ZACHAR, Peter. A Metaphysics of Psychopathology. Cambridge: The MIT Press, 2014.
A missão da psiquiatria, da psicologia clínica, do serviço social clínico e das práticas de aconselhamento é reduzir o sofrimento e os prejuízos associados à sintomatologia psiquiátrica. A missão da psiquiatria científica e da psicologia é fazer avançar a classificação, explicação e tratamento dos transtornos mentais. Nenhuma destas missões requer a leitura de livros de filosofia. (ZACHAR, 2014, p. 228).
Então, por que ler - e recomendar a leitura - A Metaphysics of Psychopathology, de onde justamente extraímos a passagem acima citada? Uma primeira resposta, apressada e evasiva, seria dizer que não se trata propriamente de um livro de filosofia. Mas esta é uma resposta imprecisa e, no mínimo, injusta. Afinal, trata-se de um livro filosoficamente muito bem informado, que oferece uma discussão propositiva de questões conceituais fundamentais na Psicopatologia, mais especificamente no que concerne às classificações em psiquiatria.
É bastante provável que para um jovem psiquiatra, formado a partir de uma orientação biomédica, hegemônica nas últimas décadas, referida à epistemologia e metodologias das ciências naturais, uma aproximação filosófica, e referida ao campo das humanidades, dos objetos do conhecimento e intervenção prática da psiquiatria e da psicopatologia possa soar extravagante.
Entretanto, ainda que periférica e relativamente pouco expressiva, se comparada às tendências dominantes, temos testemunhado nos últimos 10-15 anos uma renovação do interesse por uma abordagem reflexiva e conceitual da psiquiatria e seus objetos, que tem sido acompanhada também pela sua montante inscrição institucional, como ilustram a Secção Filosofia e Humanidades em Psiquiatria da World Psychiatric Association, em funcionamento desde 2002, e secções similares na European Psychiatric Association e no Royal College of Psychiatrists, assim como associações voltadas especificamente para este tipo de estudo, como a International Network for Philosophy and Psychiatry e a Association for the Advancement of Philosophy & Psychiatry.
No plano editorial, também assistimos ao surgimento de novos periódicos que se oferecem como espaço para a interlocução da psiquiatria com a filosofia, como Philosophy, Psychiatry & Psychology e Dialogues in Philosophy, Mental and Neurosciences e de coleções em editoras internacionais de prestígio, como a série International Perspectives in Philosophy and Psychiatry, da Oxford University Press, e a série Philosophical Psychopathology, da MIT Press, na qual foi publicado em 2014 A Metaphysics of Psychopathology, de Peter Zachar.
Zachar tem formação em Psicologia Cínica, é doutor em Psicologia pela Southern Illinois University e atualmente é professor do Departamento de Psicologia da Auburn University Montgomery, Alabama. Ele integra os comitês editoriais dos periódicos Philosophy, Psychiatry and Psychology, Journal of Personality Disorders e Dialogues in Philosophy, Mental and Neurosciences, é editor associado da Emotion Review, além de ser coeditor da série de livros Consciousness and Emotion, da John Benjamins.
Além do livro que é objeto desta resenha, ele também é autor de Psychological Concepts and Biological Psychiatry: A Philosophical Analysis (John Benjamins, 2000), e coeditor dos livros Fact and Value in Emotion (John Benjamins, 2008), Categorical Versus Dimensional Models of Affect (John Benjamins, 2012) e Alternative Perspectives on Psychiatric Validation (Oxford University Press, no prelo), além de ser o autor ou coautor de dezenas de artigos publicados em diferentes periódicos, a maioria deles, nos últimos dez anos, se concentrando na grande área de interesse da Classificação e Diagnóstico dos Transtornos Mentais.
Mas ainda não respondemos à pergunta: por que ler e recomendar a leitura do seu último livro? Vamos encaminhar sua resposta evocando outras perguntas que certamente soarão familiares para a maioria dos praticantes do campo da Psiquiatria e da Saúde Mental: as classificações dos transtornos mentais que empregamos na atualidade são mais verdadeiras por que trincham a natureza nos seus encaixes, refletindo a sua realidade objetiva? Seus critérios operacionais para a formulação do diagnóstico são mais objetivos? TDAH realmente existe como categoria diagnóstica ou é uma construção da sociedade contemporânea? Devemos ou não considerar o luto uma depressão verdadeira? A histeria é real?
Usamos muito à vontade, não apenas em nossas conversas cotidianas mas também em debates acadêmicos, palavras como verdade/verdadeiro, realidade/real, objetividade/objetivo e natureza/natural, sem nos darmos conta dos engajamentos metafísicos que podem estar subjacentes ao seu uso. A ambição do livro de Zachar é justamente produzir, partir do que ele chama de nominalismo instrumental, uma discussão conceitual de conceitos metafísicos elevados, como verdadeiro, real, objetivo, comumente aplicados a conceitos metafísicos de nível intermediário, como tipos naturais, e a conceitos mais mundanos, como transtornos e sintomas mentais. O que à primeira vista pode parecer uma empreitada espinhosa, que nos conduzirá às áridas paisagens, se revela uma estimulante, e muitas vezes divertida viagem, conduzida pela retórica nerd de Zachar, recheada de referências em filosofia, ciência (química, física, biologia, astronomia), literatura (Dostoievski, H.G.Wells, Twain) e muitas pitadas de cultura pop (Sybil, Forrest Gump e até filmes B de Boris Karloff).
O livro é dividido em 12 capítulos, sendo que o primeiro faz as vezes de uma introdução, onde é apresentada sua questão central, introduzindo o debate acerca do realismo e do essencialismo em psiquiatria, ilustrado pelo exemplo do apogeu e ocaso do transtorno de personalidade múltipla nos anos 80 e 90 do século passado. O autor defende que termos como verdade, realidade e objetividade, que são comumente usados para discutir teorias científicas, podem ser conceitualmente analisados de forma crítica sem que o resultado da análise necessariamente convirja para a proposição da sua eliminação pura e simples do discurso. Se este tipo de análise é relevante de uma maneira geral para qualquer que seja o campo científico, no caso específico da psiquiatria, "que não é só uma disciplina científica, é uma disciplina médica aplicada governada por objetivos éticos e práticos específicos [...] constantemente intervindo na vida das pessoas" (p. 13), este tipo de discussão se torna crucial, afinal
[p]siquiatras e psicólogos desempenham um importante papel no modo como a sociedade decide o que é normal e no modo como ela decide que tipo de anormalidades devem ser tratadas. Por estas razões, discussões filosóficas sobre se e em que medida transtornos mentais são reais ou objetivos são mais do que acadêmicas (ZACHAR, 2014, p. 13).
O primeiro capítulo serve também para o autor estabelecer sua metodologia de análise conceitual, além de apresentar o plano geral da obra e o objeto tratado em cada um dos 11 capítulo subsequentes. No plano metodológico, o autor assume sua posição numa perspectiva pragmatista, que será mais bem qualificada no capítulo 2, que trata termos como "verdade", "realidade", "objetividade" como conceitos, por sua vez, entendidos como "instrumentos cognitivos servindo a algum propósito" (p. 14). O trabalho de análise destes conceitos os toma como um cluster, no qual a definição de um frequentemente recorre ao emprego dos outros, tal como em frases do tipo "verdade é o que corresponde à realidade" ou "fatos são aquilo que é objetivamente verdadeiro". A trajetória de elucidação do sentido destes conceitos abstratos vai recorrer, ao longo do livro, ao método de contrastes (real versus aparente; real versus ficcional), procurando sempre estabelecer a pertinência do contraste proposto para a discussão em pauta.
Os capítulos 2 a 7 vão servir para estabelecer as bases filosóficas para a discussão, de caráter conceitual, de aspectos das classificações psiquiátricas nos capítulos 8 a 12. Neste primeiro segmento de capítulos, mais densamente filosóficos, a psicopatologia só comparecerá, se comparecer, de modo periférico ou acessório. Esses capítulos permitirão que o autor explicite a sua perspectiva filosófica e a metodologia empregada em sua análise conceitual. Para o leitor menos informado filosoficamente, eles servirão como uma espécie de capacitação, dada a clareza do autor na apresentação dos seus argumentos e riqueza de exemplos que a ilustram. Para este tipo de leitor, o livro ainda oferece um glossário em seu final, onde são definidos (e estabelecidos os termos contrastantes, quando pertinente) os termos filosóficos introduzidos nestes capítulos iniciais e empregados ao longo da obra, tais como realismo básico, realismo científico, empirismo, essencialismo, tipos naturais, entre outros.
O pragmatismo adotado por Zachar é o que ele chama de Pragmatismo Cientficamente Inspirado, fortemente marcado pelo do naturalismo de Darwin, mais próximo de James, Peirce e Dewey do que de Rorty, embora ele admita ter sido introduzido ao pragmatismo pela leitura deste último, do qual se distanciou a partir do que considera sua virada pós-modernista nos anos 80 do século passado. Do pensamento de James´, ele enfatiza especialmente seu Empirismo Radical, que sustenta uma posição nominalista e propõe abandonar a teoria da verdade enquanto correspondência por uma teoria da verdade como coerência. "Novas proposições que parecem prontamente ser coerentes com nossas crenças são mais prontamente aceitas do que proposições que contradizem o conhecimento atualmente aceito" (p. 37). A ênfase na coerência procura salientar que não é preciso ir buscar além ou aquém da experiência o que atesta a verdade de uma proposição. James foi além da verdade enquanto coerência, propondo o que se pode chamar de uma teoria pragmatista da verdade, que entende que o que atesta a verdade de uma proposição são as suas consequências práticas.
Zachar subscreve a esta concepção, como fica patente no Nominalismo Instrumental a partir do qual ele constrói a sua crítica dos conceitos de verdade, realidade e objetividade tais como eles operam na perspectiva do essencialismo, literalismo e realismo científico, tão pregnantes no modo como a maioria da comunidade clínica e acadêmica opera o uso das classificações psiquiátricas. Se o nominalismo propõe que não "existe uma essência única da verdade que possa ser inferida de um conjunto de afirmações verdadeiras" (p. 42), o nominalismo instrumental admite a utilidade informativa de reunir particulares em conceitos e categorias abstratas, que são modos de organizar a experiência do interior da experiência mesma, reconhecendo que quanto mais inclusivas e abstratas as categorias e conceitos se tornam, mais vazios eles ficam. Este tipo de análise vale para qualquer nível de abstração, dos mais levados, como Verdade ou Liberdade, até a própria noção de Transtorno Mental e as várias categorias diagnósticas. Nos diferentes níveis de abstração estes conceitos e categorias funcionam como o que Nelson Goodman chamou de Comunidades Imperfeitas, na medida em que "não existe nenhuma propriedade ou conjunto de propriedades que seja compartilhado por todos os seus membros" (p. 42).
No segundo segmento de capítulos (8-12), a discussão conceitual é aplicada à psicopatologia, ou mais precisamente, à classificação em psiquiatria, até porque seria abusivo reduzir uma coisa à outra ou estabelecer uma equivalência entre elas. Zachar conduz a discussão de um ponto de vista sobretudo interno, tanto no sentido de organizar sua análise a partir do exame da evolução interna dos conceitos e categorias das classificações psiquiátricas, quanto no sentido de oferecer uma insider perspective de alguém que acompanhou muito de perto o processo de revisão que culminou na publicação, em maio de 2013, da DSM-5.
O foco neste segmento de capítulos não será dirigido aos transtornos mentais severos, aqueles sobre os quais mais raramente pairam dúvidas acerca do caráter patológico dos comportamentos e estados de alma envolvidos em sua caracterização sintomatológica, mas ao que o autor chama de a "penumbra da psiquiatria", a franja da "comunidade imperfeita" dos sintomas e transtornos mentais, como o luto (cap. 10), os transtornos de personalidade (cap. 11) e a histeria (cap. 12). As duas principais ferramentas de análise empregadas pelo autor nestes capítulos são o Modelo da Comunidade imperfeita, aplicado aos transtornos mentais e detalhado no capítulo 8, em contraste com o Harmful Dysfunction Model proposto por Wakefield, e um dispositivo heurístico constituído por um tetraedro cujos vértices são quatro abstrações conceituais - tipo natural, tipo prático, conceito histórico e conceito normativo - discutidas no capítulo 9. Neste capítulo o conceito de tipo natural - "coisa que existe independente de se os seres humanos têm algum conhecimento sobre ela" (p. 138) - é analisado por meio do constraste com os outros três conceitos, que formam o polo da construção social. O objetivo desta análise é "sustentar que tipo natural e construto social são conceitos que, em graus variados, podem iluminar diferentes aspectos dos fenômenos psiquiátricos" (p. 138).
O título do livro de Zachar sugere uma ambição maior do que o produto efetivamente oferecido ao leitor. O livro não trata de Psicopatologia em seu sentido amplo, como o estudo das experiências vividas e das apresentações comportamentais os transtornos mentais, das relações causais e motivacionais implicadas no seu engendramento, e da sua situação no contexto intersubjetivo e mundano mais amplo. Seu foco é muito bem circunscrito e trata de uma análise conceitual, conduzida a partir de uma posição filosófica muito bem esclarecida pelo autor, de pressupostos metafísicos envolvidos na construção e uso das classificações psiquiátricas. Ele oferece ferramentas de pensamento preciosas para capacitar o profissional de saúde mental para a discussão e emprego dos dispositivos classificatórios, protegendo-o das armadilhas do relativismo e do antirrealismo ingênuo. Por isso o livro deve ser lido.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2014
Histórico
- Recebido
03 Ago 2014 - Aceito
10 Out 2014