Redes Vivas: entre o individual e o coletivo

Living Networks: between the individual and the collective

Redes Vivas: entre lo individual y lo colectivo

Gustavo Tenório Cunha Daniele Pompei Sacardo Sérgio Resende Carvalho Sobre os autores

A tuberculose (TB), assim como a hanseníase, é uma doença antiga e com importante relação com os determinantes sociais de saúde. Embora o desenvolvimento do tratamento medicamentoso tenha sido e seja fundamental no enfrentamento dessas doenças, pode-se observar, desde o século passado, a forte associação entre a diminuição da prevalência destas e a melhoria das condições de vida, antes mesmo do surgimento de medicações específicas. Por outro lado, observamos que, apesar dos avanços alcançados pelas intervenções tecnológicas no que se refere a diferentes meios diagnósticos, disponibilidade de medicamentos e protocolos para o cuidado, a TB permanece como importante problema de saúde pública11 Moreira ASR, Kritski AL, Carvalho ACC. Determinantes sociais da saúde e custos catastróficos associados ao diagnóstico e tratamento da tuberculose. J Bras Pneumol. 2020;46(5).,22 Wilkinson R, Marmot M. Social determinants of health: the solid facts [Internet]. 2a ed. Geneva: World Health Organization; 2003 [citado 20 Mar 2024]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/326568
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A alta prevalência da doença em grupos populacionais mais atingidos pela desigualdade social, violências diversas, a falta de acesso adequado à saúde e/ou a precarização de políticas públicas essenciais – inclusive o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) –, incidem sobre trabalhadores da saúde e usuários, informando-lhes constantemente que suas vidas têm menos valor. São corpos e territórios que “não importam”, exceto como depositários da culpa das próprias mazelas e dificuldades33 Merhy EE, Silva E, Gomes MPC, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014;(52):153-64.,44 Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019;43(6 Spec No):70-83. doi: 10.1590/0103-11042019S606.
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. Soma-se a isso o fato de que as condições imunológicas dependem do enfrentamento da insegurança alimentar, das condições de habitação e do cuidado com a concomitância de outras doenças – e acesso aos respectivos tratamentos. Essa é a descrição de um cenário comum no enfrentamento da tuberculose, em grande parte do SUS.

O texto “As Redes Vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente”55 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
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permite que vejamos a sinergia de algumas das várias forças adoecedoras incidindo sobre Zoe, a usuária-guia em tratamento para tuberculose. Ela tem dificuldades de se movimentar no seu território – até mesmo para atendimentos na especialidade – em função da violência instituída e normalizada; e com o sistema de transporte da cidade, ineficiente e pouco acessível aos mais vulneráveis. Chama a atenção que uma pessoa com tuberculose resistente ao tratamento tenha que ir a um serviço de saúde utilizando transporte público, expondo desnecessariamente outras pessoas. Pode-se supor, pelo relato de que familiares que também foram acometidos e tratados pela doença, que as condições de habitação provavelmente não são adequadas e facilitam a transmissão da doença66 Carvalho SR, Cunha GT. A gestão da atenção na saúde: elementos para se pensar a mudança da organização na saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 837-68..

Podemos perceber que, apesar da oferta (nem sempre presente no SUS) de um atendimento psicológico na Unidade Básica, a percepção inicial de Zoe para o atendimento que recebia de outros profissionais da Atenção Primária (APS) não era positiva – “se sentia desrespeitada, pois os profissionais se apresentavam distantes e intolerantes”55 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
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(p. 4). O que teria feito com que uma paciente com extrema vulnerabilidade fosse tratada de forma a produzir esse sentimento? Em outro momento, foi um encontro casual de Zoe com a agente comunitária de saúde (ACS) – cuja presença praticamente não é mais obrigatória na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) – que permitiu o diagnóstico de um agravamento clínico e da necessidade de uma internação. Por que não havia um monitoramento constante da família? Ainda que exista, muitas vezes, uma grande demanda nas unidades básicas, podemos nos perguntar: quantos outros pacientes poderiam ser mais prioritários do que Zoe? Infelizmente, ainda existe dificuldade de implementar nos serviços de saúde o princípio da equidade. E não é infrequente que aconteça o contrário: um desinvestimento no cuidado dos mais vulneráveis77 Carvalho SR. Correntes contemporâneas da Saúde Coletiva (Vigilância a Saude; Defesa da Vida). In: Carvalho SR. Saúde Coletiva: sujeito e mudança. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. p. 111-44.. É importante lembrar o contexto brasileiro, no qual a grande maioria dos profissionais universitários que atuam na APS não veio de famílias pobres e periféricas, nem moram nesses territórios, estando, portanto, distantes pessoalmente da experiência da miséria, da violência e da exclusão. Não que este fato seja um determinante absoluto, até porque não é raro que mesmo ACSs sejam capturados pelo olhar “profissional” da unidade básica, distanciando-se da defesa e da representação da sua gente dentro do serviço de saúde. Mesmo assim, o nosso apartheid social é um fator relevante na insensibilidade dos serviços de saúde às situações de extrema vulnerabilidade vividas por grande parte do nosso povo nas periferias das grandes cidades.

Por outro lado, este trabalho mostra a potência disparadora de um movimento dissonante, ainda que proveniente de apenas um dos pontos da rede, para ampliar e qualificar o cuidado, contaminando e modificando a atuação de outros pontos da rede assistencial. Por exemplo, foi no decorrer do processo de cuidado em rede e da criação do grupo de trabalho que foi possível descentralizar o cuidado, diminuindo a necessidade de deslocamento de Zoe para o atendimento especializado. Também chamou a atenção o fato de que foram realizadas visitas da equipe de APS durante as internações de Zoe, o que fortaleceu o vínculo terapêutico e qualificou o cuidado na enfermaria, além de permitir uma qualificação da alta.

Apesar das evidentes potencialidades da construção de Redes Vivas de cuidado33 Merhy EE, Silva E, Gomes MPC, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014;(52):153-64. e de grupos de trabalho para qualificação do cuidado compartilhado na rede66 Carvalho SR, Cunha GT. A gestão da atenção na saúde: elementos para se pensar a mudança da organização na saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 837-68., não foi possível descobrir no texto se os profissionais conseguiram se aproximar da singularidade de Zoe e sua família. Quem seria ela, além de ter tuberculose e viver em condições de pobreza em um território tomado pela violência? Ela trabalhava antes do adoecimento? Qual sua história de vida, seus valores, sonhos e projetos? Como é sua relação com os outros membros da família? Sua experiência religiosa? A cor de sua pele? O que pensa da “doença”, suas causas, as dificuldades que enfrentou? A invenção de propostas terapêuticas mais adequadas para cada pessoa depende não somente da capacidade crítica em relação à fragmentação do cuidado, ao não compartilhamento de decisões, ao automatismo de protocolos, mas também da abertura dos profissionais para a singularidade, para a biografia. Com esse movimento, é possível aos profissionais lembrarem que o seu objeto de trabalho é a pessoa e sua rede, e não a doença e os procedimentos/protocolos para combatê-la. Diagnósticos das diversas profissões de saúde e respectivas condutas são apenas instrumentos dos trabalhadores da saúde para cuidar das pessoas. Quando se tornam o objeto de trabalho, as pessoas adoecidas imediatamente são percebidas pelo trabalhador como um empecilho, porque frequentemente não “aderem”, não “obedecem”, trazem problemas que o profissional acredita que não lhe dizem respeito, enfim, questionam a limitação do enfoque reducionista centrado na doença. Portanto, o mergulho na singularidade é ao mesmo tempo um antídoto ao reducionismo mecanicista e um instrumento que revela, tanto para os profissionais quanto para os usuários, as potências vitais do usuário. É um movimento que qualifica o vínculo e permite adaptar propostas terapêuticas, estimular projetos abandonados e ajudar na construção de novos projetos de vida (mesmo com eventuais limitações do adoecimento)66 Carvalho SR, Cunha GT. A gestão da atenção na saúde: elementos para se pensar a mudança da organização na saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 837-68..

É interessante destacar que existe uma aparente oposição entre dois movimentos: (a) o reconhecimento/desnaturalização dos determinantes sociais (problemas coletivos – ações coletivas) e (b) a construção de um Projeto Terapêutico Singular. No entanto, a abordagem singular e a descoberta de caminhos em contextos em que parecia não haver saídas constituem-se em uma recusa à necropolítica e uma recusa do objetivo mais ou menos explícito das políticas públicas sociais produtoras e/ou tolerantes com a iniquidade, em um país que escravizou e exterminou sua gente por trezentos anos. Um país que ainda não implementou adequadamente políticas de reparação e mantém imensa e inaceitável desigualdade e concentração da riqueza. Dessa maneira, quando uma Rede Viva recusa a tendência estatística e estabelece vínculos solidários, também inventa possibilidades de vida em contextos em que estava sentenciada a morte. Portanto, não há contradição essencial: a abordagem singular é um dos modos de enfrentar a iniquidade, enfrentando individualmente as suas consequências.

No entanto, também existem riscos. As ações coletivas em direção à garantia de direitos e ao enfrentamento da desigualdade são imensamente complexas e se desenvolvem em uma temporalidade própria, que nem sempre coincide com aquelas que se efetuam no cotidiano das ações de cuidado individual que ocorrem nos serviços de saúde. São ações que apontam para outros projetos de sociedade88 Dantas AV. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017., radicalmente diferentes do que vivemos hoje, sob o signo do capitalismo neoliberal.

Daí se faz necessário estar atento ao risco de se naturalizar a condição social e a individualização das ações de cuidado, que relaciona-se também ao risco de desinvestir na denúncia, na construção de ações coletivas, em movimentos sociais e no fortalecimento de políticas públicas que contribuam para as transformações sociais necessárias para a garantia de direitos e equidade social/sanitária.

O movimento de luta contra a Aids, o movimento de luta antimanicomial, o próprio movimento sanitário na gênese do SUS e inúmeras outras experiências da Atenção Primária/Rede Básica brasileiras no território – ainda que minoritárias – demonstraram historicamente a potência da aliança da saúde com os movimentos sociais.

Referências

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    Moreira ASR, Kritski AL, Carvalho ACC. Determinantes sociais da saúde e custos catastróficos associados ao diagnóstico e tratamento da tuberculose. J Bras Pneumol. 2020;46(5).
  • 2
    Wilkinson R, Marmot M. Social determinants of health: the solid facts [Internet]. 2a ed. Geneva: World Health Organization; 2003 [citado 20 Mar 2024]. Disponível em: https://iris.who.int/handle/10665/326568
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  • 3
    Merhy EE, Silva E, Gomes MPC, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulg Saude Debate. 2014;(52):153-64.
  • 4
    Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saude Debate. 2019;43(6 Spec No):70-83. doi: 10.1590/0103-11042019S606.
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042019S606
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    Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024;28. doi: 10.1590/interface.230182.
    » https://doi.org/10.1590/interface.230182
  • 6
    Carvalho SR, Cunha GT. A gestão da atenção na saúde: elementos para se pensar a mudança da organização na saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M Jr, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 837-68.
  • 7
    Carvalho SR. Correntes contemporâneas da Saúde Coletiva (Vigilância a Saude; Defesa da Vida). In: Carvalho SR. Saúde Coletiva: sujeito e mudança. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2005. p. 111-44.
  • 8
    Dantas AV. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2024
  • Aceito
    06 Maio 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br