Participação social: teoria e prática na formação graduada em Terapia Ocupacional

Public participation: theory and practice in undergraduate occupational therapy training

Participación social: teoría y práctica en la formación graduada en terapia ocupacional

Ana Cristina Cardoso da Silva Fátima Correa Oliver Sobre os autores

Resumos

A participação social está nos debates sobre as transformações e a diversidade teórico-metodológica na Terapia Ocupacional. Com esse contexto, buscou-se identificar se a participação social, em seu âmbito teórico-prático, é abordada no processo de formação graduada em Terapia Ocupacional e como tem sido trabalhada com os alunos. De maneira colaborativa, terapeutas ocupacionais docentes de instituições de ensino superior públicas e privadas responderam a um questionário. A maioria incluiu o conceito nas discussões teóricas e na construção de práticas e pesquisas dentro e fora da sala de aula. Há relação entre os diferentes campos de atuação; ensino; pesquisa e extensão; modos e metodologias de trabalho; população atendida; seus contextos de vida, demandas e necessidades; e os pontos de vista sobre a participação social. Isso exemplifica a flexibilização dos currículos e a possibilidade de traçar diferentes caminhos para formação graduada.

Palavras-chave
Terapia Ocupacional; Participação social; Competências; Metodologias de ensinoaprendizagem; Docência


Public participation is part of the debate about transformations and theoretical and methodological diversity in occupational therapy. The aim of this study was to identify whether theoretical and practical aspects of public participation are addressed in undergraduate occupational therapy training and how it has been approached with students. Occupational therapy teachers from public and private universities answered a questionnaire. Most teachers included the concept in theoretical discussions and the development of practices and research inside and outside the classroom. There is a relationship between different fields of work, teaching, research and extension, working methods and methodologies, the population treated and their life contexts, demands and needs, and points of view of public participation. This exemplifies the flexibilization of curriculums and the possibility to chart different pathways for undergraduate training.

Keywords
Occupational therapy; Public participation; Competencies; Teaching-learning methodologies; Teaching


La participación social está en los debates sobre las transformaciones y la diversidad teórico-metodológica en la terapia ocupacional. Con ese contexto, se buscó identificar si la participación social, en su ámbito teórico-práctico, se aborda en el proceso de formación graduada en terapia ocupacional y cómo se aborda con los alumnos. De manera colaborativa, terapeutas ocupacionales docentes de instituciones de enseñanza superior públicas y privadas respondieron un cuestionario. La mayoría incluyó el concepto en las discusiones teóricas y en la construcción de prácticas y de investigaciones dentro y fuera del aula. Hay una relación entre los diferentes campos de actuación, enseñanza, investigación y extensión, los modos y metodologías de trabajo, la población atendida, sus contextos de vida, demandas y necesidades y los puntos de vista sobre la participación social. Eso ejemplifica la flexibilización de los currículos y la posibilidad de trazar diferentes caminos para la formación graduada.

Palabras clave
Terapia ocupacional; Participación social; Competencias; Metodologías de enseñanza-aprendizaje; Docencia


Introdução

A participação social tem sido estudada, definida e utilizada como categoria, conceito, noção ou palavra em diversas perspectivas e nos campos da Ciência Política, Educação, Direito, Sociologia, Serviço Social, Comunicação e Saúde. Consequentemente, apresenta vários sentidos e objetivos práticos, teóricos, institucionais ou extrainstitucionais.

Em um percurso de usos, apropriação, invenção e ressignificação, participação social apresenta-se, principalmente, como ação para enfrentamento de problemas e para o desenvolvimento da sociedade, na busca por melhores condições de vida11 Bordenave JED. O que é participação. 8a ed. São Paulo: Brasiliense; 1994.,22 Menéndez BL. Las multiples trayectorias de la participación social. In: Menéndez BL, Spinelli H, organizadores. Participación social para quê? Buenos Aires: Lugar Editorial; 2008. p. 51-80. e pelo envolvimento dos sujeitos nos processos decisórios nas instituições sociais e políticas33 Stotz EN. Participação social. In: Pereira IB, Lima JCF. Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz; 2009. p. 293-8.. Sob outro ponto de vista, também é compreendida como as relações desenvolvidas entre indivíduos, grupos sociais e instituições44 Lima SAB. Participação social no território: estudo exploratório sobre a participação social no cotidiano da população que procura as instituições de serviço social no município de São Paulo [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1978..

Na Terapia Ocupacional, o conceito de participação social é amplamente utilizado com múltiplos significados e (in)definições em razão da diversidade de campos e cenários de atuação; das populações atendidas e de suas demandas; dos contextos sociais, históricos e culturais; e das mudanças e diferenças de perspectivas teórico-metodológicas e referenciais teórico-práticos.

Com embasamento nas Ciências Humanas e da Saúde, terapeutas ocupacionais versam sobre participação social como a prática política, mas, a partir de outros referenciais, também a delimitam nas relações de convivência; na inserção e exclusão social; no envolvimento em ocupações/atividades e na circulação pelos espaços públicos e privados55 Silva ACC, Oliver FC. Social participation in occupational therapy: is it possible to establish a consensus? Aust Occup Ther J. 2021; 68(6):535-45.. Ainda que sob diferentes formas e compreensões, a participação social se tornou um dos eixos norteadores da profissão, que informa a ação profissional e indica a sua finalidade.

Há uma diversidade de estudos, nacionais e estrangeiros, que mostra a dimensão da participação social na vida dos sujeitos, no cotidiano hospitalar, em casa, na escola, na comunidade, no trabalho, na Unidade Básica de Saúde e no espaço público55 Silva ACC, Oliver FC. Social participation in occupational therapy: is it possible to establish a consensus? Aust Occup Ther J. 2021; 68(6):535-45.. Especialmente nos relatórios políticos, é crescente a atenção sobre a participação social como uma prática e um direito, o que influencia os processos de educação, prática e pesquisa em Terapia Ocupacional66 Piškur B. Social participation: redesign of education, research, and practice in occupational therapy. Scandinavian J Occup Ther. 2013; 20 Suppl 1:2-8..

Ao considerar a participação social como aspecto presente no saber-fazer da Terapia Ocupacional, entende-se que esse conceito deve estar presente nos processos, espaços e experiências de/para aprender e ensinar em Terapia Ocupacional, assim como as questões de cidadania, direitos, ocupação, inclusão, emancipação, autonomia, cotidiano e modos de vida. Portanto, este artigo tem como objetivo identificar se a participação social, em seu âmbito teórico-prático, é abordada no processo de formação graduada em Terapia Ocupacional e como tem sido trabalhada com os alunos.

Método

Este estudo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos sob o n. 2.763.911, abrange parte dos resultados de uma tese de doutorado que teve como principal objetivo construir uma discussão epistemológica sobre a participação social na perspectiva da Terapia Ocupacional, em seus campos de saber e de prática. De caráter qualitativo, exploratório e colaborativo77 Ibiapina IMLM. Pesquisa colaborativa: investigação, formação e produção de conhecimentos. Brasília: Líber Livro; 2008., o estudo foi realizado com terapeutas ocupacionais docentes que trabalhavam nas instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas do estado de São Paulo e com cursos ativos em Terapia Ocupacional. O estado abrange o maior número de profissionais e IES do Brasil, por isso, foi selecionado como local de pesquisa88 Oliver FC, Silva RAS, Silva ACC, Reis SCCAG. Formação graduada em terapia ocupacional no estado de São Paulo: contribuições ao debate. In: Anais do 15o Encontro Nacional de Docentes de Terapia Ocupacional; 2016; Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo; 2016..

Os 105 docentes identificados receberam, via correio eletrônico, o convite para colaborar com a pesquisa por meio de um questionário. Esse instrumento foi organizado e disponibilizado em plataforma digital; além das questões, havia uma nota explicativa referente ao questionário e à pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

As seções 1 e 2 do questionário visaram caracterizar a(o)s colaboradora(e)s; conhecer um pouco do trabalho desenvolvido nos contextos de ensino, pesquisa e extensão; e identificar como discutem e realizam a participação social nos campos teórico e prático. A seção 3 compôs a Técnica Delphi, que visou construir o consenso sobre a definição da participação social99 Silva ACC. Participação social: reflexões teórico-conceituais e práticas entre e com terapeutas ocupacionais [tese]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2021..

A Delphi é utilizada para que um grupo de pessoas, por meio da expressão individual de julgamentos e opiniões, busque um consenso sobre determinado tema. O pesquisador envia aos colaboradores uma pergunta disparadora e as respostas são compiladas em afirmativas que, na próxima rodada, passarão pelo julgamento desses colaboradores e assim sucessivamente, até que se alcance a estabilidade nas respostas. Esse processo é finalizado a partir da análise subjetiva do pesquisador e/ou da análise estatística descritiva1010 Wright JTC; Giovinazzo RA. Delphi: uma ferramenta de apoio ao planejamento prospectivo. Cad Pesq Adm. 2000; 1(12):54-65..

Neste artigo, a apresentação e discussão dos resultados se baseou, essencialmente, nos dados construídos nas duas primeiras seções e que foram analisados por meio de uma leitura analítica e interpretativa conforme orientações de Pádua1111 Pádua EMM. Metodologia de pesquisa: abordagem teórico-prática. 7a ed. Campinas: Papirus; 2002. A fim de ampliar as discussões, apresenta as concepções de participação social, conforme resultados da Técnica Delphi.

Resultados e discussões

38 docentes colaboraram com a pesquisa. Destes, 32 estavam no quadro de docentes efetivos das IES e dois eram docentes substitutos. Outros quatro não se identificaram como docentes das instituições, mas como profissionais que desenvolviam atividades de ensino, pesquisa e extensão, por meio do suporte técnico e da preceptoria de estágio.

Para a análise e apresentação dos dados, não foi realizada distinção e separação dos colaboradores. Todos foram caracterizados como docentes e citados ao longo do texto pela sigla “TO-D” e um número de identificação.

Colaboraram com a pesquisa 12 docentes da Universidade Federal de São Carlos, 11 da Universidade de São Paulo – nove do campus São Paulo e dois do campus de Ribeirão Preto –, seis da Universidade de Sorocaba e quatro da Universidade Estadual Paulista. Outros docentes eram da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, da Universidade Sagrado Coração de Bauru e da Faculdade de Medicina do ABC, sendo uma colaboradora para cada uma das respectivas universidades.

Além de lecionarem nos cursos de graduação em Terapia Ocupacional, 14 (36,8%) estavam vinculados a um curso de mestrado; dez (26,3%), de doutorado; e nove (23,7%) a ambas as modalidades. Três (7,8%) estavam na especialização lato sensu; duas (5,3%), na residência multiprofissional; e uma (2,6%) no aprimoramento profissional.

As docentes relataram desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão em campos e temáticas diferentes, conforme descrito nos quadros 1 e 2, respectivamente.

Quadro 1
Campos de atuação no ensino, na pesquisa e na extensão.
Quadro 2
Temáticas trabalhadas pelos colaboradores no ensino, na pesquisa e na extensão

Conforme o quadro 1, a maior parte dos docentes atuava no campo da saúde mental e da saúde física. Muitos trabalhavam em mais de um campo e com mais de uma temática, a depender do contexto (ensino/pesquisa/extensão). Em razão da multiplicidade dos temas, eles foram sintetizados e dispostos de forma conjunta no quadro 2.

O campo da saúde mental, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, da constituição da atenção psicossocial e da Política Nacional de Saúde Mental, tem contribuído para os debates sobre a participação social por meio do protagonismo da comunidade e dos profissionais em busca dos direitos das pessoas em condições de sofrimento e problemas psíquicos. Por outro lado, na caracterização dos colaboradores, a partir de seus campos e temáticas de atuação, considera-se que outros contextos podem ser potentes e, por vezes, exigem caminhos na discussão e no desenvolvimento da participação social. Portanto, considera-se a contribuição das pesquisas e discussões que versam sobre o poder de decisão do paciente sobre seu tratamento; o cuidado de si e do outro; o enfrentamento das situações que excluem e adoecem; e a produção e o usufruto da arte e cultura.

Os estudos, as pesquisas e ações envolveram indivíduos e populações com demandas, necessidades, condições de vida e faixa etária específicas, como crianças com alteração no desenvolvimento neuropsicomotor; jovens em processos de ruptura das redes sociais de suporte; pessoas em sofrimento psíquico; adultos com lesões neurológicas ou ortopédicas; usuários de substâncias psicoativas; imigrantes; profissionais da saúde; e trabalhadores formais e informais. A Unidade de Saúde da Família, o Centro de Atenção Psicossocial, as escolas, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Programa de Medidas Socioeducativas, os hospitais, o Centro de Referência de Assistência Social, assim como o território onde as pessoas viviam e as empresas onde os pacientes trabalhavam foram alguns dos cenários presentes nesses trabalhos.

O ensino-aprendizagem e as abordagens da participação social com alunos de graduação

Os colaboradores foram questionados se e como o conceito de participação social é abordado no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes de graduação. Para assinalar, havia as opções “Sim”, “Não”, “Às vezes” e “Depende”; e um campo para justificar a resposta.

A figura 1, com a distribuição quantitativa dessas respostas, demonstra que a maioria dos docentes tem incluído a participação social em discussões teóricas e na construção de práticas com seus alunos e nenhum afirmou não ser possível trabalhar com esse conceito.

Figura 1
Abordagem da participação social com os alunos da graduação.

Para um segmento que respondeu “Sim”, a participação social é abordada com os alunos, pois é um tema inerente a algumas disciplinas e um dos eixos de análise de perspectivas teórico-metodológicas. De forma semelhante, outras respostas apontaram que há um comprometimento individual em trazer essas discussões para todos os contextos em que atuam.

Referente aos estágios curriculares, foram destacadas as vivências práticas em saúde mental infantojuvenil e adulto e na rede de atenção psicossocial; na área da infância e, especificamente, da neuropediatria; na Atenção Primária à Saúde (APS); no contexto hospitalar; no campo social; e no âmbito da saúde física do adulto e do idoso.

As disciplinas teóricas citadas se relacionam aos campos e núcleos de saberes e práticas específicos, como: “Terapia Ocupacional e sociedade”; “Terapia Ocupacional e inclusão escolar”; “Terapia Ocupacional e tecnologias”; “Terapia Ocupacional social”; “Terapia Ocupacional em saúde mental” e “Terapia Ocupacional, arte, corpo e cultura”.

Outras disciplinas são aquelas que discutem a história e o desenvolvimento da profissão e de seus campos de atuação; os fundamentos e os referenciais teórico-metodológicos usados e produzidos na área; e as ações e os processos em Terapia Ocupacional. De maneira particular, foi mencionada a disciplina referente à Saúde coletiva e ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Em algumas aulas ou vivências práticas, as discussões sobre o SUS, suas leis de organização, gestão e funcionamento propiciaram abordar as questões sobre participação social. Em outros casos, a presença de temáticas sobre o conceito esteve diretamente relacionada à matriz curricular e/ou ementa das disciplinas.

Na percepção das docentes TO-D 3 e TO-D 17, trata-se de uma temática transversal que não pertence a disciplinas específicas. Já para a colaboradora TO-D 4, pode ser amplamente abordada na graduação, mas, diante da incerteza, preferiu selecionar a opção “Depende”.

Em consonância com o ponto de vista das duas colaboradoras e com o fato de a participação social estar presente em diversas disciplinas e atividades teórico-práticas, entende-se que há transversalidade do conceito na Terapia Ocupacional, assim como deve ser para as discussões sobre os direitos humanos, a vida cotidiana e a diversidade. Entretanto, ainda não é uma realidade para todos os colaboradores abordar o conceito de forma transversal e interdisciplinar.

Para outros docentes, a formação dos alunos é marcada pelo distanciamento do uso do conceito. Essa realidade se deve, em partes, pelas diferentes perspectivas teórico-metodológicas adotadas e o consequente uso ou preferência e interesse de um termo ou conceito em detrimento da participação social, como o conceito de emancipação social.

A prática emancipatória consiste na busca da redistribuição de recursos materiais, políticos, sociais, culturais e simbólicos e na transformação de indivíduos e coletivos, para que participem das trocas sociais e não sejam escravos e submissos aos modos de produção e de consumo e aos mecanismos de opressão e dominação1212 Santos BS. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo; 2007. Uma nova cultura política emancipatória; p. 51-82.. Nesse âmbito, ainda é possível uma aproximação dialética-reflexiva e prática sobre a participação social, à medida que esta – expressada nas vivências, na criação, na prática política, na produção e no acesso à informação e na interação coletiva – torna-se um caminho para a emancipação social.

Nos entrelaçamentos da participação social e emancipação, nota-se o interesse dos terapeutas ocupacionais em discutir e investigar como é tecida e constituída a vida dos sujeitos, de modo a entender e enfrentar situações que limitam e/ou impedem as oportunidades de a pessoa ser, fazer, estar e (se) transformar. Consequentemente, há uma necessidade de adotar perspectivas críticas e complexas que permitam uma leitura ampla sobre as (im)possibilidades de existência(s).

Seis docentes afirmaram que a participação social é parte das abordagens e da finalidade das intervenções em Terapia Ocupacional; portanto, deve ser analisada, investigada e construída, independentemente das perspectivas teóricas e metodológicas. Para as colaboradoras TO-D 20 e TO-D 24, ao se trabalhar com sujeitos, individual e coletivo, é inevitável que terapeutas ocupacionais falem e trabalhem sobre aspectos sociais que influenciam o cotidiano, e isso inclui abordar a participação social.

Do mesmo modo, na literatura nacional, a participação social é identificada como um dos domínios da profissão, seja como prática, conceito e referencial teórico ou do processo e/ou finalidade de intervenção1313 Ferigato SH, Silva CR, Lourenço GF. A convivência e o com-viver como dispositivos para a Terapia Ocupacional. Cad Ter Ocup UFSCar. 2016; 24(4):849-57.

14 Malfitano APS. Contexto social e atuação social: generalizações e especificidades na terapia ocupacional. In: Lopes RE, Malfitano APS, organizadoras. Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EdUFSCar; 2016. p. 117-34.

15 Valent IU, Castro ED. Por entre as linhas dos dispositivos: desafios das práticas contemporâneas na interface terapia ocupacional e cultura. Cad Ter Ocup UFSCar. 2016; 24(4):837-48.
-1616 Almeida MC, Soares CRS, Galvani D, Barros DD. Terapia ocupacional social: reflexões acerca das ações na assistência social e para o desenvolvimento comunitário [Internet]. Brasília: ABRATO; 2011 [citado 7 Out 2023]. Disponível em: https://craspsicologia.files.wordpress.com/2015/09/doc-to-e-assist-social-abrato_metuia.pdf
https://craspsicologia.files.wordpress.c...
. Esse cenário de formação e as produções teóricas elevam o conceito à posição de um princípio fundamental que pode (re)definir e nortear reflexões, modelos, paradigmas, saberes críticos e o exercício profissional.

De acordo com duas colaboradoras que responderam “Às vezes”, a participação social ainda é uma temática que fica em “segundo plano” ou como uma “temática de fundo”. Ela é abordada “de forma indireta (como resultado da intervenção em TO [Terapia Ocupacional]) em aulas pontuais/temáticas” ou “no desenrolar das atividades de prática e estágio de cada grupo”.

Ambas as docentes atuam e ensinam em contextos da APS. De acordo com Menéndez22 Menéndez BL. Las multiples trayectorias de la participación social. In: Menéndez BL, Spinelli H, organizadores. Participación social para quê? Buenos Aires: Lugar Editorial; 2008. p. 51-80., o discurso em torno da participação social nesse setor e na América Latina tem sofrido transformações desde a década de 1950. O que se observa é que, na maioria dos casos, as práticas de participação social se limitam às questões do autocuidado, da promoção da saúde e da cura das enfermidades, de forma a ser (apenas) um recurso para assegurar objetivos específicos da APS. Porém, o ideal, como já foi predominante em outros tempos, é que as pessoas (usuários, educadores, pesquisadores, servidores e gestores) estejam envolvidas nos processos que questionam e visam mudar as situações de adoecimento, pobreza, marginalidade e vulnerabilidade social.

Muitos dos ganhos em torno da promoção e assistência em saúde resultaram do envolvimento comunitário em projetos de desenvolvimento sustentável pela igualdade e por políticas de saúde. Entretanto, a pouca ou nula participação social da comunidade tem sido regra, e não a exceção22 Menéndez BL. Las multiples trayectorias de la participación social. In: Menéndez BL, Spinelli H, organizadores. Participación social para quê? Buenos Aires: Lugar Editorial; 2008. p. 51-80.,1717 Rifkin S, Kangere M. What is participation? In: Hartley S, organizador. Community-based rehabilitation: a participatory strategy in Africa. London: University College London; 2002. p. 37-47..

Essas considerações podem, em parte, justificar o fato de a participação social ficar em “segundo plano” ou como uma “temática de fundo” na formação dos alunos. Na experiência da TO-D 14, por exemplo, “os atendimentos ou a organização dos modos de funcionar dos serviços estão sempre relacionados a sucessivas negativas da participação social”.

Por outro lado, ficar em “segundo plano” ou como uma “temática de fundo” pode não ser algo estritamente negativo, pois, no interior dos cenários sociocultural e territorial de cada comunidade, existem várias e singulares demandas e necessidades que também exigem igual atenção dos profissionais.

TO-D 7, que também respondeu “Às vezes”, justificou-se a partir da pluralidade de entendimento e de abordagens da participação social no campo da Terapia Ocupacional. Ela reconheceu a existência de perspectivas teórico-metodológicas que explicam o conceito de diferentes formas.

As respostas das colaboradoras referentes às metodologias para o ensino-aprendizagem da participação social indicaram que o trabalho, dentro e fora da sala de aula, é atravessado por diversos sentidos teóricos e práticos sobre o conceito. Assim como identificado na literatura brasileira e estrangeira em Terapia Ocupacional e em outras áreas de conhecimento, existem aspectos convergentes e divergentes e múltiplas visões de mundo, de sociedade e de ser humano que demarcaram diferenças teóricas, metodológicas e assistenciais na compreensão, na busca e no exercício da participação social.

Por meio da Técnica Delphi, os docentes definiram participação social como o estabelecimento de relações de convivência entre as pessoas, familiares, pares e grupos; a circulação pelos espaços; o engajamento na vida pública e política; e o engajamento em atividades da vida cotidiana (doméstica, comunitária, laboral, educacional, de lazer, esportiva e cultural). Também definiram o conceito como uma atividade ou ação humana que pode estar presente no cotidiano das pessoas e como um dos objetivos/ferramentas/referenciais teóricos/objetos que informam e norteiam a produção técnica e teórica na Terapia Ocupacional.

Na defesa da participação social compreendida e ensinada sob uma perspectiva crítica e emancipatória e relacionada ao coletivo, a colaboradora TO-D 7 desaprovou formas de ensino-aprendizagem que abordam o conceito, exclusivamente, como a “mera possibilidade de exercício de uma atividade em espaços sociais”. Entretanto, afirmou que, pelo fato de “a participação social definir o mandato ético da Terapia Ocupacional”, essa temática deve “estar presente na prática, no ensino e na pesquisa [...] ainda que abordada de modos muito distintos”.

As respostas das docentes reafirmaram o apontamento de TO-D 7, pois, ao relatarem sobre suas experiências acadêmicas, demarcaram consonâncias e divergências, aproximações e distanciamentos no entrelaçamento das práticas de ensino, pesquisa e extensão e de suas concepções sobre participação social.

Sob a lente das trocas materiais e afetivas, das relações sociais e das possibilidades de inclusão e de circulação em diferentes lugares e contextos, três docentes declararam que a formação dos alunos foi construída na aproximação deles com a população atendida, seus territórios e suas comunidades; e com equipamentos sociais. TO-D 6, a partir de sua prática na Unidade de Saúde da Família, estimulou os alunos a desenvolverem, com os usuários, atividades nos/com espaços nos quais a vida acontece. Duas docentes fomentaram visitas e a circulação em espaços diversos, como praças e a cooperativa de reciclagem e de coleta seletiva.

Nessa direção, as práticas se alinham aos apontamentos de Lima4 ao dizerem que a participação social acontece nos atos cotidianos, a partir das escolhas pessoais, das ações, das atividades e das relações com os outros indivíduos, grupos sociais e instituições, independentemente do grau de formalidade da situação e dos canais de comunicação.

Outras duas colaboradoras, que entendem a participação social como prática política e ferramenta de mudança e de emancipação social, promoveram o encontro dos alunos com líderes comunitários do território e dos movimentos sociais. Também motivaram o engajamento nas reuniões dos conselhos e conferências municipais e nos fóruns de debates promovidos pelos cursos da própria universidade. Em consonância com essas proposições, TO-D 7 afirmou que a discussão, construção e ampliação da participação social se realiza no desenvolvimento dos “direitos de cidadania em cenários de vida real, como casa, trabalho e rede social”.

A saúde coletiva, de modo particular, mostrou-se um campo propício para as discussões teóricas e vivências práticas em torno da participação social, independentemente da existência de disciplinas específicas na grade curricular. A Terapia Ocupacional, inserida nesse campo – seja pela assistência ou gestão e gerência –, é intrínseca à abordagem do processo de descentralização político-administrativo e da construção de uma democracia participativa. Ainda que existam desafios para a efetiva participação da sociedade, o que também inclui a comunidade acadêmica, na realidade de algumas docentes, foi possível construir espaços de aprendizado intra e extrainstitucional.

O fato de as docentes construírem possibilidades para o encontro dos alunos com o outro (pessoas, lugares e realidades) demonstra que a aprendizagem sobre participação social se faz participando. De acordo com perspectivas trazidas pelos campos da Saúde e da Sociologia, participação social é ter, fazer e tomar parte dos diálogos, das informações e da construção de ações e mudanças micro e macrossociais11 Bordenave JED. O que é participação. 8a ed. São Paulo: Brasiliense; 1994.,1818 Escorel S, Moreira MR. Participação social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2012. p. 853-83.,1919 Gohn MG. Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Cad CRH. 2019; 32(85):63-81..

Para TO-D 38:

[...] é muito mais potente nas visitas do que no material teórico e nos vídeos que eles [os alunos] assistem [...], fica mais claro pra eles quando eles acompanham os usuários, e aí dá pra discutir a participação na comunidade.

(TO-D 38)

Já TO-D 35 acredita que a aproximação da universidade com os serviços de saúde, educação e serviço social; e o conhecimento sobre as reais demandas da população direciona os alunos para a formação profissional e, sobretudo, para “a construção de si mesmos e do entorno como sujeitos sociais e protagonistas”.

De maneira semelhante, TO-D 5 relatou abordar a participação social por meio de dinâmicas que estimularam os alunos a identificarem seus papéis sociais e sua participação coletiva. Na experiência docente relatada, parece ter sido profícua a ação de, inicialmente, olhar para a própria história e o momento de vida e, depois, ir ao encontro de outras narrativas, mediados pelo método das entrevistas e cartografias.

Na compreensão de que a participação social é ação para a vida em comunidade, para o sentimento de pertencimento e para a garantia e acesso de direitos, algumas docentes conduziram os alunos à reflexão sobre os fatores sociais, econômicos, culturais e políticos que influenciam a participação social, a sociedade, o cotidiano das pessoas e a prática profissional. As discussões incluíram o estudo dos direitos humanos, da cidadania, das políticas públicas e de documentos oficiais nas áreas da Saúde; da deficiência; da Educação; e da Arte e cultura; de maneira específica, foi citada a Lei n. 8.142/90, que regulamenta a participação da comunidade na gestão do SUS.

Algumas docentes incluíram referenciais teóricos advindos da Antropologia e da Sociologia nas discussões sobre autonomia e marginalidade social e política e das produções específicas do campo da Terapia Ocupacional Social. Dessa forma, evidenciam crescente e necessário diálogo da profissão com outros campos para além da Saúde.

Apenas três colaboradoras disseram buscar esclarecer o que é a participação social, por se tratar de um dos eixos de análise nas disciplinas “História da profissão” e “Referenciais teóricos e metodológicos” (TO-D 13; TO-D 27) e para “evitar usos indiscriminados e inespecíficos do termo” (TO-D 12). As docentes convidaram pesquisadores e profissionais, considerados especialistas sobre o tema, para apresentarem o conceito. Eles fazem sua apresentação a partir de experiências e de paradigmas e referenciais com os quais trabalham, dessa forma, são múltiplos os sentidos da participação social.

No âmbito de aulas teóricas e do estágio supervisionado, seis docentes discutiram sobre a participação social no processo de construção do raciocínio profissional, nos estudos de caso e na reflexão de vivências da prática terapêutico-ocupacional. Quatro delas (TO-D 12; TO-D 15; TO-D 19; TO-D 20) entendem que a participação social está relacionada ao envolvimento em “contextos de vida”, o que abrange “lugares”, “pessoas”, “atividades”, “papéis sociais” e “rotina”; portanto, deve ser algo indispensável na/para ação profissional, desde a avaliação e a definição de objetivo(s) até a intervenção e reavaliação. Uma docente, na perspectiva instrumental do conceito, entende como um caminho para o controle social e outra não conseguiu explicar seu ponto de vista.

A participação social e o delineamento curricular

A proposição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs); as articulações entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde; e o diálogo com terapeutas ocupacionais propiciaram às IES maior autonomia para estruturarem cursos de graduação em Terapia Ocupacional. Especialmente a partir dos anos 2000, profissionais docentes e pesquisadores da área têm unido esforços para estudar, revisar e construir esses cursos, de modo que a formação acompanhe as transformações na sociedade e no mundo do trabalho e as mudanças e exigências externas e internas à profissão2020 Jurdi APS, Nicolau SM, Figueiredo LRU, Rossit RAS, Maximino VS, Borba PLO. Revisitar processos: revisão da matriz curricular do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Paulo. Interface (Botucatu). 2018; 22(65):527-38. doi: 10.1590/1807-57622016.0824.
https://doi.org/10.1590/1807-57622016.08...

21 Barba PCSD, Silva RF, Joaquim RHVT, Brito CMD. Formação Inovadora em Terapia Ocupacional. Interface (Botucatu). 2012; 16(42):829-42. doi: 10.1590/S1414-32832012000300019.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201200...

22 Bregalda MM, Mângia EF. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em Terapia Ocupacional: especificidade e competências profissionais. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2020; 31(1/3):78-85.
-2323 Zimmermann AB, Moreira AB, Silva DB, Jorge IMP, Camargo MJG, Mariotti MC, et al. Reformulação curricular dos cursos de Terapia Ocupacional: resultados e desafios de um percurso. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180276. doi: 10.1590/Interface.180276.
https://doi.org/10.1590/Interface.180276...
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Uma dessas exigências são as políticas públicas e estratégias indutoras da formação de recursos humanos para o SUS e da maior integração entre universidade e sociedade. Por outro lado, também existe um movimento da Terapia Ocupacional em produzir e consolidar conhecimento, pesquisas e práticas no campo social, educacional e cultural. Nesse sentido, surge a necessidade e o desafio de formar alunos para atuarem em e com diferentes equipamentos sociais e populações, dentro e fora do campo da Saúde.

As múltiplas formas de abordar a participação social, no que diz respeito às estratégias para incorporá-la, como teoria e prática, no ensino, na pesquisa e na extensão exemplificam a flexibilização dos currículos e a possibilidade de traçar diferentes caminhos para formação graduada. Também ilustram a construção de conhecimentos e de práticas em diversos campos de atuação; a concretização de propostas da DCNs; a busca por um processo de ensino-aprendizagem crítico-reflexivo; e o desenvolvimento do protagonismo, da autonomia e da cidadania dos alunos.

A ação mediadora dos docentes para o encontro dos alunos com a população atendida, a comunidade, o território, os equipamentos sociais e a vida cotidiana; e a facilitação para o engajamento na prática política – por meio dos conselhos, conferências e fóruns – coincide com a visão e o incentivo de políticas e das DCNs de estreitar relações e parcerias entre a academia e os serviços e instituições sociais, educacionais e culturais. Vários estudos indicaram que a prática didático-pedagógica deve alcançar a vida cotidiana tecida nas relações humanas; nos diferentes espaços; nos valores sociais; e nos conteúdos cognitivos, objetivos e subjetivos2121 Barba PCSD, Silva RF, Joaquim RHVT, Brito CMD. Formação Inovadora em Terapia Ocupacional. Interface (Botucatu). 2012; 16(42):829-42. doi: 10.1590/S1414-32832012000300019.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201200...
,2424 Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saude. 2008; 6(3):443-56.

25 Braid LMC, Machado MFAS, Aranha ÁC. Estado da arte das pesquisas sobre currículo em cursos de formação de profissionais da área da saúde: um levantamento a partir de artigos publicados entre 2005 e 2011. Interface (Botucatu). 2012; 16(42):679-92. doi: 10.1590/S1414-32832012000300008.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201200...

26 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.01...
-2727 Lima VV. Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface (Botucatu). 2005; 9(17):369-79. doi: 10.1590/S1414-32832005000200012.
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200500...
.

Entende-se, portanto, que o ensino-aprendizagem da participação social se concretiza nesses deslocamentos e encontros ao mesmo tempo que os favorece. Da mesma forma, pode contribuir para implementar currículos integrados e voltados a contextos reais de vida.

As DCNs são o principal documento que orienta a estruturação das matrizes curriculares e dos projetos pedagógicos. Pautadas na construção de competências, espera-se que, além da aquisição de conhecimento, os alunos desenvolvam habilidades e atitudes para a vida e para realizar ações características da profissão. Para tanto, eles devem ser envolvidos em situações complexas; e instigados a articular teoria e prática e a propor ações e intervenções de acordo com as realidades, demandas e necessidades dos sujeitos, grupos e populações atendidos2222 Bregalda MM, Mângia EF. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em Terapia Ocupacional: especificidade e competências profissionais. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2020; 31(1/3):78-85.,2828 Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3 do CNE/CES, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional. Diário Oficial da União. 19 Fev 2002..

Condizente a isso foi a adoção de dinâmicas individuais e grupais e de outras metodologias, no âmbito das aulas e do estágio, que ofertaram espaço para a problematização teórico-prática e a reflexão crítica; o (re)conhecimento de si e do outro como sujeito social e agente de transformação; e o delineamento de atuações contextualizadas. Ademais, destaca-se a orientação do saber-fazer em Terapia Ocupacional pelo estudo de teorias e conceitos de outras áreas do conhecimento, como as Ciências Humanas e as discussões sobre cidadania e direitos humanos.

A história da Terapia Ocupacional no Brasil foi e tem sido marcada pela incorporação, revisão, crítica e mudanças de perspectivas, paradigmas e alguns conceitos, que, ao mesmo tempo, é fator e resultado do desenvolvimento da profissão. A participação social – assim como o fazer (humano), a atividade (humana, social, lúdica, de vida diária, entre outras), a práxis, a ação (social, humana, política), o cotidiano, os direitos humanos, a justiça social, a produção e modos de vida e a autonomia – é um dos conceitos-chave que caracteriza, informa e fundamenta o trabalho da Terapia Ocupacional, suas identidades e singularidades.

De acordo com as considerações das docentes, a participação social apresenta-se como objeto de prática, de estudo e de pesquisa; e um fundamento teórico e “objetivo de” e “instrumento para” as intervenções. É também colocada no quadro de competências profissionais, compondo seu domínio e mandato técnico, ético, social e político.

Em pesquisas conduzidas pela Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais, participação social foi indicada como um dos aspectos que demarcam os propósitos sociais da profissão em busca da transformação e justiça social2929 World Federation of Occupational Therapists. International occupational therapy research priorities. OTJR: Occup Particip Health. 2017; 37(2):72-81.,3030 World Federation of Occupational Therapists. Minimum standards for the education of occupational therapists [Internet]. Kuwait City: WFOT; 2016 [citado 7 Out 2023]. Disponível em: https://wfot.org/assets/resources/COPYRIGHTED-World-Federation-of-Occupational-Therapists-Minimum-Standards-for-the-Education-of-Occupational-Therapists-2016a.pdf
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. Por isso, no documento que revisa os padrões mínimos para a educação de terapeutas ocupacionais, a federação salienta a necessidade de avançar na participação social a partir do desenvolvimento de práticas, de pesquisas e de conhecimentos3030 World Federation of Occupational Therapists. Minimum standards for the education of occupational therapists [Internet]. Kuwait City: WFOT; 2016 [citado 7 Out 2023]. Disponível em: https://wfot.org/assets/resources/COPYRIGHTED-World-Federation-of-Occupational-Therapists-Minimum-Standards-for-the-Education-of-Occupational-Therapists-2016a.pdf
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.

Entre reformulações e avanços, as DCNs para os cursos de Terapia Ocupacional apresentam fragilidades e desafios na definição de competências e habilidades específicas para a área. Muitas delas não se articulam com a compreensão das ocupações e sequer abordam, com maior profundidade, a participação social das pessoas atendidas. De modo específico, apenas citam que os profissionais devem “conhecer a problemática das populações que apresentam dificuldades temporárias ou permanentes de inserção e participação na vida social”2222 Bregalda MM, Mângia EF. Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em Terapia Ocupacional: especificidade e competências profissionais. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2020; 31(1/3):78-85. (p. 82).

Ainda que a questão sobre a participação social não seja algo exclusivo para a Terapia Ocupacional, abordá-la no processo de formação pode contribuir para a construção identitária da categoria e do profissional. No desejo e no esforço de formar profissionais qualificados para a integralidade do cuidado, comprometidos com o bem-estar de indivíduos e coletivos e com a justiça social e envolvidos na construção de uma sociedade inclusiva, na qual as pessoas tenham maiores oportunidades de ser, fazer, pertencer e transformar, reafirma-se a necessidade de discussão crítica sobre a participação social e sobre esta relacionada à Terapia Ocupacional.

Em observância às discussões de Abrahão e Merhy2626 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.01...
e Bondía3131 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8., acredita-se que, ao abordar a participação social nos diferentes contextos de formação, é oportuno criar espaços, experiências e formas de ensinar e aprender que estimulem o exercício da crítica, da criatividade e da autonomia. Portanto, para as construções teóricas e práticas da Terapia Ocupacional em torno da participação social, são necessários arranjos pedagógicos que superem os limites de um ensino inserido no paradigma da ciência moderna, pautada na hegemonia de um determinado saber-fazer e ensinar (ou treinar).

A prática da participação social é uma experiência individual e, sobretudo, coletiva. Ainda que seja compreendida sob diferentes perspectivas, existe uma fragilidade em discuti-la apenas no âmbito teórico dos textos e restrito ao contexto da sala de aula. Falar sobre participação social exige, necessariamente, o encontro com o outro (a pessoa, o lugar e a realidade).

Sob a compreensão de que os modos de entender, fazer, realizar e favorecer participação social são configurados na prática, a partir da realidade e das características singulares dos contextos, das comunidades, dos sujeitos e de suas necessidades e demandas, propõe-se uma reflexão sobre a formação pautada na relação entre experiência e sentido, em que todos (alunos, professor, sujeitos e profissionais) ensinam, aprendem e produzem. Nesse saber da experiência, as pessoas são receptáculos daquilo que é experimentado, mas também são e têm a força de conhecimento, da ação e do saber, de forma a criar caminhos para a transformação de si e do outro e de dar (ou não) sentido a esses processos3131 Bondía JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002; (19):20-8..

Independentemente do entendimento do conceito de participação social – mas, especialmente, na perspectiva política e emancipatória –, acredita-se na potente possibilidade de aprender por meio de metodologias que impulsionam a saída do espaço institucionalizado da universidade para o encontro com o outro no seu contexto de vida real. Nesse movimento, podem ser construídos campos de sentidos singulares por meio das trocas materiais e não materiais, como os gestos, os saberes, os afetos, o inusitado, os lugares, as atividades, os sentimentos, o improvável, as tecnologias e o diálogo inerentes à participação social.

Considerações finais

Tem sido possível fomentar com os alunos de graduação em Terapia Ocupacional práticas, pesquisas e discussões teóricas sobre participação social. Na realidade de grande parte dos docentes e de seus cursos, a participação social foi uma das temáticas trabalhadas, o que diferiu foram os modos de abordar (dentro ou fora da sala de aula e com ou sem o envolvimento da comunidade), de compreender (suas múltiplas e complexas definições) e de relacionar o tema ao campo teórico-prático da profissão.

No interior de cada contexto em que os terapeutas ocupacionais docentes se deparam e se inserem dentro e fora da universidade, bem como dos diferentes percursos e sentidos de pertencimento a determinados modos de agir e de pensar, é possível reconhecer a existência de múltiplas formas e experiências de participação social no ensino, na assistência, na pesquisa e na extensão. Entretanto, aponta-se uma fragilidade para a metodologia de ensino-aprendizagem circunscrita, exclusivamente, nas discussões teóricas em sala de aula, na medida em que participação social deve ser, essencialmente, uma prática coletiva, que acontece a partir e no encontro com o outro e com o mundo.

Tendo em vista as abordagens, por vezes mais ou menos acentuada, sobre esse conceito e no entendimento de que é um dos objetos de estudo e de intervenção da/para Terapia Ocupacional, destaca-se a participação social como um fundamento e uma competência para a Terapia Ocupacional que deve fazer parte da formação graduada e pós-graduada.

Espera-se que os debates aqui construídos fortaleçam a composição dos campos e das identidades da Terapia Ocupacional, o delineamento das diretrizes curriculares na área e o avanço teórico-conceitual, metodológico e prático da profissão. Com a recomendação e preocupação de que a categoria seja agente de transformação social e de construção da justiça social, faz-se necessário (re)pensar sobre os conteúdos e metodologias de ensino. De outro modo, suscita-se a necessidade de ampliar a investigação para o cenário da pós-graduação stricto e lato sensu.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2024
  • Aceito
    14 Jun 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br