“Crias da Maré”: homens jovens, desigualdades sociais e saúde em tempos de pandemia de covid-19

"Crias da Maré": young men, social inequalities and health in times of pandemic

Crias da Maré”: hombres jóvenes, desigualdades sociales y salud en tiempos de pandemia de Covid-19

Lucas Tramontano Marcos Antonio Ferreira do Nascimento Sobre os autores

Resumos

Este artigo discute as percepções de homens jovens (18-29 anos) moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, Brasil, sobre processos de saúde-doença e desigualdades sociais no contexto da pandemia de Covid-19. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, e analisados usando a análise de conteúdo temática. Os resultados permitem traçar um quadro sobre saúde, desigualdades sociais e território sob a ótica dos próprios sujeitos da pesquisa. Refletindo sobre adesão a ações em saúde, sociabilidade na favela e a vivência cotidiana da violência e do racismo, esses jovens trazem um olhar singular acerca da saúde do homem que se expande para além do período de emergência sanitária.

Palavras-chave
Saúde do homem; Masculinidades; Juventude; Covid-19


This article discusses the perceptions of young men aged 18-29 living in the favela Complexo da Maré, Rio de Janeiro about health-disease processes and social inequalities in the context of the Covid-19 pandemic. The data were collected using semi-structured interviews conducted between September 2022 and February 2023 and analyzed using thematic content analysis. The results provide a picture of health, social inequalities and territory from the participants’ perspective. Reflecting on adherence to health actions, sociability in the favela and their daily experiences of violence and racism, these young men offer a unique view of men's health that extends beyond the public health emergency.

Keywords
Men's health; Masculinities; Youth; Covid-19


Este artículo discute las percepciones de hombres jóvenes (18-29 años) moradores del Complexo da Maré, en Río de Janeiro, Brasil, sobre procesos de salud-enfermedad y desigualdades sociales en el contexto de la pandemia de Covid-19. Los datos se recolectaron por medio de entrevistas semiestructuradas, realizadas entre septiembre de 2022 y febrero de 2003 y que se analizaron usando el análisis de contenido temático. Los resultados permiten trazar un cuadro sobre salud, desigualdades sociales y territorios, desde el punto de vista de los propios sujetos de la investigación. Reflexionando sobre adhesión a acciones en salud, sociabilidad en la favela y la vivencia cotidiana de la violencia y del racismo, esos jóvenes brindan una mirada singular sobre la Salud del Hombre que se amplía más allá del período de emergencia sanitaria.

Palabras clave
Salud del Hombre; Masculinidades; Juventud; Covid-19


Introdução

A pandemia do novo coronavírus, a maior emergência sanitária contemporânea, evidenciou vulnerabilidades específicas em diferentes grupos sociais, configurando verdadeiras desigualdades sociais em saúde11 Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.. Neste artigo, olhamos para as múltiplas desigualdades às quais os sujeitos estão expostos ao longo da vida por uma lente interseccional, que compreende o entrecruzamento desses marcadores sociais da diferença na produção de um lugar social único22 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem. 2002; 10(1):171-88.. Destacamos prioritariamente questões relativas aos marcadores de gênero, raça, geração e território.

As análises de gênero na pandemia identificaram a sobrecarga do trabalho do cuidado a cargo das mulheres, no mundo público, e das trabalhadoras da saúde e de outros setores, na esfera doméstica33 Pimenta DN, Wenham C, Rocha MC, Schall B, Bonan C, Mendes CHF, et al. Leituras de Gênero sobre a Covid-19 no Brasil. In: Matta G, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. p. 159-70.. Contudo, registrou-se uma maior morbimortalidade de homens frente às mulheres44 Ruxton S, Burrell S. Masculinities and Covid-19: making the connections. Washington: Promundo-US; 2020.. Um sentimento de invulnerabilidade e uma resistência a práticas de prevenção em saúde, comuns entre os homens, foram apontadas como possíveis justificativas para os dados epidemiológicos diferenciados por gênero55 Madrid S, Valdés T, Celedón R, organizadores. Masculinidades en América Latina: veinte años de estudios y políticas para la igualdad de género. Santiago: Editora Universidad Academia de Humanismo Cristã; 2020.

6 Sousa AR, Santana TS, Carvalho ESS, Mendes IAC, Santos MB, Reis JL, et al. Vulnerabilidades percebidas por homens no enquadramento da pandemia da Covid-19. Rev Rene. 2021; 22:e60296.
-77 Medrado B, Lyra J, Nascimento M, Beiras A, Corrêa ACP, Alvarenga EC, et al. Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Cienc Saude Colet. 2021; 26(1):179-83.. Outra característica da masculinidade hegemônica88 Connell RW, Messerschmidt JW, Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender Soc. 2005; 19(6):829-59. que causou impactos foi a restrição de circulação no espaço público, tradicionalmente reservado aos homens no binarismo de gênero, imposta pela necessidade de distanciamento social44 Ruxton S, Burrell S. Masculinities and Covid-19: making the connections. Washington: Promundo-US; 2020.,77 Medrado B, Lyra J, Nascimento M, Beiras A, Corrêa ACP, Alvarenga EC, et al. Homens e masculinidades e o novo coronavírus: compartilhando questões de gênero na primeira fase da pandemia. Cienc Saude Colet. 2021; 26(1):179-83..

É notável que os argumentos que explicam as diferenças de gênero na pandemia sejam justamente aqueles que embasam a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), lançada em 2008 e atualizada em 2021. A PNAISH reconhece que a baixa adesão dos homens às práticas preventivas decorre de estereótipos de gênero patriarcais, que produzem um sentimento de invulnerabilidade e uma maior exposição a situações de risco. A partir dessa perspectiva, as linhas de ação da PNAISH buscam qualificar profissionais e reorganizar serviços para melhor acolher os homens e promover uma mudança paradigmática na percepção dos homens sobre o cuidado em saúde99 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2008.,1010 Portaria GM/MS nº 3.562, de 12 de Dezembro de 2021. Altera o Anexo XII da Portaria de Consolidação GM/MS nº 2, de 28 de Setembro de 2017, para dispor sobre a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). Diário Oficial da União. 28 Dez 2021..

A juventude foi desigualmente afetada pela Covid-19 pela interrupção das aulas, pelo ensino remoto, pela fragilidade dos contratos de trabalho ou pela necessidade de cuidar dos mais velhos1111 Sobrinho ALS, Abramo HW, Villi MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022.. As comunidades cariocas também foram apontadas como ambientes mais vulneráveis à Covid-19, em função da densidade populacional, da falta de saneamento básico, da baixa qualidade do acesso à internet e da impossibilidade de um distanciamento social mais restrito e/ou mais longo, conforme apontou o Radar Covid-19 Favelas1212 Fundação Oswaldo Cruz. Radar Covid-19: favelas. 11a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021.. Pessoas negras, maioria nas favelas cariocas, foram apontadas como a população que mais morreu de Covid-191111 Sobrinho ALS, Abramo HW, Villi MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022..

Neste contexto, ouvir os jovens acerca de suas concepções de saúde-doença e os impactos das desigualdades sociais é estratégico para compreender suas possibilidades e escolhas em termos de cuidado. A pandemia aumentou a preocupação com hábitos sanitários e práticas de prevenção às doenças, possibilitando uma maior reflexão sobre si, situação que o setor saúde deve aproveitar para ações futuras em saúde.

A pesquisa buscou, portanto, articular perspectivas contemporâneas decorrentes da pandemia a questões históricas da saúde do homem e dos estudos sobre masculinidade e saúde. Para tal, atentamos para as desigualdades sociais vividas por homens jovens (18 a 29 anos) moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, Brasil, e suas ressonâncias nos cuidados em saúde, utilizando a pandemia de Covid-19 como um momento privilegiado para reflexões sobre o cuidado de si. Os resultados focados na experiência da Covid-19 foram publicados em trabalho anterior1313 Tramontano L, Nascimento MAF. “Aqui na favela, nada parou”: percepção da pandemia de Covid-19 por homens jovens do Complexo da Maré, RJ, Brasil. Cienc Saude Colet. 2023; 28(12):3715-24.; aqui, trazemos um panorama do cuidado entre homens jovens em contextos periféricos.

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória e de abordagem socioantropológica, ou seja, levamos em consideração as contribuições das ciências sociais e humanas em saúde para compreender como os contextos social e cultural influenciam nos modos de vida e de compreensão sobre processos de saúde-doença1414 Santos ACB, Silva AF, Sampaio DL, Sena LX, Gomes VR, Lima VLA, et al. Antropologia da saúde e da doença: contribuições para a construção de novas práticas em saúde. Rev NUFEN. 2012; 4(2):11-21.. Fruto de pós-doutorado em Saúde Coletiva realizado na Fiocruz, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE 60940122.7.0000.5269, a pesquisa se deu por meio de entrevistas semiestruturadas presenciais com dez homens jovens (18-29 anos) moradores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Utilizando-se da análise de conteúdo temática1515 Cavalcante RB, Calixto P, Pinheiro MMK. Análise de conteúdo: considerações gerais, relações com a pergunta de pesquisa, possibilidades e limitações do método. Inf Soc Est. 2014; 24(1):13-8., nosso objetivo era compreender as possibilidades de adesão e o nível de participação dos jovens em ações em saúde no território para explorarmos se e como diferentes desigualdades sociais em saúde dessa população se relacionam a comportamentos sanitários.

A Maré é um complexo de 16 favelas na região norte da capital fluminense, com quase 140.000 moradores, sendo 49% homens. Eles predominam na faixa etária de 10 a 14 anos, sendo superados pelas mulheres na adolescência, devido a dificuldades de prevenção na saúde masculina, à política de segurança pública e à exigência cultural de demonstração de virilidade e competição. Temos 62,1% de pessoas negras, índice acima da média nacional, mas típico das favelas cariocas. A população entre 15 e 29 anos, intervalo mais próximo de nossa pesquisa, representa 27,4% do total1616 Redes da Maré. Censo populacional da Maré. Rio de Janeiro: Redes da Maré; 2019..

O trabalho de campo aconteceu entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023. Os critérios de inclusão foram a autoidentificação como homem e ser residente na comunidade. Partindo de contatos de pesquisas anteriores com organizações não governamentais (ONGs) e instituições presentes no território, chegamos aos primeiros entrevistados. Então, seguimos indicações dos próprios sujeitos, no esquema bola de neve, até completarmos a amostra prevista no projeto. As pessoas indicadas não necessariamente participavam de projetos, não havendo homogeneidade nesse sentido. Para garantir o anonimato dos participantes, vamos identificá-los como E1, E2, e assim por diante.

As entrevistas foram realizadas pelo mesmo pesquisador e gravadas, após assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O áudio serviu apenas para facilitar a conversa e a transcrição, feita pelo próprio entrevistador. O local, a data e o horário das entrevistas foram escolhidos pelos entrevistados: todas em locais públicos, próximos à residência ou ao local de trabalho/estudo deles. O fato de o pesquisador também ser homem teve pouco impacto no campo, não sendo destacado nas entrevistas.

O roteiro de entrevistas compunha blocos de perguntas: (1) perfil sociodemográfico; (2) sociabilidade e internet; (3) estado de saúde e uso de medicamentos; (4) acesso a serviços e políticas de saúde; (5) concepções sobre gênero, masculinidades e saúde; e (6) pandemia e prevenção ao novo coronavírus. Tais blocos se cristalizaram no campo, exigindo poucos ajustes. Da análise, emergiram as categorias “perfil sociodemográfico”; “sociabilidade e internet”; “saúde e medicamentos”; “saúde e sociedade”; e “Covid-19”. A categoria “Covid-19” foi apresentada separadamente em artigo anterior1313 Tramontano L, Nascimento MAF. “Aqui na favela, nada parou”: percepção da pandemia de Covid-19 por homens jovens do Complexo da Maré, RJ, Brasil. Cienc Saude Colet. 2023; 28(12):3715-24.. Assim, o recorte proposto neste artigo apresenta um olhar sobre as outras quatro categorias.

Perfil sociodemográfico

Na seleção dos entrevistados, buscamos um agrupamento em três grupos etários: 18 a 21 anos, 22 a 25 anos e 26 a 29 anos. A intenção era observar mudanças em relação ao curso de vida, principalmente sobre escolaridade e profissionalização. Os mais jovens tinham trabalhos informais ou não trabalhavam, enquanto os mais velhos tinham profissão definida ou empregos formais. Quanto à escolaridade, entre os mais jovens, houve um único caso de ensino médio incompleto, enquanto os outros dois terminaram o ensino médio, mas não ingressaram no ensino superior. Entre os mais velhos, temos dois com ensino superior completo e ingresso no mestrado. Os dados podem ser vistos no quadro 1.

Quadro 1
Perfil sociodemográfico dos entrevistados

Em relação à raça/cor, houve uma homogeneidade, esperada pelas características raciais históricas das favelas cariocas1717 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4a ed. Brasília: Ipea; 2011.. Assim, dois homens se identificaram como negros, dois como pardos, três como pretos, dois como brancos e um não quis se identificar, afirmando evitar questões raciais.

Todos os entrevistados são pessoas sem deficiência (PSD). As perguntas sobre identidade de gênero e orientação sexual se revelaram de difícil compreensão. Com três exceções, a maioria não compreendia ou tratava como sinônimas as duas dimensões, respondendo sua orientação sexual (heterossexual) ao serem perguntados sobre identidade de gênero. Entre os que viam como categorizações distintas, estão os dois homens não heterossexuais entrevistados e o jovem com mais idade (E2) e alto capital cultural, a partir de seu contato com movimentos sociais. Ao final, todos os entrevistados se identificaram como homens cis; oito se identificaram como heterossexuais, um se identificou como gay e um se identificou como “parte da comunidade LGBT”.

Sobre relacionamentos afetivos, os dois mais jovens estavam solteiros e os dois mais velhos eram separados. Entre os que namoram, um, também no grupo com mais idade, separou-se e iniciou novo relacionamento. Apenas dois tinham um filho (E3 e E9).

A condição socioeconômica foi de difícil caracterização. Os jovens frequentemente não compreendiam a pergunta ou não sabiam se classificar. Esse ponto era destrinchado em outras perguntas, sobre ter renda própria, sobre renda familiar e auxílios governamentais. As respostas foram dispersas: jovens com rendas familiares mais baixas se definiram como classe média e jovens com rendas mais elevadas se definiram como pobres. Eles próprios ou alguém do núcleo familiar teve acesso ao Auxílio Emergencial1818 Sordi D. Empobrecimento, fome e pandemia: o Auxílio Emergencial, o fim do Programa Bolsa Família e o Auxílio Brasil, 2019-2022. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2023; 30 Supl:e2023032. durante a pandemia.

A insegurança alimentar e a perda de parentes próximos durante a pandemia também compunham o cenário. E4, de vinte anos, morava com a mãe e a avó, mas ambas faleceram e ele passou a morar sozinho. Não estudava, nem tinha emprego fixo e se alimentava quando conseguia algum dinheiro com trabalhos aleatórios ou em eventos em ONGs e instituições da favela.

Apesar da forte presença de igrejas evangélicas no território, a maioria se definiu como “sem religião”, mas não ateus. Apenas um jovem era evangélico e havia um candomblecista, um umbandista e um católico, todos praticantes.

Esse quadro social se coaduna com outros contextos de jovens em territórios periféricos brasileiros, conforme mostra um estudo da Fiocruz1212 Fundação Oswaldo Cruz. Radar Covid-19: favelas. 11a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2021..

Sociabilidade e internet

Todos os jovens afirmaram ter opções de lazer suficientes e próximas às suas casas. A rede de relações é muito focada na própria comunidade; especialmente entre os mais jovens, não era frequente sair da favela para se divertir. Uma exceção foi E8, que se encontra com amigos em diferentes shoppings da cidade para jogar jogos eletrônicos.

Há uma tendência a negar o baile funk, sendo que muitos dos entrevistados afirmaram não se interessar pelo evento ou considerá-lo ser algo de um passado “mais jovem”. A sociabilidade juvenil em contextos de favela no Rio de Janeiro tem o funk entre suas expressões mais conhecidas. Mais do que um estilo musical ou “baile” como um espaço privilegiado de sociabilidade jovem, o funk aparece na literatura como alvo de disputas entre diferentes setores da sociedade e engendramento de estéticas; e dinâmicas da sexualidade e de comportamentos juvenis1919 Cechetto F. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: FGV; 2004..

Todos acessam redes sociais e o WhatsApp e o Instagram são descritos como suas redes preferidas. Porém, apareceram duas críticas comuns sobre as redes sociais. E2 afirma evitar o Instagram porque “é a que mais vicia”, preferindo o Facebook, pois “você consegue ler muito. Tem muita notícia [...] O Instagram é [...] Corpos e alegrias. Uma falsa alegria das redes”. Além disso, o Facebook cumpriu outro papel para ele:

Facebook só usava para política [...] período de 2016, período do golpe, até 2018, eu era muito ativo e tinha muita discussão, porque, assim, a rede que eu tenho aqui é uma galera [que] não [teve] acesso às informações e assim acaba vendo a vida por uma ótica, enfim, o que a grande mídia está jogando, e começa a achar que só aquilo ali é o que é. Não tem uma visão para além. Tem muita gente também vinculada às igrejas evangélicas, que, infelizmente, hoje foi apropriada por um conservadorismo amassador! (E2)

A “cultura do cancelamento”, outra crítica comum, foi trazida por E8:

Instagram, não tenho muito apreço, porque é aquela questão assim, se você falar alguma coisa e alguém já te cancelar assim, já falando “ah, você é isso, é aquilo”... não, eu nem ligo muito. Telegram também não, só o WhatsApp que eu uso porque é onde eu falo com os colegas. Facebook é mais pra se ver o que tem pra vender [...] Pra tu ver, no Instagram, eu não tinha nenhuma foto, só pus agora, assim, há pouquinho tempo, esse ano que eu postei uma foto. (E8)

Os usos da internet são bem variados, havendo desde produtores de conteúdo musical (E4) até quem evita postagens pessoais. Todos destacaram as redes sociais como o local prioritário onde buscam informações. Entretanto, afirmaram não acompanhar sistematicamente conteúdos sobre saúde. Foi mais comum informar-se sobre a pandemia pela televisão do que por meio da internet1313 Tramontano L, Nascimento MAF. “Aqui na favela, nada parou”: percepção da pandemia de Covid-19 por homens jovens do Complexo da Maré, RJ, Brasil. Cienc Saude Colet. 2023; 28(12):3715-24.. Não consideravam que a pandemia tivesse levado a um aumento significativo do uso da internet, apesar de todos relatarem que mantinham contato com amigos nos períodos de isolamento por meio das redes.

Muitos não têm acesso contínuo à internet, indo até locais com wi-fi liberado para receber e enviar mensagens. Tais locais funcionam como “bolsões” de internet, onde muitas pessoas entram apenas para usar o celular. Um dos entrevistados não possuía celular (E4); entretanto, usava ativamente as redes sociais em computadores disponibilizados em instituições da comunidade, o que também era o caso de E5. Ter computador para uso individual foi menos comum (E1, E2 e E9), e, em alguns casos (E6 e E7), havia um único computador dividido entre os familiares. Nesse sentido, a inclusão digital de jovens de favela está distante de ser democrática. Limitantes como compartilhamento de smartfones e computadores entre vários membros de uma mesma família e a dificuldade de acesso à internet ainda são comuns entre jovens brasileiros em diferentes regiões do país1111 Sobrinho ALS, Abramo HW, Villi MC, organizadores. Jovens e saúde: revelações da pandemia no Brasil 2020-2022. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022..

Cuidados em saúde

A maioria dos entrevistados avaliou que sua saúde está boa (E3, E6, E7, E8, E9 e E10) ou que já esteve pior (E1 e E5); apenas dois avaliaram como ruim: E2 relatou uma alimentação muito ruim, chegando a fazer uma única refeição por dia por falta de dinheiro; e E4 considera que, “por causa do uso de droga e algumas coisas, eu deixei de cuidar de mim mesmo”. Vale lembrar que E5 também vive em grave insegurança alimentar, como já mencionado.

Os relatos sobre estado de saúde devem ser contrastados com o fato de que a ida aos serviços não é constante para a maioria deles, com exceções (E1, E8 e E9). Foi comum a afirmação, por parte dos participantes, de que a última vez que compareceram a tais serviços de saúde havia ocorrido há anos e/ou a dificuldade em se lembrar a última vez desse comparecimento, o que vai ao encontro de outros relatos2020 Nascimento M, Segundo M, Barker G. Reflexões sobre a saúde dos homens jovens: uma articulação entre juventude, masculinidade e exclusão social. In: Gomes R, organizador. Saúde do homem em debate. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 111-28.. A avaliação positiva dos serviços de saúde próximos também deve ser vista com cautela, pelo mesmo motivo. Apenas um entrevistado (E6) se disse insatisfeito, referindo-se à Clínica da Família (CF) como “inimiga da família”. Quando questionado, cita o tempo de espera nos atendimentos e para marcação de consultas e exames, apesar de ele próprio não relatar grandes dificuldades nesse sentido, sendo mais algo observado com outras pessoas. Em contextos de vulnerabilidade social, só os fatos de terem acesso a um serviço do Sistema Único de Saúde (SUS) e de conseguirem algum tipo de atendimento fazem com que as avaliações da qualidade do acolhimento sejam interpretadas como “muito boas”, haja vista a dificuldade de acesso para esse público2020 Nascimento M, Segundo M, Barker G. Reflexões sobre a saúde dos homens jovens: uma articulação entre juventude, masculinidade e exclusão social. In: Gomes R, organizador. Saúde do homem em debate. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. p. 111-28..

Todos conhecem e frequentam a CF mais próxima. A Unidade de Pronto Atendimento (UPA) também aparece com frequência, porém, quando perguntados sobre hospitais, as respostas eram mais hesitantes. Todos afirmam que o correto é procurar um médico ao perceber um problema de saúde, mas não o fazem na prática, buscando resolver o problema com automedicação ou ignorando até que o sintoma se torne insuportável ou desapareça. Todos consideram problemático consultar a internet acerca de possíveis diagnósticos, mas todos o fazem de uma forma ou outra. Quando desconfiam de algum problema, o primeiro movimento é procurar algum familiar, sendo pais ou avós os mais citados.

Buscar ajuda para questões em saúde dessa forma é apresentado em estudos tanto nacionais quanto internacionais sobre homens jovens2121 Barker G, Olukoya A, Aggleton P. Young people, social support and help-seeking. Int J Adolesc Med Health. 2005; 17(4):315-36.. De maneira geral, os serviços de saúde não são amigáveis para os homens, particularmente para os jovens, desde a ambiência até o acolhimento.

A maioria não possui plano de saúde privado: “é aquela música do Criolo né, plano de saúde de pobre é não ficar doente, então, eu tento não ficar doente” (E2). E6 e E7 foram dependentes dos pais em planos oferecidos no trabalho e E8 tem um plano de saúde pago pelos pais “a vida toda”. Entretanto, eles consideram que os serviços suprem suas demandas, e, quando perguntados sobre melhorias, as respostas eram genéricas, como ter mais atendimentos ou mais profissionais. Houve apenas um relato de buscar e não conseguir atendimento. Eles afirmam não terem sofrido constrangimentos de nenhum tipo em serviços de saúde.

Todos conhecem e avaliam muito positivamente os agentes comunitários de saúde (ACS). Ainda que eles próprios não sejam atendidos, alguém próximo e vizinhos o são. E3, inclusive, pretende trabalhar como ACS. Não é raro que jovens que tenham participado de projetos sociais de educação em saúde ou que tenham mais proximidade com as Unidades de Saúde vislumbrem a entrada no serviço como uma possibilidade de inserção profissional2222 Monteiro S, Cecchetto F. Trayectorias juveniles e intervenciones sociales: repercusiones en las prácticas sociales y en la salud (Río de Janeiro, Brasil). Cad Saude Publica. 2006; 22(1):193-206..

Não foram relatados muitos casos de doenças crônicas, nem o uso constante de medicamentos. A maioria, quando precisa, acessa medicamentos de forma gratuita na CF. Dois jovens (E2 e E4) relataram problemas de saúde mental (depressão e ansiedade), agravados no período da pandemia, mas tratados de forma autônoma, enquanto um jovem faz acompanhamento psicológico regular fora da comunidade, mais precisamente, no local de trabalho (E1).

Apenas dois jovens fumam cigarros, três utilizam drogas ilícitas (dois fumam maconha, um diariamente e outro de forma esporádica, e um usa diferentes drogas, também esporadicamente). O que faz uso diário de maconha apresenta tal uso como um problema e algo que busca interromper:

No começo, eu usava mais pra... eu já sabia que eu tinha crise de ansiedade e era muito forte [...] quando eu tenho, eu me tremo até o extremo, mas quando eu usava era uma coisa que... fazia esquecer o pensamento que eu tava na... na ansiedade, e eu me jogava pra uma coisa que eu ficava mais tranquilo [...] Agora o uso piorou porque parece que virou rotina, entendeu? Quando eu tô com dinheiro, eu tô lá comprando. É o que, umas quatro vezes na semana. Mesmo que não esteja com crise. (E4)

Os outros usuários consideram o uso recreativo, sem necessidade de acompanhamento. O uso de álcool foi mais frequente, descrito como ocasional, em situações sociais. Em um único caso, houve uma preocupação com o consumo de álcool, que aumentou drasticamente durante a pandemia: “E aí, você tá com a cabeça mal pra caramba, tu tá dentro de casa, quase não sai, aí, de novo, é mais bebida” (E2). Ainda assim, ele não buscou tratamento e reduziu o consumo de forma autônoma. Nessa direção, o uso de álcool e de outras drogas constituem ritos de masculinidade para homens jovens. O consumo de substâncias, muitas vezes incentivado por familiares mais velhos ou seus pares, faz parte da socialização masculina e do ingresso na “vida adulta”2323 Granja E, Gomes R, Medrado B, Nogueira C. O (não) lugar do homem jovem nas políticas de saúde sobre drogas no Brasil: aproximações genealógicas. Cienc Saude Colet. 2015; 20(11):3447-55..

Houve dois relatos de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs): um caso de gonorreia (E3) e um de sífilis (E1), anteriores à pandemia. Ambos foram tratados no SUS sem dificuldades, nem constrangimentos. Foi muito frequente o relato de testagem de ISTs, seja prévio a competições esportivas, por exigências do trabalho e, em um caso, por uma desconfiança de uma IST, que não se confirmou. Interessante observar que esse “bom atendimento” não é regra, podendo haver constrangimentos sobretudo em relação a jovens gays2424 Ferrari W, Nascimento MAF, Nogueira C, Rodrigues L. Violências nas trajetórias afetivo-sexuais de jovens gays: “novas” configurações e “velhos” desafios. Cienc Saude Colet. 2021; 26(7):2729-38.. A moralidade que cerca a sexualidade juvenil, no binarismo responsabilidade-irresponsabilidade, tem sido muito debatida, chamando a atenção para as vicissitudes das decisões sobre saúde sexual e reprodutiva entre jovens2525 Brandão ER, Cabral CS. Juventude, gênero e justiça reprodutiva: iniquidades em saúde no planejamento reprodutivo no Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2021; 26(7):2673-82..

Todos relataram algum nível de educação sexual na escola, focada em gravidez e contracepção, e todos consideraram importante e necessário ter acesso a essas informações na adolescência. Nesse sentido, apesar de o Rio de Janeiro ter uma experiência acumulada no campo da educação em sexualidade e prevenção de IST, HIV e gravidez2626 Fonseca VN, Nascimento M, Monteiro S. Aids e prevenção: um olhar retrospectivo sobre projetos sociais com jovens no Rio de Janeiro. Saude Debate 2023; 46(7 Spec No):48-61., o contexto político conservador recente com a chamada “ideologia de gênero” produziu importantes retrocessos no campo da sexualidade juvenil2727 Paiva SP, Brandão ER. Abstinência sexual como política pública? Governo Bolsonaro e a (des)educação em sexualidade. Rev Pauta. 2023; 21(53):159-73..

Falar sobre essas temáticas com a família trouxe respostas heterogêneas, mas todos têm um(a) amigo(a) ou parente com quem conversar. Acerca do uso de preservativos, os mais velhos da amostra tendem a usar menos, enquanto os mais jovens afirmam usar “quase sempre”. Tirando os dois jovens que têm filhos, outros não tiveram experiência de gravidez de parceiras ou de aborto, com uma exceção (E2), na qual a parceira sofreu um aborto espontâneo.

A relação dos homens com a saúde reprodutiva ainda é um desafio. Embora haja consenso da importância de envolver rapazes e homens adultos nas decisões reprodutivas, a realidade mostra que ainda são as mulheres que fazem a gestão da reprodução2828 Lyra J, Dantas BM. As tramas de uma complexa rede: atores e atrizes da política de direitos reprodutivos no Brasil. Rev Estud Fem. 2019; 27(1):e44803.. Sobre aborto, a maioria afirmou que essa é uma decisão prioritariamente da mulher. Em dois casos, houve uma recusa ao aborto, descrito como assassinato. E3 afirmou que “não ia deixar” se a parceira quisesse abortar. E7 considera aborto “algo muito errado. A pessoa que engravida querer [...] tirar a vida do próprio filho!”. Uma educação cristã não estava associada ao posicionamento sobre o aborto; o jovem católico da amostra, por exemplo, considera que o aborto em casos de estupro seja correto: “nenhuma mulher vai querer ter um filho que foi de um estupro!”. No tocante a esse tema, há uma crescente produção sobre a participação dos homens na decisão do aborto e as tensões envolvidas em termos de desigualdades de gênero e de classe2929 Brandão ER, Cabral CS, Azize RL, Heilborn ML. Homens jovens e aborto: a perspectiva masculina face à gravidez imprevista. Cad Saude Publica. 2020; 36 Supl 1:e00187218..

Saúde e sociedade: violência territorial e racismo

As respostas variavam bastante sobre a experiência de morar na favela. Como uma vantagem, repetiram-se menções a um senso de coletividade, que torna as dificuldades do território menos custosas: “Eu acho que talvez venha de uma raiz mais ancestral assim. Poder coletivo, sabe? [...] É uma força coletiva absurda [...] independente do teu posicionamento político, como você é, se você é da Igreja” (E2). Ainda que possa ser um “discurso romantizado”, como eles próprios descreveram, é inegável a potência de redes comunitárias de solidariedade e do senso de coletivo, como descritos em estudos anteriores3030 Fleury S, Menezes P. Pandemia nas favelas: entre carências e potências. Saude Debate. 2021; 44(4 Spec No):267-80..

A expressão “cria da Maré”, no título deste artigo, expõe um orgulho em compor essa comunidade muito presente em campo. Ao contar que são nascidos e criados na Maré, eles se diziam crias da favela, uma definição comum entre os moradores, que indica um senso de pertencimento e uma identidade. A pouca circulação em outros espaços da cidade faz com que a disponibilidade de comércio e lazer próximos de casa, sem necessidade de uso de transporte público, e o acesso a serviços sem ou de baixo custo sejam muito valorizados.

A desvantagem unânime foi a segurança, a violência e as frequentes operações policiais. “Porque aqui a gente vive tipo nove horas de medo. Porque tem vezes a gente sai de casa pra trabalhar e não sabe o que vai acontecer depois” (E6). A entrada da milícia na favela foi apontada como uma piora no cotidiano do morador. Essas críticas eram feitas de forma hesitante, abaixando o tom de voz, com olhares apreensivos e risos nervosos: “Preciso falar?” (E3). Ao final da entrevista, com o gravador desligado, davam mais detalhes, pedindo sigilo. O que importa é a onipresença da violência, que não se torna, em absoluto, algo resignado. A vida dos jovens na favela é muito afetada pela violência, que produz subjetividades, sofrimento e mortes. Entre as ações do narcotráfico, da polícia e da milícia, modelos de masculinidade são engendrados e o fenômeno do racismo se faz ainda mais presente3131 Barker G. Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão social. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2008.. E2, que se identificou como branco, costumava se identificar como pardo, como explicou neste relato:

Me via como pardo, mas eu acho que depois de ter acesso a outras informações e pensar na estrutura como funciona o Brasil, eu me considero branco, [por] essa estrutura racista mesmo da sociedade. Nunca fui parado assim pela polícia porque eu estava andando na rua, mesmo vindo da favela. Agora, quando eu tava com os meus amigos, realmente negros, pardos, aí a gente era parado. (E2)

Ainda que a maioria não considere que ser homem tenha impacto na saúde, E8 destoa e afirma que:

Tem aquela coisa de “ah, se você precisar ir pro médico, você é isso, você é aquilo” [...] Seria aquela questão de o homem não precisar ir pra um médico por causa de tal motivo: “Ah, por que que eu tenho que ir pra um urologista? Se não tô tendo nada, por que que eu vou?”. Eu acho um pouco idiota por parte de uma pessoa, porque é bom ir ao urologista, porque você vai ter mais questões, assim, de melhorar a sua saúde, né, seja física ou sexualmente [...] Eu sou aquele tipo que [vai no] médico, que é melhor ver do que vir depois a ter algum problema [...] Eu acho bobo porque é a sua vida que tá ali [...] é você que vai ter o problema no futuro. (E8)

As barreiras culturais em torno dos cuidados em saúde têm sido documentadas há bastante tempo. Mesmo o Brasil sendo um dos poucos países no mundo com uma política de saúde voltada para a população masculina adulta, lançada em 2009, nota-se ainda as dificuldades de acesso aos serviços de saúde devido à crença de que o cuidado é algo relacionado às mulheres e ao feminino1919 Cechetto F. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: FGV; 2004.. É significativo que, perguntado sobre impactos na saúde por ser homem, o jovem associe espontaneamente à saúde sexual e a problemas urológicos; a percepção da relação entre gênero e saúde fica restrita à diferença sexual, de forma binária e sob um olhar médico-científico.

Para além do cuidado, há alguma percepção da desigualdade de gênero e de que a vida das mulheres é mais difícil. Foram mencionados espontaneamente o risco do estupro e a diferença salarial, por exemplo.

Eu saio daqui tarde, meia-noite, eu passo por ruas completamente desertas e passo tranquilo [...] imagina uma mulher fazer isso! E isso não vai afetar a saúde dela? [...] O meu medo é uma operação ali, mas eu não tenho medo de ser estuprado, não tenho medo de ser assaltado, eu não tenho medo! [...] Então, isso aí produz alguma coisa. É diferente andar na cidade sendo homem e sendo mulher. (E2)

A consciência racial e acerca do racismo é muito presente. “Às vezes quando eu saio pra fora aí, a maioria dos meus amigos são brancos, aí sempre que eu tô com eles, as pessoas me olham, tipo, ‘ele vai roubar alguém aqui’.” (E5). Houve muitos relatos de racismo e violência policial, mesmo entre os entrevistados brancos.

A mesma lógica não se aplica à homofobia; ainda que tenha sido espontaneamente citada por heterossexuais, o jovem LGBT+ afirmou nunca ter sofrido homofobia, enquanto o outro jovem gay participa de um coletivo de “bichas pretas”. E9 trouxe uma crítica à transfobia:

[...] as pessoas [...] olham a pessoa [trans] com maus olhos por ela ser... ela nascer de um gênero e crescer de outro, mas, assim, isso não faz a pessoa ser mais ou menos ser humano, continua sendo um ser humano, então essa é uma questão que deveria ser mais respeitada. Esse é mais um voto em torno do machismo, porque faz enxergar que homem tem que ser homem, não tem que ser mulher, sendo que, assim, o mundo é livre, você é livre para escolher o que você quer. (E9)

Os jovens não consideram que idade produza discriminação, mas descrevem um preconceito contra moradores da favela, com relatos de assédios e violência em ambientes profissionais fora da comunidade.

O meu primeiro estágio foi justamente quando eu tirei o endereço daqui da favela e coloquei o endereço da minha vó, que já morava em Bonsucesso. [...] Enquanto eu colocava no meu currículo aqui, eu não conseguia. (E2)

Ambos os preconceitos – de raça e de classe – são associados nos relatos. E4, por exemplo, afirma: “onde eu trabalhava, eu era muito malvisto [por ser da favela], mas pela minha cor também, pela minha classe social”. Ainda que apenas um jovem (E1) tenha falado em interseccionalidade, os entrevistados têm uma percepção de que diversos preconceitos se misturam no seu cotidiano, tendo dificuldade em separá-los nos relatos. Ser homem, jovem, negro e favelado os coloca em um lugar específico e estigmatizado na sociedade, demonstrando um olhar interseccional sobre seu lugar no mundo e a maneira como são vistos pela sociedade, especialmente fora da favela.

Conclusão

A partir dos relatos, podemos refletir sobre características do cotidiano que afetam a promoção da saúde de jovens da favela. Algo que se destaca é como a vida desses homens está atrelada ao território, com suas potências e vulnerabilidades. O Complexo da Maré é uma cidade dentro da cidade, com dinâmicas próprias e um forte senso de coletividade. O resto da cidade se torna outro espaço, simbolicamente distante e palco de preconceitos atenuados no espaço familiar da comunidade. Mais de uma vez, os jovens se referiram a bairros fora da Maré como “lá no Rio” e relatavam idas ao centro como “ir ao Rio”. Essa percepção exige um olhar mais atento à noção de território, que aqui aparece mais coeso e autocentrado do que em outras regiões da cidade.

Outra característica que demanda atenção é a qualidade da internet. Essa questão tornou-se muito explícita com o ensino/trabalho remotos durante a pandemia, e aqui temos uma situação peculiar. A maioria não possui computador em casa e acessam a internet pelo celular, porém, não raro, dependem do wi-fi de lugares públicos, produzindo uma comunicação menos instantânea do que nos acostumamos na contemporaneidade. Essa dependência de “bolsões de internet” aberta envolve mais do que o diálogo com amigos e parentes, afetando também questões profissionais e acadêmicas, sendo, por vezes, um limitante. Ainda assim, há um intenso uso das redes sociais. Apesar do acesso intermitente, os jovens não estão excluídos do mundo digital; compreender o uso real das redes sociais é uma estratégia necessária para acessá-los e incluí-los mais adequadamente.

Questões presentes na PNAISH99 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. aparecem nos relatos. Os jovens têm uma percepção positiva da rede de saúde no território, considerada suficiente. Porém, pouco utilizam os serviços, buscando assistência mais emergencial do que preventiva. Devido à idade, há poucas doenças crônicas e um baixo consumo de medicamentos, o que favorece prescindir de acompanhamento de saúde. Entretanto, emergem discursos críticos ao hábito masculino de ir ao médico apenas em último caso, o que pode indicar mudanças futuras nessa cultura.

Por fim, é notável a profunda e elaborada consciência racial. O racismo é identificado e combatido, mesmo entre aqueles que não se consideram ativistas. Há uma percepção de que o racismo se entrelaça a um preconceito com a favela e à classe social, dando um caráter interseccional às desigualdades sociais a que estão expostos. A presença constante de movimentos sociais no território é identificada como positiva e necessária. Outras desigualdades sociais não são vistas da mesma forma; muitos não consideram que problemas de gênero e sexualidade influenciem a saúde. É unânime que a violência policial e as guerras entre facções criminosas são um problema cotidiano que dificultam a vida na favela e repercutem em um estado de saúde pior para os moradores. Assim, a raça é mais eficaz que o gênero para o diálogo com esses jovens, o que demonstra a validade de avaliações anteriores da PNAISH, que já indicavam que os homens são mais cobertos pelo sistema de saúde quando pensados a partir de marcadores sociais específicos do que quando tratados como um “sujeito universal”3232 Cesaro BC, Santos HB, Silva FNM. Masculinidades inerentes à política brasileira de saúde do homem. Rev Panam Salud Publica. 2019; 42:e119..

Portanto, incluir essa dimensão sociocultural no planejamento de ações em saúde para essa população é um imperativo para aumentar a adesão de um público ainda afastado do cotidiano do serviço, podendo então avançar para as mudanças culturais a que se propõem a PNAISH. Convém aproveitarmos os impactos da emergência sanitária para aprofundarmos a educação e a informação em saúde entre grupos específicos, principalmente jovens e homens em geral, historicamente resistentes à prevenção e à promoção em saúde.

  • Financiamento

    A pesquisa foi financiada pelo Programa Inova Fiocruz.
  • Tramontano L, Nascimento MAF. “Crias da Maré”: homens jovens, desigualdades sociais e saúde em tempos de pandemia de covid-19. Interface (Botucatu). 2025; 29 (supl. 1): e240341 https://doi.org/10.1590/interface.240341

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2024
  • Aceito
    26 Nov 2024
UNESP Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br