos conflitos entre as diferentes organizações coletivas e os movimentos sociais locais, favorecem uma aproximação mais ampla e criativa com as lutas emancipatórias nas favelas e desvelam invisibilidades, abrindo novas agendas de pesquisa e ação1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.,1919 Cunha MB, Pivetta F, Dominguez MT, Sousa FM, Costa VC. Lugar de fronteira e de conhecimento nas pesquisas em educação popular: uma reflexão sobre os agentes sociais em movimento. In: Marteleto RM, David HMSL, organizadoras. Cultura, conhecimento e mediação de saberes em saúde: diálogos da informação e da educação popular [Internet]. Rio de Janeiro: IBICT; 2021 [citado 22 Out 2023]. Disponível em: http://ridi.ibict.br/handle/123456789/1229
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.

Para coordenar as atividades de uma CAP, formamos o que denominamos de Núcleo CAP – motor de sua dinâmica metodológica –, com cinco a oito participantes entre pesquisadores e agentes sociais. O Núcleo CAP, pela escuta cotidiana e ampla do território, define as estratégias, os movimentos e as atividades de uma CAP. Essas ações incluem a definição de uma situação-problema (elaborada como temática no processo) e as dinâmicas de abordagem dos moradores, destacando-se as formas e linguagens para estabelecer a interlocução e a incorporação gradativa deles às atividades, considerando a diversidade de pontos de vista sobre o tema em questão.

Por fim, destacamos que o trabalho artesanal e em espiral de uma CAP busca responder à dinamicidade do território. Artesanal no sentido de inventar ou ressignificar conceitos e ferramentas de pesquisa, com base na realidade concreta colocada pelas necessidades sócio-históricas, que busca uma mudança de modos de pensar e de conhecer por meio da Educação Popular. E, também, como imaginação criadora mediante o significado do trabalho diário, que se incorpora aos processos de produção pela autonomia dos participantes da CAP. Dessa forma, intenta materializar uma PES, em interação com o cotidiano, procurando, de diferentes maneiras, incentivar a apropriação dos conhecimentos e a produção de sentidos como caminho de promoção da autonomia dos sujeitos das CAP.

A espiral é uma representação dos movimentos de uma CAP e da categoria analítica para pensarmos o trabalho que ao mesmo tempo se amplia e não pode parar, porque se move sob o ritmo da urgência2121 Cunha MB, Frigotto G. O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro. Interface (Botucatu). 2010; 14(35):811-23. doi: 10.1590/S1414-32832010005000028.
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. Trabalho que também se amplia enquanto se concretiza em ciclos de comunicação produção-circulação-apropriação2222 Zancan L, Pivetta F, Sousa FM, Cunha MB, Porto MFS, Freitas J, et al. Dispositivos de comunicação para a promoção da saúde: reflexões metodológicas a partir do processo de compartilhamento da maleta de trabalho “Reconhecendo Manguinhos”. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 2:1313-26. doi: 10.1590/1807-57622013.0457.
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ou movimentos da CAP, que realizamos para elaborar uma visão compreensiva de dada temática.

São quatro os movimentos de uma CAP: o inaugural, com a constituição do Núcleo CAP e a elaboração da temática, sua problematização por meio da ampliação do diálogo, com a incorporação de diferentes agentes sociais no processo; as articulações e redes com mediadores e agentes sociais do território; a sistematização, que retoma o protagonismo do trabalho do Núcleo CAP, de organização e análise de dados de campo iniciados na elaboração da temática, e das reflexões coletivas que foram registradas em relatos de campo e de oficinas e reuniões, áudio e vídeo; e, por fim, as atividades que articulam vários movimentos de circulação das informações e dos conhecimentos produzidos2323 Sousa FM, Cunha MB, Zancan LF, Pivetta FR. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: um guia de pesquisa [Internet]. Rio de Janeiro: ENSP, Fiocruz; 2021 [citado 8 Ago 2022]. Disponível em: https://educare.fiocruz.br/resource/show?id=clo2m5K4
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. A circulação dos conhecimentos em diferentes materiais e mídias, como cadernos de oficina e audiovisuais, quando apropriados, criam novos sentidos e ações.

Ao modo de Rancière, o método CAP não se constitui em

um conjunto de procedimentos técnicos, mas um princípio de ação, uma experiência em si, uma posição subjetiva, um método que tem o estatuto de uma posição política: de redesenhar as ordenações e os dispositivos da aparição das vozes dos subalternos2424 Marques ACS, Prado MA. O método da igualdade Jacques Rancière: entre a política da experiência e a poética do conhecimento. Rev Midia Cotidiano. 2018; 12(3):7-12.. (p. 10)

Um caminho que concorre para criar espaços e modos de criação de novas linguagens para expressar a visão e a compreensão do mundo de sujeitos e grupos sociais, para se contrapor às narrativas que os estigmatizam2525 Rancière J. El método de la igualdad: conversaciones con Laurent Jeanpierre y Dork Zabunyan. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión; 2014..

Reinvenção: entre limites e utopias

O dispositivo CAP busca as respostas a seus desafios, em seu artesanato e em sua dimensão espiral. Em diálogo com o cotidiano dos territórios e sob o princípio da ação, mesmo sob limites, ele busca reinventar-se. Foi o que ocorreu nos últimos anos, durante a execução de um projeto durante a pandemia por Covid-19, quando discutimos o processo de recriação do método. Compartilhamos aqui alguns resultados do projeto no que se refere à metodologia.

Em 2020, quando a pandemia é declarada, estávamos em regular comunicação com alguns parceiros do território de Manguinhos e com colaboradores das favelas do Alemão e da Rocinha, onde já havíamos trabalhado. E em abril desse ano, assumindo o desafio de continuar produzindo conhecimentos em um contexto novo, e complexo, elaboramos um projeto envolvendo essas três favelas, onde já se anunciava um conjunto de situações-problema(f(f)“A Covid-19 como situação-limite: experiências e memória histórica na produção de conhecimentos em saúde com favelas do Rio de Janeiro”, coordenado por Marize Bastos da Cunha. Programa Inova Fiocruz Geração de Conhecimento – Enfrentamento da Pandemia e Pós-Pandemia Covid-19 Encomendas Estratégicas. Chamada N. 3/2020. Parecer CEP/ENSP CAAE n. 40901620.3.0000.5240). Com parceiros, o Instituto Raízes em Movimento do Alemão, o jornal Fala Roça da Rocinha e o coletivo Mães de Manguinhos(g(g)https://www.cepedoca.org.br/institucional/instituto-raizes-em-movimento/, https://falaroca.com/, https://www.instagram.com/maes.de.manguinhos/?hl=pt), enfrentávamos uma nova empreitada: criar proximidades na distância.

Nossa experiência em favelas, e especialmente nas ações por elas desenvolvidas, indicava que haveria um enfrentamento da situação sanitária pelos coletivos que atuavam nesses territórios. É o chamado “nós por nós” evocando a mobilização, a organização e a articulação de coletivos em torno de problemas que desafiam seu cotidiano e engendram formas de proteção da vida. E evidenciam os limites do Estado em avançar em políticas públicas que dialoguem diretamente com as organizações populares e movimentos sociais, e garantam seus direitos de cidadania.

O ponto de partida desta pesquisa foi, exatamente, a mobilização dos coletivos desses territórios, que se destacam nas respostas à crise sanitária e seus impactos sociais, e no apoio às ações do SUS. Porém, pressupomos que as práticas e os conhecimentos aí inscritos não são inéditos, pois encontram suporte no modo de vida das favelas e na memória de experiências anteriores, em que as redes de ativistas locais e moradores configuraram o corpo vivo do enfrentamento.

Nomeamos os desafios vividos nesses territórios como situações-limite, incorporando o conceito trazido por Paulo Freire. É no âmbito da situação-limite que se configuram ações que buscam superar e negar aquilo que é percebido como dado, ou seja, determinações históricas concebidas como barreiras insuperáveis. O ato-limite implica a objetivação crítica e a ação sobre a situação-limite1717 Freire P. Pedagogia do oprimido. 30a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2001.. Concebemos ainda a pandemia como um evento crítico2626 Das V. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press; 1995., que penetra em profundidade na localidade e se ancora em seu cotidiano, devendo ser compreendido pela perspectiva dos sujeitos que o experimentam.

Assim, a pesquisa buscou compreender a dimensão da memória coletiva e da cultura local na determinação social da saúde em territórios submetidos a processos de vulnerabilização, bem como as formas de participação e vigilância popular presentes nas respostas produzidas à pandemia por Covid-19, perguntando de que forma podem fortalecer uma PES.

Acumulamos um conhecimento sobre o uso de ferramentas digitais em experiências anteriores, em que aprendemos com coletivos de favelas alguns caminhos de produção e circulação de conhecimento, especialmente por meio das redes virtuais2727 Sousa FM, Cunha MB, Pivetta F. Aprendizados com grupos de favelas: o uso de ferramentas virtuais em uma pesquisa participativa. Rev Latinoam Cienc Comunic. 2021; 19(35):156-65. doi: 10.55738/alaic.v19i35.667.
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. No entanto, o cenário da pandemia nos trouxe a urgente necessidade de recriar o método. Considerando a centralidade do cotidiano na CAP, nossa principal interrogação era como acompanhar a dinamicidade do território a distância.

Os principais questionamentos eram: Como organizar processos de produção de conhecimento por canais digitais de comunicação? Como manter vivo o princípio da ação por meio desses canais, tendo em vista os problemas recorrentes de acesso à internet e as dificuldades no uso de ferramentas digitais, especialmente pelos moradores mais velhos? Eram indagações em que estavam inscritas múltiplas questões, como democratização do acesso e do controle da rede de internet nas localidades, aprendizado com ferramentas digitais e caminhos que permitissem aproximação e acolhimento a distância.

Enfim, era a situação-limite do método. E para nós se impunha a pergunta geradora: O que precisamos aprender nesse momento histórico inédito? Sob a perspectiva da Educação Popular, trata-se, antes de tudo, de um processo formativo em ação. Discutimos coletivamente na CAP, ao longo de toda a pesquisa, os problemas que se colocavam em relação aos impactos do isolamento social sobre as pessoas nas favelas e às próprias condições dessas localidades. Um fazer junto, em espiral, que nos permitiu avançar no artesanato metodológico e na recriação do método.

A primeira etapa, movimento inicial do artesanato, foi dedicada à formação da CAP em cada território, à dinâmica de agregação e acolhimento da equipe, sendo criados grupos de comunicação em redes virtuais e formas de compartilhamento de arquivos de áudio, vídeos, fotos e textos. E ainda encontros virtuais para debate e reflexão coletiva sobre temas importantes: desde a situação de cada favela onde atuávamos até os caminhos para desenvolver a pesquisa durante o isolamento social, sem colocar em risco os participantes e a equipe. Destaca-se aqui o Encontro de Formação e Planejamento, realizado a cada manhã ao longo de uma semana, que nos possibilitou uma proximidade diária, com um aprofundamento em questões relativas à pesquisa. E, sobretudo, contribuiu para fortalecer os laços entre as pessoas, ao configurar-se também como um espaço de reflexão de nossas existências e experiências.

Para sustentar o acolhimento e enfrentar a distância física em momentos de tantas mudanças, de sofrimento e dor, fizemos encontros mensais da equipe, semanais ou quinzenais de cada CAP – Alemão, Manguinhos e Rocinha –, e reuniões da equipe de campo com as coordenações, diante da intensificação das atividades; além de sessões de estudo(h(h)Diante da frequência do uso de plataformas de comunicação e a necessidade de autonomia e segurança para cada CAP realizar reuniões, sem se sentir em risco, foi adquirida uma licença do Zoom, garantindo que toda a equipe pudesse recorrer à plataforma para realizar suas atividades.).

A reinvenção do método exigiu romper com a centralidade da oficina como principal ferramenta de diálogo e problematização. Para o levantamento das situações-problema, a definição de temáticas e a problematização delas, recorremos, inicialmente, a contatos individualizados, seguidos de uma sondagem com pessoas do território que não estavam à frente de iniciativas de enfrentamento da pandemia. As sondagens, na forma de conversas com os moradores, foram realizadas por WhatsApp e, quando possível, de forma presencial.

As entrevistas com roteiro aberto para os referidos agentes sociais se configuraram como principal ferramenta, tanto na primeira fase da pesquisa, voltada para a situação das favelas e as respostas de coletivos e moradores à pandemia e seus impactos, quanto no segundo momento, quando enfocou a memória de situações-limite do passado. Foram realizadas por duas ou três integrantes da CAP local por meio da plataforma Zoom, gravadas em áudio e vídeo e compartilhadas com a equipe local.

Além disso, organizamos rodas de conversa remotas que funcionaram como um dispositivo de diálogo da CAP local com diferentes agentes sociais do território, como pessoas que acompanhavam ações em saúde, jovens e moradores antigos. Considerando a autonomia de cada CAP para avaliar as possibilidades de entrevistas ou rodas de conversa presenciais, algumas dessas atividades foram efetivadas presencialmente depois do período mais crítico da pandemia em 2020. Contudo, o procedimento presencial exigiu maior organização da equipe, no sentido de garantir a proteção sanitária e as condições técnicas para o registro em audiovisual.

Por fim, na última fase de campo, ampliando a dimensão relacional e dialógica do método, criamos o que denominamos “resenha”, com referência a um dos sentidos do termo utilizado por jovens de favelas e periferias para nomear eventos de festa e diversão, ou mesmo conversas. Assim, resenha converteu-se no encontro em que a CAP convida duas ou mais pessoas para conversar, de forma descontraída e tendo como elemento mediador o fato de viverem ou trabalharem no mesmo território. Resenhando, os participantes trocavam experiências de vida, trazendo a memória de dificuldades passadas, de momentos que marcaram suas vidas e da favela.

Buscamos desenvolver a pesquisa tendo como foco o processo formativo em ação, acionando tanto novas ferramentas digitais como dinâmicas participativas e outras construídas nas práticas coletivas das favelas, presentes tanto no ato de “virar uma laje” ou fazer uma resenha com amigos, vizinhos e familiares. Foram caminhos de reinvenção do método, em que também nos reinventamos, pesquisadores e moradores, integrados ao processo. Reafirmamos dessa maneira, ainda que a distância, a CAP como espaço de problematização e compreensão dos problemas do território, mas também de criação de confiança e afeto, ao qual se pode recorrer para desabafar, demandar, dividir desafios e até mesmo fazer análise de conjuntura política2727 Sousa FM, Cunha MB, Pivetta F. Aprendizados com grupos de favelas: o uso de ferramentas virtuais em uma pesquisa participativa. Rev Latinoam Cienc Comunic. 2021; 19(35):156-65. doi: 10.55738/alaic.v19i35.667.
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.

Considerações finais

“Nossos gritos viraram berros”, disse Camila Santos, explicando: “Eu falo que antes na favela tinha gritos, agora o grito virou berro”. E, após apresentar as diversas frentes de ações que ela e parceiros locais desenvolviam no território, conclui: “então, da minha parte assim, é, a gente priorizou o grito que estava berrando mais grave”.

Iniciamos essa conclusão com a análise de Camila, reforçando nosso método de dialogar com a análise dos interlocutores nas favelas, e porque ela nos indica uma das questões abordadas neste ensaio: as múltiplas dimensões temporais inscritas no território e em seu cotidiano. Gritos e berros traduzem aquilo que, para nós, está no movimento das estruturas e sob a dinâmica da urgência cotidiana. Os gritos, expressões de vários problemas experimentados no território vivido, produzidos historicamente pelos processos de produção e reprodução da desigualdade, são recorrentes. Talvez, por isso, naturalizados e invisibilizados. Os berros ecoam quando se configura um evento crítico, como a pandemia ou uma chacina, que acaba com a vida de várias pessoas. É o grito das mães buscando corpos de seus filhos que berra mais grave, assim como a fome.

Conhecer e compreender gritos e berros junto de agentes sociais em movimento, que acumulam uma visão ampliada e crítica do acontecer cotidiano nos territórios, é o que buscamos realizar com base na CAP. E é o que propomos como forma de contribuir para Vigilância Popular da Saúde. É a partir daí que acompanhamos os limites que constrangem a ação política e o exercício da cidadania, mas também o acontecer solidário1414 Santos M. Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência. Bol Gaucho Geografia. 1996; 21(1):7-14..

Expandir o diálogo nos territórios, especialmente no que se refere aos processos de produção da saúde-doença, amplia nossa percepção sobre o processo histórico social. É um movimento que, sob o princípio da ação, contribui para a maior compreensão da trama inscrita no cotidiano do espaço vivido. E, ainda, para a percepção do cotidiano como um processo de reconstrução e reprodução da vida na favela, onde as contradições gritam, mas as possibilidades podem berrar. Portanto, esse é um processo formativo, configurado por diferentes agentes sociais, que não se dá sem a valorização do conhecimento e da experiência de cada pessoa.

É assim que nos inserimos no debate sobre a vigilância popular, que concebemos como dispositivo de enunciação no campo da Saúde Pública perante os desafios relativos à produção compartilhada do conhecimento. Nesse processo, assumem centralidade, por sua posição epistêmica, ética e política, os referidos agentes sociais em movimento, cujo conhecimento e experiência é a chave que nos possibilita compreender gritos e berros, diferenciá-los e analisar seus impactos sobre a saúde.

Destacamos, aqui, o lugar das mulheres. Em nossa própria equipe da pesquisa e nos territórios onde atuamos, as observamos como protagonistas das ações, reflexões e debates ao longo da pandemia, sendo fundamentais na vigilância de serviços públicos de infraestrutura urbana e sociais. Atuaram ainda na linha de frente: nos cadastramentos, identificando as necessidades de moradores e localidades mais vulneráveis; criando materiais, inclusive para as mídias, com orientações adequadas à realidade do território; e organizando registros das inúmeras experiências e práticas, sob a forma de relatórios ou comunicação nas redes sociais.

São elas que vêm gritando e berrando no cotidiano e, em particular, diante de situações-limite, configurando algo como uma pedagogia do cuidado, que contribui para repensar a concepção de cuidado no campo da Saúde Pública.

Em diálogo com essa pedagogia do cuidado que emerge das ações nas favelas, a CAP é uma concepção ética e epistêmica, simultaneamente teórica e metodológica, de estar com o outro no pensar e no agir reflexivamente, aprendendo a lidar com diversas temporalidades e espacialidades para alimentar o princípio da ação.

Retomando algumas das recriações do método, sintetizamos aquelas que, em sua operacionalidade, nos permitiram sustentar esse princípio e a rede de trocas, produzindo modos de criar proximidades na distância: os grupos de WhatsApp, reuniões pela plataforma Zoom, circulação de informações e saberes pelo Instagram, garantiram que mantivéssemos contatos, conversas, consultas e trocas sobre o dia a dia do território; o canal Instagram funcionou como dispositivo dinâmico de circulação das narrativas dos moradores e reflexões coletivas; as mensagens remotas, em vídeos e áudios curtos, configuraram um espaço de cuidado e partilha do cotidiano, nutrindo a troca de ideias, angústias, medos, sonhos e aprendizados pessoais; a ressignificação de sondagem e de resenha como ferramentas de pesquisa ampliou as possibilidades de trocas de experiências de vida e de saberes.

Acompanhamos esse movimento, fazendo, do dialogar e compartilhar, verbos que estruturam a CAP como um modo de interação com os territórios de favela e como um projeto ético-poético-político, no sentido da construção do diálogo com o outro, ligado ao pensamento criativo sobre formas de fazer coisas que produzam vida. Político na medida em que visa contribuir para a ação coletiva, que forje caminhos em favor de um projeto de cidade humanizada, solidária e fraterna. Esse é o mote para as nossas reflexões na descida ao cotidiano com as CAPs1515 Pivetta F. Comunidade ampliada de pesquisa-ação: uma contribuição metodológica para a promoção emancipatória da saúde nos espaços urbanos [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021..

Agradecimientos

Instituto Raízes em Movimento, Jornal Fala Roça, Mães de Manguinhos e Camila Santos do Mulheres em Ação no Alemão.

  • Cunha MB, Pivetta F, Dominguez MT, Sousa FM. Diálogos com o cotidiano do território: o princípio da ação em uma comunidade ampliada de pesquisa-ação. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230132 https://doi.org/10.1590/interface.230132
  • Financiamiento

    Programa Inova Fiocruz; Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública – PPG/Ensp/Fiocruz.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2023
  • Aceito
    19 Out 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br