Resumos
O artigo analisa como os marcadores raça, gênero, classe social e espacialidade se interseccionam e se refletem nas tomadas de decisão em saúde, mais especificamente na (não) vacinação infantil. Trata-se de pesquisa qualitativa conduzida nas cidades de Florianópolis (SC) e São Luís (MA), Brasil, com famílias com crianças de até seis anos de idade. Neste artigo, examinam-se, por meio de análise temática, as narrativas das/dos 19 responsáveis de Florianópolis que optaram por não vacinar total ou parcialmente a(s) criança(s) sob sua responsabilidade. Gênero revela-se um importante marcador na tomada de decisão no âmbito intrafamiliar, enquanto classe social, raça e espacialidade surgem como importantes marcadores na percepção de quem são os “nós” que não precisam das vacinas e os “outros” que precisam. Os achados são discutidos pelo referencial da interseccionalidade e de estudos teóricos sobre branquitude e parentalidade neoliberal.
Palavras-chave
Vacinação; Hesitação vacinal; Enquadramento interseccional; Pesquisa qualitativa
El artículo analiza cómo los marcadores de raza, género, clase social y espacialidad se cruzan y se reflejan en las tomas de decisión en salud, más específicamente en la (no) vacunación infantil. Se trata de una investigación cualitativa realizada en las ciudades de Florianópolis (Estado de Santa Catarina) y São Luís (Maranhão), Brasil, con familias de niños de hasta seis años de edad. En este artículo se analiza, por medio de análisis temático, las narrativas de los 19 responsables de Florianópolis que optaron por no vacunar total o parcialmente a los niños bajo su responsabilidad. El género se revela como un importante marcador en la toma de decisión en el ámbito intrafamiliar, mientras que la clase social, raza y espacialidad surgen como importantes marcadores en la percepción de quiénes son los “nosotros” que no necesitan las vacunas y los “otros” que las necesitan. Los hallazgos se discuten a partir del referencial de la interseccionalidad y de estudios teóricos sobre la blanquitud y la parentalidad neoliberal.
Palabras clave
Vacunación; Titubeo con relación a la vacuna; Encuadramiento interseccional; Investigación cualitativa
Introdução
Os questionamentos e a resistência às vacinas são tão antigos quanto a própria prática da vacinação e se relacionam diretamente com o contexto histórico, social e cultural de cada tempo e localidade11 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.. Devido à preocupação com o cenário crescente de desconfiança e rechaço às vacinas mundialmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem, especialmente na última década, dando cada vez mais atenção ao tema22 World Health Organization. Report of the SAGE working group on vaccine hesitancy [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: https://www.who.int/immunization/sage/meetings/2014/october/1_Report_WORKING_GROUP_vaccine_hesitancy_final.pdf
https://www.who.int/immunization/sage/me... ,33 World Health Organization. Behavioural and social drivers of vaccination: tools and practical guidance for achieving high uptake [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/354459
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... .
Em 2014, a OMS define “hesitação vacinal” como o atraso ou a recusa em receber as vacinas preconizadas, apesar de sua disponibilidade22 World Health Organization. Report of the SAGE working group on vaccine hesitancy [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: https://www.who.int/immunization/sage/meetings/2014/october/1_Report_WORKING_GROUP_vaccine_hesitancy_final.pdf
https://www.who.int/immunization/sage/me... . Por meio de críticas e olhares especialmente das Ciências Sociais em Saúde, o conceito foi substituído em 2022, passando a ser definido como “um estado motivacional de conflito ou oposição à vacinação; isso inclui intenções e vontades”33 World Health Organization. Behavioural and social drivers of vaccination: tools and practical guidance for achieving high uptake [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/354459
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... (p. viii).
A história das práticas de vacinação no Brasil é indissociável da própria história de formação do país: as doenças e, consequentemente, as vacinas, ocuparam diversos e importantes lugares desde a constituição da população brasileira até a reorganização das relações de trabalho no período pós-abolição11 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.. No tempo presente, apesar de considerado uma referência mundial em “cultura de imunização” graças ao sucesso do Programa Nacional de Imunizações (PNI), o país vem enfrentando um cenário de queda acentuada das coberturas vacinais44 Barbieri CLA. Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014..
Embora cada vez mais os órgãos nacionais e internacionais de saúde destaquem a necessidade de compreender os contextos sociais, políticos e econômicos relacionados à hesitação vacinal, os instrumentos de pesquisa e guias práticos para avaliação desse fenômeno focam buscar aspectos como crenças e receios, chamados de “motores” da hesitação vacinal33 World Health Organization. Behavioural and social drivers of vaccination: tools and practical guidance for achieving high uptake [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/354459
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... . Porém, as dimensões institucionais e estruturais que moldam as percepções e comportamentos – ou a forma de ser e estar no mundo – também desempenham importante papel nas tomadas de decisão em saúde.
Estudos de abordagem antropológica55 Sobo EJ. Theorizing (vaccine) refusal: through the looking glass. Cult Anthropol. 2016; 31(3):342-50. ,66 Moulin AM. A hipótese vacinal: por uma abordagem crítica e antropológica de um fenômeno histórico. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2003; 10 Supl 2:499-517. têm interrogado a perspectiva triunfalista da Medicina acerca da vacinação e proposto mudança de ênfase das doenças e das resistências à vacinação para as pessoas, os ambientes, as relações de poder e os processos de aceitabilidade. Outra abordagem promissora na discussão recente é a interseccionalidade que, ao concentrar-se nas relações entre processos mutuamente constituídos que criam as desigualdades, permite examinar como as estruturas sociais e as dinâmicas institucionais operam para produzir vantagens e privilégios sistêmicos77 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. e seus impactos nos processos de hesitação vacinal.
A interseccionalidade vem sendo cada vez mais empregada como ferramenta analítica no campo da saúde, pois permite compreender de que forma a posição ocupada na teia dos marcadores sociais define também um modo de vivenciar processos em saúde. Entendemos marcadores sociais da diferença como construções sociais que, articuladas, produzem maior ou menor exclusão social, dependendo de que posição os sujeitos ocupam nas matrizes de classificação atuando na formação das identidades sociais88 Couto MT, Oliveira E, Separavich MAA, Luiz OC. La perspectiva feminista de la interseccionalidad en el campo de la salud pública: revisión narrativa de las producciones teórico-metodológicas. Salud Colect. 2019; 15:e1994. . No caso do Brasil, sua história específica de escravidão, colonialismo e ditadura “moldou padrões distintos de relações interseccionais de poder quanto a raça, gênero e sexualidade”77 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021. (p. 42).
No percurso analítico deste manuscrito, olhamos com lentes interseccionais as identidades que antes eram tidas como universais – a branquitude e as masculinidades, por exemplo. Portanto, a interseccionalidade será aqui utilizada como lente analítica ao avesso, isto é, apontada não para o lugar de desvantagem – como recorrentemente utilizada na literatura –, mas sim para os grupos sociais que experimentam vantagens simbólicas e práticas na teia social brasileira.
Sociedades multirraciais, cuja história foi fundada sob as égides do imperialismo e do colonialismo europeus, vão necessariamente refletir, em sua hierarquia social, a racialidade como diferenciador fundamental77 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.. Apesar de a associação entre desvantagens materiais e o passado de escravização de povos negros e indígenas estar bem estabelecida, os estudos sobre raça, até pouco tempo, desconsideravam as vantagens materiais e simbólicas das quais pessoas brancas desfrutam devido ao mesmo passado histórico99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.. O branco era até então tido como modelo universal de humanidade, no que se chamou de “fenômeno da transparência”, ou seja, a não racialização da pessoa branca1010 Silva PE. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In: Müller TMP, Cardoso L, organizadores. Branquitude - Estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris; 2017. p. 19-32. .
Em sistemas baseados na diferença, essas vantagens materiais e simbólicas moldam tanto os que as detêm quanto os oprimidos por elas1111 Frankenberg R. A miragem de uma branquitude não marcada. In: Ware V, organizador. Branquidade - Identidade branca e multicuturalismo. Rio de Janeiro: Garamond; 2004. p. 307-38. . Estudos nacionais e internacionais já apontaram quanto as posições de vantagem simbólica na teia social – representadas, por exemplo, por alta renda e escolaridade – se refletem nos processos de tomada de decisão em (não) vacinar crianças1212 Barbieri CLA, Couto MT. Decision-making on childhood vaccination by highly educated parents. Rev Saude Publica. 2015; 49:1-8. ,1313 Kuan C-I. Vaccine hesitancy and emerging parental norms: a qualitative study in Taiwan. Sociol Health Illn. 2022; 44(3):692-709. .
Utilizaremos aqui os estudos sobre branquitude como referencial e lente analítica para compreender a subjetividade das narrativas, entendendo que a colonização e o racismo se refletiram não só na subjetividade de negros, mas também, e sobretudo, na de brancos1010 Silva PE. O conceito de branquitude: reflexões para o campo de estudo. In: Müller TMP, Cardoso L, organizadores. Branquitude - Estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris; 2017. p. 19-32. .
A branquitude é aqui compreendida como uma posição social de privilégio (econômico, político e racial) continuamente experimentado; um lugar ocupado por indivíduos que, devido às consequências do colonialismo e do imperialismo, desfrutam de vantagens materiais e simbólicas, ainda que essa racialidade seja não nomeada e tida como neutra99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.,1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. . É um lugar pelo qual as pessoas que detêm tais vantagens olham a si e aos outros, e cujas práticas são tão naturalizadas como universais que são não nomeadas e não associadas a esse lugar de vantagem estrutural99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022.,1111 Frankenberg R. A miragem de uma branquitude não marcada. In: Ware V, organizador. Branquidade - Identidade branca e multicuturalismo. Rio de Janeiro: Garamond; 2004. p. 307-38. .
Neste trabalho, objetivamos analisar de que forma os marcadores de raça, gênero, classe social e espacialidade se interseccionam e se refletem nas tomadas de decisão em saúde, mais especificamente na (não) vacinação de crianças pequenas. Reforçamos o caráter inédito desse olhar no campo da saúde e da vacinação, pois não foram encontrados estudos semelhantes ao aqui proposto em bases indexadas disponíveis.
Metodologia
Trata-se de estudo qualitativo visando explorar as opiniões, significados e compreensões sobre vacinação infantil de adultos responsáveis por crianças de até 6 anos, por meio da técnica de entrevista em profundidade1515 Fontana A, Frey JH. The interview: from structured questions to negotiated text. In: Denzin N, Lincoln Y, organizers. Handbook of qualitative research. 2th ed. Thousand Oaks: Sage Publications; 2004. p. 61-106.. O material empírico que dá suporte à análise apresentada é parte de um estudo maior conduzido em duas capitais brasileiras, Florianópolis (SC) e São Luís (MA), e contou com 48 responsáveis em 33 famílias (19 responsáveis em São Luís e 29 em Florianópolis).
Foram incluídas famílias que tivessem, sob sua responsabilidade, ao menos uma criança de até 6 anos de idade. Foram entrevistadas famílias com diferentes opiniões e comportamentos em relação à vacinação da(s) criança(s): aquelas que vacinaram integralmente, aquelas que selecionaram algumas vacinas ou postergaram/fizeram um calendário próprio e aquelas que não vacinaram com nenhuma vacina do calendário regular. Considerando-se que na pesquisa de campo não foi localizada nenhuma família hesitante às vacinas em São Luís com esses critérios, enquanto em Florianópolis 12 famílias eram hesitantes, delineamos a análise aqui apresentada com base apenas no material empírico das famílias de Florianópolis, totalizando 19 narrativas de cuidadores.
Buscou-se entrevistar separadamente duas pessoas por família, consideradas como as duas principais responsáveis pela criança. Além das famílias monoparentais (nas quais apenas uma/um responsável foi entrevistado), em algumas outras famílias também só foi possível acessar uma/um dos responsáveis (em geral, a mãe), seja por não termos conseguido retorno às tentativas de contato com o outro responsável (pai), seja por indisponibilidade dele. Também privilegiamos a diversidade de características sociodemográficas, visando contemplar famílias de diferentes classes sociais, grupos raciais, escolaridades e vivendo em diferentes áreas das respectivas cidades.
Quanto ao quesito raça/cor, utilizamos a autodeclaração. Quanto à classe, devido à complexidade inerente à categorização, utilizamos, como ponto de partida, informações sobre escolaridade e a ferramenta Critério de Classificação Econômica Brasil da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), que posiciona os indivíduos em estratos sociais segundo padrões de consumo e posse de bens. Com essa classificação, no início das entrevistas, buscamos acessar a autodeclaração dos participantes quanto à sua posição de classe social. Essa categoria, portanto, foi considerada como categoria relacional que posiciona os indivíduos os qualificando principalmente pela distribuição desigual de bens econômicos, divisão preferencial de prerrogativas políticas e diferenciação discriminatória de valores culturais1616 Bourdieu P. Capital simbólico e classes sociais. Novos Estud Cebrap. 2013; 96:105-15. .
A captação dos participantes foi feita por meio do procedimento de “bola de neve”, estratégia que se mostra apropriada para a identificação de populações de difícil acesso1313 Kuan C-I. Vaccine hesitancy and emerging parental norms: a qualitative study in Taiwan. Sociol Health Illn. 2022; 44(3):692-709. , como famílias que selecionam, postergam ou não vacinam seus filhos.
Os entrevistados iniciais foram famílias sem relação com as pesquisadoras, indicadas por pessoas de seus círculos pessoais e profissionais. Pelas indicações iniciais e segundo os estratos sociais considerados, foi solicitada a cada família a indicação de outras famílias para participar do estudo.
A produção dos dados empíricos deu-se por meio de entrevistas em profundidade, cujo roteiro, predefinido e testado, está disponível como material suplementar. Em Florianópolis, o campo ocorreu entre março e junho de 2021 e foi conduzido pela pesquisadora executante e primeira autora do artigo. O número final de entrevistados foi definido por critério de saturação, isto é, encerrou-se o campo no momento em que se constatou que, dele, não emergiam mais fatos ou unidades de sentido novo1717 Francis JJ, Johnston M, Robertson C, Glidewell L, Entwistle V, Eccles MP, et al. What is an adequate sample size? Operationalising data saturation for theory-based interview studies. Psychol Health. 2010; 25(10):1229-45. .
Devido à pandemia de Covid-19, todas as entrevistas de Florianópolis ocorreram em ambiente virtual na plataforma Zoom®. A duração média das entrevistas foi de 61 minutos. Todas foram gravadas na íntegra e transcritas pela pesquisadora executante. Na sequência, realizamos conferência de fidedignidade das falas.
O processo de análise temática foi guiado pela perspectiva da interseccionalidade baseada nos pressupostos de Hancock1818 Hancock AM. Intersectionality as a normative and empirical paradigm. Polit Gend. 2007; 3(2):248-54. , que prevê considerar os marcadores sociais relevantes que emergem do empírico e as relações variáveis entre eles. Utilizou-se a técnica de categorização iterativa proposta por Neale1919 Neale J. Iterative categorization (IC): a systematic technique for analysing qualitative data. Addiction. 2016; 111(6):1096-106. . Após uma leitura imersiva das transcrições, destacando as unidades de significado, listaram-se os códigos. Uma planilha eletrônica do software Microsoft Excel® foi usada para listar os códigos, após a abstração dos relatos dos participantes, e agrupar os códigos em categorias, das quais emergiram os temas. Tal processo foi inicialmente realizado pela primeira autora, com posterior verificação e validação de cada uma das demais autoras.
A seguir, foi produzida uma primeira síntese interpretativa segundo a expressão dos marcadores sociais que emergiram nos temas, destacando a força de articulação entre eles segundo os parâmetros de vantagens e desvantagens que operam. Realizamos a síntese final à luz do objetivo proposto, da literatura sobre o tema/objeto e do referencial teórico da interseccionalidade. A pesquisa mais ampla foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em cumprimento aos preceitos das Resoluções do Conselho Nacional de Saúde do Brasil de n. 510 de 2016 e 466 de 2012, e aprovado sob o CAAE n. 37536320.2.0000.0068.
Resultados
Os resultados aqui apresentados são fruto da análise das entrevistas conduzidas em Florianópolis (SC) com 12 famílias (19 responsáveis), tendo todas elas postergado ou não vacinado (total ou parcialmente) as crianças sob sua responsabilidade, por decisão própria, apesar da disponibilidade das vacinas. Esses responsáveis eram mães (n = 11) e pais (n = 8); em sua maioria autodeclarados brancos (n = 16), pertencentes aos estratos socioeconômicos A e B (n = 14), com nível superior ou pós-graduação (n = 12). Uma entrevistada autodeclarou-se amarela, um não quis declarar sua raça/cor e um declarou-se negro (pardo). O Quadro 1 apresenta a caracterização dos entrevistados.
Nós: a dinâmica intrafamiliar atravessada pelo gênero e posição social/trabalho e renda
A família revelou-se um espaço rico para a análise das dinâmicas de gênero. Considerando que as duas pessoas consideradas as principais responsáveis foram convidadas a participar do estudo, frequentemente eram uma mulher/mãe e um homem/pai.
Por mais que, em geral, os pais e as mães entrevistados reforcem a participação de ambos nas tarefas diárias e naquelas relacionadas à saúde, o papel de organização e controle das demandas da casa e da criança esteve sob responsabilidade da mulher/mãe:
Normalmente quem toma mais a frente desses assuntos [relacionados à saúde] é a [mãe], que tá mais conectada com isso, né? Eu me sinto como pai menos conectado com isso.
(F-H-09.Pai – 53a, branco, estrato B2)
Eu. Eu assumo mais [as demandas de saúde], a guarda é compartilhada, mas eu assumo mais [...] também eu que buscava qual pediatra, às vezes ele não concordava porque ‘vai pagar isso tudo?’ [...] mas busco ouvir a opinião dele, não deixar… ignorar, né? Faço o meu melhor para honrar a paternidade dele, que ele também tem o direito de opinar.
(F-H-12.Mãe – 34a, amarela, estrato B2)
Frequentemente, essa divisão de papéis foi justificada pelo trabalho: a divisão em geral foi baseada no papel do homem como aquele que dedica mais tempo aos trabalhos não domésticos, comparado ao das mulheres, mesmo quando elas também possuíssem empregos/profissões.
Nesse primeiro momento eu lembro que a gente dividia, mas não era igualitário, [...] eu ficava muito mais imerso nos meus trabalhos. E aos poucos ela [mãe] foi sentindo a grande necessidade de ter que trabalhar [...]. Isso pra mim foi um pouco difícil porque eu ia ter que dividir muito o meu tempo, que pra mim já era pouco, mas a gente acabou entrando numa divisão, enfim né, mais igualitária possível.
(F-H-08.Pai – 26a, branca, estrato C2)
Os relatos sobre o processo de tomada de decisão em relação à não vacinação também trazem elementos importantes para a discussão de gênero: em geral, esse percurso ocorre de maneiras diferentes a depender se a opção por não vacinar parte do homem/pai ou da mulher/mãe. A temática da não vacinação partiu mais comumente das mulheres/mães, que acessavam informações sobre as vacinas em seus círculos sociais e estudos sobre a gestação e a maternidade. Nessas famílias, o homem, em geral, foi um consumidor passivo das informações trazidas ativamente pelas parceiras, culminando em uma concordância mútua.
E aí cheguei pra ele [pai da criança] [...] e dei meio que um diagnóstico pra ele do meu estudo. E sempre perguntava “e aí você concorda?” [...] A pesquisa partia mais de mim. Mas alguma coisa ou outra eu sempre trazia pra mostrar pra ele, pra ele acreditar mais no que eu tava falando, sabe?
(F-H-07.Mãe – 30a, branca, estrato C2)
Nos poucos casos em que a temática da não vacinação partiu do homem/pai, o processo se deu de forma menos dialógica, havendo discordância parcial ou total por parte da mulher/mãe. Note-se que dois dos três homens/pais que encabeçaram a decisão por não vacinar são estrangeiros.
Começou no pré-natal, que ele [homem/pai] não queria que ela tomasse vitamina K quando nascesse e tem a BCG, que toma quando nasce, que ele não queria. Mas eu achei que ele não fosse ser tão duro assim, eu achei que ele ia ceder [...]. Mas aí foi horrível... foi assim ó muito traumático. A médica proibiu [saída da criança do hospital], o [pai] não cedeu, ninguém cedia e a médica chamou o Conselho Tutelar [para, respira, voz embarga um pouco] e obrigou que a [bebê] tomasse a vacina. E assim começou um período muito difícil das nossas vidas.
(F-H-05.Mãe – 42a, branca, estrato B2)
No caso de casais discordantes em relação à vacinação, independentemente de qual dos dois é pró ou contra, foram as mulheres/mães que mencionaram um receio de que algo aconteça com a criança por não ter sido seguida a vontade do pai/homem:
Eu só penso que assim, não pode acontecer nada com ela, porque qualquer coisa que acontecer vai ser culpa da vacina.
(F-H-05.Mãe – 42a, branca, estrato B2)
Os outros: pertencimentos sociais atravessados por classe e raça
A tomada de decisão por (não) vacinar mostrou ser também um reflexo dos pertencimentos sociais de cada família. Isto é, a posição que cada família ocupa nas estruturas de classe social, raça e espacialidade, por exemplo.
A premissa geral que orientou os discursos sobre a relativização da vacinação foi a da individualidade. Assim, o contexto particular e as condições nas quais a família/criança vive devem ser levadas em consideração quando da decisão de vacinar ou não. Chama a atenção, ainda, a menção ao papel importante de profissionais de saúde nessa relativização, orientando as famílias sobre quais vacinas (não) tomar a depender de sua condição socioeconômica.
O médico explicou o seguinte: “olha, essa vacinação ela é muito direcionada a comunidades assim que têm uma carência muito grande de saneamento básico, né? Que você fica em contato realmente assim com animais peçonhentos”.
Em geral, esse aspecto se expressa nas narrativas sobre aquilo a que a família tem acesso: qualidade de vida (alimentação, horas de sono e atividade física, por exemplo), direitos (saneamento básico e água potável) e serviços de saúde de qualidade (com algumas menções aos planos privados de saúde).
[...] criança não morre de H1N1, quase nenhuma, ainda mais de classe média alta com plano de saúde privado [...]. Então conscientemente da qual eu optei mesmo por não dar é a influenza e a rotavírus, que eu sei que não são contagiosos, e que também, pra nossa classe social, onde a gente tem acesso a medicina rápida, num sei quê, não acho que ela vai morrer de uma disenteria ou de uma gripe, sabe?
(F-H-03.Mãe – 42a, branca, estrato A)
Se eu tivesse vivendo no centro de São Paulo, trabalhando 8 horas por dia, mais quatro horas total no trânsito, eu teria dado tudo, todas as vacinações [risos], tudo, né? Mas se eu tenho o privilégio de morar na beira da praia, de minha filha ter nascido em casa, de ter um atendimento do posto de saúde que na época tava excelente, tudo isso aí...
(F-H-07.Mãe – 30a, branca, estrato C2)
O acesso à informação também é mencionado como um diferencial que essas famílias consideram ter. Falar outras línguas é considerado um fator importante para acessar informações de outros países, os quais, segundo essas famílias, têm maior acúmulo de conhecimento produzido acerca da (não) vacinação, referindo-se especialmente ao continente europeu e aos Estados Unidos.
Então nesse aspecto eu vivo muito mais dessa experiência, dessa consciência, know how do Hemisfério Norte sobre esses acontecimentos que talvez aqui no Brasil nem chegou ainda.
(F-H-05.Pai – 39a, branco, estrato C1)
A organização socioespacial da cidade, para além da questão do saneamento básico, foi por diversas vezes mencionada como um fator que deve ser considerado na decisão por (não) vacinar, bem como o contato (ou a ausência dele) com pessoas provenientes de determinadas áreas da cidade.
O meu filho, que a gente cuida mais da alimentação, que tem um ambiente mais adequado assim, né, ele é obrigado a tomar uma [mesma] vacina que aquela criança lá que vive na favela, que tem umas condições sanitárias ruins, que não se alimenta bem, que a mãe não pode tá dando esse amparo, né?
(F-H-09.Mãe – 43a, branca, estrato B2)
Que até falam que a gente tem uma responsabilidade social, né, de tomar a vacina [...]. Mas enfim, eu meio que vivo num mundo muito burguês assim, né? Não moro ali na periferia, não tenho contato com pessoas da periferia, que são crianças que tão mais assim... suscetíveis, com pessoas que tem mais probabilidade de ter essas doenças, né? [...] E aí eu acho que quando eu for tentar botar na escola pública eles vão falar que tem que ter a carteirinha [...] e tá certo, né? Que daí ele vai tá em contato com um monte de criança que eu sei lá qual que é a condição dessas crianças.
(F-H-02.Mãe – 43a, branca, estrato B2)
Destaca-se ainda o fato de que essas famílias reforçam constantemente sua consciência de classe com afirmações e lamentos sobre as desigualdades socioeconômicas que marcam a realidade brasileira, inclusive destacando seu lugar de privilégio. Ou, ainda, destacando o privilégio que observam nos espaços em que frequentam (a exemplo da escola, como no excerto abaixo). Ainda assim, em suas narrativas, reforçam o lugar das famílias em estratos socioeconomicamente mais baixos como desestruturadas ou desinformadas.
Nós somos uma família muito privilegiada, né? A gente sabe o que são crianças muitas vezes de famílias desestruturadas, que não tem essa possibilidade de conversar com a criança sobre essa necessidade de fazer esse tipo de medicina preventiva – na verdade de repente nem eles sabem o que que é medicina preventiva. A gente faz uma avaliação a partir da nossa realidade, né.
(F-H-03.Pai – 43a, cor de pele não declarada, estrato A)
Teve um ano que eles [filhos] frequentaram o jardinzinho waldorf, aí eu me incomodei. Aí eu me incomodei porque eu via aquele mar de criança loura não vacinada assim, né [risos]. [...] Porque é esfregar o privilégio na cara, né? Talvez de fato aquelas crianças não vacinadas não vão ser as prejudicadas pela não vacina. É injusto pra caralho elas poderem ter essa escolha entendeu? [...] e de fato eu não tenho uma estatística disso, eu não tenho a ciência disso, mas são loiras [risos].
(F-H-10.Pai – 33a, branco, estrato B2)
Um olhar interseccional sobre os equipamentos sociais: escolas, serviços de saúde e conselho tutelar como espaços de reprodução de privilégios
Apesar de todas as famílias aqui mencionadas pertencerem ao mesmo grupo em relação à opção por não vacinar total ou parcialmente os filhos, o status econômico e o capital simbólico as diferencia no uso dos equipamentos sociais. O acesso à escola privada permite que as crianças tenham livre trânsito mesmo não estando vacinadas, enquanto a necessidade de garantir uma vaga na escola pública faz com que as famílias menos abastadas vacinem mesmo contra sua vontade.
Sinceramente hoje eu só vacino à risca assim, digamos, ela só toma todas as vacinas é só porque a gente precisa da vaga da creche. Apenas. Porque se não fosse um pré-requisito pra ela entrar na creche municipal, eu não faria a vacinação do jeito que é.
(F-H-08.Mãe – 24a, branca, estrato C2)
Uma parte das famílias entrevistadas já foi procurada pelo Conselho Tutelar em algum momento. Em quase todos os casos, quem reportou a situação ao Conselho foi o serviço público de Atenção Primária à Saúde. Nota-se que as famílias com melhor condição econômica fazem o que chamaremos aqui de “uso customizado da saúde”, buscando por profissionais de saúde da rede privada que estejam alinhados com suas opiniões acerca da (não) vacinação – em geral, médicos pediatras homeopatas e antroposóficos. O acesso a esses profissionais e aos serviços oferecidos por eles (como as vacinas homeopáticas, por exemplo) permite que essas famílias sustentem a decisão de não vacinar com respaldo médico.
A escola não aceitava a minha filha sem a vacina né. [...] Mas antes da escola o posto de saúde me denunciou pro conselho tutelar, duas vezes inclusive. Foi quando eu procurei uma médica homeopata e a gente começou um processo de imunização homeopática. Que outros médicos questionaram né, mas foi o que o conselho tutelar aceitou. Aí a escola também exigiu isso, e foi muito fácil de eu resolver com uma declaração de acompanhamento da médica [homeopata], né?
(F-H-11.Mãe – 37a, branca, estrato C2)
Discussão
Nossos achados devem ser considerados dentro do contexto no qual foram coletados. Florianópolis é a capital do estado de Santa Catarina, localizado no sul do Brasil e apresenta bom Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baixa taxa de mortalidade infantil (7,78) e alta cobertura de esgotamento sanitário adequado (87,8%). Sua população é majoritariamente branca (84,76%)2020 United Nations Development Programme, Fundação João Pinheiro, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil [Internet]. Brasília: PNUD; 2022 [citado 7 Mar 2024]. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/
http://www.atlasbrasil.org.br/... . Florianópolis apresenta baixa cobertura vacinal para o esquema de imunização infantil, sendo essa cobertura significantemente menor no estrato socioeconômico A em relação ao estrato E2121 Barata RB, Ribeiro MCSA, Moraes JC, Flannery B, Vaccine Coverage Survey 2007 Group. Socioeconomic inequalities and vaccination coverage: results of an immunisation coverage survey in 27 Brazilian capitals, 2007-2008. J Epidemiol Community Health. 2012; 66(10):934-41..
Os achados em relação aos papéis de gênero na família se alinham ao que frequentemente se encontra na literatura em saúde. Os estudos sobre cuidados parentais no geral, e também especificamente sobre vacinação infantil, têm como interlocutoras quase sempre as mães, sendo pouco conhecido o papel dos homens/pais nesse quesito do cuidado parental2222 Gutierrez DMD, Minayo MCS. Produção de conhecimento sobre cuidados da saúde no âmbito da família. Cienc Saude Colet. 2010; 15 Supl 1:1497-508..
A atribuição da mulher como cuidadora caminha de maneira muito próxima à história das vacinas. A mulher tornou-se o centro das políticas de saúde durante a Era Vargas, que tinha como objetivo a criação da “nova raça nacional”, que seria alcançada por meio de práticas higienizadoras direcionadas às populações negras e indígenas2323 Silva EGF, Carvalho AB. A construção da raça nacional: estratégicas eugênicas em torno do corpo da mulher. In: Batista LE, Werneck J, Lopes F, organizadores. Saúde da população negra. Brasília: ABPN; 2012. p. 225-44. .
A puericultura, desenvolvida na França no final do século 19, se propôs a normatizar os cuidados às crianças, visando “a saúde perfeita”44 Barbieri CLA. Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.. No Brasil, a pediatria e a puericultura se fortalecem a partir de 1970 sob a égide eugenista e a vacinação cumpre papel essencial nesse contexto, pois a infância bela e sadia que construiria a grandeza do Brasil pressupunha uma criança devidamente vacinada2424 Müller TMP. A criança branca idealizada pela imprensa no século XX. In: Müller TMP, Cardoso L, organizadores. Branquitude - Estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris; 2017. p. 335..
Delimitam-se, então, ao longo das décadas seguintes, os deveres da “boa mãe”, responsável pelo bom desenvolvimento do filho, bem como surge a exaltação ao amor materno e à capacidade de procriação e amamentação da mulher/mãe. O homem/pai, por outro lado, ocupa o lugar de provedor material da família44 Barbieri CLA. Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.. Apesar de haver variações a depender do formato de família e da posição socioeconômica, em geral esses deveres foram reforçados pelos entrevistados nesta pesquisa.
Ressalta-se, porém, que o processo histórico aqui descrito não foi nem linear nem homogêneo entre diferentes grupos econômicos e raciais. Segundo Velho2525 Velho G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1987. , é principalmente nas camadas médias urbanas e escolarizadas que se observa o crescimento da valorização do indivíduo como ser único e protagonista de sua própria trajetória. São esses grupos sociais que prezam pela autonomia e liberdade de escolha, baseados também em um discurso de suposta igualdade, que reflete valores burgueses, capitalistas e contemporaneamente neoliberais2525 Velho G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1987. ,2626 Reich JA. Neoliberal mothering and vaccine refusal: imagined gated communities and the privilege of choice. Gend Soc. 2014; 28(5):679-704. .
Encontrou-se, neste estudo, que o principal balizador da não vacinação infantil foi a premissa da individualidade. Essa visão também justifica o que viemos chamando de uso customizado da saúde, ou seja, a busca por profissionais que reforcem a autonomia e a liberdade das/dos responsáveis na tomada de decisão.
Um dos poucos estudos qualitativos que, para além dos motores da hesitação vacinal, se aprofunda nos aspectos estruturais que moldam percepções parentais, apontou, como elementos essenciais nas normas parentais contemporâneas, a singularidade de cada criança, a tomada de decisão informada e a parentalidade intensiva1313 Kuan C-I. Vaccine hesitancy and emerging parental norms: a qualitative study in Taiwan. Sociol Health Illn. 2022; 44(3):692-709. . Sob a premissa de que cada criança é única, intervenções universais como a vacinação são alvos de críticas. É o que Reich2626 Reich JA. Neoliberal mothering and vaccine refusal: imagined gated communities and the privilege of choice. Gend Soc. 2014; 28(5):679-704. chama de paradigma da parentalidade neoliberal. Ainda nessa seara, a concepção de que o corpo da criança é puro e deve ser protegido de contaminações também emergiu frequentemente nas narrativas, em consonância com resultados de outros estudos44 Barbieri CLA. Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.. Nesse caso, para os pais hesitantes, a “contaminação” é a vacina.
Apesar de não haver universalmente uma direção única na relação entre classe social e (não) vacinação, tanto os dados da cidade de Florianópolis quanto os dados nacionais apontam para uma menor cobertura vacinal quanto mais alto é o estrato social2121 Barata RB, Ribeiro MCSA, Moraes JC, Flannery B, Vaccine Coverage Survey 2007 Group. Socioeconomic inequalities and vaccination coverage: results of an immunisation coverage survey in 27 Brazilian capitals, 2007-2008. J Epidemiol Community Health. 2012; 66(10):934-41.. Outros estudos qualitativos mostram que, apesar de a maioria das/dos responsáveis terem dúvidas e preocupações em relação às vacinas, são aqueles nos estratos socioeconômicos mais altos que podem canalizar seus recursos para lidar com essas questões2727 Peretti‐Watel P, Ward JK, Vergelys C, Bocquier A, Raude J, Verger P. ‘I think I made the right decision… I hope I’m not wrong’. Vaccine hesitancy, commitment and trust among parents of young children. Sociol Health Illn. 2019; 41(6):1192-206.. As/os responsáveis hesitantes pertencentes às classes médias e altas, em diferentes países, são os que se sentem autorizados a questionar as políticas de Estado e arcar com as possíveis consequências da não vacinação1313 Kuan C-I. Vaccine hesitancy and emerging parental norms: a qualitative study in Taiwan. Sociol Health Illn. 2022; 44(3):692-709. ,2626 Reich JA. Neoliberal mothering and vaccine refusal: imagined gated communities and the privilege of choice. Gend Soc. 2014; 28(5):679-704. ,2727 Peretti‐Watel P, Ward JK, Vergelys C, Bocquier A, Raude J, Verger P. ‘I think I made the right decision… I hope I’m not wrong’. Vaccine hesitancy, commitment and trust among parents of young children. Sociol Health Illn. 2019; 41(6):1192-206..
Essa compreensão foi bastante marcada nas narrativas dos entrevistados, que frisam seus vários acessos (à informação, à saúde/qualidade de vida, a direitos) como aquilo que lhes permite questionar as vacinas, não vacinar seus filhos ou não seguir protocolos dos equipamentos sociais públicos. Esses acessos uniformizam tal grupo como “nós” em relação aos “outros”.
As identidades são relacionais e, portanto, os indivíduos e grupos sociais organizam-se nos grupos “nós” e “eles” por meio da identidade coletiva, definidora dessa fronteira1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. . Apesar das bem descritas desvantagens materiais associadas às iniquidades raciais, a classe social não explica todo o cenário vivido pelos “outros” no Brasil. Nos alinhamos a Guerreiro Ramos2828 Guerreiro Ramos A, organizador. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; 1957. Patologia social do ‘branco’ brasileiro; p. 171-92., um dos precursores dos estudos sobre branquitude no Brasil, em uma posição contrária à tendência da sociologia brasileira de justificar desigualdades raciais no Brasil por classe social. A alegação de que o preconceito no Brasil está ligado à classe foi uma das mais fortes e sistemáticas formas de negar o racismo brasileiro1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. . Como a branquitude é o padrão normativo e hegemônico, ou seja, vive-se sem se notar racialmente, aquilo que não segue tal padrão é visto como “o outro”99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022..
Algo na divisão “nós” e “eles” ficou muito marcado nas narrativas das/dos responsáveis hesitantes: a espacialidade. Tanto se referir ao outro como o que mora na “favela” ou “periferia”, como definir o “nós” como os que moram em áreas com saneamento básico ou “em um universo muito burguês”, são formas de demarcar uma segregação espacial dos corpos11 Chalhoub S. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras; 1995.. Segundo Schucman1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. , “marcadores espaciais” demarcam a divisão “nós” e “outros”; ou seja, as percepções raciais também se constroem pela distribuição espacial das cidades, estruturando a vida pública e como os grupos raciais se relacionam no espaço social.
A autora ainda chama a atenção para dois importantes marcadores intragrupo que delimitam diferenças dentre os “nós brancos”: a classe social e o acesso a bens materiais; e o gênero, isto é, as experiências de ser branco rico ou pobre, por certo, são muito diferentes; bem como as masculinidades e feminilidades operam em relações complexas com as categorias raciais1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. . Isso fica bastante evidenciado quando se discute o uso dos equipamentos sociais: apesar de os múltiplos acessos e privilégios sistêmicos delimitarem o “nós” como grupo, o estrato social definirá quem, por exemplo, depende da escola pública e precisará vacinar para garantir a vaga.
O racismo, como um dispositivo de poder que “opera como um disciplinador, ordenador e estruturador das relações sociais e raciais”2929 Carneiro AS. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005. (p. 70), faz com que a divisão racial do trabalho e dos espaços sociais seja tão naturalizada que se torne um habitus, produzindo desigualdades nas condições cotidianas de vida1414 Schucman LV. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta; 2019. .
Os “nós” aqui entrevistados frequentemente frisam seu descontentamento com a desigualdade social brasileira que assola os “outros”, em um discurso bastante paradoxal. Segundo Bento99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022., o fato de não se ver implicado na estrutura que determina relações de poder é uma característica da branquitude, ou seja, há a compreensão das desigualdades sociais, mas não há a compreensão de que se é parte dessa estrutura. Assim, a identificação dessas desigualdades e qualquer ação contra elas é vista como altruísmo99 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022..
Considerações finais
A hesitação vacinal é sabidamente um fenômeno complexo e multicausal, que diz respeito não apenas a decisões individuais, mas a todo um contexto social, econômico e político.
Posições de gênero expressam a dinâmica intrafamiliar de cuidados parentais, tendo implicações tanto na realização de tarefas cotidianas quanto nas tensões causadas pelas tomadas de decisão em saúde. Já classe social, raça e espacialidade demarcam posições na teia social e privilégios sistêmicos, servindo de limite entre o “nós” e o “eles”, mas também definindo posições intragrupo e diferenciando as famílias hesitantes entre aquelas que têm ou não têm capital simbólico para bancar a decisão de não vacinar diante dos equipamentos do Estado.
A compreensão da hesitação vacinal como um fenômeno social e político é essencial para fugir do reducionismo que associa não vacinação à desinformação ou negligência. Os achados aqui analisados, pelo referencial interseccional, potencializam o esforço em compreender criticamente como o posicionamento de classe, a identidade de gênero e de raça conformam experiências acerca da vacinação e do cuidado infantil, revelando distribuições desiguais de poder, prestígio e privilégios. Nossos achados mostram que a decisão por não vacinar, muito além de um posicionamento em relação às vacinas, é também uma forma de se posicionar na teia social, de pertencer a um grupo e de comunicar valores e crenças.
- Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230492 https://doi.org/10.1590/interface.230492
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
10 Out 2023 - Aceito
04 Mar 2024