Amamentação, internet e relações de poder

Lactancia, internet y relaciones de poder

Danila Cal Sobre o autor

Em artigo desta edição, Natália Fazzioni e Kátia Lerner11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
relacionam amamentação, maternidade e internet no Brasil tendo como campo de pesquisa a plataforma digital Baby Center, especificamente as discussões sobre amamentação na seção Comunidade na qual as usuárias postam e respondem a questões. O texto problematiza as formas pelas quais a experiência da amamentação é atravessada por informações disponíveis on-line e também pelas interações digitais entre as mães.

Dentre as contribuições do artigo de Fazzioni e Lerner11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
, destaco, a meu ver, três principais: trabalhar com uma perspectiva comunicacional e antropológica sobre amamentação, diferindo da maioria dos estudos que partem, sobretudo, do olhar médico e da Saúde Pública; realizar o gesto metodológico de ouvir mulheres que vivenciaram dilemas relacionados à amamentação e utilizaram a internet como fonte de informações e de interação com outras mães; desvelar tensionamentos e relações de poder que cercam a amamentação e, por consequência, a maternidade na contemporaneidade. Vou centrar o debate nos dois últimos tópicos, buscando refletir sobre as proposições do texto e agregar olhares complementares. Ressalto que interajo com o artigo por meio do lugar que ocupo como pesquisadora feminista, mãe e mulher da região amazônica.

Quanto à metodologia, a pesquisa realizou um mapeamento do conteúdo nas interações na Comunidade do Baby Center utilizando “leite” como palavra-chave. As autoras também fizeram entrevistas e examinaram as falas de cinco usuárias. A idade das entrevistadas variou de 24 a 38 anos; três identificavam-se como mulheres brancas, moradoras das capitais São Paulo e Rio de Janeiro; dessas, duas afirmaram receber de cinco a dez salários mínimos e uma mais de dez salários. As demais se identificaram como mulheres negras; uma moradora de município do Espírito Santo e outra de Nova Iguaçu (RJ); uma relatou receber até dois salários mínimos e outra até um salário.

Esse gesto de priorizar a escuta e as falas de quem experiencia o contexto investigado é fundamental para ampliar as perspectivas da academia sobre a realidade social e simbólica. As discussões teóricas e metodológicas dos feminismos do Sul Global e decolonial podem trazer contribuições importantes. Um primeiro ponto a ser considerado é, como pesquisadoras, interrogar nossos próprios pontos de vista e os espaços que ocupamos na história e na cultura22 Oyěwùmí O. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021..

Isso significa esclarecer as mediações que constroem nossos próprios olhares como pesquisadoras. Ochy Curiel33 Curiel O. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Hollanda HB, organizadora. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 120-39. argumenta sobre a necessidade de sujeitos subalternos deixarem de ser “objetos” e passarem a ser “sujeitos de conhecimento”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que é essencial trabalharmos um processo de desobjetificação de nossos interlocutores de pesquisa, também precisamos explicitar os lugares e os privilégios que ocupamos como pesquisadoras. A preocupação e o cuidado com as falas das entrevistadas expressos no texto de Fazzioni e Lerner11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
avançam nessa direção e servem de inspiração para essas outras proposições.

Outro desafio desse tipo de pesquisa é o de não universalizar “mulheres” e “gênero” como categorias homogêneas44 Esteves L. Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais: diálogos sobre (de)colonialidades e resistências comunicativas [tese]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2022.. Nesse sentido, é preciso levar em conta os atravessamentos de diferentes sistemas de opressão (como, por exemplo, colonialismo, racismo, sexismo, capitalismo, heteronormatividade) que complexificam os posicionamentos sociais e simbólicos das mulheres e, assim, inviabilizam uma monocategorização somente de gênero, classe, raça de modo isolado55 Lugones M. Rumo a um feminismo decolonial. In: Hollanda HB, organizadora. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 357-78..

Em relação ao desvelamento de relações de poder que cercam a amamentação e, por consequência, a maternidade, o artigo de Fazzioni e Lerner11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
aponta vários elementos que podem ser analisados à luz da discussão feminista sobre poder.

Partimos de uma construção teórica que procura pensar e observar relações de poder de modo a escapar do viés apenas da “dominação” para poder enxergar processos complexos pelos quais mulheres podem também resistir, agir politicamente e construir solidariedade66 Cal DGR. Comunicação e trabalho infantil doméstico: política, poder, resistências. Salvador: EDUFBA; 2016.. Baseamo-nos na chave de leitura indicada por Amy Allen77 Allen A. The power of feminist theory: domination, resistance, solidarity. Boulder: Westview Press; 2000. que discute os conceitos de “poder sobre”, “poder para” e “poder com” (power over, power to e power with) e os desenvolvemos por meio da relação com autores da filosofia política e das ciências sociais.

Algumas características centrais da ideia de “poder sobre” são66 Cal DGR. Comunicação e trabalho infantil doméstico: política, poder, resistências. Salvador: EDUFBA; 2016.: a) Capacidade de um ator ou grupo de atores restringir as opções disponíveis para outro ator ou grupos de atores, de maneira não trivial; b) Dominação fundamentada em crenças e costumes, como é o caso da dominação patriarcal; c) Internalização dos valores dominantes pelos dominados, de forma que a dominação seja percebida como um acordo tácito. Outro aspecto do poder que abordamos é o “power to” (poder para). Segundo Allen77 Allen A. The power of feminist theory: domination, resistance, solidarity. Boulder: Westview Press; 2000., esse termo se refere à capacidade de alcançar um ou vários objetivos e está relacionado à construção e à busca de projetos de vida. O empoderamento e a resistência são formas específicas do “power to”.

A última distinção analítica de poder que consideramos é o “power with” (poder com), que diz respeito à construção de uma vontade coletiva e à capacidade de agir em conjunto88 Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1994.. A solidariedade desempenha um papel fundamental nesse aspecto do poder e contribui para a formação de ações coletivas.

Ao justificarem a escolha de “leite” como termo para pesquisa na Comunidade on-line, Fazzioni e Lerner11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
discorrem sobre os diferentes sentidos em torno dessa palavra, desde amamentação até o uso de fórmulas infantis e/ou outros leites. As autoras argumentam que existe um padrão de comunicação oficial advindo de especialistas e de campanhas que pregam um modelo ideal de amamentação (por exemplo, o aleitamento materno exclusivo até os seis meses) “que atravessa a experiência das mães de forma determinista e oferece pouca escuta e visibilidade para aquilo que as mulheres fazem quando não podem ou não conseguem amamentar” (p. 5).

Há, desse modo, pressões externas sobre como a mulher-mãe deve agir que repercutem em pressões internas e, por vezes, geram sofrimento no período do puerpério. A nosso ver, esse processo é resultante de relações de poder como dominação, oriunda não apenas do patriarcado, mas da construção moral, social e política do que seria esperado para uma “boa mãe”. Essas regulações sociais e morais também atuam sobre a decisão a respeito do tipo de parto, de tal modo que seria preciso sentir as dores do parto para ser vista como “boa mãe”99 Lage LR, Cal D, Silva BTV. Corpo e poder: as condições de vulnerabilidade da mulher mãe no debate midiático sobre o parto. Cad Pagu. 2020; (59):e205915.. Tanto a amamentação quanto a decisão sobre o parto levantam questão sobre os limites e as possibilidades de liberdade e de autonomia da mulher-mãe.

Dessa forma, é de se esperar a tentativa recorrente das entrevistadas de procurar validar as escolhas que tomaram, após consultas à Comunidade, recorrendo a “evidências científicas” e/ou a recomendações oficiais. Há, contudo, a expressão de formas de resistência, como no caso relatado por Joana sobre a saída encontrada por ela para melhorar a amamentação ou o consumo de canjica como conhecimento popular para aumentar a produção de leite materno.

As entrevistadas indicam ainda que a procura por informações on-line ocorre “por não sentirem confiança, ou que haveria acréscimos nas informações que recebem ou receberão de profissionais de saúde (supostamente também cientificamente embasados)”11 Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
https://doi.org/10.1590/interface.220698...
(p. 9). Indagamos se essa desconfiança do saber médico estaria relacionada a outras violências ou interdições experienciadas durante a gravidez e o parto.

Na perspectiva da resistência e do “poder para” podemos analisar também o achado das autoras sobre a monetização dos aprendizados sobre maternidade com a criação de perfis nas mídias digitais. Nesse caso, parece haver uma convergência em relação a características da própria ambiência das mídias digitais, com o compartilhamento de momentos íntimos como forma de gerar maior engajamento e, consequentemente, monetização. A partir, então, da experiência da maternidade e da visibilidade dessas mídias, mulheres-mães identificam-se e são identificadas como especialistas.

Por fim, consideramos as relações estabelecidas no Baby Center como um processo de construção de vínculos e de solidariedade entre as mães na perspectiva do “poder com”. Trata-se da uma comunidade de partilha e de apoio mútuo num período em que a mãe é deixada socialmente de lado e as atenções e o cuidado social voltam-se para o bebê.

  • Financiamento

    Danila Cal é bolsista de pós-doutorado Capes no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde da Fiocruz e coordenadora do Projeto de Pesquisa Ecoaras - Comunicação, Democracia e Modos de (R)Existência de Mulheres na Amazônia, financiado pelo CNPq (processo n. 422492/2021-3).
  • Cal D. Amamentação, internet e relações de poder. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240105 https://doi.org/10.1590/interface.240105

Referências

  • 1
    Fazzioni NH, Lerner K. Agenciamentos de mulheres que amamentam: refletindo sobre amamentação, maternidade e internet no Brasil. Interface (Botucatu). 2024; 28:e220698. doi: 10.1590/interface.220698.
    » https://doi.org/10.1590/interface.220698
  • 2
    Oyěwùmí O. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021.
  • 3
    Curiel O. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Hollanda HB, organizadora. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2020. p. 120-39.
  • 4
    Esteves L. Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais: diálogos sobre (de)colonialidades e resistências comunicativas [tese]. Belém: Universidade Federal do Pará; 2022.
  • 5
    Lugones M. Rumo a um feminismo decolonial. In: Hollanda HB, organizadora. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 357-78.
  • 6
    Cal DGR. Comunicação e trabalho infantil doméstico: política, poder, resistências. Salvador: EDUFBA; 2016.
  • 7
    Allen A. The power of feminist theory: domination, resistance, solidarity. Boulder: Westview Press; 2000.
  • 8
    Arendt H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1994.
  • 9
    Lage LR, Cal D, Silva BTV. Corpo e poder: as condições de vulnerabilidade da mulher mãe no debate midiático sobre o parto. Cad Pagu. 2020; (59):e205915.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2024
  • Aceito
    25 Mar 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br