Resumo
A tuberculose é um grave problema de saúde na população em situação de rua, com altas taxas de prevalência e de interrupção do tratamento. Neste estudo, buscamos compreender o itinerário terapêutico dos doentes com tuberculose que vivem em situação de rua. O estudo teve abordagem qualitativa com informações coletadas por entrevista semiestruturada, revisão de prontuários e busca no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN).
Metodologia:
Para organização e análise dos dados, utilizou-se a técnica da Análise de Conteúdo de Bardin. O suporte teórico sobre o itinerário terapêutico foi o modelo de Sistema de Cuidados à Saúde proposto por Arthur Kleinman, que descreve o acesso pelos subsistemas popular, profissional e folk.
Resultados e Discussão:
Foram realizadas 19 entrevistas. O subsistema popular, representado pelas redes configuradas nas ruas e por desconhecidos, influenciou as decisões dos entrevistados na busca pelo cuidado no subsistema profissional. A principal escolha no subsistema profissional, o mais utilizado, recaiu sobre os serviços de pronto atendimento. Nesse subsistema, as práticas foram diferentes segundo o tipo de serviço acessado, e as trajetórias traçadas foram, também, influenciadas pelo estigma, acolhimento, fragmentação da atenção, regras e normas dos serviços de saúde e precária intersetorialidade. O subsistema folk não foi acessado nesta amostra.
Palavras-chave:
itinerário terapêutico; pessoas em situação de rua; tuberculose
Abstract
Tuberculosis continues to be a serious and prevalent health problem in this population, who frequently interrupt treatment. This study aims to describe the therapeutic itinerary of homeless persons with tuberculosis, from the initial perception of the symptoms to the moment of hospitalization.
Methods:
The study used a qualitative approach, containing information and perceptions collected through semi-structured interviews, medical records and the tuberculosis information system. Interviews were interpreted using the discourse content analysis, proposed by Bardin. The theoretical approach adopted to understand their therapeutic itinerary was the health care system model proposed by Arthur Kleinman, in which the popular, professional and folk subsystems can be accessed.
Results and discussion:
We conducted nineteen interviews. The popular subsystem, represented by the social street network and the general (anonymous) population, influenced the search for care of the professional subsystem. Their main choice in the professional subsystem, the most assessed, was the emergency services. In this subsystem, the practices were different according to the type of accessed service and traced trajectories were influenced by stigma, greeting by health professionals, fragmentation of attention, rules and norms of health services and unsatisfactory intersectorality. The folk subsystem was not accessed in this sample.
Keywords:
therapeutic itinerary; homeless persons; tuberculosis.
Introdução
A existência de pessoas vivendo nas ruas é um fenômeno antigo, complexo, que acontece nas cidades de todo o mundo e está configurado por transformações políticas, sociais e econômicas (BURSZTYN, 2003BURSZTYN, M. (Org.). No meio da rua: nômades, excluídos, viradores. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. ; SILVA, 2006SILVA, M. L. L. Mudanças Recentes no Mundo do Trabalho e o Fenômeno População em Situação de Rua no Brasil: 1995 a 2005. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006. ). Os motivos de ida para as ruas são diversos e, mais frequentemente, estão associados aos conflitos familiares, uso de substâncias psicoativas e desemprego. Entretanto, há aqueles que decidem viver nas ruas para romper com uma situação estabelecida e, em última instância, como uma forma de buscar liberdade (MARQUETTI et al., 2014MARQUETTI, F. C.; COSTA, S. L.; ANDRADE, L. P. A rua tem um ímã, acho que é a liberdade: potência, sofrimento e estratégias de vida entre moradores de rua na cidade de Santos, no litoral do Estado de São Paulo. Saúde e Sociedade, v. 23, n. 4, p. 1.248-61, 2014. ). A População em Situação de Rua (PSR) tem sido considerada um grupo populacional heterogêneo, marcado pela pobreza e falta de pertencimento à sociedade formal, que reflete uma parcela de trabalhadores tidos como desnecessários e descartáveis, na ótica do capital (VARANDA; ADORNO, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. ; BRANCO, 2006BRANCO, R. C. A “Questão Social” na Origem do capitalismo: pauperismo e luta operária na teoria social de Marx e Engels. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. ).
Ao viver nas ruas, estão expostos, entre outros, a frequentes atos de violência, a intempéries, à privação de sono tranquilo, à incerteza de acesso à alimentação e à água potável. Nesse contexto, estabelece-se uma dinâmica que se caracteriza pela dificuldade em formar vínculo imediato, pela constante migração e por uma noção diferenciada de tempo. O dia é comumente organizado com base nos horários das instituições que lhes garantem a sobrevivência, ou em função dos trabalhos que realizam no mercado informal (VARANDA; ADORNO, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. ; SOUSA, 2009SOUSA, A. G. L. Sou feio, pobre, sujo e alcoólico: Emoções e sociabilidade dos moradores das ruas de João Pessoa - PB. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 8, n. 23, p. 373-416, 2009. ). Viver nas ruas significa, também, usar os espaços públicos para sua vida íntima, o que transgride a forma hegemônica de viver nas sociedades contemporâneas, na qual as fronteiras entre público e privado são bem constituídas. Por tudo que representa, a PSR não atende às demandas da sociedade. São pessoas estigmatizadas como vagabundas, sujas, ou desajustadas, viciadas, perigosas, coitadas (MATTOS; FERREIRA, 2004MATTOS, R. M; FERREIRA, R. F. Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia e Sociedade, v. 16, n. 2, p. 47-58, 2004.: VIEIRA; BEZERRA, 1994VIEIRA M. A. C.; BEZERRA, E. M. R. População de rua: quem é? Como vive? Como é vista? 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994.). Além disso, são excluídas e sofrem privação e violação dos direitos humanos fundamentais, entre eles, o direito à saúde (MATTOS; FERREIRA, 2004; SILVA, 2006SILVA, M. L. L. Mudanças Recentes no Mundo do Trabalho e o Fenômeno População em Situação de Rua no Brasil: 1995 a 2005. 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006. ).
Dentro desse contexto, as pessoas desse segmento apresentam diversos problemas de saúde, entre os quais se insere a tuberculose. Os mais pobres, com maior vulnerabilidade ao adoecimento pela enfermidade (BENATAR; UPSHUR, 2010BENATAR, S. R.; UPSHUR, R. Tuberculosis and poverty: what could (and should) be done? International Journal of Tuberculosis and Lung Disease, v. 14, n. 10, p. 1.215-1.221, 2010. ) e, no Brasil, há registros de taxa de prevalência na PSR de 37 a 60 vezes maior que a encontrada na população em geral com a interrupção do tratamento, que pode chegar à metade dos casos (BRASIL, 2014a; ADORNO, 2011ADORNO, R. C. F. Atenção à saúde, direitos e o diagnóstico como ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua. Etnográfica, v. 15, n. 3, p. 543-567, 2011. ). Apesar de ser uma doença muito antiga, a tuberculose permanece como um problema de saúde pública no mundo, sendo os países mais pobres os mais penalizados. Cinco países -India, Indonésia, China, Filipinas e Paquistão - concentram 56% da carga global da enfermidade, e 85% das mortes ocorrem no continente africano e no sudeste da Ásia (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2017). O Brasil, entre 2005 e 2014, registrou uma média anual de 70 mil casos novos e 4.400 mortes (BRASIL, 2016).
Como desdobramento da caracterização apresentada, as pessoas em situação de rua não buscam o cuidado com sua saúde, ou o fazem apenas quando se encontram muito debilitadas (VARANDA; ADORNO, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004. ). Tal dinâmica se aplica ao adoecimento por tuberculose, que deve ser tratada nas unidades de atenção primária à saúde. Entretanto, os doentes podem ser encaminhados para internação hospitalar pela gravidade do quadro clínico, e, também, por vulnerabilidade social, o que na PSR ocorre pela inexistência de estrutura institucional que apoie o tratamento ambulatorial da enfermidade (BRASIL, 2011b).
Ao adoecer, as pessoas se movimentam dentro da rede de atenção à saúde buscando uma solução para sua aflição. Para conhecer e entender estes movimentos e os recursos e cuidados que são acessados, realizam-se estudos sobre itinerários terapêuticos. No Sistema de Cuidado à Saúde proposto por Arthur Kleinman, a partir da experiência com os sintomas, as pessoas podem utilizar três subsistemas - popular, profissional, e folk - de forma sobreposta e não excludente, tomando decisões em função das disponibilidades circunstanciais e dimensão sociocultural vivenciada. O subsistema popular compreende principalmente o contexto familiar e as redes sociais, onde são adotados os primeiros cuidados. A arena profissional inclui a medicina científica ocidental e os sistemas médicos tradicionais. O subsistema folk é composto por especialistas de cura não reconhecidos legalmente, como os curandeiros e rezadeiras (KLEINMAN, 1978KLEINMAN, K. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Social Science Medicine, v. 12, n. 2B, p. 85-93, 1978. ). Neste estudo, pressupõe-se a existência de especificidades nas trajetórias traçadas pela PSR dentro destes subsistemas e nos fatores motivadores para a continuidade ou não do tratamento da tuberculose.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo interpretativo, em que a preocupação central é com os significados, representações psíquicas e sociais, percepções, pontos de vista, perspectivas, vivências e experiências de vida, e não com generalizações populacionais.
O estudo se desenvolveu nos dois hospitais de referência de tuberculose, no Estado do Rio de Janeiro, entre dezembro de 2014 e agosto de 2015. Foram considerados elegíveis indivíduos maiores de 18 anos vivendo em situação de rua, doentes com tuberculose, internados no período de coleta de dados, que aceitaram participar e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), após receberem informações e esclarecimentos sobre o estudo. As semiestruturadas foram orientadas por um roteiro, gravadas, transcritas e submetidas ao método de Análise de Conteúdo de Bardin (BARDIN, 1977BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. ). Cada participante foi entrevistado uma única vez pela pesquisadora principal (RZ), ou por uma auxiliar graduada em Ciências Sociais, com experiências anteriores em pesquisa qualitativa baseada em entrevistas e devidamente treinada para o estudo atual. O fechamento amostral aconteceu por saturação teórica (TURATO et al., 2008TURATO, E. R.; FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde. Caderno de Saúde Pública, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008. ). Além das entrevistas, buscamos informações complementares nos prontuários e no Sistema Nacional de Notificação de Agravos (SINAN).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, sob o número CAAE 17024413.0.0000.5287. Para assegurar o anonimato, os entrevistados encontram-se identificados pela letra “E” mais um número, e foi omitida a nomeação dos serviços de saúde e outros lugares.
Resultados e Discussão
Foram realizadas 19 entrevistas. Os itinerários foram desenhados a partir do momento da percepção dos sintomas da tuberculose, o que para alguns ocorreu anos antes, e seguiu-se de um ou mais episódios de interrupção do tratamento. Não se notou nenhuma particularidade em relação aos sinais e/ou sintomas descritos, em relação ao descrito para população em geral. Entretanto, registrou-se a possibilidade de o adoecimento não ser percebido pelo próprio indivíduo, ou a necessidade de receber alertas de terceiros - integrantes tanto do subsistema popular ou profissional -, para se motivar a buscar pelo cuidado.
A médica, como ela já me acompanhava, ela viu que eu estava emagrecendo demais. Ela foi e me sugeriu isso, fazer o teste de escarro, o exame (E3).
Até meus companheiros lá falaram isso: “Ó, você tem que ir ao médico que você não está bem, não.” Os caras lá do ferro velho: Vai pro médico que você não está bom, não” (E10).
Apesar das limitações impostas pela vida nas ruas, notou-se a utilização de recursos disponíveis no subsistema popular como tentativa de resolver a aflição, o que não foi referido com a mesma relevância relatada para a população em geral (KLEINMAN, 1978KLEINMAN, K. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Social Science Medicine, v. 12, n. 2B, p. 85-93, 1978. ) Os recursos propostos neste subsistema foram: procura por uma melhor alimentação, utilização de automedicação e maior ingestão de água. Uma entrevistada mencionou ter usado substâncias psicoativas para alívio do sofrimento, o que tem sido descrito em outros estudos.
Mesmo eu estando na rua, sempre tinha aquele tempo, por exemplo, quando eu começava a ficar ruim, eu ia pra algum lugar que tinha a recuperação, uma alimentação boa, forte, firme (E9).
Me ajudou [a droga]! Porque toda vez que eu parava de usar ela eu sentia mal estar, eu não me sentia bem, me sentia mal; me dava febre, eu sentia frio e não estava frio. Aí, quando eu usava de novo parava [de se sentir mal] (E5).
Embora os recursos usados no subsistema popular possam propiciar algum alívio para a aflição, no caso da tuberculose é preciso chegar ao subsistema profissional, onde o tratamento quimioterápico se inicia, impactando tanto a evolução clínica quanto a transmissão da doença. Entretanto, esta decisão pode ser dificultada pela precarização do viver, pois, como afirmam Bertolozzi e al., “a forma de inserção na sociedade vai determinar o acesso à vida com dignidade e as potencialidades para o enfrentamento dos processos que conduzem ao desgaste na vida” (BERTOLOZZI et al., 2009BERTOLOZZI, M. R. et al. Os conceitos de vulnerabilidade e adesão na Saúde Coletiva. Revista Escola Enfermagem USP, v. 43, n. esp. 2, p. 1.326-30, 2009. , p. 1.329 ). A fala de E12 exemplifica como circunstâncias da vida dificultaram o enfrentamento do adoecimento.
Quando eu tive a notícia que tinham matado minha mãe, eu comecei a entrar na depressão. Que eu tenho depressão. Aí, o que aconteceu? Eu comecei a emagrecer muito, a não comer mais comida. Usava só droga, droga, droga. Todo dia me dava febre, aquela febre assim de... Acho que eu tinha uns 40 graus, né?! Que eu queimava muito, muito de febre e não tinha uma boa alimentação (E12).
Como está descrito na literatura, as interferências relacionadas à postergação em ir para o subsistema profissional podem se relacionar a relatos de discriminação praticada nos serviços de saúde, que quando presentes dificultam ou mesmo impedem a entrada da PSR nos serviços de saúde (CARNEIRO JUNIOR et al., 1978; BRASIL, 2008b; BARATA et al., 2015BARATA, R. B. et al. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, v. 24, n. 1, p. 219-232, 2015. ). Além disso, saber que após o atendimento irão voltar para as ruas, às vezes sem os medicamentos, e sem contar com meios necessários para cuidar de sua saúde, faz com que alguns questionem este caminho (AGUIAR, 2012AGUIAR, M. M.; IRIART, J. A. B. Significados e práticas de saúde e doença entre a população em situação de rua em Salvador, Bahia, Brasil. Caderno de Saúde Pública, v. 28, n. 1, p. 115-24, 2012. ).
Além destes, entendemos que outro aspecto deva ser considerado atentamente, quando um dos entrevistados traz à tona que o cuidado com a saúde é impossível de acontecer no espaço da rua. Esta crença é compartilhada por outras pessoas desse grupo populacional e por profissionais de saúde (ROSA et al., 2006ROSA, A. S.; SECCO, M. G.; BRÊTAS, A. C. P. O cuidado em situação de rua: revendo o significado do processo saúde-doença. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 59, n. 3, p. 331-336, 2006.; ALECRIM et al., 2016ALECRIM, T. F. A. et al. Experiência dos profissionais de saúde no cuidado da pessoa com tuberculose em situação de rua. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 50, n. 5, p. 809-16, 2016. ). Quando doentes e profissionais de saúde não rompem com esta noção e não apostam no sucesso terapêutico, a desistência acontece antes mesmo da tentativa e as possibilidades de fracasso tendem a se cristalizar. Esta barreira é possível de ser transposta, entre outras considerações, quando se reconhece que há uma parcela dos doentes que conclui seus tratamentos apesar de expostos às condições adversas das ruas.
Que a gente que mora na rua só vai pro hospital quando a gente está “nas últimas”, né? Quem mora na rua não tem como se cuidar. [...] A gente vem no mundo e não sabe que doenças a gente tem, ainda mais quem mora na rua. Tem um médico quando está nas últimas. Que se o cara tá bom, vai fazer o que no médico? (E14).
Da mesma forma que alerta sobre o adoecimento, a rede de relações da rua aponta os caminhos para o subsistema profissional, tendo como base o conhecimento construído sobre os serviços e recursos existentes nos territórios. Ou seja, há uma rede mapeada e serviços validados pelas experiências das pessoas que vivem nas ruas.
Aí tinha um colega meu que se tratava lá [se referindo ao serviço de saúde], aí ele falou: “é melhor você ir lá no CMS [diz o nome], que esse teu problema aí é sério”. Eu conversei com ele, falei que tossi botando sangue. “Vai lá que não é legal” [o quadro relatado]. Eu fui e comecei o tratamento (E6).
A experiência de E9, que contabiliza 14 idas por tuberculose a serviços de saúde, fez com que ele tenha formulado opiniões a respeito dos cuidados prestados nos diferentes serviços e sobre a resolutividade de cada um deles. No último episódio de adoecimento quando estava em uma Comunidade Terapêutica (CT), as pessoas de lá insistiram para que ele fosse à UPA.
Eles [CT] tinham essa carência de manter uma pessoa com um tipo de doença desse grau. Então, eles me transferiram pra UPA, onde eu não quis ir. Aí ficou naquele debate e eles me convenceram. Eu não quis ir, porque eu já tinha ido umas seis vezes pra UPA e já conhecia a forma que eles trabalhavam. Então eu não queria ir (E9).
Este conhecimento sobre a rede de saúde circula como parte de um conjunto de estratégias de sobrevivência e solidariedade nas ruas e poderia nortear ações junto a essa população.
Os incentivos, conselhos e indicações foram dados por companheiros da rua, mas também por quem não se encontrava na mesma situação. Apesar de as representações sociais da PSR terem forte conotação negativa, apareceram pessoas que perceberam que os entrevistados não estavam bem e tomaram a iniciativa de se aproximar, ou mesmo de os conduzir aos serviços de saúde em seus veículos particulares - moto, carro, carrinho de transporte de bebida -, ou acionaram o Serviço Móvel de Urgência (SAMU). Tais acontecimentos nos convidam a refletir sobre a necessidade de realizar abordagens na arena popular junto à PSR e à população em geral, pois medidas tomadas no sentido de ampliar informações sobre a doença, os serviços e recursos disponíveis, e a quebra de estigmas, podem ampliar a proteção e abreviar o sofrimento na PSR. No entanto, para que este tipo de iniciativa tenha repercussão favorável, haveria que se estabelecer um canal de comunicação da população com as instituições, como um número de telefone gratuito, a exemplo do SAMU social em funcionamento em outros países.
Ao decidirem ir para o subsistema profissional, ou quando foram conduzidos por terceiros, o acolhimento praticado e a continuidade da atenção foram diferentes, dependendo do tipo de unidade de saúde procurada: atenção primária, emergência ou hospital de referência. Segundo registros em prontuários, os quadros clínicos avaliados como de maior gravidade foram as justificativas para a procura por urgências, porta de entrada para a maior parte dos participantes do estudo, o que tem sido descrito como consequência do longo tempo de adoecimento sem que tenham sido realizadas intervenções cabíveis.
Olhando inicialmente para as urgências, a recepção representou uma barreira de acesso para um dos entrevistados, diante da exigência de documentação, situação recorrente para esta população (ROSA et al., 2006ROSA, A. S.; SECCO, M. G.; BRÊTAS, A. C. P. O cuidado em situação de rua: revendo o significado do processo saúde-doença. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 59, n. 3, p. 331-336, 2006.; ALECRIM et al., 2016ALECRIM, T. F. A. et al. Experiência dos profissionais de saúde no cuidado da pessoa com tuberculose em situação de rua. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 50, n. 5, p. 809-16, 2016. ; CARNEIRO JUNIOR et al., 2010CARNEIRO JUNIOR, N.; JESUS, C. H.; CREVELIM, M. A. A Estratégia Saúde da Família para a Equidade de Acesso Dirigida à População em Situação de Rua em Grandes Centros Urbanos. Saúde e Sociedade, v. 19, n. 3, p. 709-716, 2010.), o que prolonga o sofrimento do doente e, no caso da tuberculose, a transmissão da doença. Tal exigência contraria o preconizado pelo Ministério da Saúde, quando define que “as atividades de identificação e cadastramento podem ser efetuadas posteriormente ao atendimento realizado” (BRASIL, 2011a, p. 3). Destacamos o depoimento de E1, que revela uma longa perambulação por diferentes serviços de saúde e que, sem conseguir o almejado atendimento, automedicava-se. Apesar disso e por mérito próprio, persistiu na tentativa de conseguir atendimento, o que só aconteceu diante de um episódio de hemoptise.
Oito meses [referindo-se ao tempo que iniciaram os sintomas]. Eu ia para o médico, mas chegava lá e como eu não tenho documento, eles não queriam me atender. Estava com a roupa bem botada, bonitinho, sapato no pé, todo arrumadinho. Neguinho ia lá e eu dizia: não tenho, não [documentos]. Mas eu tossindo o tempo todo. [...] Ninguém me atendeu. Dei pra comprar remédio por minha conta, mas o médico num pegava e não passava, entendeu? Eu pegava receita de outra pessoa e comprava, e bebia esse remédio (E1).
Vencidas as barreiras iniciais e conseguindo o atendimento, independentemente do estado em que se encontravam, os participantes do estudo se depararam com práticas de acolhimento não vinculadoras por parte dos profissionais de saúde. Entre estas práticas, encontram-se a falta de uma escuta qualificada e de adequação de rotinas e normas praticadas pelos serviços de saúde, junto a esses usuários.
Cheguei lá [UPA] botei sangue, aí a enfermeira falou “tu pega esse copinho aqui, tu leva ele”... olha só o que aconteceu “tu escarra no copinho” [fala da enfermeira]. Ai ela me deu o potinho, dois potinhos:
- Pra escarrar quando chegar em casa e no outro dia tu volta com o outro cheio e me dá [fala da enfermeira].
- Eu falei: minha filha, eu tô morrendo, estou botando sangue. Sabe o que ela falou pra mim?
- Eu quero que você me ouça [fala da enfermeira].
- Eu falei: eu vou ouvir você como, pra que se eu tô acabando de morrer aqui? Eu disse a ela: não quero seu copinho, não. E voltei para o mesmo hospital [que tinha ido antes e de onde foi encaminhado para UPA] (E1).
Outra prática, que apareceu de forma recorrente, foi não informar adequadamente sobre o adoecimento e as condutas adotadas, criando uma situação em que o sofrimento não é diminuído e a cooperação entre o profissional e o doente não é facilitada. Um dos participantes do estudo mostrou indignação ao falar sobre sua experiência.
Só entrava [a equipe de saúde] para dar minha medicação e iam embora. Tomava banho, se arrumava e ia embora. Ninguém pra explicar nada! Ninguém para explicar a coisa dos exames, porque eu estava fazendo os exames. Não sabia [a doença que tinha] (E4).
Fato semelhante aconteceu com E16, que, além de não receber respostas sobre seu quadro clínico, não foi apropriadamente esclarecido sobre condutas divergentes entre profissionais. As suas queixas não foram devidamente valorizadas e recebeu alta durante a madrugada, mesmo que ainda estivesse se sentindo mal e não tivesse para onde ir, sem nenhuma preocupação com a continuidade do cuidado. Embora possa acontecer com quaisquer usuários dos serviços de saúde, é provável que representações estigmatizadas que profissionais têm da PSR façam com que pessoas desse grupo sejam mais desqualificadas que as demais.
Da ultima vez, eu tomei um soro e me deram pra bater a chapa. Uma doutora - eu acho que no plantão dela ela deve ser um “serial killer”; ela deve matar, entendeu? Eu entrei pra bater a chapa e ela disse que não precisava bater chapa, não: "você já tomou soro." Isso era duas horas da manhã.
- Pode ir embora [fala da médica].
- Mas eu tenho que bater a chapa, doutora.
- Não precisa, não [fala da médica].
Aí eu vim embora, já tinha tomado o soro. Aí, voltei da outra vez, bateu a chapa e falou assim: "é pneumonia." Eu estava tomando esse tal de "avrolin", um negócio assim (E16).
A fragmentação e a descontinuidade da atenção, evidenciada no caso de E16, estiveram presentes em outros casos e alguns serviços de urgência transferiram para os doentes a responsabilidade de encontrar outro local que os recebesse. Mesmo estando com o estado geral comprometido, nenhum outro ponto da rede foi acionado para dar retaguarda, outra prática que reflete a falta de respeito e violação de direitos com que esta população se confronta frequentemente.
Nesse outro hospital, que a assistente social me deu sete reais pra eu ir embora, pra não me internar. Falou que não tinha internação pra mim. Falou pra mim que lá eles não internavam por tuberculose. Mas internava sim, porque eles [UPA] me mandaram direto pra lá com encaminhamento de internação. Eu acho que foi por causa dessa outra doença [referindo-se à Aids] que eles não deixaram eu ficar lá (E5).
Não é admissível que alguém com estado geral comprometido seja “liberado” sem encaminhamento formal, ou sem articulação com outro ponto da rede, ou sequer com informações sobre onde recorrer. No caso da PSR, esta prática se reveste de descaso, já que são conhecidas, ainda que de forma enviesada, as precárias condições materiais em que vivem essas pessoas, a falta de informações e/ou parâmetros para eleger aonde ir, a rejeição praticada pelos serviços de saúde, a falta de meios para se locomover de um lado a outro, entre outros. Tal fato, ainda, pode denunciar desconhecimento da rede por parte de quem atua nos serviços de saúde, fragilidade da rede e dos fluxos, ou o estigma, uma vez mais.
Em contraste, com os relatos expostos até aqui, relacionados aos serviços de urgência, tanto o acolhimento quanto o vínculo e a continuidade do cuidado foram percebidos de forma diferente quando a porta de entrada foi a atenção primária. O acolhimento praticado pelas equipes da atenção básica, Consultório na Rua (CnaR) ou não, foi percebido como receptivo. O CnaR foi criado para diminuir as inequidades em saúde, dentro do processo de formulação de políticas públicas para a PSR, iniciado na última década (FERRO, 2012FERRO, M. C. T. Política Nacional para a População em Situação de Rua: o protagonismo dos invisibilizados. Revista Direitos Humanos, v. 8, p. 35-39, 2012.). Nessas unidades de saúde, os doentes se sentiram bem recebidos, com suas queixas valorizadas, vivenciaram o esforço dos profissionais em pactuar decisões ou planos terapêuticos e assegurar o atendimento preconizado. Os vínculos de confiança estabelecidos com as equipes de saúde não resultaram em adesão ao tratamento para todos, mas tornaram tais equipes referência para outros momentos. E17, que havia iniciado seu quarto tratamento, em todos os episódios buscou atendimento na atenção básica, sendo que nas três últimas vezes o fez acreditando que as equipes eram de CnaR ou um modelo similar. A principal motivação parece ter sido o acolhimento praticado pelas equipes e o tipo de relação que conseguiu estabelecer a cada vez. A boa avaliação feita dos profissionais não aparece relacionada a um dever profissional vinculado a uma política pública.
Essas pessoas são mesmo preparadas, eles têm uma paciência tremenda. Vai atrás, o pessoal de consultório de rua. Todos os consultórios de rua que eu passei, também estão de parabéns. Parecem que não são profissionais. Vou ser sincero pra você: parecem que são humanos mesmo! Estão ali como pessoas da família. Você sente que eles não estão ali como profissionais, sente que eles estão ali mesmo como gente, como humano (E17).
A criação ou fortalecimento de vínculos com as equipes da atenção básica foram, também, influenciados pela flexibilidade em relação à estratégia do tratamento supervisionado (TDO), como recomendada pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) (BRASIL, 2011b). As pactuações favoreceram o seguimento do tratamento, ou mesmo concretizaram uma experiência de sucesso dentro do subsistema profissional. Ainda assim, para alguns o TDO representou uma dificuldade diante da necessidade de sair do território para garantir a sobrevivência. Não receber alimentação como incentivo e não saber da possibilidade de continuar o TDO em outro território pode ter interferido na continuidade do tratamento.
A pior coisa é isso [referindo-se ao TDO], porque a pessoa que tem vontade procura mesmo. A pessoa na situação de rua não tem paradeiro. Ela está na rua, a casa dela é um mundo: uma hora está aqui, outra hora ela está ali, ela vai procurar e não vai achar (E17).
Eu interrompia, porque devido a localização que eu estava, às vezes não era uma localização favorável pra mim - sem alimentar, ou pra mim arrumar um trabalho, ou pra mim, dormir, entendeu? Na hora que o tempo fechava, chovia, acontecia essas coisas, a questão da comida, eu tinha que pegar um ônibus e ir pra outro lugar, aonde tinha isso, ou então eu ia ficar com fome (E9).
Além das atividades desenvolvidas no território de inserção, é atribuição do CnaR, quando necessário, estabelecer parcerias com outros pontos da rede de atenção a esta população e se movimentar para fora do território (BRASIL, 2012). Exemplo desta prática foi uma das equipes de CnaR, que manteve visitas semanais aos doentes encaminhados por ela para internação, o que fez com que eles não se sentissem abandonados e permanecessem vinculados, um exemplo da realização da coordenação do cuidado por uma equipe de atenção básica.
Porque eu pedi a elas... Como eu tenho afinidade com elas, converso com elas e não tenho visita da minha família: vocês não vão me abandonar lá, né?! Aí elas: “não, a gente vai lá toda semana te ver.” [...] E estão me acompanhando até agora, elas vêm aqui duas vezes por semana; um grupo vem quinta o outro vem terça-feira (E3).
Finalmente, as internações nos hospitais de referência aconteceram por solicitação dos serviços de saúde e, também, por demanda espontânea. Alguns foram internados por vulnerabilidade social, indicação prevista pelo PNCT (BRASIL, 2011b), que apareceu isoladamente ou associada aos quadros clínicos. Esta condição pode ter pressionado profissionais de saúde e usuários a decidirem pela internação, pois no Estado do Rio de Janeiro (ERJ) não existem equipamentos para apoiar o tratamento ambulatorial da tuberculose na PSR, a exemplo das casas de acolhida para tratamento da Aids, como preconizado na Política Nacional de Inclusão Social da População em Situação de Rua (BRASIL, 2008a).
De todos os modos, a internação hospitalar foi considerada por alguns entrevistados a opção para recuperação da saúde e proteção da vida.
“Ué, não estou entendendo nada, você está emagrecendo; tomando o remédio e está emagrecendo?” [reproduzindo fala da médica que o acompanhava]. Ela perguntou se eu queria e eu ia pedir mesmo a internação, porque se eu não internasse, eu já estava morto. [...] Foi bom [internar]; eu nasci de novo. É que nem a maioria que está aí: se não tivesse se internado, já estava morto (E16).
Como parte das rotinas dos hospitais de referência, o serviço social procurou pelos familiares, na tentativa de promover uma aproximação e, com isto, favorecer a continuidade do tratamento, no momento da alta hospitalar, o que aconteceu em alguns casos. É provável, porém, que os períodos de internação não tenham sido suficientes para reverter situações de vulnerabilidade a que os entrevistados estiveram submetidos e para reconstituir vínculos, cujas rupturas podem ter sido motivadoras de idas para as ruas, isoladamente ou associadas a outros fatores. Sem a pretensão de discutir aqui o conceito de família para esse coletivo, mas buscando reconhecer os apoios passíveis de serem acessados e, assim, ampliar a manutenção do tratamento, ressalta-se a importância do mapeamento das redes existentes nos territórios por onde os doentes habitualmente circulam - pessoas, serviços de saúde, serviços da assistência social, instituições diversas. Como já foi descrito, neste estudo as redes configuradas nas ruas influenciaram as decisões sobre os itinerários traçados.
A recepção e a relação com os funcionários, a alimentação e o sono, a administração da medicação, as informações recebidas e a participação no processo de resolução de sua doença foram avaliados como facilitadores do processo de cuidado. Entretanto, as rotinas e normas praticadas durante a internação despertaram um sentimento de aprisionamento, como consequência de estar impedido de trabalhar, de circular em áreas externas do hospital, ter apenas a televisão como lazer, de se sentir isolado. Para alguns, estar preso era contingência, algo que se impunha diante da dificuldade em seguir o tratamento. Para outros, tal sensação foi de difícil aceitação.
Do jeito que é a minha situação, que eu estou na rua, pra mim está sendo difícil [se referindo a seguir o tratamento na rua]. Eu queria um lugar onde eu pudesse me tratar, mas do jeito que eu ficasse preso mesmo, onde eu não pudesse sair, que eu ficasse internado (E17).
Aí, eu falando com a assistente social e ela veio me falar que era melhor ficar [no hospital] nesse período de seis meses. Eu falei que ficaria um pouco difícil, porque pra mim aqui eu estou preso. Tudo bem eu tenho uma televisão, mas eu estou preso. Eu não tenho um trabalho (E6).
Aqueles que não suportaram o desconforto causado por rotinas e regras do ambiente hospitalar e o afastamento de suas vidas receberam altas ditas indesejáveis: por indisciplina, por evasão ou à revelia e a pedido. No caso da alta por indisciplina, a comunicação com o doente costuma estar comprometida, e na alta à revelia, não há tempo hábil para tecer nenhuma articulação com outras unidades de saúde, situações em que a continuidade do tratamento fica comprometida. Entre estes estiveram três doentes que chegaram aos hospitais por demanda espontânea e cuja motivação inicial não foi suficiente para manter as internações. Contudo, a porta aberta do hospital propiciou o alívio do sofrimento e a preservação da vida, possíveis motivações da ida para esses hospitais. Há ainda que considerar que, de certa forma, esses hospitais reproduzem o que acontece em albergues e abrigos, quando reúne desconhecidos (ADORNO, 2011ADORNO, R. C. F. Atenção à saúde, direitos e o diagnóstico como ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua. Etnográfica, v. 15, n. 3, p. 543-567, 2011. ). Passados os momentos de maior debilidade física, os doentes experimentam o desagrado de não ter o que fazer e constrangimentos por compartilhar ambientes coletivos com quem não têm intimidade, ou pelo medo de agressões de naturezas diversas.
Outra circunstância relatada com potencial para despertar sensação de aprisionamento foi o uso prejudicial de substâncias psicoativas, que alguns associaram a episódios anteriores de interrupção do tratamento da tuberculose. Nas histórias coletadas, encontram-se fatores de risco individuais, ambientais e familiares envolvidos no uso de substâncias psicoativas, o que denuncia as diferentes vulnerabilidades presentes nas vidas dessas pessoas. O espelho, metáfora usada por um dos entrevistados, reflete como ele se sentia, em um diálogo interno que transmite angústia, medo, falta de amor por si, o desconhecimento de como encontrar a motivação que vem de dentro e, possivelmente, certa ambivalência destes sentimentos com o conformismo retratado em algo tipo eu quero, mas eu sou dependente e quem é dependente não se resolve.
A pessoa não vê a si próprio, ela não consegue se enxergar. Pode ter um espelho maior do que ela e ela não vai conseguir se enxergar! Aí, eu olhava para os meus irmãozinhos em volta de mim, todos sujos, magros, tossindo pra caramba [...] Ele não estava me vendo, aquele do meu lado, consumindo crack, consumindo o veneno que está me matando. Ele que era o verdadeiro espelho pra mim. Aí, eu falei assim: tem que procurar um tratamento. Mas, infelizmente pela minha dependência mesmo, eu acabava depois desistindo (E17).
A fala a seguir ilustra a opinião de um desses entrevistados em relação às dificuldades enfrentadas para seguir o tratamento da tuberculose.
Foi a minha falta de amadurecimento [o que dificultou seguir tratamentos anteriores para tuberculose], principalmente as drogas, que são a referência de muita gente que começa o tratamento e não termina. A pessoa tem que estar motivada, a pessoa tem que ter um álibi, que faça ela ter um ganho maior do que ela perde na rua, usando droga (E9).
A maioria dos entrevistados relatou fazer uso de substâncias psicoativas no período em que foram encaminhados para internação nos hospitais de referência. A exemplo do que ocorre em outros serviços de saúde, esses hospitais impõem a abstinência, e não consideram princípios, nem etapas da estratégia de redução de danos indicada pela Política Nacional de Álcool e Drogas. Segundo o que está indicado nessa política, deve-se ter em conta a diversidade encontrada nos serviços de saúde e lidar com as singularidades, definindo um plano terapêutico baseado nas necessidades e demandas do usuário e, ao mesmo tempo, as possibilidades do serviço, o que pressupõe o protagonismo dos doentes (BRASIL, 2003). Assim, o plano de cuidado para o tratamento da tuberculose deve contemplar questões relacionadas ao uso dessas substâncias. Entretanto, nesses hospitais, a exemplo do que ocorreu em outros serviços, não se registrou o estabelecimento de pactos, ou elaboração de projetos terapêuticos singulares.
Olhando para além desses hospitais, elaborar tais planos e buscar incluir neles outros atores abriria a possibilidade de minimizar a fragmentação do cuidado encontrada em diferentes serviços e setores. Um exemplo do aqui exposto é o fato de que nenhum dos doentes estava sendo acompanhado por equipes dos serviços socioassistenciais. O Centro de Referência Especializado para PSR, o serviço social de abordagem especializada e os abrigos foram citados por alguns, mas em nenhum dos casos houve continuidade do atendimento. De forma geral, quando os entrevistados conheciam estes serviços não os integraram à rede que possibilita o cuidado com a saúde. Outro exemplo seria o momento da alta hospitalar, quando os doentes foram referenciados para a atenção básica, mas não foram sistematicamente encaminhados para equipamentos da assistência social. Como a PSR demanda ações intersetoriais para seu atendimento, minimamente, a preconizada integração entre os sistemas de saúde e assistência social (BRASIL, 2014b) requer maior atenção por parte dos gestores.
Considerações finais
Os entrevistados acessaram recursos dos subsistemas popular e profissional e não referiram a busca pelo subsistema folk. Não é possível descartar que por temer o julgamento dos profissionais de saúde, informações não relacionadas ao subsistema profissional tenham sido omitidas. O não estabelecimento de vínculos com os entrevistadores pode ter desfavorecido o surgimento de informações que os participantes do estudo temessem ser “inadequadas”, como, por exemplo, ter procurado inicialmente o sistema folk. Esta foi uma das limitações do modelo proposto por Kleinman, que necessitou ser contemporizado neste estudo na medida em que o mesmo restringe o espaço para expressão de conflitos e tensões existentes nas relações entre usuários e profissionais. Além disso, não dá lugar ao conhecimento do inédito e inusitado que compõem as estratégias de sobrevivência de qualquer um e, também, não inclui no subsistema profissional outros recursos e serviços que não compõem a rede de saúde, passíveis de serem acessados pela PSR, como, para exemplificar, os equipamentos da assistência social. Por outro lado, o modelo permitiu olhar para o subsistema popular, uma arena que nos parece pouco estudada nas iniciativas de atenção à saúde da PSR, com suas limitações e potencialidades.
Identificamos alguns fatores que pareceram demarcar as decisões dos entrevistados, alguns dos quais demandam outros estudos para compreender como determinados conceitos existem e operam para esse coletivo: as dinâmicas relacionadas ao modo de vida nas ruas com as consequentes expectativas em relação ao tratamento, a cura da tuberculose e a motivação para recuperação da saúde; o uso de substâncias psicoativas; as estratégias de tratamento da tuberculose; as formulações a respeito da resolutividade dos diferentes serviços de saúde, os apoios e incentivos, bem como pelo acolhimento, regras e normas praticadas por estes serviços. As redes configuradas nas ruas se mostraram de grande importância para as decisões tomadas e para a chegada ao subsistema profissional, o que também se deu pelo apoio de pessoas que não se encontravam em situação de rua.
No subsistema profissional, o acolhimento e outras práticas adotadas foram diferentes segundo o tipo de serviço acessado. À exceção das unidades de atenção básica, os indivíduos e suas singularidades não foram trazidos para o centro das decisões e não foram consideradas suas singularidades, diferentes vulnerabilidades e potenciais de enfrentamento da aflição. Ainda nesta arena, pareceu haver necessidade de investir na desconstrução do estigma em relação à PSR, na força dos pactos e nos projetos terapêuticos possíveis de serem estabelecidos, ainda que o cuidado aconteça no espaço das ruas, o que poderia melhorar o acolhimento e contribuir para criar vínculos de confiança. No Estado do Rio de Janeiro existem 19 equipes de CnaR em funcionamento, sete delas no município do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2016a), que expandiu sua cobertura de Atenção Básica de 3,5%, em 2009, para 56,8% em 2016 (DUROVNI et al., 2017DUROVNI B. et al. The impact of the Brazilian Family Health Strategy and the conditional cash transfer on tuberculosis treatment outcomes in Rio de Janeiro: an individual-level analysis of secondary data. Journal Public Health (Oxf). 2017 Sep. 28:1-8. doi: 10.1093/pubmed/fdx132.
https://doi.org/10.1093/pubmed/fdx132... .) Em 2015, este município, que tem a atenção à tuberculose descentralizada para a atenção básica, notificou 464 casos de tuberculose na PSR, 270 (58,18%) deles notificados por equipes tradicionais da ESF (RIO DE JANEIRO, 2016b). Este dado exemplifica a necessidade de investir na qualificação dessas equipes para a atenção à PSR, que não deve ser responsabilidade apenas das equipes de CnaR.
Apesar do reconhecimento sobre a complexidade da atenção à PSR e da preconizada integração entre diferentes políticas e serviços para esta atenção, neste estudo se evidenciou que a fragmentação e a precária intersetorialidade foram outros determinantes externos das trajetórias traçadas.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Ago 2018
Histórico
- Recebido
20 Nov 2017 - Aceito
15 Fev 2018