Apresentação - Experiências e políticas do cuidado durante e após a pandemia de Covid-19: um diálogo entre Brasil e Argentina

Presentation - Care experiences and policies during and after the Covid-19 pandemic: a dialogue between Brazil and Argentina

Presentación - Experiencias y políticas de atención durante y después de la pandemia Covid-19: un diálogo entre Brasil y Argentina

Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo Johana Kunin Rosamaria Giatti Carneiro Sobre os autores

O Brasil iniciou os seus debates sobre uma Política Nacional de Cuidados no ano de 2023, depois da nova eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Para tanto, foi criada, no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), a Secretaria Nacional de Cuidado e Famílias (SNCF), bem como um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com 17 representações, mais a Fundação Osvaldo Cruz e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83..

O objetivo é, mediante uma expressiva consulta pública, construir as bases de um sistema que reconheça o cuidado como um dever e um direito, de modo que este se destaque do que atualmente é visto como assistência social, educação e saúde. Nesse sentido, o cuidado enquanto uma prática passa a ser visto como mais uma esfera da vida social a ser garantida e amparada pelo Estado, bem como compreendida pela ideia de intersetorialidade e interseccionalidade.

O cuidado na política é entendido como um direito humano universal. Isso significa que todas as pessoas têm direito ao cuidado (a cuidar, a ser cuidado e ao autocuidado), e que ele seria um bem público essencial para o funcionamento da sociedade e da economia. Além disso, o cuidado se configura como um direito e uma necessidade de todas as pessoas, sendo que as necessidades de cuidado seriam maiores em certos momentos do ciclo da vida e em certas condições – por exemplo, crianças (em especial, na primeira infância), adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência são pessoas que precisariam de um cuidado maior22 Brasil. Presidência da República. Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil [Internet]. Brasília: Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família; 2023 [citado 13 Nov 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/marco-conceitual-da-politica-nacional-de-cuidados-do-brasil
https://www.gov.br/participamaisbrasil/m...
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As políticas de cuidados são políticas públicas cujo objetivo é reorganizar e compartilhar a responsabilidade social pelos cuidados por meio de um conjunto de iniciativas que visam atender às necessidades de quem demanda cuidados e de quem cuida. É por meio delas que o Estado se torna corresponsável e indutor da construção de uma nova organização social de cuidados, que envolva não apenas a família, mas também o mercado, as empresas, a comunidade e a sociedade civil; e que seja constituída pela igualdade, inclusão, justiça e democracia22 Brasil. Presidência da República. Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil [Internet]. Brasília: Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família; 2023 [citado 13 Nov 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/marco-conceitual-da-politica-nacional-de-cuidados-do-brasil
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A justificativa para essa discussão está no reconhecimento de que a atual organização social dos cuidados é desigual e se sustenta em um modelo de cuidado familiar que se baseia principalmente no trabalho não remunerado das mulheres33 Hirata H. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo; 2022.. Essa realidade – somada à grande pressão que recai sobre a renda familiar; ao desigual acesso a serviços de qualidade; e a barreiras para o acesso à educação e ao trabalho – compromete a autonomia econômica das mulheres e reproduz a pobreza e a desigualdade, afetando de forma mais perversa as mulheres negras11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83..

Para isso, temos nos inspirado em países vizinhos como Chile, Uruguai e Argentina, que já possuem seus sistemas e políticas locais de cuidado. Esse debate, entretanto, só pôde encontrar guarida e expressividade quando governos progressistas foram eleitos e assim tiveram contexto favorável ao seu reconhecimento como uma demanda importante a ser considerada.

Desde o final de 2019, o cuidado tem sido fortemente discutido na agenda pública nacional na Argentina. Em 2023, o projeto de lei “Cuidar en Igualdad” (Cuidar em Igualdade) foi discutido, mas não foi aprovado. Esse projeto de lei buscava criar um sistema integral de cuidados com perspectiva de gênero, ou seja, um conjunto de políticas e serviços que garantisse provisão, socialização, reconhecimento e redistribuição do trabalho de cuidados entre o setor público, o setor privado, as famílias e as organizações comunitárias e entre todas as identidades de gênero, de modo que todas as pessoas tivessem acesso igualitário aos direitos de cuidar e ser cuidado. O projeto de lei também promoveu a expansão da oferta de serviços e infraestrutura de cuidados; reconheceu e buscou fortalecer o trabalho de cuidados em nível comunitário; e reconheceu o tempo para cuidados por meio da modificação do regime de licenças públicas e privadas, entre outras ações.

Como houve uma mudança completa na orientação do atual governo nacional argentino, resta saber se essa questão será retomada. Por outro lado, entre 2020 e 2023, funcionou em nível nacional a Mesa Redonda Interministerial sobre Políticas de Cuidado, que reuniu 15 órgãos do Poder Executivo Nacional para discutir e planejar políticas que contribuam para uma organização social mais justa do cuidado – de modo a alcançar uma melhor redistribuição familiar e social da tarefa, bem como uma melhor redistribuição entre os gênero – e para o reconhecimento do cuidado como uma necessidade, como um trabalho e como um direito.

Os órgãos nacionais envolvidos foram: Ministério do Desenvolvimento Social; Ministério do Trabalho, Emprego e Previdência Social; Ministério da Educação; Ministério da Saúde; Ministério da Economia; Ministério do Desenvolvimento Produtivo; Ministério de Obras Públicas; além das agências Instituto Nacional de Serviços Sociais para Aposentados e Pensionistas (PAMI); Agência Nacional para Deficiência (ANDIS); Administração Nacional de Seguridade Social (ANSES); Administração Federal de Receitas Públicas (AFIP); Instituto Nacional de Estatística e Censo (INDEC); (Instituto Nacional de Associativismo e Economia Social (INAES) e Conselho Nacional de Coordenação de Políticas Sociais.

Antes do tema cuidado ingressar na agenda pública dos países, debates teóricos e políticos foram travados pelos muitos feminismos e por cientistas sociais dedicadas a refletir sobre as muitas expressões do tema. Dessa feita, quando os governos progressistas foram escolhidos e integraram a discussão do cuidado na agenda pública, muito já se havia gestado nas ruas e nas universidades ao redor do cuidado. Os estudos sobre o care datam dos anos de 1980 e 1990 nos Estados Unidos – com autoras como Carol Gilligan, Joan Tronto e Arlie Hochshild – e dos anos de 1990 e 2000 na Europa, sobretudo, com Pascale Molinier e Helena Hirata.

Essa discussão adquire espaço na América Latina mais expressivamente na última década, como bem pontua a socióloga Karina Batthyany44 Batthyany K. Miradas Latinoamericanas al cuidado. In: Batthyany K, coordenadora. Miradas latinoamericanas a los cuidados. Buenos Aires, México: Siglo Veintiuno Editores, CLACSO; 2020. p. 11-52., que inclusive salienta o aumento do número de publicações, entre livros, coletâneas e dossiês de revistas científicas, às voltas com o cuidado e com suas políticas macro e localmente desenhadas, por meio de estudos quantitativos, mas, sobretudo, qualitativos.

Como objeto empírico e categoria analítica, o cuidado tem sido estudado há pelo menos duas décadas e de forma a integrar diferentes áreas do conhecimento. Por exemplo, no Direito há Pautassi55 Pautassi L, Zibechi C. Las fronteras del cuidado. Buenos Aires: Biblos; 2013. e Ferrito66 Ferrito B. Direito e desigualdade: uma análise da discriminação das mulheres no mercado de trabalho a partir dos usos dos tempos. Rio de Janeiro: LTR; 2021.; na Psicologia, Molinier e Paperman77 Molinier P, Legarreta M. Subjetividad y materialidad del cuidado: ética, trabajo y proyecto político. Papeles CEIC. 2016; (1):1-14.; na Política Social, Daly e Lewis88 Daly M, Lewis J. The concept of social care and the analysis of contemporary welfare states. Br J Sociol. 2000; 51(2):281-98.; e na Sociologia do Trabalho, Guimarães, Hirata e Sugita99 Guimarães NA, Hirata HS, Sugita K. Cuidado e cuidadoras: o trabalho de care no Brasil, França e Japão. Sociol Antropol. 2011; 1(1):151-79..

No Brasil, Nadya Araujo e Helena Hirata realizam há décadas o debate ao redor do trabalho do cuidado e uso do tempo, enquanto no campo da Saúde encontramos Ricardo Ayres e, mais recentemente, Nelson Filice.

Na Argentina, perspectivas como as de Esquivel, Faur e Jelin1010 Esquivel V, Faur E, Jelin E. Las lógicas del cuidado infantil: entre las familias, el Estado y el mercado. Buenos Aires: IDES, UNICEF, UNFPA; 2012.; Pautassi e Zibecchi1111 Pautassi L, Zibechi C. Las fronteras del cuidado. Buenos Aires: Biblos; 2013.; Faur1212 Faur E. El cuidado infantil en el siglo XX: mujeres malabaristas en una sociedad desigual. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2014.; Rodríguez Enríquez1313 Rodríguez Enríquez C. Economía feminista y economía del cuidado: aportes conceptuales para el estudio de la desigualdad. Nueva Soc. 2015; (256):30-44.; e Faur e Pereyra1414 Faur E, Pereyra F. Gramáticas del cuidado. In: Piovani JI, Salvia A, editores. La Argentina del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2018. p. 495-532. estudaram o cuidado como uma forma ou prática de organização social que permite “dar conta das instituições que envolve, das relações de gênero que implica e das desigualdades sociais que recria”1212 Faur E. El cuidado infantil en el siglo XX: mujeres malabaristas en una sociedad desigual. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2014. (p. 20).

De nossa parte, entendemos que, para além dessas duas grandes contribuições para o incremento da discussão ao redor do cuidado, a pandemia de Covid-19 também intensificou a reflexão sobre as práticas de cuidado; sobrecarga; direitos e deveres do Estado; e economia do cuidado e as políticas ao seu redor. Na realidade, tendemos a considerar que a pandemia de Covid-19 pode ter sido decisiva no sentido de impulsionar tal reflexão teórica de maneira mais reconhecida e mobilizações políticas ao redor do assunto.

Ao olharmos para as publicações no Brasil e na Argentina, vemos o aumento significativo de artigos científicos e da edição de políticas públicas estatais sobre o cuidado, que são documentos cujo intuito consiste em detalhar como o cuidado se configura; como é considerado estatalmente; quem e como o realiza; quais são os tipos de cuidado operantes; o que aconteceu durante o período do isolamento; e as possíveis relações entre o tempo do cuidado e o trabalho produtivo11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83.,1515 Araujo DFMS. Reconfigurações nas agendas de cuidados? Um estudo comparado entre Argentina e Brasil. Foz do Iguaçu: CLAEC; 2023..

As produções de pesquisadoras argentinas integraram produções técnicas da Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; e subsidiaram projetos políticos e legislativos em curso. O diálogo regional com outras pesquisadoras, inclusive brasileiras, tem acontecido em território tanto argentino quanto brasileiro. As novas discussões que aconteceram a partir da pandemia se transformaram em produções teóricas, produções metodológicas e em relatos de experiência, que têm sido publicados por núcleos de pesquisa em ambos os países, mas também de forma coletiva em dossiês, trabalhos técnicos e livros produzidos em âmbito regional11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83..

Observa-se que o advento da pandemia de Covid-19 influenciou produções e eventos na academia, privilegiando a discussão sobre o tema dos cuidados a partir de diferentes perspectivas11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83.. De acordo com Araújo11 Araujo DFMS, Carneiro RG. O processo de construção de uma política de cuidados no Brasil e na Argentina: uma perspectiva comparada. Confluencias. 2023; 25(2):160-83., foram mais de vinte eventos realizados somando os dois países, além das programações em nível executivo, como a XV Reunião da Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e o Caribe, com a pauta “A liderança das mulheres nas agendas de cuidado: do porquê às estratégias”, que aconteceu na Argentina, em 2022.

Por conta da quarentena, as redes sociais de ajuda e os arranjos de apoio nas tarefas produtivas e reprodutivas – entre escolas, creches e redes de vizinhança ou familiares – se viram entrecortadas e as famílias nucleares se viram sobrecarregadas, sobretudo as mulheres que cuidam de crianças, de adolescentes e de pessoas idosas. Porém, a intensidade com que as casas passaram a ser vividas e experimentadas contribuiu para que as colocássemos sob as lentes da mídia, das notícias e dos artigos acadêmicos desabafos sociais.

A casa, a nossos olhos, talvez nunca tenha sido tão pensada, analisada e descrita. Dela despontara o trabalho do cuidado como com uma dimensão superimportante na vida social, com tarefas que tomam tempo, que não são reconhecidas e que agenciam relações sociais das mais distintas ordens1616 Kunin J. El poder del cuidado: mujeres y agencia en la pampa sojera argentina [tese]. Buenos Aires: Universidad Nacional de San Martín; 2019.. Não que o debate sobre o cuidado já não estivesse sendo realizado, mas a realidade da “casa pandêmica” – condensada; acachapada1717 Carneiro R, Maluf SW. A “mãe amorosa”: uma antropologia da economia política das emoções. Atlanticas Rev Int Est Fem. 2023; 8(1):259-94.; e de extrema sobrecarga de trabalho produtivo e reprodutivo – descortinou o tempo gasto com o trabalho de limpeza, da cozinha e do asseio das crianças, bem como a sua baixíssima remuneração.

As famílias de camadas médias e altas se viram às voltas com trabalhos que até então não realizavam e viram o seu tempo tomado com tais esferas da vida, que envolvem não somente a casa, mas também a escola e o ensino das crianças. Entre as camadas populares, os arranjos também foram urgentes e ainda mais complexos, pois as escolas permaneceram fechadas por mais de um ano e as mães precisavam trabalhar ou perderam seus empregos. Por essas e outras razões, nem sempre ou quase nunca o isolamento social foi possível na periferia.

Durante a pandemia, na Argentina, assistimos à promulgação de leis importantes no que tange aos direitos das mulheres e diversidades. Foi emitido o Decreto n. 721/2020, que trata sobre cotas de emprego para pessoas transgênero no setor público nacional, que estabelece que os cargos devem ser preenchidos por pessoas transgênero em uma proporção não inferior a 1%. Além disso, após anos de luta do movimento feminista, foi aprovada a Lei n. 27.610, que trata sobre o acesso à interrupção voluntária da gravidez. Também foi aprovada a Lei n. 27.610, que versa sobre cuidados de saúde abrangentes durante a gravidez e a primeira infância. Em 2021, foi emitido o Decreto Presidencial n. 476/21, incorporando a nomenclatura “X” na carteira de identidade nacional e no passaporte para cidadãos argentinos como uma opção para pessoas que não se identificam como homem (“M”) ou mulher (“F”).

No Brasil e em outros países, assistimos a um retrocesso muito grande no que tange aos direitos das mulheres, não somente quanto a seus direitos reprodutivos e sexuais, mas também aos de todas as ordens. Durante a pandemia, as mulheres deixaram de fazer pré-natal, empobreceram, perderam trabalho, demoraram muito para serem vacinadas, tiveram o direito ao aborto legal negado, deram à luz sozinhas, não tiveram acesso ao contraceptivo e padeceram com o trabalho de cuidado e com a violência doméstica. Bem ao contrário do que vimos no país vizinho, deixamos de ter acesso aos direitos garantidos e perdemos os que nem mesmo tínhamos conquistado formalmente. Vivemos uma onda conservadora e misógina cujo entendimento que prevalecia era o de que os cuidados cabiam às famílias (dos idosos, das crianças e das pessoas com deficiência) – sendo que, na pandemia, tais cuidados foram ainda mais privatizados – e de que as mulheres deveriam ser “belas, recatadas e do lar”, como anunciado em fala oficial presidencial.

A ideia deste dossiê, portanto, nasce do desejo de compilarmos estudos, pesquisas e produções isoladas sobre as agendas do cuidado em contextos próximos, mas muito divergentes, de modo a pensar mais amplamente sobre a pandemia e o contexto latino-americano. Interessa-nos explorar, por meio dessa articulação, as aproximações e os distanciamentos teóricos às voltas com o tema do cuidado produzidos no Brasil e na Argentina; e descobrir quem são as principais autoras e referências, os estudos mais destacados e os avanços conceituais.

Quais os caminhos percorridos no debate conceitual travado ao redor do cuidado, seus entraves e mapas empíricos? Do mesmo modo, instiga-nos refletir sobre realidades diversas de condução governamental da pandemia e sobre os seus reflexos sociais; e, por fim, acompanhar o crescimento e a instalação do Sistema Nacional de Cuidados na Argentina, à lá o que já existe no Uruguai desde 2015.

Por fim, antes de adentrar nos breves comentários dos textos aqui compilados, vale também dizer que este dossiê nasce de um evento que organizamos na Universidade de Brasília – Rosamaria Giatti e Danielle Medeiros, e do qual Johana Kunin participou como conferencista –, intitulado Seminário Internacional “Reconfigurações nas agendas de cuidado em tempos pandêmicos: reflexões sobre o Brasil e a Argentina” e que ocorreu durante os dias 25 e 26 de agosto de 2022. No evento, reunimos diversas pesquisadoras brasileiras e argentinas em múltiplas mesas temáticas, a saber: “Nueva reconfiguración de género y cuidado en las políticas públicas: una mirada desde la experiencia argentina; “Pandemia, feminismo e múltiplas parentalidades”; “Pandemia e desigualdades: múltiplos olhares”; “Saúde mental, gênero e pandemia”; “Novas gramáticas do cuidado pós-pandemia”; e “O feminismo desde el Sul: perspectivas para o presente”.

Cita-se a participação das pesquisadoras Valeria Llobet ( Centro de Estudios Desigualdades, Sujetos e Instituciones – Cedesi / Laboratorio de Investigación en Ciencias Humanas – LICH / Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – Conicet), Denise Pimenta (Universidade de São Paulo – USP), Alessandra Rinaldi (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ), Johana Kunin (Eidaes, Unsam - Escuela Interdisciplinaria de Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martín – EIDAES, UNSAM / Conicet e École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS), Walkyria Chagas (Universidade Federal do Tocantins – UFT), Nadya Araújo Guimarães (USP), Valeska Zanelo (UnB); María Fernanda González (Universidad Nacional de Entre Ríos), Alejandro Goldberg (UnB), Eliene Rodrigues Putira Sacuena (técnica na Coordenação Estadual de Saúde Indígena e Populações Tradicionais – CESIPT / Secretaria de Estado de Saúde Pública – Sespa), Márcia Reis Longhi (Universidade Federal da Paraíba – UFPB), Eleonor Faur (Universidad Nacional de General Sarmiento – UNGS/ Instituto de Desarollo Económico – Ides), Adriana Manta (juíza do Tribunal Regional do Trabalho, 5ª Região) e Karina Bidaseca (Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto).

Nesse sentido, a densidade do evento proposto foi tão rica que nos pareceu merecer uma publicação pública e de acesso livre, materializada no presente dossiê. Dessa proposta participaram algumas das autoras que lá estiveram conosco, como Márcia Reis Longhi, Alessandra Rinaldi, Walkiria Chagas, Denise Pimenta e Maria Fernanda González. Em seguida, somaram-se Marina Moguillansky e Carolina Duek, sendo argentinas as últimas quatro. São autoras e pesquisas de diversas regiões do Brasil e da Argentina com perspectivas diferentes, em relação tanto aos temas quanto aos grupos com os quais trabalharam.

Por isso, as contribuições aqui agregadas nos permitem ter uma ideia bastante ampla de como foi a experiência da pandemia lá e aqui, mostrando-nos, inclusive, as ambiguidades internas de cada uma e em cada contexto. Dessa forma, longe de querer enaltecer um contexto social em detrimento do outro (Argentina ou Brasil), pretendemos mostrar a pluralidade de ações implementadas pela Argentina, por vezes, bastante diferente da nacional, em outras, bem parecida.

No final, os artigos nos permitiram também tensionar os desenhos de experiências locais e nacionais com estudos predominantemente qualitativos, mas também quantitativos, ao redor de temas como saúde mental das mulheres; sobrecarga do trabalho invisível do cuidado e acirramento de desigualdades sociais sob os marcadores de classe social, raça e geração durante a pandemia de Covid-19, sem homogeneizar o que foi a experiência da pandemia de Covid-19 no Brasil e na Argentina.

Alessandra Rinaldi, André Vicente, Giulia Escuri e Juliana Rocha1818 Rinaldi AA, Vicente ALC, Escuri G, Rocha JN. Gestar, parir e não se tornar mãe: recusas, impossibilidades e violações no contexto da Covid-19. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230070. doi: 10.1590/interface.230070.
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nos mostram como a pandemia afetou muito mais do que a Saúde Coletiva, chegando a impossibilitar até mesmo o exercício da parentalidade entre mulheres que decidiram pela “entrega voluntária” nas comarcas do Rio de Janeiro. Por meio de uma etnografia de documentos, analisaram processos judiciais e nos levam a refletir sobre como a Covid-19 tornara, em última instância, impossível o cuidar entre famílias pobres e pretas brasileiras, já que também tornou suas vidas ainda muito mais difíceis do que já eram.

A escassez de emprego e de uma perspectiva particularizada da pandemia que considerasse a desigualdade social; e a extrema vulnerabilidade, bem como casos de violência sexual e incerteza social, atravessam o texto, que problematiza, no limite, quem pode cuidar ou tem o direito de cuidar e quem pode negar o cuidado no contexto brasileiro.

Marcia Reis Longhi1919 Longhi MR. Cuidados, velhice e pandemia: algumas questões para pensar o cenário brasileiro. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230180. doi: 10.1590/interface.230180.
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nos leva a outro grupo social: os idosos, que são pessoas muito referidas durante a pandemia como “grupo de risco”, mas que, na verdade, não foram valorizados ou particularizados em sua condição durante esse momento crítico. A autora demonstra como o desmantelamento das poucas políticas voltadas aos idosos – como o não reconhecimento da profissional cuidadora e tantas outras – já estavam em curso antes do advento da pandemia.

Nesse sentido, a fragilidade social dos idosos é pregressa à pandemia, assim como o segredo das relações entre aqueles que cuidam e os que recebem os cuidados. Existe uma ideia de envelhecimento ativo, mas as políticas de geração de renda hierarquizam os próprios idosos. A pandemia escancara esse segredo do cuidado com os idosos, mostrando a fragilidade desses laços e o desamparo que já vinham apresentando e que somente se acentuou.

Denise Pimenta2020 Pimenta D. “Eu preferia estar doente!”: o cuidado a contrapelo - um breve ensaio sobre o que a pandemia de Covid-19 pode revelar acerca do ofício da antropóloga. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230074. doi: 10.1590/interface.230074.
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nos apresenta, em seu ensaio biográfico, como o cuidado é engendrado, cruzando a sua etnografia feita em Serra Leoa, durante a epidemia de ebola, e suas práticas de cuidado com o companheiro doente de Covid-19 em São Paulo. Explora o lugar das mulheres que cuidam e como essa tarefa é ambivalente, envolvendo afeto e repulsa. Em “Eu preferia estar doente”, a antropóloga nos faz refletir sobre a economia moral do cuidado nas particularidades das mulheres nesse cenário. Com sua escrita leve e cativante, coloca-nos diante das agruras do cuidado.

Marina Moguillansky e Carolina Duek2121 Moguillansky M, Duek C. La crisis de cuidados en primera persona: un estudio con mujeres cuidadoras de sectores populares del Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA), Argentina. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230256. doi: 10.1590/interface.230256.
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desalojam o nosso olhar para o contexto argentino, mais especificamente, para mulheres de periferia ou para camadas populares da cidade de Buenos Aires que cuidam de crianças e idosos. Partindo de um estudo de narrativas e do levantamento de suas biografias, pudemos constatar que a maioria se sentiu sobrecarregada durante a pandemia e passou a fazer uso de medicamento psicotrópico, padecendo de sofrimento psíquico por conta de sua situação de vida.

Walkyria Chagas2222 Guimarães WCSS. Reflexões sobre agendas de cuidado e população negra brasileira. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230076. doi: 10.1590/interface.230076.
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, por sua vez, mostra a realidade de mulheres periféricas que cuidam, que exercem o cuidado remunerado e que vivem do cuidado com os outros, sendo elas mulheres negras e periféricas. Ressalta, dessa forma, a realidade brasileira e sinaliza que a primeira mulher negra a morrer no Brasil foi uma trabalhadora doméstica negra, contaminada por seus patrões, que haviam voltado da Itália recentemente. Salienta ainda que inúmeras foram as denúncias de maus-tratos e cárcere privado de trabalhadora domésticas negras, que passaram a dormir e morar nas casas em que trabalhavam por conta da necessidade de isolamento social. O seu texto particulariza o debate sobre raça e pandemia e como essa interface é fundamental para entendermos quem morreu, quem cuidou e quem pôde cuidar.

Por último, vemo-nos diante do texto de Maria Fernanda González e Marina Mattioli2323 González MF, Mattioli M. Salud mental perinatal y cuidados. Intersecciones y reconfiguraciones en contexto de pandemia por Covid-19, en Argentina. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230068. doi: 10.1590/interface.230068.
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, que nos fazem pensar sobre a pandemia no contexto do interior argentino – mais especificamente, na província de Entre Rios, no Norte da Argentina – e sobre o cotidiano de mães e sua saúde mental diante da sobrecarga de trabalhos produtivo e reprodutivo. O interessante é que o estudo tem um caráter qualitativo, mas é de vasta extensão, pois as autoras escutaram trezentas mulheres. Muitos dados foram sistematizados de maneira quantitativa, o que singulariza o estudo, mas nos faz dialogar com o texto de Denise Pimenta2020 Pimenta D. “Eu preferia estar doente!”: o cuidado a contrapelo - um breve ensaio sobre o que a pandemia de Covid-19 pode revelar acerca do ofício da antropóloga. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230074. doi: 10.1590/interface.230074.
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, um dos primeiros do dossiê: ambos estudam o mesmo fenômeno, mas um na perspectiva macro e o outro na micro. O texto de Maria Fernanda González e Marina Mattioli2323 González MF, Mattioli M. Salud mental perinatal y cuidados. Intersecciones y reconfiguraciones en contexto de pandemia por Covid-19, en Argentina. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230068. doi: 10.1590/interface.230068.
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também contrasta com o de Marina e Carolina2121 Moguillansky M, Duek C. La crisis de cuidados en primera persona: un estudio con mujeres cuidadoras de sectores populares del Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA), Argentina. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230256. doi: 10.1590/interface.230256.
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ao pensar o assunto do cuidado a partir de mulheres de camadas médias, bem diferentes das mulheres cuidadoras de camadas populares da cidade de Buenos Aires. Ao final, tece recomendações, assim como o trabalho de Walkyria Chagas2222 Guimarães WCSS. Reflexões sobre agendas de cuidado e população negra brasileira. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230076. doi: 10.1590/interface.230076.
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e de Marcia Reis Longhi1919 Longhi MR. Cuidados, velhice e pandemia: algumas questões para pensar o cenário brasileiro. Interface (Botucatu). 2024; 28:e230180. doi: 10.1590/interface.230180.
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, para que pensemos em políticas específicas do cuidado.

Feitas essas considerações, esperamos que apreciem a leitura dos artigos e que possamos refletir sobre o cuidado durante a pandemia de modo polissêmico, comparativo e contrastado entre o marco e micro; o nacional e o estrangeiro; e a metrópole e o interior, de maneira a considerar raça, gênero e geração, entendo o cuidado, assim, como uma prática e uma relação social que, como tal, é totalmente atravessada pelo contexto e pela cultura local.

  • Araújo DFMS, Kunin J, Carneiro RG. Apresentação - Experiências e políticas do cuidado durante e após a pandemia de Covid-19: um diálogo entre Brasil e Argentina. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240043 https://doi.org/10.1590/interface.240043

Referências

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    Brasil. Presidência da República. Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil [Internet]. Brasília: Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família; 2023 [citado 13 Nov 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/marco-conceitual-da-politica-nacional-de-cuidados-do-brasil
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  • 3
    Hirata H. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo; 2022.
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  • 6
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  • 7
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2024
  • Aceito
    26 Mar 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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