Resumos
O texto trata da abordagem teórico-prática da Educação Popular em Saúde (EPS), apresentando reflexões sobre construções possíveis com base nos princípios dessa filosofia. Esse processo de discussão teórica transita pelos processos educativos em saúde; pela capacidade mobilizadora da participação social e promoção de encontros humanos transformadores nos serviços de saúde; e pelas possibilidades para o presente e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). Tem-se, pois, a importância da participação social nos serviços de saúde, destacando a abordagem comunitária como estratégia para potencializar o trabalho na Atenção Primária à Saúde e dinamizar a promoção e a vigilância em saúde. Desse modo, com os caminhos viabilizados e orientados pela EPS, pode-se contribuir para a construção de práticas mais democráticas e emancipadoras no SUS.
Palavras-chave
Educação popular em saúde; Atenção primária em saúde; Mobilização social; Ação comunitária
El texto trata del abordaje teórico-práctico de la Educación Popular en Salud (EPS), presentando reflexiones sobre construcciones posibles con base en los principios de esa filosofía. Este proceso de discusión teórica transita por los procesos educativos en salud, por la capacidad movilizadora de la participación social y promoción de encuentros humanos transformadores en los servicios de salud y por las posibilidades para el presente y el futuro del Sistema Brasileño de Salud (SUS). Se ve, por lo tanto, la importancia de la participación social en los servicios de salud, destacando el abordaje comunitario como estrategia para potenciar el trabajo en la Atención Primaria de la Salud y dinamizar la promoción y vigilancia en salud. De ese modo, con los caminos viabilizados y orientados por la EPS es posible contribuir para la construcción de prácticas más democráticas y emancipadoras en el SUS.
Palabras clave
Educación popular en salud; Atención primaria de la salud; Movilización social; Acción comunitaria
Introdução
A Educação Popular em Saúde (EPS) constitui uma perspectiva teórico-metodológica e ético-política orientadora de experiências, com uma importante contribuição à história de políticas, ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa importância se dá especialmente pelo fato de, em sua proposta pedagógica, orientar caminhos, alternativas e possibilidades concretas de processos de ensino e aprendizagem, por meio dos quais possa cultivar, promover e manter a saúde, o que busca em um exercício constante, aprendendo permanentemente a lidar com a saúde e sua manifestação dinâmica, complexa e contraditória na vida e no território.
A EPS deve se inserir, necessariamente, em movimentos e práticas que compreendam e busquem afirmar a saúde como possibilidade de construir projetos de felicidade e de perspectivas, horizontes e ambientes propícios para o bem-viver em um contexto de afirmação de territórios que precisam caminhar na direção da sustentabilidade e da promoção da saúde.
A EPS se expressa em diferentes iniciativas desde os anos 1970, qualificando a politicidade e a potência pedagógica e significativa da educação no setor saúde, denunciando e apontando alternativas a práticas educativas em saúde nas quais não se favoreçam oportunidades de aprendizagem para as pessoas envolvidas; isso porque existem, historicamente, diferentes abordagens, enfoques e perspectivas educativas, pois, na saúde, isso é expressivamente verdadeiro.
A EPS se soma a outras perspectivas educativas que podem ser caracterizadas como críticas, dialógicas e participativas. Essas perspectivas não são pautadas na assimilação de conteúdos que alguém estabeleceu como sendo importantes para as pessoas, porém geram processos de reflexão, de curiosidade e de demanda por aprendizado, estimulando o desenvolvimento justamente do senso crítico, de modo que o indivíduo procure aprender de forma contextualizada com a sua realidade, pelo trabalho com os conteúdos, problematizando-os e refletindo sobre eles de maneira necessariamente articulada à resolução dos problemas locais.
Desse modo, podemos considerar a mobilização como enfoque da EPS. Isto é, uma educação para gerar o ímpeto das pessoas para ler o mundo; não só ler o mundo de forma crítica, mas interpretá-lo criticamente e buscar, de forma cooperativa e solidária, sua permanente melhoria para a superação dos seus problemas.
Por essa visão, a educação em saúde proposta compromete-se com a construção de uma rede tecida pelo indivíduo de forma autônoma e emancipada, contando com o apoio dos profissionais de saúde, desenvolvendo, assim, um projeto integral de sua saúde.
Logo, a Educação Popular (EP) pressupõe a promoção e a valorização de uma participação eminentemente ativa por parte dos usuários e das usuárias; nela, não existe alguém que manda e alguém que obedece ou alguém que sabe e alguém que não sabe. Existem, pois, pessoas com saberes, experiências e ideias diferentes que vão precisar trabalhar colaborativamente para olhar e estudar os problemas em questão e procurar saídas11 Valla VV. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes populares. Educ Realidade. 1996; 21(2):77-190..
Contextualizando a Educação Popular em Saúde
A EPS vem produzindo, desde os anos 1970, uma série de sentidos e significados profundos para atores sociais de movimentos populares, de serviços de saúde, da gestão do SUS, de conselheiros de saúde e de estudantes, docentes e pesquisadores de instituições de ensino e pesquisa, em todo o país. Mesmo ante os desafios profundos, a crise sanitária sem precedentes imposta pela pandemia da Covid-19, e os modos como ela foi gerida pelo Governo Federal de então, a EPS permaneceu viva, vibrante e relevante em várias práticas de saúde, em diferentes municípios brasileiros, orientando uma ação ativa, colaborativa e solidária entre os profissionais de saúde e a população, ambos protagonizando os processos de cuidado e a estruturação de serviços locais de Atenção à Saúde em meio à crise.
No seio dessas iniciativas, vão sendo experimentadas e desenvolvidas formas de conduzir as práticas educativas em saúde que privilegiam a participação ativa das pessoas e uma abordagem holística e integral aos problemas de saúde, que valorizam o impacto e a centralidade do território nesses problemas. Nessas experiências, a relação humana entre profissional de saúde e população não se dá de maneira normativa; os representantes e lideranças populares comunitárias que vêm participar não atuam como meros ouvintes, mas como pessoas com saberes acumulados para compartilhar. A EPS orienta um processo que envolve o entender da lógica da comunidade e do protagonismo dos saberes acumulados nas práticas e experiências populares locais e comunitárias, somando ao seu diálogo os saberes acumulados pela perspectiva técnico-científica dos profissionais.
Nos dias de hoje, o saber e as práticas da EPS, com suas metodologias ativas, criativas e socialmente compromissadas, ainda embasam a criação e o desenvolvimento de experiências de saúde comunitária e constituem, muitas vezes, um laboratório difusor de jeitos, tempos e perspectivas nas quais o conhecimento científico pode ser significado de uma forma construtiva e propositiva, de maneira que o diálogo do saber popular com o saber científico possa gerar uma aplicação significativa e socialmente referenciada da ciência. É uma aplicação significativa por ser construtiva e feita de acordo com os saberes e as experiências, os tempos e as especificidades de cada contexto, de cada comunidade, de cada território. Assim, amplia os sentidos do cuidar que potencializam não só a participação social como também a cultura democrática de relação entre os usuários e os profissionais de saúde.
Nesse contexto, compreendemos que a APS, em especial, constitui um cenário estratégico e oportuno para o amplo desenvolvimento da EPS no SUS, tendo em conta a capilaridade e a descentralização que a Estratégia de Saúde da Família (ESF) traz e que vai ensejando a difusão também de várias iniciativas com perspectiva colaborativa e participativa. A aproximação entre serviço e comunidade que a APS propicia, de fato, faz potencializar a capacidade de luta, de criatividade e de proatividade do povo brasileiro na construção de resistências, enfrentamentos e alternativas sociais aos processos de desigualdades. Isso porque o que marca a ESF não é tanto o contexto em que se atua, mas a proposta de como se atua naquele contexto.
Por meio de várias iniciativas e experiências, a ESF pode ir se constituindo como proposta central de uma perspectiva de ação permeada pela intencionalidade em deflagrar, no país, a estruturação de um modelo de assistência pautado pela integralidade. Sobretudo um cuidado articulado à prática de promoção da saúde, prevenção de agravos, vigilância em saúde, de modo que as equipes não fiquem restritas ao pronto atendimento, mas principalmente enfatizem uma ação ampla no apoio à construção de condições de vida e direitos sociais. Tudo isso com dignidade para todas as pessoas, enfocando a ação nos territórios e desenvolvendo um processo no qual a educação e a comunicação em saúde têm um papel decisivo e fundante para provimento de ações especialmente tecidas com as linhas da participação social.
A ESF pretende, na essência de sua proposta, desenvolver iniciativas de promoção da saúde de forma ampla em cada território e cada equipe, de maneira que se possa constituir, de fato, um centro de referência e de apoio social para que a comunidade e as várias instituições presentes em cada território tenham apoio na construção de projetos para enfrentamento dos problemas sociais, econômicos e políticos. E, dessa maneira, enfrentar os determinantes do processo saúde-doença, galgando degraus que levem a condições de vida mais saudáveis e sustentáveis.
A Educação Popular em Saúde como perspectiva de pensar e fazer as ações e os processos educativos em saúde
A perspectiva da EPS apresenta uma base crítica e emancipadora, que se preocupa com o fato de as pessoas precisarem se apropriar dos conhecimentos para aplicá-los de forma autônoma nas suas vidas. Para tanto, pedagogicamente, essa perspectiva se caracteriza por abordagens de cunho participativo, utilizando-se de metodologias que promovam o reconhecimento de que as pessoas, nos seus contextos, estão a todo tempo vivenciando a saúde e se deparando com dilemas, conflitos, ideias e opiniões sobre os mais variados temas. A saúde é um fenômeno presente a todo instante na vida das pessoas e em seu entorno: vizinhos, família, território, comunidade, cidade, país... Essa perspectiva educativa, portanto, tem como ponto de partida central as diferentes formas do sentir, pensar e agir das pessoas.
Dessa forma, a abordagem pedagógica fundamental, na ótica educativa da EPS, está em iniciar o processo educativo em saúde recuperando o que as pessoas interpretam, como reinterpretam, como avaliam a saúde de si, dos outros, da família, da comunidade e do território. É fundamental, portanto, valorizar as curiosidades das pessoas e instigá-las a pensar sobre temáticas diversas, bem como seus dilemas e anseios. E, partindo desses elementos, deflagrar espaços de ensino e de aprendizagem de onde se tragam, de uma forma articulada, dialogada e respeitosa, as experiências das pessoas, seus saberes prévios e suas dúvidas. Assim, a dimensão de conteúdos técnicos e científicos não deixa de fazer parte do processo, mas é trazida à discussão quando vai tendo sentido e utilidade para as pessoas, seus contextos e suas realidades.
Outra marca fundamental desse modo de construir a educação é o cuidado em se evitar a mera transmissão/repetição de conteúdo, uma vez que é indispensável que se sensibilize as pessoas a olhar criticamente as questões e os problemas; com esse cuidado, o conteúdo apresenta-se como provocador de reflexões, uma forma de ajuda para se compreender mais conscientemente os temas abordados. Estimulam-se, portanto, as pessoas a pensar, não a decorar, repetir e reproduzir o que se considera adequado – pensar sobre a saúde e sua manifestação no seu território, na sua realidade social e nas suas vidas. A partir daí, as pessoas podem identificar suas necessidades de aprendizagem, demandas de saber mais, para viver melhor e continuar a busca de seus projetos de felicidade.
Educação em saúde, na perspectiva crítica e emancipadora da EPS, procura promover nas pessoas o desejo e a paixão por saber mais, por serem mais curiosas, por estudar e entender a saúde.
Com tais especificidades e embasamentos, podemos entender a EPS com um olhar de educação em saúde como um elemento que pode ser protagonizado também pelos cidadãos e não apenas pelos profissionais de saúde, portanto. Essa vertente de educação parte da premissa de que saúde faz parte da vida e, como tal, cabe a todos e todas contribuir e trabalhar para que ela possa ser promovida, firmada e construída. Assim, conseguimos trazer cidadãos e cidadãs para o centro do processo, como atores na construção do momento educativo para, então, colaborarem na construção de olhares para o mundo, para a realidade e para seus principais problemas; logo, buscar a compreensão e a intervenção na realidade.
Nesse processo da EPS em um momento educativo, como em uma roda de conversa, por exemplo, já se deixou nítido que um elemento importante é a participação das pessoas. Por isso, é recomendado, a todo tempo, que se incentive o indivíduo a sair do lugar passivo, da condição de mero ouvinte. Deve-se convidá-lo, permanentemente e de forma paulatina e respeitosa, para a mobilização, instigando cada pessoa a compartilhar ao menos uma palavra na conversa. Deve-se cuidar para que cada um e cada uma sejam sutilmente provocados a colocar “um tempero todo seu” naquele “caldo” que é a roda de conversa e, dessa maneira, partilhar um pouco de sua experiência sobre aquele assunto ou mesmo colocar sua dúvida. Desse modo, é importante pensar, sempre, em maneiras com as quais possamos, de forma convidativa, acolhedora, amorosa e fraterna, mobilizar as pessoas para saírem de sua posição de passividade, de forma que, efetivamente, se construa um espaço democrático e participativo na roda de conversa22 Freire P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992..
Em alguns casos, esse convite pode ser feito com atividades de estímulo ao pensamento ante uma pergunta ou um elemento provocador de posicionamentos. Isso pode ser feito, por exemplo, usando-se ilustrações ou figuras sobre as quais as pessoas são convidadas a comentar. Ao contrário, também se pode pedir a elas que, caso se sintam mais à vontade, se expressem por meio de desenhos, recortes, figuras, ilustrações, imagens, entre outros recursos imagéticos. A mobilização da fala e da ruptura da postura passiva das pessoas deve vir acompanhada da investigação, por parte do educador, sobre formas fraternas, amorosas e cuidadosas de como fazê-lo, já que, muitas vezes, as pessoas não falam, não se envolvem e não participam ativamente, mais por motivos íntimos e historicamente construídos do que pela simples falta de vontade. É preciso considerar que pode haver motivos a serem contextualizados e superados, e isso é fundamental de ser compreendido, respeitado e analisado pelos educadores.
Centralmente, pode-se dizer que a Educação Popular se caracteriza por ter, como ponto de partida de sua realização, a compreensão de que o aprendizado das pessoas e a construção de conhecimentos ocorrem em um contexto com raízes e condicionantes de ordem histórica e social. Ademais, essa abordagem destaca, em seus processos formativos, que essa mesma ordem histórica e social é resultante da participação e do protagonismo dos sujeitos nela envolvidos. Para isso, recorre a procedimentos e dinâmicas marcadas por elementos como: a reflexão, o diálogo, a expressão da amorosidade, a criatividade e a autonomia33 Brasil. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (Cneps). Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,44 Bornstein VJ. Princípios pedagógicos do curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, Matielo E, Nespoli G, Goldschmidt IL, et al., organizadores. Textos de apoio do curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2016. p. 15-20..
Educação Popular em Saúde como mobilizadora da participação social e de espaços de encontros humanos transformadores nos serviços de saúde
A complexidade fascinante e profunda das teorias e metodologias em educação não pode nem deve tirar de todas e todos nós a compreensão de um fato consideravelmente simples: a educação é encontro humano. Constitui um processo que se dá no encontro com o outro, com a outra. Então, gostaríamos de reforçar que algo que vai nos ajudar muito a pensar sobre a EPS é começarmos a entender que a educação acontece em todo encontro com um outro e com uma outra ou com os outros, com as outras. Portanto, seja em um encontro com indivíduos, seja com nossos grupos e nossos coletivos, o modo como esse encontro vai se dar e a forma como nós vamos conduzir esse encontro humano vão dizer, efetivamente, qual perspectiva de educação e saúde estamos desenvolvendo e se ela é coerente com os fundamentos da EPS.
O encontro humano que a EPS enseja precisa ser fundamentalmente educativo, buscando mobilizar, no outro, na outra e em nós, processos de pensamento e reflexão que, enveredando para críticas e autocríticas, contribuam para nossa possibilidade de enfrentar nossas inconclusões e buscar mais possibilidades de construir nosso ser mais. É importante, sobretudo, que possamos compartilhar momentos de ensino e de aprendizagem que nos impulsionem a desenvolver uma leitura crítica da vida e do mundo, nos permitindo construir procedimentos, iniciativas e experiências para mudar este mundo para melhor.
Isso posto, o diálogo é tarefa do educador e da educadora que se propõem a construir relações humanas pautadas por uma perspectiva educativa progressista e crítica; pelo diálogo, delinear uma relação comunicativa na qual o encontro com as pessoas as incentive e as estimule a interrogar o mundo e a realidade social, pensando e refletindo criticamente sobre o seu entorno, sobre os problemas que estão na realidade mesma, sobre suas curiosidades e dúvidas, suas inquietações. Dessa maneira, podemos dizer que o papel do educador e da educadora na perspectiva da EPS é mobilizar essa possibilidade de as pessoas não decorarem respostas prontas, tampouco falar em conteúdos feitos, mas possam, pela provocação de temas e questões geradoras, pensar. Pensar como atividade humana fundamental. Um pensar que não se faça sozinho, mas um pensar que se construa com o outro e com a outra, de forma mediatizada pela realidade social. Pensar em diálogo com o outro e a outra sobre o que está acontecendo e “pipocando” no mundo, especialmente na nossa realidade social concreta.
Dessa forma, um aspecto fundamental para entendermos a EPS é compreendê-la como um processo de ensino e de aprendizagem, cujos conteúdos sejam aqueles que tenham sentido para as pessoas em suas realidades e vivências, na perspectiva da permanente humanização dessa realidade. É, portanto, um encontro humano permeado por uma dimensão de ensino e de aprendizagem, na medida em que é importante que possa mobilizar, produzir e construir, em todas as pessoas que participam, o processo de aprender umas com as outras. É um encontro no qual as pessoas não apenas podem se abrir e se disponibilizar a rever os seus conhecimentos prévios, onde elas compartilham o que sabem, o que acumulam, o que pensam, o que refletem, mas também ter a capacidade de rever posicionamentos, rever visões de mundo e descobrir novos aspectos da sua vivência e revelar coisas novas de si, do outro e do mundo.
Ensinar e aprender para quê? Para viver melhor. Para viver de uma forma mais adequada à construção de uma sociedade e de uma vida mais digna para todas e para todos.
Nesse sentido, é justo apontar como matéria-prima das práticas de EPS os saberes, pensares, fazeres e conhecimentos das pessoas, uma vez que o objeto central de seus processos formativos não será principalmente os problemas de saúde em si, mas o modo como as pessoas se apropriam desses problemas e os interpretam e reinterpretam no seu cotidiano, com vistas à produção de saúde. Então, importará ponderar: o que as pessoas sabem, o que as pessoas pensam, o que as pessoas fazem e o que as pessoas constroem de conhecimentos sobre a saúde; o que implica aquilo que aprenderam ao longo da vida55 Araújo RS, Cruz PJSC, Vasconcelos ACCP, Pereira EAAL, Nascimento BGS, Mélo CT. Educação popular na atenção primária à saúde: sistematização de experiências com grupos comunitários de promoção da saúde. Rev Conexao EUPG. 2021; 17:1-22. com sua cultura, suas relações, suas curiosidades e suas buscas formativas.
Nossa compreensão de EPS não pode prescindir de situá-la, para além dos itens mencionados acima, como um entre outros elementos destinados à potencialização do enfrentamento, das pessoas, de situações-limite colocadas nos contextos multifacetados, dinâmicos e complexos apresentados pela saúde e seus determinantes e condicionantes sociais de saúde. A Educação em Saúde, de maneira articulada com a perspectiva da promoção da saúde e de construção da qualidade de vida e do bem-viver, não pode estar desatrelada da mobilização das pessoas para construir horizontes sociais, políticos e culturais adequados para a plena realização do humano e suas especificidades – isso inclui pensar e lutar pelos direitos sociais e humanos, pela justiça social, pela igualdade econômica, pela diversidade cultural e pela emancipação das pessoas55 Araújo RS, Cruz PJSC, Vasconcelos ACCP, Pereira EAAL, Nascimento BGS, Mélo CT. Educação popular na atenção primária à saúde: sistematização de experiências com grupos comunitários de promoção da saúde. Rev Conexao EUPG. 2021; 17:1-22..
Educação Popular em Saúde no SUS: perspectivas para o presente e para o futuro
Nos últimos sete anos, o Brasil tem sido palco de uma série preocupante de retrocessos civilizatórios na agenda pública nacional e em diversas políticas públicas, muitas das quais empreenderam a perspectiva da necropolítica, conceito fundamentado e desenvolvido por Achille Mbembe66 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1; 2018., o qual situa o exercício do poder do Estado e das políticas públicas na direção da produção sistemática de condições para a morte dos grupos socialmente excluídos e marginalizados, por mecanismos como a promoção e a acentuação de abandono e vulnerabilidade das pessoas, levando-as à guerra, ao homicídio e ao suicídio77 Almeida SL. Necropolítica e neoliberalismo. Cad CRH. 2021; 34:e021023. doi: 10.9771/ccrh.v34i0.45397.
https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.45397... .
No Brasil de 2016 a 2022, o Estado brasileiro, ocupado por setores compromissados com uma perspectiva neofascista, ultraliberal e ultraconservadora, operou políticas com ações e omissões que constituíram necropolítica, em especial para os povos indígenas, negros, quilombolas, população cigana, população LGBTQIAP+, população em situação de rua, entre outras88 Menezes P, Fleury S. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saude Debate. 2020; 44(Spec No):267-80.,99 Fleury S. Capitalismo, democracia, cidadania: contradições e insurgências. Saude Debate. 2018; 42(3 Spec No):108-24..
Nesse período, o movimento de Educação Popular, no conjunto de seus atores, de suas organizações e de suas práticas, manteve-se firmemente compromissado com a defesa de uma perspectiva de ciência, de tecnologia e de ação das políticas públicas que contemplasse um profundo exercício do pensamento crítico humano, tendo como utilidade a produção de conhecimentos, de ideias, de perspectivas e produtos relacionados à promoção incondicional da humanização das mulheres e dos homens, do enfrentamento a todo tipo de determinação social e agente impeditivo da ação humana e da promoção dos projetos de felicidade das pessoas.
Entre 2016 e 2022, conforme apontam autores como Hallal1010 Hallal PC. SOS Brazil: science under attack. Lancet. 2021; 397(10272):373-74.,1111 Hallal PC. SOS Brazil: democracy under attack. Lancet. 2022; 400(10349):355., Morel1212 Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude [Internet]. 2022 [citado 27 Jul 2023]; 19:14. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/525
https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.p... e Fleury99 Fleury S. Capitalismo, democracia, cidadania: contradições e insurgências. Saude Debate. 2018; 42(3 Spec No):108-24., período em que alguns setores sociais se empenharam sistematicamente em atacar a ciência e a ação dos movimentos sociais populares para promover o conservadorismo e um neoliberalismo que esgarçaram o tecido social e humano – com promoção de políticas de morte e de necropolítica –, a Educação Popular fortaleceu suas lutas do ponto de vista da ação social, política e pedagógica e de sua firme articulação com uma perspectiva de ciência cada vez mais significativa e fundamental como elemento que se coloca em oposição a esse fazer que vai de encontro à vida humana.
Os tempos da pandemia da Covid-19 revelaram a potência criativa e o compromisso incondicional dos educadores populares e de suas experiências em estabelecer uma construção social e política perene, em um diálogo entre os saberes científicos e técnicos e os saberes da vida e das classes populares, contribuindo, substancialmente, para a produção de experiências, espaços e reivindicação de políticas públicas compromissadas com uma sociedade que fosse culturalmente diversa, politicamente igualitária, economicamente solidária e socialmente justa1313 Calado AJF. Educação popular como processo humanizador: quais protagonistas? In: Cruz PJSC, Vasconcelos ACCP, Sousa LMP, Tófoli AMMA, Carneiro DGB, Alencar IC, organizadores. Educação popular e nutrição social: reflexões e vivências com base em uma experiência. João Pessoa: UFPB; 2014. p. 355-75..
Assim, foram várias as experiências que, inspiradas nessa pedagogia freiriana, insistiram na busca e na construção social, solidária e política de alternativas para a resistência, na perspectiva do avanço civilizatório, fosse pela promoção de práticas, projetos e iniciativas de ação comunitária, fosse pela produção de espaços coletivos de discussão da saúde nos serviços, fosse pelas atividades e processos de vigilância popular em saúde; ou ainda pela mobilização de processos rigorosos de estudos e pesquisas que se debruçaram sobre a realidade social brasileira para apontar caminhos possíveis de superação para a construção compartilhada de modos de resistir à crise da pandemia e à crise do pandemônio (imposto pela ação do Estado nesse período). Tudo isso sem perder de vista o compromisso com a promoção de bases e condição para a vida com dignidade, felicidade, plenitude, solidariedade, fraternidade, direitos sociais e humanos, de modo ampliado e irrestrito, mas em especial compromisso com as pessoas que estiveram e ainda estão sofrendo processos de exclusão social e de vulnerabilidades.
Estando, no atual momento, em um novo cenário, no qual se convidam e se mobilizam todas as pessoas para a reconstrução do país, a Educação Popular continua sendo significativamente relevante. Nesse caso, não apenas para resistir, mas para pautar, propor e apontar caminhos, saídas e estratégias de reconstrução com a colocação de novas ideias e ações que possam contribuir para o avanço da sociedade na perspectiva da conquista dos direitos sociais e humanos e do enfrentamento às iniquidades. Assim, a EP se apresenta querendo promover incondicionalmente o bem-viver para todas as pessoas.
Em que pese a vitória de um projeto democrático e popular nas eleições de 2022, pautando, na agenda pública nacional, novas perspectivas de um novo contexto social e político, com maiores possibilidades de políticas públicas emancipadoras e com a reconstrução de várias políticas que vinham sendo desfiguradas e desmontadas nos últimos seis anos, é importante frisar que segue sendo exigente e desafiador agir no campo social brasileiro, uma vez que o pensamento conservador e comportamentos da extrema direita permanecem permeando o cenário, as mentes e as ações das pessoas. Dessa forma, apesar de muitos dos protagonistas do campo democrático e popular desejarem (e merecerem) relaxar, é preciso dedicar, o tempo todo, atenção e, sobretudo, contribuir de forma crítica e propositiva para o processo de reconstrução atual.
Nesse momento, é natural haver uma efervescência de perspectivas, propostas e apostas para a agenda pública nacional, inclusive porque o próprio Governo pede participação, reativando canais e instâncias participativas e encorajando uma postura proativa por parte da população brasileira. Não podemos perder de vista, portanto, que temos alguns desafios para o campo democrático e popular.
Para essa reconstrução, é necessário, em primeiro lugar, pensar na política como um ato de cuidar das pessoas, para seguir em contraposição ao fascismo. Política como cuidado, no sentido de que ser uma prática que visa, em última instância, o bem comum. No modelo contemporâneo, que foi renovado, ainda há algumas religiões neopentecostais dando suporte a uma política antidemocrática, o que também se vê em mídias sociais. Se a política foi algo “demonizado” pela extrema direita, faz-se necessário reconstituir, com a população, um entendimento mais amplo sobre tal polêmica que contemple a arte de dialogar com as diferenças e de compor entendimentos para construir pactuações de projetos, programas, ações e propostas que possam dar condições para a vida com dignidade.
Em segundo lugar, é necessário dar atenção à cultura, em sua dimensão ética e política, desconstruindo-se a ideia de cultura apenas como arte ou artesanal, mas incluindo a compreensão da cultura como o jeito de viver, de pensar e de agir das pessoas e de seus coletivos. É fundamental resgatar a dimensão da cultura no povo, porque, como disse Paulo Freire, não há como pensar em mudança social a não ser reconhecendo as culturas e mergulhando na cultura das pessoas.
Um terceiro elemento está na dimensão da saúde emocional das pessoas, porque não se tem cuidado disso e a EP pode dar uma contribuição importante. A sociedade brasileira está, ainda hoje, nitidamente dividida em grandes blocos. É preciso aprender a lidar com as tensões, disputas e conflitos que existem no relacionamento dos diversos atores. Em nosso ver, o campo democrático e popular não tem dado a atenção necessária a essa dimensão emocional. Inspirados na obra profunda e significativa de Paulo Freire22 Freire P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992., especialmente ancorados na categoria da amorosidade, podemos dizer que é fundamental partir de uma experiência de educação emocional para que se possa ter saúde emocional, o que pressupõe o exercício de uma dimensão da inteligência emocional também. Evidentemente, Freire não falou sobre a inteligência emocional; no entanto, inspirados em sua obra humanista e profundamente amorosa, podemos e devemos refletir sobre o fato de que os processos educativos em EP devem contemplar uma abertura tanto para o diálogo sobre como as pessoas convivem e lidam com essa dimensão do seu ser, bem como sobre exercitar vivências e momentos nos espaços educativos, em que essa dimensão seja valorizada e fortalecida mediante estratégias como a vivência com Práticas Integrativas e Populares de Cuidado, como a meditação, a reflexologia, o reiki, entre outras, que evocam a dimensão da autopercepção, do silêncio reflexivo, que abrem a possibilidade de as pessoas explorarem outras dimensões do ser que não apenas aquelas meramente objetivas, acionando o seu ser espiritual.
Por conseguinte, falar dessa dimensão da consciência do sagrado em nós é uma forma tanto de nos encontrarmos como de pensar e dialogar com o outro sobre uma nova ética e uma nova roupagem, a fim de pautar o emocional e o espiritual nos sentidos que esses elementos trazem para suas vidas, inclusive como forma de criar alternativas a experiências religiosas excludentes e ultraconservadoras que vieram permeando e se difundindo cada vez mais em nosso país nos últimos anos. É válido considerar que o campo democrático e popular perdeu muito de sua entrada, abertura e convivência nas bases, justamente por sua recusa tácita a discutir objetivamente esses elementos de ordem mais metafísica e abstrata.
Para se fazer EP, por meio dos apontamentos que aqui apresentamos, inclusive de organizar a base e fazer processos educativos de alimentação da luta política, garantia de direito e de políticas para o Estado Democrático de Direito, é fundamental retomarmos conexões mais profundas com as pessoas, e isso requer aprender ou reaprender a lidar com dimensões do emocional e do espiritual.
Como outra perspectiva relevante para pensar a EPS no presente e no futuro, destacamos que ela deve andar sempre com a participação social, permitindo o exercício do protagonismo e do empoderamento dos cidadãos e de seus movimentos, coletivos e organizações. Participar é um exercício formador de cidadãos que, permanentemente, se envolvem de forma compromissada e corresponsável na dinâmica de suas realidades sociais, tendo, portanto, uma postura propositiva e crítica diante dos problemas, enfrentando e buscando a superação desses problemas, construindo uma agenda pública. Trata-se, enfim, de participar para poder tomar parte no processo de decisão sobre aspectos sociais e coletivos da vida das pessoas e das comunidades.
Por meio da participação social, busca-se fomentar o exercício da cidadania, na perspectiva do envolvimento proativo, crítico e protagonista das pessoas na ação, na proposição e no controle das políticas públicas do Estado e nas possibilidades de enfrentamento aos problemas sociais. A dimensão da ação, para o cidadão, localiza-se no plano da execução, do fazer. Cada pessoa adulta deve optar por um trabalho, seja como autônomo, empregado, funcionário público, seja como empresário ou gestor, assumindo um papel na sociedade com o desempenho de sua função. O compromisso de cada pessoa é desempenhar bem a sua função, tanto a mais simples como a mais complexa das atividades. Há, sabe-se, outras atividades executivas que vão além da função ou são transversais a ela, a exemplo de se exercer uma liderança social ou mesmo o papel de educador, geralmente em primeira oportunidade, dos próprios filhos e, ao mesmo tempo, da cultura. A sociedade acontece na interdependência das ações individuais, e todos os indivíduos contam com o compromisso profissional e pessoal de cada um1414 Brutscher VJ, Cruz PJSC. Participação social na perspectiva da educação popular: suas especificidades e potencialidades na atenção primária à saúde. Cad Cimeac. 2020; 10(1):126-52. e precisam dele.
A participação é, portanto, fundamental na perspectiva de assegurar a saúde como direito, não apenas porque está garantido na Constituição Federal, mas pelo compromisso ético em fazer da saúde mais uma das ações da esfera pública que possa contribuir e fazer avançar o reconhecimento, a concretização e a promoção plena dos direitos humanos na ação das políticas sociais e do Estado.
Um elemento importante de potencialidade da participação social como dimensão das práticas de saúde está em sua ênfase na aplicação do princípio constitucional da participação da comunidade como orientadora da gestão das políticas. Então, construir o serviço de forma participativa não configura uma opção individual de trabalhadores e gestores de uma ou outra Unidade Básica de Saúde (UBS), tampouco é um favor que se concede a quem quer que seja; trata-se tão somente de aplicar um princípio constitucional e uma orientação teórico-metodológica e política basal para o próprio conceito do que seja a APS. Ademais, começar a cultivar a cultura de participação social na capilaridade do cotidiano dos serviços significa contribuir para que essa cultura vá se difundindo para instâncias e espaços cada vez maiores em sua escala, como na gestão da Secretaria Municipal de Saúde, da Secretaria Estadual de Saúde e do Ministério da Saúde.
Dessa maneira, uma potencialidade dos processos de EPS está na promoção de procedimentos, dinâmicas, vivências e processos de ensino e aprendizagem das pessoas, direcionados à sua mobilização para a participação social nas políticas públicas e na vida pública nacional, semeando com as pessoas a compreensão da saúde como direito humano e social.
Considerações finais
Nos tempos atuais, em que a vitória da democracia em 2022 ainda convive com movimentos antidemocráticos e de cunho fascista e ultraconservador na sociedade brasileira, a EPS ainda nos ensina ser necessário cultivar, cada vez mais, práticas e experiências democráticas no cotidiano dos serviços. Participar é verbo que se conjuga e se aprende em ação. Todas as intenções democráticas e participativas expressas em nosso aparato institucional de quase nada vão adiantar se cada um de nós não se permitir exercitar a promoção de espaços e experiências de participação democrática nos serviços, em todos os espaços e ações e nas relações sociais das quais participamos em nossas UBS. A participação precisa transbordar a realização de instâncias e espaços formais, como conselhos e conferências, buscando permear outras ações e experiências em nossos serviços, de maneira que possamos experimentá-las no nosso dia a dia.
Outro desafio importante da EPS, em seus movimentos e práticas e na atual gestão do SUS, é produzir oportunidades e estratégias para incluir, de forma protagonista, os saberes e os interesses da comunidade na forma de conduzir as ações dos serviços de saúde. Pouco adianta trabalhar em nossas unidades de saúde nos territórios, na busca por conquistar impactos positivos na situação de saúde local, se sabemos da existência de práticas populares de cuidado e de lideranças comunitárias e continuamos restringindo nosso fazer a um serviço técnico. Pelo contrário, precisamos, a todo tempo, procurar, reconhecer, valorizar e incluir os protagonistas populares e comunitários locais na construção das ações de saúde no território.
Diante disso, mesmo que seja no cotidiano da organização das ações e dos serviços de saúde em nossa UBS, é fundamental alimentar e construir outras perspectivas de cultura política participativa. Com nossos gestos, nossas ações e nossas iniciativas, demonstrar, de forma contundente, que o lugar da classe trabalhadora é o de participar, de forma protagonista, da vida e da organização social de seu território e de seu país.
Para tanto, é fundamental não esperar, mas fazer acontecer. Participação se desenvolve, se alimenta e se aprimora em ato. É importante, portanto, investir na operacionalização e no desenvolvimento de espaços e instâncias concretas em que a população possa exercitar esse papel protagonista e de um olhar crítico, propositivo e proativo ante a realidade de saúde de seu território e as ações ofertadas pela UBS na qual está adscrita.
Parece-nos salutar pensar e agir na direção de que a EPS deve contribuir não só com os processos organizativos e pedagógicos do SUS, mas, especialmente, colaborar para que tanto a gestão quanto os processos de Atenção à Saúde e de Educação Permanente, educação em saúde e de educação para o controle social e a participação das pessoas se orientem pelo humanismo, pela amorosidade, pela emancipação, pela criticidade, pela historicidade e pela luta de classes (opressores e oprimidos), como nos ensinam os principais pensadores do campo democrático e popular, entre os quais destacamos Paulo Freire, Conceição Paludo e Carlos Rodrigues Brandão.
O fortalecimento e a dinamização da participação social como dimensão importante da APS se dará, fundamentalmente, à medida que possamos fortalecer e incluir a abordagem comunitária como atividade essencial no cotidiano das ações e dos serviços desenvolvidos no nível da Atenção Primária à Saúde. De modo geral, essa abordagem pode ser compreendida como processo de articulação, construção e organização de contato intencional e de aproximação entre profissionais e protagonistas da comunidade, por cujo intermédio se criam espaços e oportunidades para o diálogo, para o intercâmbio de informações e experiências com a população, de maneira que se possa tomar conhecimento de um conjunto de questões e demandas suficientes para a ação profissional e para estabelecer relações de cooperação e parceria local.
Urge, portanto, entender a abordagem comunitária como estratégia para potencialização do trabalho na Atenção Primária à Saúde e para a dinamização da dimensão da promoção da saúde e da vigilância em saúde, principalmente de forma que sejam construídas com as pessoas do território e da comunidade e não apenas para as pessoas ou apesar das pessoas. Ou seja, que a promoção e a vigilância em saúde possam ser tecidas, em suas ações várias, de forma compartilhada com as pessoas, entendendo que, na comunidade, há diferentes grupos e instituições que têm protagonismo, sabedorias e experiências em saúde, assistência e proteção social, tendo, portanto, plena possibilidade de contribuir com o processo de cuidado em saúde.
- Cruz PJSC, Silva JC, Danielski K, Brito PNA. Educação popular em saúde: princípios, desafios e perspectivas na reconstrução crítica do país. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230550 https://doi.org/10.1590/interface.230550
Referências
- 1Valla VV. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes populares. Educ Realidade. 1996; 21(2):77-190.
- 2Freire P. Pedagogia da esperança: reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1992.
- 3Brasil. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Política Nacional de Educação Popular em Saúde. Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (Cneps). Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
- 4Bornstein VJ. Princípios pedagógicos do curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde. In: Bornstein VJ, Alencar A, Leandro BBS, Matielo E, Nespoli G, Goldschmidt IL, et al., organizadores. Textos de apoio do curso de aperfeiçoamento em educação popular em saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2016. p. 15-20.
- 5Araújo RS, Cruz PJSC, Vasconcelos ACCP, Pereira EAAL, Nascimento BGS, Mélo CT. Educação popular na atenção primária à saúde: sistematização de experiências com grupos comunitários de promoção da saúde. Rev Conexao EUPG. 2021; 17:1-22.
- 6Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1; 2018.
- 7Almeida SL. Necropolítica e neoliberalismo. Cad CRH. 2021; 34:e021023. doi: 10.9771/ccrh.v34i0.45397.
» https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.45397 - 8Menezes P, Fleury S. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saude Debate. 2020; 44(Spec No):267-80.
- 9Fleury S. Capitalismo, democracia, cidadania: contradições e insurgências. Saude Debate. 2018; 42(3 Spec No):108-24.
- 10Hallal PC. SOS Brazil: science under attack. Lancet. 2021; 397(10272):373-74.
- 11Hallal PC. SOS Brazil: democracy under attack. Lancet. 2022; 400(10349):355.
- 12Morel APM. Negacionismo da Covid-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab Educ Saude [Internet]. 2022 [citado 27 Jul 2023]; 19:14. Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/525
» https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/525 - 13Calado AJF. Educação popular como processo humanizador: quais protagonistas? In: Cruz PJSC, Vasconcelos ACCP, Sousa LMP, Tófoli AMMA, Carneiro DGB, Alencar IC, organizadores. Educação popular e nutrição social: reflexões e vivências com base em uma experiência. João Pessoa: UFPB; 2014. p. 355-75.
- 14Brutscher VJ, Cruz PJSC. Participação social na perspectiva da educação popular: suas especificidades e potencialidades na atenção primária à saúde. Cad Cimeac. 2020; 10(1):126-52.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
07 Nov 2023 - Aceito
27 Fev 2024