“Eu não preciso de vacinas”: raça, classe e território como posições decisórias para saúde coletiva

“I don’t need vaccines”: race, class and territory as decision-making positions for collective health

“Yo no necesito vacunas”: raza, clase y territorio como posiciones de decisión para la salud colectiva

Tatiana Minchoni Lia Vainer Schucman Sobre os autores

O tema da vacinação adquiriu grande importância desde que foi inserido em uma das principais arenas de disputa política no contexto brasileiro, a partir do momento em que a vacina e a imunização contra a Covid-19 entraram em circulação no terreno nacional e em que as posições e valores sobre ciência, vacina e saúde se transformaram em posições do espectro político ideológico nacional. Tal disputa provocou uma tragédia sanitária e humana na sociedade brasileira, já que aderir à campanha de vacinação adquiriu significados e sentidos bastante distintos, dependendo do campo político ideológico que cada pessoa se identifica.

Tendo isso em perspectiva, o convite a debater o artigo intitulado “‘Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia’: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero”11 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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abre espaço para abordarmos a segregação socioespacial e racial que subjaz às relações intergrupais debatidas acerca da não vacinação infantil na cidade Florianópolis, SC.

Em que pese Florianópolis apresentar um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto, a cidade foi forjada sob o mecanismo sociometabólico do capital, assim como outras cidades do Sul Global. Ou seja, sua estruturação e funcionamento ocorrem sob a lógica da cidade-mercadoria, em que cada pedaço de chão tem seu valor22 Maricato E. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular; 2015.. Milton Santos, por sua vez, destaca que o valor da pessoa também é variável de acordo com sua localização no território: “[...] pessoas com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário têm valor diferente segundo o lugar em que vivem”33 Santos M. O espaço do cidadão. 7a ed. São Paulo: Edusp; 2020. (p. 107).

Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) reconhece tais diferenciações, uma vez que preza por uma abordagem territorial dos determinantes sociais da saúde. Entretanto, o que as autoras debatem, utilizando a ferramenta analítica da interseccionalidade ao avesso, é como os privilégios simbólicos e materiais historicamente herdados por determinados grupos sociais possibilitam uma percepção de si e do grupo do qual fazem parte como “mais limpos”, “mais saudáveis”, “com famílias estruturadas”, “com maior poder de decisão”. Como destacado por Matos et al.11 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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, “raça e espacialidade surgem como importantes marcadores na percepção de quem são os ‘nós’ que não precisam das vacinas e os ‘outros’ que precisam” (p. 1).

Para além das constatações apresentadas no artigo, chamamos atenção para o conflito individual versus coletivo e os rebatimentos que dele advém. A vacinação, além de ser um método de prevenção de doenças evitáveis, é um pacto social de saúde coletiva, enquanto a hesitação vacinal, ainda que seja multifatorial, acontece no âmbito individual/familiar privado. Acompanhamos a análise de que a decisão de não vacinar está social e espacialmente situada.

No entanto, ainda que as decisões sobre não vacinar apareçam como individuais, o fundamento está nas relações intergrupais, as quais aparecem nas análises como conflitos intergrupais sedimentados em desigualdade social, racial e espacial. A oposição “nós” (endogrupo) e “eles” (exogrupo) advém da sensação de pertencimento a um grupo, e os valores associados dessa pertença, em oposição ao outro grupo. Tajfel44 Tajfel H. Grupos humanos e categorias sociais. Lisboa: Livros Horizonte; 1981. discutiu esse pertencimento como parte constitutiva da identidade social, ou seja, como a parcela do autoconceito derivada da pertença a um grupo(s), mesclado ao significado emocional e avaliativo do valor de pertença.

Isso leva a diversas categorizações sociais, como perceber o “nós” como heterogêneo e perceber o “eles” como homogêneo; e superestimar características positivas do endogrupo e as características negativas do exogrupo, que pode chegar a um processo de despersonalização e desumanização de pessoas do outro grupo. Esse tipo de categorização, que se fundamenta em estereótipos, são a base para o preconceito e relações discriminatórias.

É o que vemos nos trechos de discurso analisados em que há uma oposição ao “eles”; aqueles que estão situados social e espacialmente em periferias e favelas, portanto, são estereotipados como crianças mal alimentadas, mais suscetíveis a doenças, de famílias desestruturadas, que desconhecem a medicina preventiva e que a mãe não dá amparo.

Nota-se, aqui, a reverberação dos discursos e práticas do racismo científico, forjados no movimento higienista das elites, amplamente pulverizados no tecido social brasileiro. O fundamento de tais afirmações está ancorado na intenção de saneamento moral de famílias pobres, cuja degradação moral, degenerescências e vícios poderiam ser transmitidos de geração em geração e, portanto, conferem a elas o atributo da periculosidade. Com base em tais argumentações, uma série de medidas incisivas foram perpetuadas contra populações pobres, como práticas correcionais e, inclusive, a segregação socioespacial destas em determinados territórios (periferias, morros e favelas), pois acreditava-se que a degradação moral era uma epidemia que colocava em risco toda a sociedade. Vale salientar que tais territórios seguem criminalizados e são cotidianamente alvo de intervenção policial violenta55 Coimbra CMB. Direitos humanos e criminalização da pobreza. In: Anais do 1o Seminário Internacional de Direitos Humanos, Violência e Pobreza: situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje; 2006; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2006. p. 1-13..

Ora, mas do que falam as pessoas entrevistadas se não de uma periculosidade de crianças que vivem em periferias e favelas e que podem ameaçar suas crianças brancas e límpidas, ao conviverem juntas em uma escola pública, por exemplo?

A questão é que tais famílias, ao realizarem escolhas puramente individuais de não vacinar suas crianças, transgridem o pacto social de saúde coletiva e, consequentemente, direcionam o vetor de infecção (que pode levar à morte) para aquelas pessoas consideradas outras – as que vivem em periferias, morros e favelas. Não podemos esquecer que a primeira vítima fatal de Covid-19 no Brasil, anunciada em março do ano de 2020, foi de uma trabalhadora doméstica, contaminada por sua patroa que residia em um bairro nobre e que havia chegado recentemente da Itália, epicentro da pandemia no mundo naquele momento.

O que fica evidente também na escolha destas famílias ao optarem por não vacinar suas crianças é que estas sabem que estão localizadas em posições de vantagem na estrutura social e racial e, portanto, também se percebem como privilegiadas no que se refere à ideia de saúde “[...] como a manifestação corporal do conjunto das condições sociais de existência dos sujeitos [...]”66 Gonçalves MM. Raça, racismo e saúde: políticas do negativo [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2023. (p. 59). Assim, a lógica individual que permite que essas mulheres e homens brancos escolham não vacinar suas crianças está também amparada pela estrutura social de desigualdades, ou seja, sabem que a necessidade do cartão de vacina na escola não é para elas, que o Conselho Tutelar não irá em suas casas acusá-las de negligência e que todo aparato de Estado que produz vigilância sobre os corpos não as atinge.

Nesse sentido, só é possível pensar as decisões individuais dos sujeitos apresentados no texto sobre a não vacinação de suas crianças dentro da lógica estrutural, que se dá na articulação entre os eixos micropolíticos e macropolíticos do racismo e do classicismo, como nos apresenta a mãe F-H-3: “criança não morre de H1N1, quase nenhuma, ainda mais de classe média alta com plano de saúde privado” (p. 8)11 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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. Essa lógica é amplamente banalizada na estrutura social brasileira, na qual o público é visto como um dever para o pobre, sob o qual este é amplamente julgado caso opte por romper com o pacto, e o privado, bem como a “liberdade de escolha individual”, é opção para ricos, que na saúde se manifesta na contradição entre SUS versus saúde suplementar.

Essas disparidades, que aparecem no campo individual, devem ser compreendidas a partir de uma análise ampla do tecido e dos laços sociais brasileiros. Esse fenômeno é, portanto, resultado objetivo da distribuição desigual que opera sob os marcadores de classe, raça, espacialidade e sua separação entre público e privado, dado o fato que doenças epidemiológicas exigem a pactuação de diferentes atores sociais: indivíduos, municípios e estados, articulados entre diferentes setores da sociedade. Assim, a opção por não vacinar é o ápice que evidencia a lógica da branquitude: as decisões são tomadas em benefício de seu próprio grupo racial e da sua manutenção sistemática em espaços materiais e simbólicos de vantagem e poder.

  • Minchoni T, Schucman LV. “Eu não preciso de vacinas”: raça, classe e território como posições decisórias para saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240212 https://doi.org/10.1590/interface.240212

Referências

  • 1
    Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
    » https://doi.org/10.1590/interface.230492
  • 2
    Maricato E. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular; 2015.
  • 3
    Santos M. O espaço do cidadão. 7a ed. São Paulo: Edusp; 2020.
  • 4
    Tajfel H. Grupos humanos e categorias sociais. Lisboa: Livros Horizonte; 1981.
  • 5
    Coimbra CMB. Direitos humanos e criminalização da pobreza. In: Anais do 1o Seminário Internacional de Direitos Humanos, Violência e Pobreza: situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje; 2006; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2006. p. 1-13.
  • 6
    Gonçalves MM. Raça, racismo e saúde: políticas do negativo [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2024
  • Aceito
    16 Jun 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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