Resumos
Mesmo com as intenções de desenvolver territórios saudáveis, a integração em comunidade não garante a atitude descolonial. Como viver juntos em territórios culturalmente seguros, indígenas e não indígenas, com uma relação horizontal de cooperação? Como desenvolver práticas descolonizadoras de educação social e popular em saúde? Um ensaio crítico-reflexivo vivencial se apresenta aos leitores como um exercício de introspeção com horizonte autobiográfico do sujeito escrevendo. Influenciada por experiências brasileiras, a autora revisita seus territórios no Canadá com um olhar de descobrimento. O objetivo é sistematizar e problematizar experiências populares em sua relação com o território para visualizar formas de criar territórios saudáveis. A performance, como epistemologia corporal e cenestésica (movimento), é o método pelo qual uma pessoa pode seguir adiante para se entender melhor as dinâmicas sociais historicamente opressoras e recapturar a importância dessas dimensões nos ensinamentos.
Palavras-chave
Práticas culturalmente seguras; Territórios saudáveis; Epistemologia cenestésica; Educação popular em saúde; Descolonização
Even with the intention of developing healthy territories, community integration does not guarantee a decolonial attitude. How to live together in culturally safe territories, indigenous and non-indigenous, based on a horizontal relationship of cooperation? How to develop decolonizing practices of social and popular health education? An experiential critical-reflective essay presents itself to readers as an introspection exercise with an autobiographical horizon of the writer. Influenced by Brazilian experiences, the author revisits her territories (Canada) as a discovery. The objective is to systematize and problematize popular experiences in their relationship with the territory in order to visualize ways of creating healthy territories. Performance, as a corporal and kinesthetic epistemology (movement), is the method by which a person can move forward to better understand himself in the face of historically oppressive social dynamics and recapture the importance of those in teachings.
Keywords
Culturally safe practices; Healthy territories; Kinesthetic epistemology; Popular education in health; Decolonization
Incluso con las intenciones de desarrollar territorios saludables, la integración en comunidad no asegura la actitud descolonizada. ¿Cómo vivir juntos en territorios culturalmente seguros, indígenas y no indígenas, a partir de una relación horizontal de cooperación? ¿Cómo desarrollar prácticas descolonizadoras de educación social y popular en salud? Un ensayo crítico-reflexivo vivencial se presenta a los lectores como un ejercicio de introspección con horizonte autobiográfico del sujeto escribiendo. Influenciada por experiencias brasileñas, la autora revisita sus territorios en Canadá con una mirada de descubrimiento. El objetivo es sistematizar y problematizar experiencias populares en su relación con el territorio para visualizar formas de crear territorios saludables. El desempeño, como epistemología corporal y cenestésica (movimiento) es el método por el cual una persona puede seguir adelante para entenderse mejor ante las dinámicas sociales históricamente opresoras y recapturar la importancia de estas dimensiones en las enseñanzas.
Palabras clave
Prácticas culturalmente seguras; Territorios saludables; Epistemología cenestésica; Educación popular en salud; Descolonización
Introdução
Este dossiê pretende refletir sobre o protagonismo da Educação Popular no apoio à aproximação dos movimentos e práticas populares no processo de construção de territórios saudáveis e sustentáveis. Trata-se de discutir a relação entre trabalho, ambiente e saúde, tendo como foco principal a reafirmação do papel das comunidades na disputa pela transformação dos seus espaços de vida, debatendo caminhos e ferramentas que viabilizem esse percurso. Esse desafio está no centro dos meus interesses, haja vista o fato de eu ensinar noções de Saúde Coletiva e coordenar rotações clínicas nessa especialidade para minorias francófonas no Canadá.
A Canadian Association of Schools of Nursing (CASN) e a Aboriginal Nursing Association of Canada (Anac)11 Canadian Association of Schools of Nursing. Educating nurses to address socio-cultural, historical, and contextual determinants of health among aboriginal peoples [Internet]. Ottawa: CASN/ACESI; 2013 [citado 20 Mar 2023]. Disponível em: https://www.casn.ca/2014/12/educating-nurses-address-socio-cultural-historical-contextual-determinants-health-among-aboriginal-peoples/
https://www.casn.ca/2014/12/educating-nu... recomendam o desenvolvimento de um currículo centrado na competência e na segurança cultural. As culturas indígenas promovem o retorno à dimensão espiritual nos espaços de vida, tanto nas áreas públicas quanto nas instituições de ensino, de serviços sociais e de saúde. Discuto a situação histórica das populações indígenas no Canadá (sistema de escolas-residências, onde se agrupavam as crianças indígenas para uma “reeducação cultural”) e a dimensão de territórios (geográficos, socioculturais, imaginativos) na determinação social da saúde. É importante ressaltar que o governo canadense e as igrejas operaram escolas residenciais durante um século: de meados dos anos 1880 até 1996. Durante esse período, crianças indígenas foram retiradas à força de suas famílias e comunidades para que assimilassem a cultura dominante. Devido à violência e os abusos perpetrados pelos religiosos, o sistema das escolas-residências criou danos intergeneracionais que repercutem até hoje. Desde 2015, a Truth and Reconciliation Commission22 Truth and Reconciliation Commission of Canada. Truth and Reconciliation Commission of Canada: calls to action [Internet]. Winnipeg: TRC; 2015 [citado 20 Mar 2023]. Disponível em: http://nctr.ca/assets/reports/Calls_to_Action_English2.pdf
http://nctr.ca/assets/reports/Calls_to_A... [Comissão da Verdade e Reconciliação] (https://nctr.ca/records/reports/), com base em 7 mil entrevistas com sobreviventes e seis volumes de relatórios, reconhece oficialmente que no Canadá houve um genocídio cultural: 116 anos de operação de escolas residenciais, 150 mil crianças indígenas retiradas das famílias, 6 mil crianças mortas por esse sistema; 67% das escolas foram administradas pela Igreja Católica, 20% pela anglicana, 10% pela universal e 3% pela presbiteriana.
Considerando esse quadro histórico, desafiei os estudantes de enfermagem colocando-os em um papel de profissionais da saúde em comunidades isoladas, já que poucos enxergam a comunidade como um determinante da Saúde Coletiva. Em certo momento, um aluno argumentou que deveríamos considerar a solidariedade como uma força, como é o caso de sua comunidade Mohawk Handenosaunee – era a primeira vez que um aluno identificava publicamente sua ascendência indígena.
Vivo nos territórios usados33 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6a ed. Rio de Janeiro: Record; 1988. da capital Ottawa (Ontário, Canadá) que possuem dimensões sócio-históricas significativas para o imaginário coletivo. Os colonizadores europeus tiraram à força as terras indígenas da nação Algonquin e Anishnaabe; colonização territorial que se perpetua44 Hafez S. Algonquins Anishinabeg VS. Algonquins of Ontario: development, recognitions and ongoing colonization [Internet]. Ontario: Yellow Head Institute; 2021 [citado 20 Mar 2023]. Disponível em: https://yellowheadinstitute.org/2021/02/18/algonquin-anishinabeg-vs-the-algonquins-of-ontario-development-recognition-ongoing-colonialization/
https://yellowheadinstitute.org/2021/02/... . Em seu subsolo estão sepultados corpos de vários trabalhadores (imigrantes irlandeses e franco-canadenses) que construíram o Canal Rideau entre 1826 e 1832 (a maioria das mortes se deu por Malaria (Plasmodium vivax), outras por exaustivos trabalhos manuais de 14 horas por dia, 6 dias por semana, e acidentes fatais causados por explosivos). Uma cruz céltica oferecida pela Embaixada da Irlanda rememora esse fato. Entre duas províncias canadenses (Quebec e Ontário), na ilha Victoria [Asinabka], a chefe da comunidade Attawapiskat, Theresa Spence (nascida em 1963), realizou uma greve de fome para conscientizar o governo sobre os direitos indígenas e a situação crítica de comunidades indígenas sem água potável e acesso à eletricidade. Criou-se o movimento Idle no More para reforçar as reivindicações e esse território recebeu vários contingentes indígenas (https://idlenomore.ca). Ultimamente, o arquiteto indígena Douglas Cardinal reivindicou a libertação das cachoeiras da barragem de uma antiga indústria desativada (Chaudières Falls), argumentando que elas pertenciam aos territórios sagrados Algonquin/Anishnaabe, que no final se tornaram um condomínio de luxo.
No momento da escrita deste artigo, eu residia em uma cooperativa de habitações mistas com famílias e pessoas provenientes de diversos contextos linguísticos, econômicos, sociais, políticos e étnicos, sendo 60% com subsídios governamentais55 Laperrière H. O olhar de uma estrangeira sobre uma experiência brasileira de extensão popular. In: Vasconcelos EM, Cruz PJSC, organizadores. Educação popular na formação universitária. João Pessoa: Hucitec; 2013. p. 191-203.. A “coop” é localizada em um conjunto habitacional próximo da faculdade. No bairro, onde ainda moro, há mesquita, serviços de injeção supervisada para usuários de drogas, conveniências populares, alojamentos para famílias refugiadas e centros comunitários servindo populações do bairro, além de apartamentos para estudantes e indígenas em situação de rua.
Nesse contexto, como estimular práticas com competência e segurança cultural na transformação dos nossos espaços de vida (comunidades, bairros, instituições)? Como conviver em territórios culturalmente seguros por meio de uma relação não hierárquica? Como desenvolver práticas sociais e de Educação Popular em Saúde como iniciativa coletiva, não marcada pela dominação intelectual vertical?
Construí este artigo como um ensaio crítico-reflexivo vivencial com base em notas, extratos e reportagens jornalísticas do meu diário autoetnográfico de 2014 a 2023. Baseada em aprendizagens dos seis anos em que morei no Norte do Brasil (1994-2000, e visitas pontuais até 2023), desta vez mergulho no “meu território”66 Lafleur N. La vie traditionnelle du coureur de bois aux XIXe et XXe siècles. Montréal: Léméac; 1973.,77 Assiniwi B. Histoire des indiens du haut et du bas Canada. Mœurs et coutumes des Algonkins et des Iroquois. Montréal: Léméac; 1973., o Canadá, com um olhar de redescobrimento. Há dois espaços-tempos, duas temporalidades: a do momento vivenciado anteriormente em territórios “estrangeiros” e aquela da revisita crítica aos territórios “de origem” do meu próprio país. Em 1996, quando morava nas regiões ribeirinhas no Norte do Brasil, a última escola residencial era fechada no Canadá. Nesse período, como muitos canadenses, eu ignorava a existência dessa política de retirar as crianças indígenas de suas famílias para reeducá-las em escolas ou serem vendidas para famílias brancas [Sixties Scoops]88 Vowel C. Indigenous writes. A guide to first nations, Metis and Inuíte issues in Canada. Winnipeg: Highwater Press; 2016.. O coordenador cultural e gráfico-novelista do projeto de pesquisa Niikaniganaw All my relations99 Laperrière H, Masching R, Bendevis C, Dopler TS, Lyons D, Albert A, et al. “Niikaniganaw (All My Relations) II”: continuing to build capacity for stigma-free and culturally-safe care for indigenous people living with HIV, STBBIs, and intersecting issues in Ottawa-Gatineau. Ottawa: Canadian Institutes of Health Research; 2022., Neal Shannacappo (Nakawe de Rolling River First Nation, Manitoba, vivendo em Ottawa), é um dos sobreviventes desse trauma1010 Schannacappo N. Through the eyes of Asunder. Ontario: Kegedonce Press; 2022. . Quando se trata de ensinar sobre territórios saudáveis e comunidades, vejo a necessidade de conhecer as dimensões sócio-históricas que influenciam nossas práticas.
Talvez haja aqui um objetivo de descrever uma reflexão por um olhar franco-canadense (com forte influência dos movimentos sociais e de Educação Popular em Saúde) para criar técnicas de ensinar/praticar dentro de uma realidade em territórios usados e compartilhados. Eu adiciono as observações com leituras que desencalham uma reflexão posterior com imagens que influenciam o pensamento crítico. O texto se apresenta aos leitores como um exercício de introspeção com horizonte autobiográfico. Com base em observações das realidades cotidianas, eu me questiono sobre o que estou olhando desde as aprendizagens em Educação Popular no Norte e Nordeste brasileiro1111 Laperrière H. O problema metodológico e político de recolher evidências empíricas em regiões arriscadas da realidade amazônica: problematizações para a educação popular em saúde. Rev Temas Educ. 2019; 28(1):212-30. doi: 10.22478/ufpb.2354.7003.2019v28n1.44306.
https://doi.org/10.22478/ufpb.2354.7003.... ,1212 Laperrière H. How can we develop community health nursing practices in contexts of poverty, uncertainty and unpredictability? A systematization of personal experiences. Rev Latino-Am Enferm. 2007; 15(Spec No):721-8. doi: 10.1590/S0104-11692007000700002.
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200700... . O objetivo é sistematizar e problematizar experiências populares em sua relação com o território para, por meio desses contextos, visualizar formas de criar territórios saudáveis.
O movimento como uma forma de epistemologia
O que seria uma postura descolonial na extensão universitária?
Qwo-Li Driskill1313 Driskill Q-L. Theatre as suture: rassroots performance, decolonization and healing. In: Hulan R, Eigenbrod R, editors. Aboriginal oral traditions: theory, practice, ethics. Winnipeg: Gorsebrook Research Institute; 2008. nos ilumine.
A colonização é uma realidade cenestésica: é um ato feito por corpos e sentido por outros corpos. A violência não é um conhecimento intelectual, mas conhecido pelos danos causados à nossa pele, carne, músculos, ossos e espírito. São nossos territórios e nossos corpos que são violados pela colonização.
Se a colonização é uma ferida cenestésica, a descolonização é uma cura cenestésica. Carregamos as feridas do passado em nossos corpos, e é por meio de nossos corpos que encontramos maneiras de consertá-las e continuar nosso estilo de vida. Devemos curar o trauma histórico para ajudar a curar nossas nações e nossos territórios. É em nossos corpos – e como corpos – que contamos nossas histórias e entendemos o que significa ser um indígena decretando a descolonização e a continuidade cultural1313 Driskill Q-L. Theatre as suture: rassroots performance, decolonization and healing. In: Hulan R, Eigenbrod R, editors. Aboriginal oral traditions: theory, practice, ethics. Winnipeg: Gorsebrook Research Institute; 2008..
(p. 155 – tradução livre)
Para ele, o corpo é, portanto, um local central de cura e resistência. Diana Taylor 1414 Taylor D. The archive and the repertoire: performing cultural memory in the Americas. Durham: Duke University; 2003., considera que aprendemos e transmitimos conhecimento por meio das nossas ações materializadas, de nossos aprendizados culturais e das escolhas nas quais atuamos; essa performance funciona como uma episteme, uma forma de saber e não apenas um objeto de análise (p.xvi , td livre do inglês). Driskill1313 Driskill Q-L. Theatre as suture: rassroots performance, decolonization and healing. In: Hulan R, Eigenbrod R, editors. Aboriginal oral traditions: theory, practice, ethics. Winnipeg: Gorsebrook Research Institute; 2008. (p. 156) prossegue propondo que, se descobrirmos maneiras de “conhecer cenestesicamente” o trauma histórico, o poder e a opressão, poderemos entender mais profundamente a natureza das opressões e o impacto da colonização em nossas vidas.
Driskill1313 Driskill Q-L. Theatre as suture: rassroots performance, decolonization and healing. In: Hulan R, Eigenbrod R, editors. Aboriginal oral traditions: theory, practice, ethics. Winnipeg: Gorsebrook Research Institute; 2008. e Taylor1414 Taylor D. The archive and the repertoire: performing cultural memory in the Americas. Durham: Duke University; 2003. qualificam a performance corporal como uma epistemologia-cinestesia; o “movimento”, como um método de produzir conhecimentos. Adotando essa proposta, sigo adiante para “me entender melhor” em meus territórios de opressões e entender minha contribuição para o bem-estar indígena [healing] por meio de um resgate das nossas tradições, histórias e narrativas de colonização.
Driskill1313 Driskill Q-L. Theatre as suture: rassroots performance, decolonization and healing. In: Hulan R, Eigenbrod R, editors. Aboriginal oral traditions: theory, practice, ethics. Winnipeg: Gorsebrook Research Institute; 2008. levanta uma crítica à pedagogia do oprimido. A própria essência da Educação Popular remete às experiências missionárias e educativas com as populações indígenas canadenses. O autor indígena destaca as raízes cristãs de Paulo Freire que, assim como os projetos missionários de conversão, vislumbra a libertação dos povos ensinando-lhes o alfabeto de língua portuguesa, tomando consciência da situação de oprimido para um renascimento.
Abrindo as portas da aculturação e da evangelização, há uma negação das práticas utilizadas pelas comunidades indígenas para a própria sobrevivência cultural nos territórios compartilhados. A proximidade física torna-se essencial para descobrir as formas de sobrevivência e resistência. Se a abordagem de Freire oferece temas geradores, já definidos – muitas vezes eurocêntricos e neodesenvolvimentistas1212 Laperrière H. How can we develop community health nursing practices in contexts of poverty, uncertainty and unpredictability? A systematization of personal experiences. Rev Latino-Am Enferm. 2007; 15(Spec No):721-8. doi: 10.1590/S0104-11692007000700002.
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200700... ,1515 Paiva V. Catholic populism and education in Brazil. Int Review Educ. 1995; 41(3-4):151-75. , a possibilidade de proximidade corporal com populações sem mobilidade social (segundo Milton Santos33 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6a ed. Rio de Janeiro: Record; 1988.) torna-se um movimento de escuta das nossas contradições sociais.
A ideia de movimento certamente pode ser positiva para nos permitir sentir no corpo a experiência de um subgrupo local ao qual não teríamos acesso de outra forma. Afinal, há um desejo de transformação de ambos os lados? Como pensamos e por quais experiências compartilhadas podemos questionar as transformações desejadas em coletivo? Como as nações colonizadoras (país ou região de uma mesma nação) encaram a colonização como um indicador de progresso?
Apesar da proximidade física, o “espírito (atitude) que move” define o tipo de relação. Como exemplo dessa atitude científica colonizadora, peço ao leitor para assistir atentamente à conversa entre o pesquisador (branco, região Sul) e o participante (indígena Inuíte, região Norte) em http://www.isuma.tv/arnaitvideo/charlie-pisuk em Igluulik, Nunavut, Canadá1616 Cousineau MH. Arnait Video Presents: Charlie Pisuk [Internet]. Montreal: Isuma.tv; 2015 [citado 20 Mar 2023]. Disponível em: http://www.isuma.tv/arnaitvideo/charlie-pisuk
http://www.isuma.tv/arnaitvideo/charlie-... .
O entrevistador pergunta por meio de uma ferramenta chamada Barratt Impulsivity Scale [Escala de Impulsividade Barratt], um teste desenvolvido nos Estados Unidos, o mais utilizado no mundo como medida de autorreconhecimento de traços de personalidade impulsiva. Vários familiares de um “sujeito” (Charlie Pisuk) em estudo, conhecido por seus comportamentos instáveis, concordaram em participar da entrevista (com seus nomes omitidos). O entrevistador explica aos participantes que, para os propósitos desta pesquisa “confidencial”, gostariam de ouvir suas respostas para as perguntas com o melhor do seu conhecimento. As respostas possíveis para cada afirmação são: (1) raramente, (2) às vezes, (3) frequentemente, (4) sempre ou (5) não sei. Eu questiono se essa ferramenta e essa forma de entrevistar são realmente adequadas para que o pesquisador (estrangeiro desse território) conheça o Inuíte Charlie Pisuk e saiba como ajudá-lo, efetivamente.
Enfermeiro psiquiátrico, Yvon Lamarche é indígena métis (mestiço) de Anishinaabe e Wendat, de origem escocesa e francesa. Falando do diagnóstico de síndrome de escola residencial, ele se questiona: Quem está doente? É a pessoa que vivenciou o internato ou a população que continua perpetuando a síndrome do internato?1717 Linklater R. Decolonizing trauma work. Indigenous stories and strategies. Manitoba: Fernwood; 2014. (p. 117). A síndrome deveria se aplicar a funcionários públicos, administradores e à sociedade não indígena que estabeleceu o sistema escolar residencial. Que metodologias educativas evitariam a perpetuação do sistema nacional não indígena?
A experiência colonial é vivida por indígenas e não indígenas pertencentes à mesma sociedade. Enraizar-se na perspectiva indígena significa a imersão em recursos culturais que aderem às suas formas tradicionais de aprender e viver1717 Linklater R. Decolonizing trauma work. Indigenous stories and strategies. Manitoba: Fernwood; 2014. (p. 28). Trata-se de se reconectar com o mundo indígena para conhecer sua perspectiva por dentro. As formas indígenas de saber incluem formas de aprender que estimulam “pensar intuitivamente, pensar com o coração, pensar em círculos, entender e usar sonhos, metáforas e símbolos”1717 Linklater R. Decolonizing trauma work. Indigenous stories and strategies. Manitoba: Fernwood; 2014. (p. 28).
Os autores indígenas contribuem significativamente com novos gêneros em pesquisa e publicação. As edições de Arnait1818 Arnait Video Production. Arnait Style: research into traditional and contemporary Inuíte styles of narration [Internet]. Montreal: Isuma.tv; 2009 [citado 20 Mar 2023]. Disponível em: http://www.isuma.tv/arnaitvideo/arnait-style
http://www.isuma.tv/arnaitvideo/arnait-s... desenvolvem um tipo original de pesquisa baseada nos estilos narrativos tradicionais e contemporâneos da cultura indígena Inuíte (http://www.isuma.tv/arnaitvideo/arnait-style ). O website fala sobre inovações associadas à apropriação de ferramentas videográficas. A utilização do docudrama favorece a emergência de temáticas dando voz a múltiplos atores e a várias gerações: os “transmissores de saberes”, que comunicam as tradições da região; os adultos, que vivem em ambos os mundos (o do homem branco e o da cultura tradicional), os jovens, que estão em contato direto com a perspectiva eurocêntrica, que os leva a aprender primeiro as ferramentas dessa cultura nacional antes daquela dos seus avós.
A originalidade do Isuma – coletivo de artistas e a primeira empresa de produção cinematográfica de propriedade inuíte do Canadá – é criar um processo de produção em harmonia com a vida das populações inuítes em cada projeto. Esse processo inclui o respeito à temporalidade e aos espaços cotidianos como os eventos da comunidade, ensinamentos, as épocas de caça e pesca e tradições familiares. A ideia é trabalhar de forma colaborativa para escrever as cenas de cada roteiro, adaptar os roteiros em interação com os atores inuítes moradores desses territórios.
Por que isso se torna uma importante ferramenta de trabalho em outros territórios para além do Norte (Nunavut)? Eis que habitantes dessa região vivem em regiões urbanas de cidades como Ottawa (aproximadamente 3 mil inuítes nessa cidade, a maior população fora do território do Nunavut). Reconhecer o território em suas dimensões socioculturais se torna uma forma de tratar a saúde com consciência de tais dimensões, e também com atenção às formas de imaginários coletivos dessas populações – um imaginário indígena em que, muitas vezes, sociedades não indígenas representam figuras colonizadoras que repudiaram a cultura inuíte e outras culturas indígenas.
Pensando em ação
Convidada para participar de um projeto piloto de segurança cultural, de 2014 a 2018, trabalhei como voluntária em um centro de saúde indígena. Para sentir o clima, participei de uma expedição com um mestre Algonquin das plantas medicinais regionais e de um simpósio sobre cultura como terapia descolonizadora. O coordenador e eu discutimos sobre diferentes formas de compromissos que seriam culturalmente sensíveis. Apesar de já ter convivido por mais de seis anos em comunidades ribeirinhas da região amazônica no Norte do Brasil, desconhecia a cultura indígena do meu território. Haveria um processo de reconhecimento mútuo. Em janeiro de 2014, comecei a frequentar as noites culturais (segundas-feiras, das 17 às 20 horas). Fui convidada a responder espontaneamente às necessidades logísticas do momento para apoiar os eventos culturais realizados por protagonistas indígenas.
As noites culturais indígenas iniciavam-se às 17 horas, e foi lá que comecei a cantar com o Cercle des femmes et tambours. Depois, ajudei a distribuir as refeições coletivas. O protocolo pressupunha que servíssimos os mestres indígenas primeiro, depois as mulheres e as crianças. O coordenador me explicou que deveríamos evitar a replicação do sistema das escolas-residências (organização funcional hierárquica, modo diretivo com ordens, por exemplo); assim, precisava desconstruir o “caminho institucional” (frequente nos serviços públicos e hospitalares).
Nosso dever é experimentar uma outra forma de relação entre nós, apoiando os mestres indígenas no ensinamento das tradições, costumes, artes e lendas nativas. A minha presença como voluntária não era simplesmente para “fazer algo por”, mas sobretudo para me deixar permear e descobrir as práticas que chamaria de “educação popular indígena”, em que incluiria a oralidade, a aprendizagem circular, a história, a historicidade, as narrativas das nossas trajetórias descoloniais.
Experimentei a sofisticação da arte do beading (conta de vidro). Ao fazer com as mãos, preservamos as práticas culturais, as quais têm dimensões espirituais e um mundo simbólico indígena (entre outros, a espiritualidade do lobo – humildade). Aprendi a fazer brincos com agulhas de porco-espinho, construir um tambor e desenhar bijuterias em couro de veado endurecido tradicionalmente. Assim, as relações sociais se transformavam; nos ajudávamos naturalmente e compartilhávamos sabedorias para melhorar nossas práticas artesanais. Isso representou uma distinta área de qualificações a ser desenvolvida por mim como acadêmica.
As práticas requerem uma postura de compartilhamento das experiências pessoais. Como alguém de língua materna francesa, a minha integração a um ambiente indígena predominantemente de língua inglesa, representou um desafio linguístico para ambos os lados. Senti que os participantes indígenas entendiam a limitação na comunicação oral. Alguns membros indígenas eram trilíngues (algonquin, francês, inglês).
O coletivo de artesãs facilitou conversas e compartilhamentos. Ainda que o miniprojeto fosse uma tarefa individual – confeccionar mocassins –, observei que mulheres, homens, crianças, dois-espíritos – jovens e velhos – “trabalhavam juntos”. Alguns, como eu, tinham mais dificuldade em “fazer” os trabalhos manuais – a destreza manual é valorizada como forma de contemplação. Ao final de cada noite cultural, nós fechávamos o encontro juntos com cantos e tambores. Alguns dias, continuei a conversa no ônibus de volta para casa. A experiência corporal transformou minha visão das populações indígenas canadenses.
Apesar dessa proximidade periódica, a relação manteve uma ambiguidade difícil de superar para que nós pudéssemos nos sentir, de fato, completamente iguais. Sendo localizadas em bairros menos privilegiados, as organizações de base comunitária como essa têm recursos limitados e financiamento inconsistente. São em grande parte os voluntários locais que oferecem serviços psicossociais, culturais e de saúde. Poucos estudos discutem as habilidades de solidariedade, de alegria e de partilha que as populações desses territórios urbanos criam. Estratégias engenhosas (astúcia) ainda são rejeitadas como formas positivas de inteligência prática em oposição à racionalidade científica.
Mendel1919 Mendel G. L’acte est une aventure. Paris: La Découverte; 1998. descreveria as estratégias engenhosas como uma inteligência inventiva e criativa, uma metáfora para o conhecimento indígena. São as múltiplas habilidades úteis à vida, o domínio do construtor em sua arte, os truques de mágica, o uso de filtros e ervas medicinais, e as interações estratégicas para enfrentar os desafios cotidianos da pobreza socioeconômica. Meneses2020 Meneses MP. Subjects or objects of knowledge? In: Santos BS, organizador. Cognitive justice in a global world. Laham: Lexington Book; 2007. p. 363-74. critica a intenção de transmitir os conhecimentos ditos científicos, assumindo-os como o ponto culminante do processo de domesticar; sendo outras referências toleradas como subalternas, conhecimento local que pode ser incluído num corpus universal de conhecimentos legitimados. Uma grande limitação da formação profissional é a censura provocada pela linguagem acadêmica e teórica (p. 354). A linguagem não consegue explicar completamente os movimentos físicos do corpo humano1919 Mendel G. L’acte est une aventure. Paris: La Découverte; 1998. (p. 95). Ao destruir o sujeito local, o processo aniquila tanto os conhecimentos como as formas culturais de conhecer. Mendel diria que o quadro teórico censura a experiência artesanal da inteligência Métis (deusa grega da astúcia).
Percebo que a aquisição de consciência necessita práticas corporais (cinéticas) semelhantes às do artesão: a habilidade de fazer bem as coisas, em vez de correr para publicar sobre isso. O sociólogo Richard Sennett2121 Sennett R. The Craftsman. New Haven: Yale University Press; 2008. (p. 84) considera que a tecnologia tem uma dimensão cultural e que desenvolvemos técnicas para levar uma determinada forma de vida. Segundo ele, devemos nos concentrar na conexão íntima entre nossas mãos e nossa cabeça. Os mestres indígenas motivam práticas de segurança cultural; devemos cultivar a nossa destreza manual para reproduzir as formas artesanais tradicionais, sentir nos dedos um movimento mais amplo, mesmo coletivo, de resistência e de descolonização.
Os ensinamentos orais sobre práticas artesanais ajudam a fundamentar as habilidades culturais em realidades tangíveis. A cultura faz parte do tratamento e da cura histórica coletiva (indígenas, não indígenas). Como afirma Sennett2121 Sennett R. The Craftsman. New Haven: Yale University Press; 2008., o artesanato tem o valor positivo das variações, imperfeições e irregularidades do trabalho feito à mão. A educação acadêmica se beneficiaria ao reconhecer esses vínculos entre mãos, mente, técnica e cultura. Aprendemos juntos um senso de cooperação com poucas palavras. A observação prolongada é a principal ferramenta para uma compreensão e uma aprendizagem mais profundas das práticas culturais.
Na verdade, é o próprio corpo que se torna uma ferramenta e um meio2222 McCall S. First person plural: aboriginal storytelling and the ethics of collaborative authorship. Vancouver: UBC press; 2011. (p. 99) para transmitir as sabedorias locais. A transmissão transcultural vem em formas de expressões polivocais e cinésicas. As ferramentas tecnológicas recriam relações de poder entre “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” tecnologicamente. A possibilidade de escrever uma performance e uma prática dá poder a quem escreve essa prática, embora esse que escreve não seja necessariamente o autor do ato descrito. Se quisermos restaurar a reapropriação do agir em um ato de poder1919 Mendel G. L’acte est une aventure. Paris: La Découverte; 1998., devemos fazer parte da performance (física, corporal e cinésica).
Fazendo eco às palavras de McCall2222 McCall S. First person plural: aboriginal storytelling and the ethics of collaborative authorship. Vancouver: UBC press; 2011., adaptadas à minha proposta de movimento, nessa posição há possibilidades de explicar as diferentes camadas de narração que descrevem as complexas interações entre os autores das narrativas, aqueles que as observam e escutam e o contexto em que aparecem. Então, como estimular as habilidades de práticas culturais na formação de profissionais em ciências da saúde quando há um prazo limitado? Como alcançar um profundo processo indígena de descolonização quando isso toca nos vínculos afetivos sócio-históricos?
Tradição oral indígena: captando saberes populares em tempo real
Respondendo às demandas comunitárias de sistematizar os ensinamentos, anoto os ensinamentos dos mestres indígenas enquanto eles “ensinam”. O pesquisador geralmente convida o participante a falar. Para isso, ambos precisam parar no tempo – congelar o período do diálogo. A minha postura pode parecer ridícula: eu tomo nota das informações ajudando a própria organização indígena. Não sei a profundidade da minha decisão, mas tenho a sensação de que é a certa. Ouço no ambiente natural de cura indígena como uma professora tradicional. Um grupo de mulheres requer a sua intervenção educativa e ela responde às suas necessidades, oferecendo-lhes gratuitamente informação culturalmente adequada. O tema da educação pré-natal me interessa muito; assim, todos nos colocamos em posição de escuta, diálogo e interesse.
Reflito sobre a consciência ética do impacto das “distâncias intersubjetivas” entre investigadores e participantes, bem como sobre as temporadas impostas (prazo delimitado para um projeto de extensão). Há custos para as distâncias excessivas, sentidas como indiferença ou preconceitos, mas também para as proximidades excessivas, como intrusões desnecessárias ou abusos da privacidade. Além disso, as durações impostas pelo pesquisador perturbam o ritmo das relações colaborativas ou de ajuda – intervenções que se tornaram rotineiras, cortes abruptos em relações estabelecidas apenas com base nas necessidades da pesquisa. Com uma relação de confiança estabelecida no dia a dia, informações detalhadas podem se tornar uma faca de dois gumes para quem informa seus costumes e vida pessoal.
Agir é pensar
Na América Latina, um dos autores privilegiados da sistematização de experiências, Oscar Jara Holliday2323 Holliday OJ. Dilemas e desafios da sistematização. San Pedro: Centro de Estudos; 2001., discutiu o desafio político de aprender com nossas práticas. Há algo de rebelde em sistematizar experiências e práticas de movimentos sociais que tentam reivindicar direitos coletivos da sociedade civil na tomada de decisões de projetos e programas governamentais. Em outras palavras, a sistematização das experiências tem um caráter epistemológico que reformula a questão da objetividade e da subjetividade. Como ele a conceitua, a riqueza da sistematização está em objetivar criticamente o que vivenciamos diariamente para podermos melhorar o futuro. O exercício de interpretar criticamente restaura agência àqueles que recriam práticas e renovam a produção teórica do conhecimento. Um dos desafios é conseguir ir além das simples narrativas e descrições das experiências: é reinterpretá-las para identificar as contradições e tensões.
Retomando a ideia do Jara Holliday2323 Holliday OJ. Dilemas e desafios da sistematização. San Pedro: Centro de Estudos; 2001., há certamente o desafio político de repensar o método científico. Gostaria de contribuir na compreensão do fato de haver uma impossibilidade de se criar um referencial teórico, mesmo critico, que dê conta de interpretar plenamente as experiências de quem “faz as práticas”. Em outras palavras, em vez de partir da certeza de que o pesquisador “sabe”, ele terá que reconhecer humildemente o contrário diante das ações realizadas por outros. O reposicionamento vai além do simples pensamento, é um reposicionamento físico e hierárquico do pesquisador diante das ações estudadas. Assim, a transferência de interpretação pressupõe uma desiherarquização dos mecanismos de produção de conhecimento e formas autoritárias de fazer pesquisa.
Outros autores falaram sobre descolonização; gostaria de enfatizar ainda mais o fato de que a humildade requer a reconstrução de hábitos em nossas práticas. Por exemplo, como convidar os participantes, com as melhores intenções de participação, para se sentarem à nossa mesa e responderem às nossas intenções de investigação? As práticas habituais são de conduzi-los a se sentarem à ponta de uma mesa, numa sala confortável onde suas respostas serão gravadas. E o pesquisador, como se veste? Que postura ele adota? Se os corpos fornecem informações sobre experiências passadas, de que maneira a postura física do pesquisador lembra suas próprias experiências passadas de submissão ou de autoridade?
Daschuk2424 Daschuk J. Clearing the plains: disease, politics of starvation, and the loss of aboriginal life. Regina: U of Regina Press; 2013. argumenta que a teoria da dependência, de André Gunder Frank em “Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina”, em 1967, erra ao acentuar as desigualdades causadas pelas potências coloniais para se tornar um mundo desenvolvido, deixando um terceiro mundo na periferia do sistema colonizador. Isso recria uma imagem persistente de subjugação dos povos das Primeiras Nações ao contexto global. Estudos mostram que eram os europeus que dependiam do conhecimento indígena local para sua sobrevivência2424 Daschuk J. Clearing the plains: disease, politics of starvation, and the loss of aboriginal life. Regina: U of Regina Press; 2013..
Estudando as mudanças territoriais, econômicas e demográficas, Daschuk2424 Daschuk J. Clearing the plains: disease, politics of starvation, and the loss of aboriginal life. Regina: U of Regina Press; 2013. apresenta mapas que delineiam rotas de comércio de peles, locais de colonização de territórios indígenas durante o século 19. Esses territórios geográficos evidenciam a presença das populações indígenas que existiam antes da chegada dos colonos, mas também dos movimentos forçados nas planícies canadenses. Tratados sobre as reservas aborígenes permanecem ativos até hoje, de forma que influenciam o aparato dos serviços sociais e de saúde. Mesmo com as intenções benevolentes da descolonização, a relação assimétrica de poder continua enquanto não houver o reconhecimento do território no convívio da natureza como espaço vital para o cuidado, como medicina indígena.
Reenquadrando o pensamento de Linda Tuhwai Smith2525 Smith LT. Decolonizing methodologies: research and indigenous peoples. Dunedin: University of Otago Press; 1999., a historiadora da arte e curadora inuíte Igloliorte2626 Igloliorte H. “Pas de colonialisme dans notre histoire”. Les pratiques de décolonisation dans l’art indigène. In: Igloliorte H. Décolonisez-moi. Ottawa: Ottawa Art Gallery; 2012. p. 28-38. nos lembra que:
[...] a ênfase é necessária porque os paradigmas históricos das práticas pedagógicas, de pesquisa e divulgação são invariavelmente inadequados para descrever ou apresentar a complexidade da cultura e das práticas artísticas indígenas. (p. 31)
Os territórios locais oferecem um espaço onde ocorre a determinação social da saúde2727 Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud coletiva). Rev Fac Nac Salud Publica. 2013; 31 Supl 1:13-27.. Milton Santos33 Santos M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6a ed. Rio de Janeiro: Record; 1988. descreveu o território usado que permite a produção de solidariedade como possibilidades vitais para o espaço geográfico e sua historicização. Esse espaço reflete relações afetivas, sociais, históricas e culturais. Mas a integração em comunidade, mesmo com as boas intenções de desenvolver territórios saudáveis, não garante a atitude descolonial. As mudanças de atitude exigem o deslocamento das concepções sociais e das determinações sociais da produção da ciência.
Conclusões
Neste artigo, discuto práticas de Educação Popular no desempenho de territórios saudáveis. Indo além das teorias sobre o que se deve fazer, o artigo relata as misturas de experiências vivenciadas com leituras para uma autocrítica. No caso da Educação Popular acadêmica, o deslocamento material e simbólico significa a entrada de um estudante ou professor “não habitante e longe da sua moradia” em um território de populações outras, mais distantes geograficamente, culturalmente e economicamente. Aqui, tento imaginar como seria pensar as práticas inseridas exatamente onde alguém vive, em um território compartilhado ao seu redor, mesmo sendo um acadêmico ou um pesquisador universitário na área da Saúde. E como fazer desse território um espaço de reflexão cotidiana que possa alimentar as práticas educativas.
Os próximos desafios serão de conceber tais territórios saudáveis como uma convivência de proximidade mútua. Talvez seja o tempo de ir além das “expedições coloniais” de um bairro para outro, de uma classe social para outra. Quando uma barraca de famílias itinerantes se constrói no seu jardim, que postura a professora e pesquisadora deve tomar concretamente? E quando há uma pessoa indígena que pede uma ajuda alimentar, como buscar uma solução nesse território dito saudável? Talvez as respostas sobre os territórios saudáveis venham daqueles que os habitam.
Territórios saudáveis e saúde, qual território devo descrever? Devo sempre viajar ao exterior para descobrir um território? Meus colegas indígenas Anishnaabee, Algonkin, Haudenosaunee me interpelam: Você deve se pôr em algum lugar e, ao se conectar à terra, também descobre seus ancestrais. Além das minhas origens no Canadá (meu avô trabalhou em companhias de madeira e parece que aprendeu dos povos Atikamek e Abenaki77 Assiniwi B. Histoire des indiens du haut et du bas Canada. Mœurs et coutumes des Algonkins et des Iroquois. Montréal: Léméac; 1973. as formas de sobrevivência66 Lafleur N. La vie traditionnelle du coureur de bois aux XIXe et XXe siècles. Montréal: Léméac; 1973. nos territórios florestais), percebo um vai e vem geográfico e de espírito com minhas experiências no Norte e Nordeste brasileiros. Nos territórios, crescem as fissuras das classes sociais, as migrações forçadas, os deslocamentos geográficos. Talvez seja o momento de formular maneiras de co-construir um território saudável em movimento.
Agradecimentos
A Mme Fernanda de Oliveira Carvalho, por seus comentários construtivos na primeira revisão do artigo em português, mestranda do programa Film and Moving Image Studies na Mel Hoppenheim School of Cinema, Concordia University (Montreal, Quebec, Canadá).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
12 Abr 2023 - Aceito
04 Nov 2023