Indígenas universitários no primeiro semestre da pandemia de Covid-19: experiências em uma moradia estudantil

Indígenas universitarios en el primer semestre de la pandemia de Covid-19: experiencias en una residencia estudiantil

Raniel Martinha de Souza Willian Fernandes Luna Iraí Maria de Campos Teixeira Sobre os autores

Resumos

O artigo descreve experiências de indígenas universitários que viveram em uma moradia estudantil durante o período de distanciamento social ampliado no primeiro semestre da pandemia de Covid-19. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com utilização de diário de campo, levantamento documental e entrevistas. Foi realizada análise temática de conteúdo, sob a óptica dos conceitos de situação-limite, inéditos viáveis e resiliência. Foram duas categorias identificadas: sofrimento no contexto do distanciamento social e estratégias de superação de dificuldades. Vivenciaram incertezas e limites trazidos pela pandemia, medos por estarem distantes e adoecimentos. Como enfrentamento, surgiram adaptações no ensino, na pesquisa e na extensão; estratégias individuais para além de atividades acadêmicas; e busca de construções coletivas possíveis visando à resiliência e à desconstrução de visões estereotipadas no ambiente acadêmico.

Palavras-chave
Salud de las poblaciones indígenas; Pueblos indígenas; Salud del estudiante; Covid-19; Distanciamiento social


The article describes the experiences of indigenous university students who lived in a student housing during the period of increased social distancing in the first half of the Covid-19 pandemic. This is a qualitative research, using a field diary, documental survey and interviews. Thematic content analysis was carried out, from the perspective of limit-situation and unpublished-feasible concepts and resilience. Two categories were identified: suffering in the context of social distancing and strategies for overcoming difficulties. They experienced uncertainties and limits brought about by the pandemic, fears of being distant and illnesses. As confrontations, adaptations emerged in teaching, research and extension, individual resilience beyond academic activity and sought possible collective strategies towards resilience and deconstruction of stereotyped and romanticized views in the academic environment.

Palabras clave
Saúde das populações indígenas; Povos indígenas; Saúde do estudante; Covid-19; Distanciamento social


Introdução

As ações afirmativas nas universidades implicam o trabalho pela desconstrução de assimetrias no acesso e na permanência dos habitualmente excluídos, como pessoas de baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência11 Universidade Federal de São Carlos. Política de ações afirmativas, diversidade e equidade da Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade; 2016.. A afirmação dos direitos de cidadania exige liberdade e igualdade para que representem a possibilidade concreta de igual tratamento e oportunidades, levando em consideração as diversas condições históricas às quais os sujeitos estão submetidos11 Universidade Federal de São Carlos. Política de ações afirmativas, diversidade e equidade da Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade; 2016.,22 Silva PBG, Morais DS, organizadores. Ações afirmativas: perspectivas de pesquisas de estudantes de reserva de vagas. São Carlos: EdUFSCar; 2015..

Na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), a reserva de vagas para ingresso de indígenas nos cursos de graduação acontece desde 2008. Os autodeclarados pertencentes a um dos povos indígenas do território brasileiro e com vínculo com sua comunidade de origem podem concorrer, por meio de processo seletivo específico, a uma vaga adicional nos 64 cursos de graduação presenciais.

Em 2020, diante da pandemia vivenciada mundialmente, a Ufscar adotou medidas para prevenção da Covid-19, doença infecciosa causada pelo vírus SARS-COV-2. A alta virulência, associada à inexistência de um tratamento eficaz para a doença, levou à adoção de medidas emergenciais preventivas capazes de proteger a saúde, como o distanciamento social ampliado (DSA)33 Rodrigues BB, Cardoso RRJ, Peres CHR, Marques FF. Aprendendo com o imprevisível: saúde mental dos universitários e educação médica na pandemia de Covid-19. Rev Bras Educ Med. 2020; 44 Supl 1:e0149.. Assim, a partir da segunda quinzena de março, todas as atividades de caráter físico e presencial foram suspensas por tempo indeterminado na instituição.

Naquele contexto, a Ufscar contava com 218 universitários indígenas matriculados nos quatro campi, sendo 166 no município de São Carlos, dos quais 96 viviam na moradia estudantil da instituição, localizada nas dependências do campus. Parte dos estudantes indígenas retornaram para seus locais de origem, inclusive com colaboração da própria instituição. Todavia, parte permaneceu na moradia estudantil.

Durante a pandemia de Covid-19, evidenciaram-se situações de vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil, já que, devido à complexidade de questões sócio-históricas, grupos diferentes acessaram e vivenciaram tais situações de formas desiguais, sendo relevantes as questões relativas a gênero, raça, cor, etnia e condição econômica44 Lima JL, Melo AB, Perpetuo CL. Pandemia e a exacerbação das vulnerabilidades sociais: impactos na saúde mental. Akrópolis. 2021; 29(1):59-74..

Dessa forma, aproximar-se das experiências de indígenas naquele período é reconhecer momentos que podem ser relacionados ao conceito de situações-limite de Paulo Freire, ou seja, situações desafiadoras e problemáticas que se vive em um determinado momento55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.. Já a superação das situações-limite ocorre por meio de atos-limite, que são compreendidos como respostas necessárias e que refletem o protagonismo dos sujeitos frente ao mundo. Assim, quando os sujeitos percebem claramente os desafios das situações-limite, sentem-se mobilizados a agir e a descobrirem os inéditos viáveis55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005..

Nessa mesma direção, a compreensão de Gersem Baniwa sobre a resiliência entre povos indígenas traz essa postura ativa, criativa e reativa ao se negarem a ser vítimas passivas, em nome de seu protagonismo e de sua autonomia e reconhecendo caminhos possíveis diante das problemáticas66 Luciano GJS. Educação para o manejo do mundo: entre a escola ideal e a escola real no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2013. Da resistência à resiliência: a pedagogia do diálogo e da complementaridade; p.149-75..

Vale ser ressaltado que, no contexto indígena brasileiro, há uma diversidade de povos, com 305 grupos étnicos, falantes de 274 línguas, com modos singulares de se organizar e viver. Além disso, as violências e violações sofridas ao longo do tempo expõem situações de vulnerabilidade e consistem em ameaças à saúde física, mental e social dessas populações, acentuando-se no período da pandemia de Covid-1977 Fundação Oswaldo Cruz. Fundação Getulio Vargas. Relatório técnico. Risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica [Internet]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2020 [citado 20 Abr 2020]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/40980
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
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Dessa forma, as questões diretamente relacionadas à pandemia de Covid-19, como a situação de DSA deflagrada pelas medidas de prevenção, somadas à situação vivida pelos povos indígenas no Brasil, trouxeram repercussões aos indígenas que viviam na moradia estudantil. Assim, desenvolveu-se a pesquisa que compõe este artigo, na busca de compreender como foram as experiências desses estudantes durante o primeiro semestre da pandemia de Covid-19.

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que investiga o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que correspondem a um espaço mais profundo de relações, processos e fenômenos88 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social teoria, método e criatividade. 33a edição. Petrópolis: Editora Vozes; 2013..

Utilizou-se o conceito de experiência de Larrosa, compreendendo-a como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (p. 21), gerando transformação em quem a vive99 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19:20-8..

Buscou-se compreender como foram as experiências dos indígenas universitários que, de março a setembro de 2020 (ou seja, os primeiros seis meses de DSA), permaneceram na moradia estudantil da Ufscar – São Carlos, sendo chamados neste artigo de “moradores”. Esse período foi definido por três justificativas: por ser o primeiro semestre da pandemia de Covid-19 e de maior aplicação do DSA; por não terem sido desenvolvidas atividades curriculares para a maior parte dos cursos de graduação durante esse período; e por ter acontecido maior fluxo de moradores a partir de outubro devido à flexibilização do DSA.

A pesquisa foi realizada por um dos moradores, que é também o primeiro autor deste artigo e estudante do curso de Medicina, e dois professores.

A construção dos dados utilizou três estratégias: diário de campo, mapeamento dos moradores e entrevistas individuais.

Diário de campo

Construído pelo estudante pesquisador, nesta estratégia, foram descritas reflexões pessoais, bem como vivências, percepções, expectativas e relações estabelecidas com os participantes da pesquisa1010 Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol Estud. 2006; 11(2):407-15. .

Como morador e parte do grupo estudado, a etapa inicial correspondeu à observação do cotidiano em que o primeiro autor estava inserido, bem como anotações sobre o que vivenciou. Assim, a todo momento o autor estava em campo, registrando as experiências do cotidiano ao escrever, olhar e percorre-lo1010 Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol Estud. 2006; 11(2):407-15. ,1111 Caprara A, Landim LP. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em saúde. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):363-76. doi: 10.1590/S1414-32832008000200011.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200800...
. Utilizou-se uma perspectiva do tipo etnográfica nas observações cuidadosas realizadas e na escrita sobre a vida cotidiana na moradia estudantil1111 Caprara A, Landim LP. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em saúde. Interface (Botucatu). 2008; 12(25):363-76. doi: 10.1590/S1414-32832008000200011.
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O material do diário de campo foi incorporado à descrição do que foi vivenciado pelos moradores, estando presente nas categorias de análise.

Mapeamento dos moradores

Levantaram-se documentos com o Centro de Cultura Indígena (CCI) e com o Departamento de Assistência ao Estudante (DEAE), mapeando-se que, do total de 96 estudantes indígenas que viviam na moradia, 27 permaneceram no período estudado.

Entrevistas individuais

Os participantes das entrevistas foram definidos por meio de conveniência. O estudante pesquisador realizou contato com os moradores mais próximos via aplicativo de mensagens e, a partir dos primeiros, foi convidando outros para participarem.

As entrevistas foram semiestruturadas, com possibilidade de serem aprofundados os entendimentos a partir das respostas trazidas pelos entrevistados aos questionamentos do roteiro preestabelecido88 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social teoria, método e criatividade. 33a edição. Petrópolis: Editora Vozes; 2013..

Os critérios de inclusão da pesquisa foram: ser graduando da Ufscar, ser indígena e ter permanecido na moradia estudantil de março a setembro de 2020. Já os critérios de exclusão foram: ter idade inferior a 18 anos. Após aceite do convite, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e solicitado aos participantes que preenchessem um questionário sobre seu perfil.

Realizaram-se 12 entrevistas até o ponto de saturação, que foi atingido quando os novos entrevistados passaram a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores, sem acrescentar novas informações88 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social teoria, método e criatividade. 33a edição. Petrópolis: Editora Vozes; 2013..

O estudante pesquisador realizou as entrevistas por plataforma digital, nos meses de outubro e novembro de 2020, e as transcreveu. Os participantes foram identificados por nomes de pássaros, pois o estudante pesquisador é do povo Tikuna e faz parte do clã do ar ou clã mutum. Assim, os nomes próprios entre os Tikuna do clã do ar fazem menção aos pássaros, a suas características e a suas ações. O povo Tikuna ainda possui os clãs do fogo, da terra e da água.

Nomear os moradores participantes da pesquisa com nomes de pássaros na língua Tikuna buscou valorizar a ancestralidade e aproximá-los como parentes. Mesmo sendo de povos diferentes, quando os indígenas chegam na universidade, tratam-se como parentes, evidenciando sua coletividade e luta comum por direitos, à semelhança do movimento indígena1212 Luciano GS. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; 2006..

Foram entrevistados oito homens, três mulheres e uma pessoa preferiu não identificar seu gênero; e cursavam as graduações em Ciências Sociais, Engenharia Química, Imagem e Som, Engenharia Mecânica, Ciência da Computação, Biblioteconomia, Engenharia da Computação, Pedagogia, Educação Especial, Gerontologia, Psicologia e Educação Física. Os participantes eram provenientes dos povos Tukano, Tariano, Piratapuia, Baré, Pankará, Dessana e Pankararu.

Realizou-se análise temática de conteúdo88 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social teoria, método e criatividade. 33a edição. Petrópolis: Editora Vozes; 2013., com ordenação, decomposição e elaboração de síntese interpretativa, permitindo o diálogo dos eixos identificados com as experiências dos moradores. Foram identificados núcleos de sentido, que compuseram duas categorias: sofrimento no contexto do distanciamento social e estratégias de superação de dificuldades.

Utilizou-se os referenciais teóricos da Educação Popular, em especial, das situações-limite e dos inéditos viáveis de Freire55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.; e da Educação Indígena, com foco no conceito de resiliência de Baniwa66 Luciano GJS. Educação para o manejo do mundo: entre a escola ideal e a escola real no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2013. Da resistência à resiliência: a pedagogia do diálogo e da complementaridade; p.149-75..

Esta pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, com CAAE n. 36234020.0.0000.5504.

Resultados e discussões

Categoria 1 – Sofrimento no contexto do distanciamento social

Para descrever esta categoria, foram utilizados três núcleos de sentido: incertezas e limites trazidos pela pandemia; medos pelas distâncias; adoecimentos.

O início da pandemia trouxe, para todo o mundo, um contexto de incertezas e de contato com uma situação jamais vivida por essa geração. Sabia-se pouco sobre a doença, suas complicações, suas formas de controle e seu tratamento. Nesse sentido, houve grupos que foram ainda mais impactados pela Covid-19, como os povos indígenas brasileiros.

Devido às desigualdades sociais e à sua diversidade étnica, social e cultural, a população indígena enfrentou desafios adicionais para a contenção da pandemia e os agravos gerados por ela1313 Santos RV, Pontes AL, Coimbra CEA Jr. Um “fato social total’’: COVID-19 e povos indígenas do Brasil. Cad Saude Publica. 2020; 36(10):1-5., sendo essas questões também observadas na presente investigação ao serem analisadas as experiências dos indígenas que permaneceram na moradia estudantil.

Assim, os moradores relataram dificuldades ao vivenciar momentos de incerteza, reconhecendo problemas e sofrimentos provocados por estes:

Ninguém esperava [...] Ninguém quer que uma coisa dessas aconteça, né? E logo que tu chega de férias, que tu chega animado pra estudar, tu vem vibrando. [...] A minha irmã me mandou uma mensagem. Isso já tinha começado... as aulas na Federal já era o segundo dia, sexta-feira. [...] Ela disse assim: “Aí tá tudo normal?” Aí eu falei que sim e perguntei: “Por quê?” [risos]. E ela disse que a Unicamp já havia já parado. Aí eu falei: “Olha, eu acho que aqui não vai acontecer não” [...]. E aí, no mesmo dia... e aí quando foi à tarde aí a... paralisação da universidade [...]. E aí eu vi as meninas superdesesperadas.

Naí – arara-vermelha)

Percebeu-se que outro avanço acompanhava a situação de saúde, que era a circulação de muitas notícias – algumas confiáveis, outras não. Havia dificuldade de organização de informações oficiais e científicas e, por consequência, dificuldades na interpretação e análise dos conteúdos, com possíveis impactos negativos no controle da própria pandemia e trazendo dúvidas no ambiente da universidade e para a população em geral1414 Luna WF, Ferreira IS, Santos PMS, Souza RM, Jesus JA, Lopes CB, et al. Experiências de indígenas do Programa de Educação Tutorial - Ações em Saúde: protagonismo e resiliência na universidade durante a pandemia de Covid-19. Rev Guara. 2023; 1(16):1-15. doi: 10.30712/guara.v1i16.40938.
https://doi.org/10.30712/guara.v1i16.409...
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Nessa direção, os relatos dos estudantes trazem uma situação de angústia pela dificuldade de compreenderem as reais circunstâncias do período e seus impactos, já que estavam em um momento de muitas incertezas e, por serem indígenas, estavam ainda mais expostos:

[...] fica uma questão de se sentir... gerar uma certa incerteza de como as coisas vão ficar. É... o que pode mudar, talvez umas regras sociais. Como isso pode mudar? O que isso pode afetar? É claro que vem aquela incerteza da economia... Eu, por exemplo, hoje dependo de bolsa [...] e fico pensando, será que ainda vou continuar recebendo bolsa? Como que vão as coisas ficar? Qual o rumo da universidade daqui pra frente? São essas coisas externas que geram mais preocupação, assim, pra gente indígena.

(Taú – tucano)

As conversas nas filas de distribuições de alimentos, nos corredores entre moradores vizinhos de apartamentos e nos grupos de WhatsApp eram repletas de preocupações e notícias conflitantes.

Assim, puderam ser reconhecidas situações-limite frente à pandemia e ao DSA. As situações-limite são compreendidas como freios/muros que se impõem na vida das pessoas, mas que podem ser superadas55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.. Assim, elas são barreiras que são relacionadas ao sistema opressor da sociedade e pretendem impedir os oprimidos de ultrapassá-las55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005..

Em uma construção da reflexão crítica dos seus processos de vivências, os moradores descreveram que suas trajetórias estavam sendo impactadas não apenas momentaneamente:

[...] por causa dos estudos, das aulas... ficou mais... mais preocupante pra mim. Não consegui puxar disciplinas e também a internet tava meio ruim... era pra mim ter feito estágio presencial e não tive como fazer. Aí ficou... umas... essas disciplinas ficaram pendentes, foi mais isso. É, algumas disciplinas ficaram pendentes, não consegui puxar... aí vou ter que ficar mais um ano.

(Ngünü – mutum)

Nesse sentido, as incertezas do cotidiano eram diferentes para os moradores recém-chegados à universidade e para os mais antigos. Para os primeiros, houve uma quebra de expectativas, pois esperavam conviver com outros universitários e conhecer seu novo local de moradia. Já para os que estavam no final do curso, a impossibilidade de fazer os estágios práticos trazia a sensação de adiamento da conclusão da graduação:

Era um local novo pra mim. Ter chegado... então… só não deu pra conhecer muitos lugares e as pessoas, por causa da pandemia. Pra gente que é indígena é difícil porque vem de longe e não conhece nada.

(Cowa – maguari)

[...] é totalmente de uma forma que eu não esperava. Eu tava me preparando pra reta final dos meus estudos, né? E isso me desmotivou bastante em relação a... ao meu pessoal, ao meu psicológico, me afetou de forma negativa. Sendo assim, a minha experiência com a pandemia foi totalmente negativa até porque da pandemia a gente não se espera nada bom.

(Dyawirú – jaburu)

A suspensão das atividades presenciais e no campus trouxe uma sensação de ainda maior distanciamento das outras pessoas. As ruas da universidade, o restaurante universitário, as lanchonetes e os espaços de lazer, de uma hora para outra, ficaram paralisados, quietos e sem presença humana. Apenas os estudantes da moradia e funcionários da segurança e dos serviços gerais continuaram transitando naquele espaço.

Os moradores descreveram vários motivos para justificar seu não retorno ao local de origem durante a pandemia. Um primeiro motivo foi o risco de adoecer e de levar o vírus para sua localidade de origem; outro foi o receio de adoecer e de estar distante, acompanhados do sentimento de medo:

Eu ouvi o relato de algumas pessoas que voltaram para… para suas casas, vamos dizer assim, e elas acabaram pegando Covid. Então eu fiquei com medo de pegar Covid também [...] aí eu fiquei com medo de voltar.

(Ituri – bem-te-vi)

No começo você fica com medo. Aí, depois do medo, vem a ansiedade e depois vem a preocupação... A gente fica com medo porque não sabe se vai voltar, se vai ficar doente, se vai sobreviver e... mais ansiedade porque você tá só. De certa forma você está com pessoas diferentes e lá no fundo não são a sua família. Então você tá meio que desamparado em relação à família.

(Weu – papagaio)

Outras questões que justificaram a permanência na universidade foram: limitações financeiras que impossibilitaram a realização de grandes deslocamentos, instabilidade de acesso à internet em suas localidades de origem e possibilidade de se dedicar mais aos estudos permanecendo no espaço da universidade.

Percebeu-se que os moradores eram de origens distantes do estado de São Paulo, principalmente do Amazonas e de Pernambuco. Assim, habitualmente, esses universitários visitavam os familiares apenas durante as férias ou recessos, o que ficou mais difícil durante a pandemia.

Foi destacada a sensação de tristeza ao experienciar o retorno de outros estudantes da moradia para seus locais de origem, não podendo fazer o mesmo:

Eu me senti totalmente abandonado comigo mesmo quando meus colegas daqui da moradia voltaram pras casas deles. [...] Vendo eles todos indo embora aos poucos e você ficando sozinho, eu fiquei muito triste. Muito desamparado e foi complicado, né?

(Dyawirú – jaburu)

Para além do distanciamento físico, havia dificuldades de comunicação com os familiares, o que trazia angústia:

Então batia bastante o desespero nesse sentido. Não era nem tanto por mim, e sim pelos próximos a mim que eu tinha uma certa preocupação. [...] você fica naquele receio de que seus pais não estão, a família não está, e... será que você vai voltar a ver alguém?

(Weu – papagaio)

Naquele contexto de grande mortalidade por Covid-19, o medo da perda era real e houve relatos de morte de familiares, gerando uma dolorosa vivência do luto distante do seu local de origem:

Eu descreveria que a minha experiência no período de isolamento foi a pior possível, tanto pelo fato de eu estar preocupada com meus parentes e longe deles tanto pelo fato de eu ter perdido a minha mãe. Pelo fato de eu não ter, assim, ficado com ela nos últimos momentos dela. E pelo fato de eu não ter participado do velório e não ter os meus parentes por perto nesse tempo de luto.

(Wocara – garça)

A fala de Wocara traz que o DSA impossibilitou a sua presença no contexto da morte da mãe, gerando tristeza e intensificando a experiência da perda. Assim, houve o rompimento de um vínculo, mas não foi possível participar do habitual ritual de luto realizado em seu contexto sociocultural que demarca o processo de morte social do indivíduo1515 Lopes JMC, Mauro J, Dias LC. Princípios da medicina de família e comunidade. In: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC, organizadores. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. p. 96-126..

Em outras experiências, como na pesquisa de Luna1616 Luna WF. Indígenas na escola médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista; 2021., universitários indígenas também relataram a vivência de perdas durante o período em que estavam nos ambientes das universidades, sendo tais perdas descritas principalmente quando havia a impossibilidade de estarem mais próximos de seus locais de origem, sem oportunidades de manterem costumes e tradições1616 Luna WF. Indígenas na escola médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista; 2021.. Na presente pesquisa, essas perdas foram descritas com ainda mais intensidade.

Durante o período do estudo, nenhum dos moradores teve o diagnóstico de Covid-19, o que sugere que o DSA foi realizado de forma severa. Todavia, percebe-se que várias foram as dificuldades e os sofrimentos descritos, interferindo na qualidade de vida, nos relacionamentos interpessoais e nos prazeres do cotidiano.

Nessa direção, alguns desses problemas foram identificados pelos próprios moradores como promotores de adoecimento, principalmente na saúde mental, o que se soma às violências e violações sofridas ao longo do tempo em suas vidas pelo fato de serem indígenas55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.:

Eu não dormia direito, eu não me alimentava direito. No começo, né? Eu não tinha prazer de cozinhar, não tinha prazer de fazer alguma coisa, eu fiquei… muito… isolado, né? Desolado, na verdade. E isso afetou muito o meu psicológico, eu tinha muita ansiedade naquela época.

(Dyawirú – jaburu)

Eu acho que tipo, a saudade, assim, tipo, tá muito atrelada com a depressão também, então se tiver uma distância, assim, então claro que eu cheguei a esses pensamentos. Esses sentimentos de tristeza, tipo de ansioso. Até hoje em dia.

(Muü – bem-te-vi)

A complexidade das experiências e a sobreposição de dificuldades no período foram descritas como potencializadoras de novos – ou já preexistentes – sofrimentos e adoecimentos:

[...] muitas vezes eu me senti muito sozinha... eu tive crises pesadíssimas até de automutilação. [...] Quem tem ansiedade e depressão, você vive naquela montanha russa. Não consegue ter estabilidade emocional. Então, pra mim, ter lidado com isso tudo, mais a pandemia, mais a cobrança acadêmica, mais a cobrança familiar, mais o distanciamento social e mais a distância da minha casa, de lugares e de pessoas que eu conheço é... me fizeram sofrer muito.

(Ngo ́ü – arara)

Durante o período do estudo, um grave e triste episódio marcou os moradores. Um dos residentes na moradia estudantil suicidou-se, o que impactou diretamente todos que viviam naquele local. O estudante não era indígena, mas a comunidade acadêmica como um todo, principalmente quem vivia na moradia, ficou abalada com o ocorrido. Esse fato desencadeou outros sofrimentos e adoecimentos:

Eu acho que o caso que me chocou muito, que me marcou muito foi... o acontecido na moradia de suicídio. Eu acho que poderia ter acontecido com qualquer pessoa. Eu acho que ninguém tá... ninguém tá... sei lá, longe disso. Ou ninguém tá fora disso, dessa caixa. E me doeu bastante, sabe? Porque do mesmo jeito que foi ele, poderia ser eu, poderia ter sido você e... nossa! Eu fiquei por muito tempo... eu fiquei malzona por semanas, porque eu falei: “Meu Deus, o que ele não sofreu!”. O que, o quanto que ele deve ter se martirizado dentro do apartamento. [...] Foi o acontecido que teve na moradia e eu sinto que foi uma pena, foi uma perda pra todo mundo e eu acho que a gente tem que levar como lição de vida agora.

(Ngo ́ü – arara)

Ao narrar os processos de luto e de luta ao descrever a vivência trágica na moradia estudantil, as situações-limite afloram e possibilitam também alguns aprendizados. Portanto, as experiências dos participantes são reconhecidas quando possibilitaram sentidos e espaços para que transformações acontecessem a partir do que se viveu. Assim, retomando o conceito de experiência de Larrosa99 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19:20-8., percebe-se que o vivenciado nesse período afetou e transformou as trajetórias dos estudantes entrevistados.

Assim, é a partir da relação entre pessoa e experiência que surge o saber da experiência, que é um saber pessoal e particular, no qual cada pessoa elabora e atribui sentido – ou a falta de sentido – à sua existência e àquilo que foi vivido99 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; 19:20-8..

Na compreensão das situações-limite55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005., existe o sentimento da vontade que está centrada no “plano do querer”, seguido do “plano do refletir”, que traz a possibilidade de compreender as razões de existência das situações-limite, assim como também os motivos que se deve estabelecer para uma mudança ou luta por um sonho1717 Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757.. Esses dois planos foram descritos e problematizados pelos moradores, sendo o estado inicial da construção de inéditos viáveis.

Categoria 2 – Estratégias de superação de dificuldades

Nesta segunda categoria, três núcleos de sentido foram descritos: adaptações no ensino, pesquisa e extensão; resiliências individuais para além de atividades acadêmicas; em busca do coletivo possível. Os núcleos estão entrelaçados nas diversas experiências narradas e apresentaram-se como complementares para os moradores.

Apesar de não terem sido descritos por Freire como um conceito, os inéditos viáveis podem ser compreendidos como algo inédito, ainda não conhecido e vivido, mas sonhado e que pode se tornar realidade55 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.,1717 Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757.. Considerando o binômio denúncia-anúncio, dois aspectos mostraram-se particularmente importantes nas experiências dos moradores que indicam a direção dos inéditos viáveis.

O primeiro aspecto reside no fato de que os inéditos viáveis, além de pressuporem o sonho e a utopia, também preveem a ação, pois encerram em si uma perspectiva metodológica. O segundo aspecto indica que esse sonho é um sonho coletivo.

É da articulação entre essas duas perspectivas que os inéditos viáveis podem ser tomados como um projeto coletivo a ser iniciado quando algo do mundo estabelecido, reproduzido e, por vezes, naturalizado é tomado como estranho e é colocado em evidência1717 Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757.. Esse estranhamento tem o sentido de melhor compreender o que “há de errado com ele” e, ao reconhecê-lo como injusto e como uma situação-limite, buscam-se alternativas para fazer face a esse algo ou aos contextos nos quais são produzidos. Não menos complexo é empreender todo esse processo coletivamente1717 Paro CA, Ventura M, Silva NEK. Paulo Freire e o inédito viável: esperança, utopia e transformação na saúde. Trab Educ Saude. 2020; 18(1):e0022757., o que se fez muito presente nas experiências dos moradores.

Durante os primeiros cinco meses de pandemia de Covid-19, não houve atividades regulares de ensino na Ufscar; todavia, atividades acadêmicas de extensão e de pesquisa continuaram de forma remota. Assim, nesse primeiro conjunto de estratégias construídas pelos moradores, destacaram-se atividades acadêmicas extracurriculares propiciadas pela própria universidade:

Eu acho que, durante a quarentena, eu me envolver academicamente fez totalmente a diferença, porque eu me envolvi em grupos de pesquisas, grupos de extensão. Quis contribuir de alguma forma como estudante da área de Saúde. Eu voltei a ficar mais ativa nas questões indígenas.

(Ngo ́ü – arara)

A dedicação a atividades acadêmicas foi importante para a saúde mental dos moradores, favorecendo, inclusive, o envolvimento com questões sociais relativas aos povos indígenas.

Em uma das experiências de extensão desenvolvidas na mesma instituição pelo Programa de Educação Tutorial Indígena Ações em Saúde, houve protagonismo indígena por meio da construção de ações diversas que oportunizaram o aprofundamento teórico sobre a situação sanitária e a comunicação com indígenas das comunidades. Houve construção de publicações de comunicação social, encontros virtuais sobre saúde com intelectuais indígenas e elaboração de vídeos e podcast para superação da invisibilidade dos povos indígenas1414 Luna WF, Ferreira IS, Santos PMS, Souza RM, Jesus JA, Lopes CB, et al. Experiências de indígenas do Programa de Educação Tutorial - Ações em Saúde: protagonismo e resiliência na universidade durante a pandemia de Covid-19. Rev Guara. 2023; 1(16):1-15. doi: 10.30712/guara.v1i16.40938.
https://doi.org/10.30712/guara.v1i16.409...
.

O próprio movimento individual de estudar temas e conteúdos acadêmicos também aconteceu:

Na minha semana eu reservava pelo menos umas três horas pra estudar, sendo que eu lia muito. Eu aprendi várias coisas novas, assim, eu consegui aplicar o que eu aprendia.

(Muü – beija-flor)

Desde quando eu tive certeza que eu não ia mais viajar, eu disse pra mim mesma: “Eu vou estudar... eu vou aproveitar as oportunidades que eu tiver. Eu não vou fazer mal pra mim mesma a ponto de eu me entregar por desânimo ou pro pessimismo ou pra pensamentos negativos”. Já está sendo um momento difícil, né? Então o estudo até agora... estratégias assim... eu vou ocupar minha mente estudando, lendo, estudando inglês.

(Naí – arara-vermelha)

A partir de agosto de 2020, houve abertura do calendário acadêmico para a oferta de atividades de ensino não presencial emergencial (ENPE). Com esse retorno às atividades dos cursos de graduação, os moradores passaram a realizar disciplinas e outras atividades curriculares, o que trouxe uma necessidade de adaptação:

[...] eu fiquei em casa fazendo aquele negócio da ENPE, né? [...] Nesse período que eu estive aqui, eu fiquei estudando. E a parte positiva é que a gente entrou no ensino a distância.

(Êne – periquito)

Senti que tô conseguindo, tô me sentindo melhor [risos] porque sinto que tô conseguindo mais do que ano passado. Não sei por que, mas sinto que... parece que eu me dei tão bem, assim, remota... estudando virtualmente ou vendo as aulas gravadas, é... assistindo os vídeos que o professor passa milésimas vezes. Mais materiais que tu pode guardar, que tu pode assistir outra hora.

(Naí – arara-vermelha)

Foi um processo inicial de ocupação de alguns vazios constituídos pela interrupção das atividades e oportunidade de utilizar tecnologias de ensino remoto e de maior dedicação aos estudos.

As atividades de lazer relatadas foram mais restritas ao ambiente doméstico, já que havia restrições do município e da universidade:

Eu li bastante livros de literatura, né? E isso me ajudou bastante. [...] Ler mais livros que a gente geralmente não pode ler quando nós estamos com um monte de livro da graduação pra ler. [...] E me dedicar à cultura mesmo, sabe? [...] Assistir coisas, ver documentários que me enriquecem de cultura. [...] Isso eu pude fazer mais. Entender mais sobre a questão da cultura ocidental e tudo mais.

(Taú - tucano)

Eu ficava mais assim vendo alguma coisa na TV, série, filme ou jogando.

(Îyü - gavião)

Os entrevistados descreveram que práticas de assistir filmes, séries, cozinhar, pintar, fotografar e ler foram oportunidades, já que não havia atividades da graduação, diversificando o acervo de possibilidades para o bem-estar.

Semelhante aos moradores da presente pesquisa, no estudo de Montenegro e colaboradores1818 Montenegro GM, Queiroz BS, Dias MC. Lazer em tempos de distanciamento social: impactos da pandemia de Covid-19 nas atividades de lazer de universitários na cidade de Macapá (AP). Licere. 2020; 23(3):1-26. com discentes da Universidade Federal do Amapá, demonstrou-se que eram possíveis práticas de lazer durante a pandemia, o que se somou a uma característica contemporânea nas formas de lazer, sendo a maioria realizada dentro de casa. A pesquisa de Montenegro1818 Montenegro GM, Queiroz BS, Dias MC. Lazer em tempos de distanciamento social: impactos da pandemia de Covid-19 nas atividades de lazer de universitários na cidade de Macapá (AP). Licere. 2020; 23(3):1-26. afirma que o DSA desencadeou um aumento da “residencialização’’ e uma “virtualização’’ do lazer, sendo que a internet foi a forma de lazer mais citada pelos participantes1818 Montenegro GM, Queiroz BS, Dias MC. Lazer em tempos de distanciamento social: impactos da pandemia de Covid-19 nas atividades de lazer de universitários na cidade de Macapá (AP). Licere. 2020; 23(3):1-26. .

Diferentemente do estudo de Costa et al.1919 Costa CLA, Costa TM, Barbosa Filho VC, Bandeira PFR, Siqueira RCL. Influência do distanciamento social no nível de atividade física durante a pandemia do Covid-19. Rev Bras Ativ Fisica Saude. 2020; 25:1-6. , que observou uma redução nas práticas de atividades físicas durante a pandemia em todas as regiões brasileiras, no presente estudo, os moradores não reduziram suas atividades físicas e alguns as ampliaram:

[...] em meio à pandemia fica meio desgastante estudar, sei lá, é meio que uma prisão. E não tem nada pra se distrair, fica um tédio se você ficar só estudando. Então para distrair eu ia correr, eu ia fazer uma calistenia, jogar uma bola.

(Muü – beija-flor)

Caminhei bastante esses tempos. Demais. Eu pegava a rua que tivesse o mais isolado possível, sem pessoas. Então eu pude fazer mais isso, coisa que eu não fazia durante a aula.

(Taú – tucano)

Assim, as atividades físicas foram uma das medidas de enfrentamento do DSA descritas, sendo necessário reconhecer que a moradia estudantil dentro do campus universitário, que é bastante arborizada e ampla, possibilitou que tais atividades acontecessem. Os participantes da pesquisa descreveram práticas individuais – como caminhadas, corrida e ciclismo – e coletivas – como tênis de mesa e futebol, já no sexto mês da pandemia.

No enfrentamento das diversas situações-limite, buscaram aproximar-se de outras pessoas utilizando tecnologias de comunicação ou convivendo com os demais estudantes da moradia. Comunicaram-se por aplicativos de mensagens e chamadas de vídeo, já que não podiam interagir de forma presencial:

Desde o começo, assim, eu procurei conversar muito com as pessoas. Eu procurei me aproximar de todo mundo, praticamente, dos meus contatos. Até com quem eu não tinha muita afinidade de conversar, de teclar, de fazer videochamada... eu sentia a necessidade de todo dia conversar com alguém, nem que seja, nem que fosse a mesma pessoa todo dia. [...] Principalmente nos dias que eu sentia tristeza.

(Naí – arara-vermelha)

A comunicação foi uma importante forma de superação das dificuldades para os participantes, principalmente quando se sentiam tristes e sozinhos. Foi uma forma de se aproximar de pessoas que pouco conheciam, tornando-as mais próximas, ou ainda de manter contato com amigos e familiares e com o coletivo indígena local e nacional.

Nesse sentido, por meio das narrativas dos moradores, percebem-se suas posturas de luta no contexto do DSA e suas buscas por reflexão sobre suas situações-limite. Com isso, construíram estratégias de sobrevivência, resiliência e adaptação ao processo.

Tomando a experiência pandêmica em regiões amazônicas do Peru, percebeu-se uma capacidade dos povos indígenas de implementar iniciativas autônomas e não institucionais2020 Pesantes MA, Gianella C. ¿Y la salud intercultural?: lecciones desde la pandemia que no debemos olvidar. Mundo Amazon. 2020; 11(2):93-110.. Fica evidente a importância de se pensar uma política diferenciada para os indígenas e de valorização de sua ancestralidade2020 Pesantes MA, Gianella C. ¿Y la salud intercultural?: lecciones desde la pandemia que no debemos olvidar. Mundo Amazon. 2020; 11(2):93-110..

Utilizando, aqui, a compreensão de Gersem Baniwa sobre a resiliência dos indígenas ao discutir a educação, ressalta-se que, entre os moradores, houve uma atitude de realizar escolhas, de reconhecer nos encontros e nos eventos o que podia ser ressignificado, mesmo em frente a violências e tragédias humanas vividas66 Luciano GJS. Educação para o manejo do mundo: entre a escola ideal e a escola real no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2013. Da resistência à resiliência: a pedagogia do diálogo e da complementaridade; p.149-75..

Várias dessas estratégias de resiliência e sobrevivência não foram tão diferentes das já utilizadas pelos indígenas no ambiente universitário, mesmo fora do período da pandemia. Como descrito por Luna1616 Luna WF. Indígenas na escola médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista; 2021., os indígenas, quando em sofrimento nas universidades federais, necessitavam encontrar oportunidades de enfrentar e sobreviver às dificuldades impostas a partir de uma estratégia de resiliência pelo fortalecimento ligado à sua cultura. Essa postura pode ser reconhecida na fala dos moradores:

A maioria das minhas experiências foram boas. Tirando que, tirando depressão, tirando ansiedade, tirando crises... tudo se intensificou na quarentena. Isso é evidente. Mas, assim, eu acho que... olhando pelo lado bom de tudo, essas experiências que eu vivi ano passado, eu não tiraria e nem colocaria nada. [...] Durante esse período de quarentena, eu acho que a minha visão ficou mais aguçada pra as nossas questões indígenas, pros movimentos indígenas. A gente aprendeu a olhar com mais afeto pro outro e pro nosso povo. Às vezes acham que por ser indígena a gente é meio que “fraco”, mas a gente tem nossas fortalezas. Com os parentes a gente se fortalece.

(Ngo ́ü – arara)

Segundo Baniwa2121 Baniwa G. A pedagogia da resiliência indígena em tempos de pandemia. Rev Educ Publica. 2021; 30:1-17., na pandemia, diante de tanta insensibilidade e desumanidade da sociedade não indígena, os povos indígenas reafirmaram seus ideais de vida, que se inspiram na ancestralidade e na coletividade.

As experiências descritas guardam relação com o nome do estudante pesquisador em sua língua materna, Goecü, que significa o voo do mutum na mata. O termo remete ao significado de resiliência, por se referir a um pássaro de voos curtos, passando por entre os galhos das árvores na busca de seus objetivos, ainda que por etapas. Assim, cada galho é uma nova etapa alcançada em busca de seus alimentos, moradas e outros desafios. As experiências dos moradores também estiveram próximas dessa resiliência, bem como das do primeiro autor, que, por meio desta pesquisa, pôde imergir em suas próprias experiências, bem como ressignificá-las.

Portanto, os moradores evidenciaram inéditos viáveis nas possibilidades de romperem com posturas romantizadas e estereotipadas a respeito dos indígenas no ensino superior, desconstruindo a ideia de que os estudantes indígenas são frágeis, vulneráveis e, por vezes, incapazes de estarem inseridos nas universidades. As experiências dos moradores se mostram bem mais diversas e resilientes, mesmo frente às incertezas do momento.

Considerações finais

Os universitários indígenas e residentes na moradia estudantil vivenciaram sofrimentos durante o primeiro semestre da pandemia, relatando incertezas e medos como situações-limite, ou seja, como obstáculos históricos e dimensões desafiadoras e concretas naquele momento. Percebeu-se que a pandemia de Covid-19 e as respostas a ela foram acompanhadas por um excesso de informações – algumas precisas e outras não – que tornaram difícil encontrar orientações confiáveis sobre o que estava acontecendo. Os rumores e a desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa, foram, em grande parte, responsáveis pelas incertezas e preocupações relatadas pelos moradores.

Ao não aceitar de forma passiva tal realidade, os participantes descreveram enfrentamentos das dificuldades, estratégias de sobrevivência e adaptações, individuais e coletivas, que evidenciaram possíveis inéditos viáveis, apontando características de resiliência construídas de forma criativa na relação sujeito-mundo, muito evidentes na forma de sobreviver dos indígenas na sociedade.

Apresenta-se aqui a importância do processo de conscientização crítica da realidade para que se desvelem os inéditos-viáveis, tornando possível a criação de novas percepções da realidade, as quais permitem a identificação de ações possíveis, que antes não eram vislumbradas como soluções.

Os sofrimentos psíquicos e adoecimentos vivenciados pelos participantes da pesquisa se tornaram mais evidentes no período de DSA, mas também estão presentes ao longo da graduação. As narrativas denunciam o preconceito presente no contexto universitário e outros espaços nos quais convivem, uma vez que passam por diversas limitações e julgamentos, sendo muitas vezes vistos como pessoas frágeis, vulneráveis e fora do contexto do ensino superior.

Dessa forma, a postura ativa na construção de estratégias de enfrentamento e de resiliência – na maior parte das vezes, não institucionais – desconstrói estereótipos. Produziram, assim, seus próprios caminhos viáveis de superação para o período de DSA durante a pandemia de Covid-19.

Agradecimientos

Aos participantes da pesquisa, pelas narrativas, reflexões e pela luta pela presença indígena nas universidades. Ao CCI e ao DEAE, pelo apoio e documentos fornecidos. Aos integrantes do Grupo de Pesquisa em Educação Popular em Saúde da UFSCar, que colaboraram ao longo desta pesquisa e na construção deste artigo.

  • Souza RM, Luna WF, Teixeira IMC. Indígenas universitários no primeiro semestre da pandemia de Covid-19: experiências em uma moradia estudantil. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230154 https://doi.org/10.1590/interface.230154

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    18 Fev 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br