Saúde e distinção: uma análise interseccional da recusa à vacinação

Health and distinction: an intersectional analysis of non-vaccination

Salud y distinción: un análisis interseccional de la no vacunación

Tatiane Leal Sobre o autor

A pandemia de Covid-19 colocou a vacinação no centro do debate público sobre saúde. A recusa parcial ou total de um indivíduo em se imunizar ou em vacinar crianças sob sua responsabilidade em um contexto de emergência sanitária escancarou movimentos mais amplos, que já se apresentavam no espaço nacional e internacional, de desconfiança em relação às vacinas. Se durante a crise sanitária a politização desse tema no Brasil foi premente, com a mobilização de discursos e de figuras políticas na argumentação contrária às vacinas11 Massarani L, Leal T, Waltz I, Medeiros A. Infodemia, desinformação e vacinas: a circulação de conteúdos em redes sociais antes e depois da Covid-19. Liinc Rev. 2021; 17(1):1-23., outros complexos atravessamentos sociais, econômicos e culturais na hesitação vacinal precisam ser esmiuçados em abordagens acadêmicas.

Nesse sentido, o artigo “‘Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia’: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero”22 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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contribui com uma perspectiva inovadora ao realizar uma análise interseccional do processo de tomada de decisão de famílias que optaram por não vacinar seus filhos. Os resultados dessa pesquisa, que investigou as narrativas de 19 responsáveis (pais e mães) por crianças não imunizadas em Florianópolis, Santa Catarina (SC), apresentam um rico conjunto de percepções sobre a vacinação a partir de dinâmicas (enunciadas ou não pelos sujeitos) de classe, raça, gênero e espacialidade22 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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Uma das potências do conceito de interseccionalidade como ferramenta analítica é a possibilidade de demonstrar que, como afirma Haraway33 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu. 1995; (5):7-41., todo pensamento é situado: cada sujeito fala a partir de um lugar e essa ancoragem corporificada é sempre um entrecruzamento de posições sociais que interagem entre si e modulam qualitativamente a experiência subjetiva em relações de poder. Se autoras como bell hooks44 Hooks B. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva; 2021., Kimberlé Creenshaw55 Crenshaw K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University Chicago Legal Forum. 1989; 1(8):139-67., Lélia Gonzalez66 Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar; 2020. e Patricia Hill Collins77 Collins PH. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo; 2019. têm – felizmente – sido amplamente lidas e utilizadas em estudos de diversas áreas que esmiuçam as vivências negras e periféricas a partir da interseccionalidade, o artigo em debate acerta em demonstrar que este conceito é fundamental também para compreender a posição social historicamente produzida como neutra: a branca, masculina e de classe privilegiada. A discussão realizada revela de que maneira o entrecruzamento dessas avenidas identitárias modula as visões e atitudes desses indivíduos em relação à vacinação.

Talvez o achado mais interessante da pesquisa seja a percepção da não vacinação como um privilégio. Na fala dos sujeitos, a possibilidade de ter a opção de não vacinar separa o “nós” – famílias estruturadas, com acesso a recursos financeiros e capazes de dar as melhores condições aos filhos – do “eles” – famílias pobres, que não possuem condições sanitárias elementares (como saneamento básico) e que vivem em favelas, precisando, portanto, de vacinas como um “mal necessário”, uma espécie de último recurso para mitigar as consequências sanitárias da pobreza.

Podemos pensar aqui na não vacinação como dispositivo de distinção, no sentido postulado por Bourdieu88 Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento. 2a ed. Porto Alegre: Zouk; 2011.: uma prática que expressa uma posição social compartilhada e que diferencia os sujeitos pertencentes a essa classe daquelas que eles julgam inferiores. A fala de uma das informantes, ao se referir ao próprio filho, choca pela clareza com que expressa essa percepção de distinção: “[...] ele é obrigado a tomar uma [mesma] vacina que aquela criança lá que vive na favela [...]?”22 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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(p. 9). Nesse sentido, percebemos que os caminhos para combater a hesitação vacinal não se esgotam na divulgação científica de informações de qualidade, mas precisam compreender o papel das profundas desigualdades de raça, classe e gênero que estruturam o país nas relações dos sujeitos com a saúde pública.

Em um país que conta com um Sistema Único de Saúde (SUS) de acesso amplo, gratuito e universal, em que os imunizantes chegam às regiões mais distantes dos grandes centros e de difícil acesso, é nas populações mais escolarizadas e com mais recursos financeiros que os percentuais de hesitação vacinal se elevam. As visões dos sujeitos investigadas no artigo dialogam com as pesquisas que investigam percepções sobre o SUS, muitas vezes percebido por parte da população como um “plano de saúde para os pobres”, um serviço sucateado para quem não tem uma alternativa de “melhor qualidade”99 Martins PC, Cotta RMM, Mendes FF, Mendes SE, Franceschinni SCC, Cazal MM, et al. De quem é o SUS? Sobre as representações sociais dos usuários do Programa Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2011; 16(3):1933-42.. Nesse sentido, essas visões equivocadas sobre o SUS, que responde massivamente às demandas por doses de vacinas humanas no país1010 Gadelha CAG, Braga PSC, Montenegro KBM, Cesário BB. Acesso a vacinas no Brasil no contexto da dinâmica global do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Cad Saude Publica. 2020, 36(2):e00154519., dialogam com os achados do artigo em debate.

Essas percepções, como ressaltam as autoras, aparecem explicitamente relacionadas à classe e espacialidade, mas guardam uma relação não enunciada com a branquitude. Emoções como medo, nojo e até mesmo compaixão podem ser percebidas nos discursos sobre o “outro” (negro, pobre, favelado) e seus filhos vacinados – e as emoções têm o potencial de reforçar e dramatizar relações de poder1111 Abu-Lughod L, Lutz C, organizadoras. Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press; 1990..

Seu capital social88 Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento. 2a ed. Porto Alegre: Zouk; 2011. que os leva a circular entre espaços, na visão dos sujeitos, “bem frequentados”, protege suas crianças da figura fantasmática do “contágio” – aqui percebido menos no sentido estrito da transmissão de doenças infecciosas e mais no suposto risco da “mistura” com seres perigosos, impuros, o que sustenta ideias eugenistas e racistas. Classe e raça operam como marcadores de uma diferença hierárquica em que, com o atravessamento de um ethos neoliberal, a saúde é vista menos como um direito universal e mais como mais um produto a ser consumido, e o consumo é um espaço de distinção e reafirmação de hierarquias.

Em suma, esses achados confirmam a complexidade do fenômeno da hesitação vacinal e a urgência em incorporar uma perspectiva interseccional na pesquisa e na atuação em saúde pública. Como aumentar a cobertura de imunização quando a não vacinação é vista como um privilégio? Mais do que demarcar uma resposta, o artigo em debate contribui de maneira fundamental ao deixar essa questão. Iniciativas de divulgação científica que promovem o acesso a conhecimentos de qualidade são muito importantes, bem como a garantia do acesso amplo e irrestrito às vacinas. Porém, é preciso pensar estratégias que levem em conta que o problema vai além da falta de acesso à informação e da negligência, reverberando estruturas sociais responsáveis por não apenas este, mas também por uma série de outros problemas sociais brasileiros.

Referências

  • 1
    Massarani L, Leal T, Waltz I, Medeiros A. Infodemia, desinformação e vacinas: a circulação de conteúdos em redes sociais antes e depois da Covid-19. Liinc Rev. 2021; 17(1):1-23.
  • 2
    Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
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  • 3
    Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu. 1995; (5):7-41.
  • 4
    Hooks B. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva; 2021.
  • 5
    Crenshaw K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University Chicago Legal Forum. 1989; 1(8):139-67.
  • 6
    Gonzalez L. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar; 2020.
  • 7
    Collins PH. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo; 2019.
  • 8
    Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento. 2a ed. Porto Alegre: Zouk; 2011.
  • 9
    Martins PC, Cotta RMM, Mendes FF, Mendes SE, Franceschinni SCC, Cazal MM, et al. De quem é o SUS? Sobre as representações sociais dos usuários do Programa Saúde da Família. Cienc Saude Colet. 2011; 16(3):1933-42.
  • 10
    Gadelha CAG, Braga PSC, Montenegro KBM, Cesário BB. Acesso a vacinas no Brasil no contexto da dinâmica global do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Cad Saude Publica. 2020, 36(2):e00154519.
  • 11
    Abu-Lughod L, Lutz C, organizadoras. Language and the politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press; 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2024
  • Aceito
    16 Jun 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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