Entre a norma e o “jeitinho”: o vigilante em unidades de saúde

The guard at the health institution: between the rules and the “Brazilian way”

PRISCILA DE OLIVEIRA GALVÃO CASSEMIRO RACHEL AISENGART MENEZES Sobre os autores

Resumo

As unidades de saúde contam com o trabalho de diferentes profissionais. Dentre estes estão os vigilantes patrimoniais, por vezes não considerados tradicionalmente como integrantes de equipes de saúde. É esperado que garantam a segurança física das pessoas e do patrimônio, mas em unidades de saúde o segurança atua em várias atividades. Em algumas instituições são responsáveis pela triagem informal para atendimento de emergência, pelo transporte de enfermos, recepção e orientação de pacientes. No cotidiano de unidades de saúde, regras são burladas para lidar com os desafios de cada contexto. As instituições de saúde tornam-se palco de tensões, com disputas de duas lógicas: a universal e a da relacionalidade. As discrepâncias entre as regras e o trabalho de vigilante patrimonial, entre a norma e o “jeitinho”, apontam um movimento amplo da sociedade brasileira entre o formal e o informal, o universal e o relacional, o indivíduo e a pessoa. Neste artigo abordamos o trabalho realizado por vigilantes patrimoniais em unidades de saúde, com base em pesquisa qualitativa e em entrevistas com 11 vigilantes. A análise revelou contraste entre o trabalho normativo - baseado na legislação - e o que ultrapassa as regras.

Keywords:
trabalho; segurança; unidade de saúde

Abstract

Health institutions have workers of various areas. Among these professionals are the ones involved in property security, not traditionally considered part of the health team. It is expected that these professionals ensure institutional patrimony and people’s integrity, but in health institutions guards’ work includes a wide range of tasks, such as identifying people in need for urgent care, helping to transport sick people or providing information about clinic and doctor’s offices. Eventually rules are broken by health and security professionals to cope with challenges of any given context. Two different logics are then in disputation in these institutions: the logic of the universal law and the logic of the relations. The differences between the legislation and the patrimonial guards’ work, between the rules and the “jeitinho” (Brazilian way of doing things), points out the movement of the society, oscillating between formal and informal, universal and relational, individual and person. This presentation addresses the guards’ work on health institutions, based on qualitative research, with interviews with 11 patrimonial guards. Data analysis showed difference between the normative work - based on the legislation - and the work that surpasses the rules.

Keywords:
work; security; safety; health unit

Introdução

As instituições de saúde contam com grande número de profissionais em diferentes inserções, com atuações e formação distintas. Alguns exercem atividades fundamentais na assistência em saúde e são frequentemente referidos no contexto de unidades de saúde. Entretanto, cada instituição também conta com significativo contingente profissional não incluído no conjunto das atividades de saúde, apesar do seu desempenho em funções relevantes, sobretudo para a manutenção do funcionamento desses estabelecimentos. Estes são os responsáveis pela administração, zeladoria, limpeza, e os vigilantes de segurança - objeto de nossa investigação e foco deste artigo, uma vez que as autoras observaram, em sua prática como profissionais de saúde, que os vigilantes de segurança, com frequência, desempenhavam atividades para além de suas atribuições oficiais e das normas que orientam sua atividade laboral em serviços de saúde. Tal observação conduziu ao surgimento do problema da investigação: as formas como as normas e as práticas se articulam, no cotidiano das instituições de saúde, além dos mecanismos e das estratégias utilizados pelos vigilantes.

Este artigo baseia-se em pesquisa desenvolvida no Mestrado em Saúde Coletiva por uma das autoras, acerca do trabalho de vigilantes patrimoniais em unidades de saúde. O interesse surgiu a partir de situações vivenciadas pelas autoras no cotidiano em instituições públicas de saúde na cidade do Rio de Janeiro.

Os vigilantes patrimoniais ocupam lugar relevante nas instituições. Muitas vezes atuam para além das atividades previamente normatizadas e definidas que seriam da responsabilidade de um segurança. Em alguns hospitais ou unidades de saúde eles podem ser responsáveis, por exemplo, pela triagem informal para atendimento na emergência ou pela permissão/proibição de entrada em ambientes de consulta. Em certas unidades eles também realizam a contenção ou o acolhimento de familiares que receberam notícia de falecimento de parente assistido na instituição.

Para apreender a atuação destes profissionais, que não contam com formação ou treinamento para a área da saúde, foi desenvolvida pesquisa que articulou dados de análise documental acerca da legislação que rege suas atividades, e entrevistas foram empreendidas com profissionais da segurança patrimonial em unidades de saúde no município do Rio de Janeiro. Nesse artigo serão apresentados em especial dados das entrevistas com base em roteiro semiestruturado.

A pesquisa está inserida em dois horizontes de reflexão, no campo dos estudos da Saúde Coletiva: nas investigações das Ciências Sociais e Humanas em Saúde, voltadas ao entendimento da dinâmica dos serviços de saúde; e da Sociologia das Profissões, especialmente as dedicadas à atenção em saúde. A constatação da existência de “jeitinhos” na condução do trabalho do vigilante em instituição de saúde propiciou a busca por referencial teórico sobre o que foi nomeado por DaMatta (1997) e Barbosa (2005BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005.) como o “jeitinho brasileiro”.

Metodologia

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado em 1º/06/2016, sob o parecer número 1570.211. As entrevistas foram realizadas com profissionais de equipe de segurança patrimonial de instituições de saúde do município do Rio de Janeiro. Os sujeitos foram selecionados por indicação de conhecidos que, por sua rede social (BOTH, 1976BOTH, E. Família e rede social. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.), indicaram outros contatos. Este método é conhecido como “bola de neve” (NOY, 2008NOY, C. Sampling knowledge: the hermeceutics of snowball sampling in qualitative research. INt J Social Research Metodology, v.11, n.4, Oct., p. 327-344, 2008.; HANDCOCK; GILE, 2011HANDCOCK, M. S.; GILE, K. J. Comment: on the concept of snowball sampling. Sociological Methodology, v.41, n.1, p.367-371, August 2011. ; VINUTO, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v.22, n. 44, p. 203-220, ago/dez 2014.). O pesquisador responsável pelas entrevistas estabeleceu contato com alguns sujeitos previamente identificados como integrantes do grupo a ser estudado, que por sua vez indicaram outros contatos, e assim sucessivamente, como se construíssem uma “bola de neve”.

A pesquisa teve início com entrevistas de profissionais, previamente identificados e contatados, que declararam disponibilidade. Após suas entrevistas, indicaram novos sujeitos. Também foram contatadas pessoas da rede profissional e social das autoras, para indicação de vigilantes patrimoniais. Dessa forma, a investigação contou com diferentes cenários, o que possibilitou entendimento de distintos contextos de atuação de vigilantes em unidades de saúde.

Foram realizadas entrevistas com 11 vigilantes, sete homens e cinco mulheres, de cinco instituições públicas de atendimento em saúde. A idade média dos entrevistados foi de 51 anos. Priorizou-se entrevistar profissionais com maior tempo de trabalho em unidades de saúde. O tempo médio de permanência dos entrevistados na área da saúde foi de 15 anos, e na mesma instituição, 13 anos.

Os serviços de saúde em que esses profissionais trabalham incluem um hospital psiquiátrico, uma Clínica da Família, uma policlínica e dois hospitais terciários. A população alvo destes serviços abrange todas as faixas etárias e níveis de complexidade, inclusive serviços de emergência, condições crônicas de saúde, internação hospitalar e atendimento ambulatorial. Alguns profissionais possuíam experiência laboral em mais de uma instituição de saúde e compartilharam suas práticas do ofício em duas e até três unidades. Nenhum entrevistado relatou experiência em instituição privada de saúde.

Vigilância patrimonial na saúde: o que significa?

A análise das entrevistas evidenciou dois temas centrais: o primeiro concerne à formação e treinamento dos vigilantes, seus encontros/desencontros, adequação/inadequação ao trabalho. O segundo diz respeito à atuação prática na relação com as normas formais e informais da profissão.

A operacionalidade da função conta com dois aspectos: a “vigilância patrimonial” em si, associada às normas da profissão; e as atividades que podem ser nomeadas “trabalho sem nome”.

A “vigilância patrimonial”

A gente é patrimônio. A gente toma conta da unidade toda. (E3)11Para preservar o anonimato, os entrevistados são referidos como E1, E2, E3 e assim por diante..

As entrevistas que destacam o trabalho do vigilante “patrimonial” afirmam que sua função é resguardar, manter a salvo o patrimônio da unidade: equipamentos, salas, e vigiar acesso e circulação de pessoas. O cotidiano deste funcionário varia segundo a instituição, mas em geral envolve: ronda (inspeção com objetivo de verificar e manter a ordem); passagem de plantão no início e final dos turnos; controle de entrada na instituição e de ingresso em certos setores; contato com a polícia em caso de furto ou agressão.

Ao se tratar de apenas um vigilante para toda a instituição ou para uma área, o trabalho envolve apenas uma ronda, ao iniciar o turno, assumir o posto, e rondas periódicas ao longo do dia, para verificar a integridade de equipamentos e ambientes. As passagens de plantão são registradas em um livro oficial.

Os vigilantes relatam mostrar-se mais ou menos atentos a pequenos roubos, dependendo da unidade em que estão. Mencionam roubo de celulares e de itens de vestuário, bem como o cuidado com a segurança de equipamentos de valor na instituição, como computadores ou aparelhos médicos de alto custo. Neste sentido, indicam a necessidade de atentar para invasões fora do horário de atendimento da unidade. No caso de hospital psiquiátrico, a ronda assume também a atenção a fugas de pacientes internados, sobretudo no período noturno. Os vigilantes patrimoniais, no interior da área da instituição, permanecem em locais considerados estratégicos, do ponto de vista do exercício da função de vigilante, para observar o que ocorre e quem transita, quando não “fazem a ronda”. Assim, os portões de acesso e as entradas de certos setores são posições escolhidas.

Na ótica destes profissionais de segurança, seu trabalho contém desafios concernentes ao contato com pacientes, familiares e visitantes. As entrevistas apontam que não foram suficientemente preparados para tal atuação, de modo que eles criam estratégias para lidar com esses atores sociais. Tais recursos podem envolver um tom de voz conciliatório, vias de argumentação, negociações com membros da equipe de saúde, entre outras possibilidades.

O trabalho para além das normas

Vamos botar aí, de 100% o vigilante faz 10% do que é da função dele. Os 90% é da função de outro, do enfermeiro, do maqueiro... (E1).

Além das atividades referentes à “vigilância patrimonial”, as entrevistas evidenciaram a execução de diversas tarefas para além do escopo da legislação e do treinamento que receberam. Tais atividades foram apontadas por todos os entrevistados, envolvem desde prestar informações, empreender triagem informal para atendimento médico até uso de força física para contenção de pacientes e/ou familiares. A atividade do vigilante recebe novos traços e formas, a partir das interações em cada unidade de saúde.

As entrevistas de E2 e E3 ilustram as múltiplas atividades que podem ser percebidas como praticadas com certa regularidade: E2 afirma que organiza os “clientes” que chegam cedo para exame de sangue, dispõe filas, entrega senhas e cuida para que “não haja confusão”. Refere que sua responsabilidade é o patrimônio, “não deixar quebrar”: “não sou responsável pela unidade, sou responsável pelo patrimônio”. Em caso de transtorno da ordem, como um paciente “alterado” que não respeita os profissionais ou a ordem para esperar, este vai “conversar” para dar um jeito na situação.

A E3 também organiza filas, distribui senhas e avisa seu término, informa a localização dos consultórios e da farmácia, orienta o agendamento de retorno. Refere que não é sua função, mas “faz pra ajudar”. Além de tais atividades, acende e apaga as luzes da instituição, liga e desliga os aparelhos de ar condicionado, abre e fecha as portas e portões. Em suas palavras:

A gente faz quase tudo aqui. O certo mesmo, no contrato, a gente é só patrimônio. Mas aí como a gente vai no setor, a gente está acostumado com o posto... Aí pega, une o útil ao agradável, a gente ajuda. Assim, acender a luz não é nossa obrigação, dar informação não é nossa obrigação. Nossa obrigação é patrimônio. É ficar no posto, só olhando mesmo se vai sumir qualquer coisa do patrimônio. Se alguém roubar. Pegou isso aqui, aí é com a gente. A gente não é pra dar informação nenhuma, mas... Não tem pessoas, a gente vai e ajuda. Informação de onde é o atendimento, onde que é consulta, onde que é farmácia, assim, essas informações não são com a gente. A gente dá. Aqui e em todas as unidades é a mesma coisa. É! Pra onde você vai, quando você chega lá, tem vigilante dando informação. Mas não tem que dar. (E3).

A inserção em unidade de saúde pode gerar desconforto em muitos profissionais, quando ocorrem situações nas quais a atuação como “vigilante patrimonial” é insuficiente, em face das demandas cotidianas. Neste sentido, os profissionais negociam pequenas infrações às regras recebidas. Ao invés de permanecer no posto, por exemplo, o vigilante pode ajudar os acompanhantes a conduzir pacientes para atendimento emergencial ou até carregar doentes. Por vezes, assumem a função de outros profissionais ausentes no momento:

É uma área muito importante? É. Então o vigilante, querendo ou não, faz muita função que não é da alçada dele. Vamos botar aí, de 100%, ele faz 10% do que é da função dele. Os 90% é da função de outro, do enfermeiro, de maqueiro, é empurrar paciente pra um lado pro outro, ajudar a segurar, a conter paciente... Que não é função de um segurança. O segurança é patrimonial, ele é instruído pra cuidar do patrimônio. Ele não tem que cuidar de paciente. (E1).

Como afirma outro entrevistado, o “primeiro bom dia” recebido por pacientes é geralmente de profissionais da vigilância, a quem serão dirigidas questões e dúvidas. Além disso, como estes estão presentes na entrada da unidade, são também os primeiros a encontrar pacientes em situações graves e agudas de saúde. Por vezes carregam pacientes no colo, conduzem cadeiras de roda, diante da inexistência de maqueiro naquele momento.

Variam as declarações sobre os motivos para ultrapassar o escopo das atividades oficiais, vão desde compaixão, ausência de maqueiros, médicos e/ou enfermeiros, pedidos explícitos ou indiretos de profissionais da equipe até a própria disposição do vigilante. A exposição direta a dramas de pacientes e familiares é facilitada por se tratar de ser o vigilante o profissional posicionado no acesso ao hospital ou à unidade de atendimento. As falas dos entrevistados mencionam o sentimento de urgência em responder às demandas, o que pode significar, por vezes, contrariar orientações da empresa ou da instituição de saúde.

O termo “ajudar” é citado recorrentemente nas entrevistas, em referência ao que os vigilantes fazem, e que não integra as normas. É “ajudar a carregar a mala pesada” de quem recebe alta; “ajudar a colocar no carro”; “ajudar” indicando uma direção de determinado serviço; “ajudar” por meio de uma “palavra amiga” em um momento difícil; “ajudar” burlando uma regra da triagem para viabilizar o atendimento de quem passa mal. “Ajudar” é o carro-chefe de muitas intervenções diárias de vigilantes.

As entrevistas apontam situações nas quais regras são quebradas ou recriadas para “ajudar” pacientes. Diversos vigilantes relataram casos em que o quadro clínico aparente conduziu a um rompimento das normas. Os relatos de triagem informal são frequentes. Após algum tempo de trabalho em unidade de saúde, muitos entrevistados utilizavam os vínculos de sociabilidade estabelecidos com as equipes de saúde para “ajudar” as pessoas tidas como necessitadas de auxílio para acesso à avaliação médica e tratamento. Ainda de acordo com as falas, a existência de um Sistema de Regulação dificultou a liberdade para executar tais atividades, inclusive em unidades fechadas aos portadores de condições específicas de saúde. Ainda assim, contaram que já fingiram pedir auxílio a um amigo ou familiar, para avaliação de quem estava no portão. Desta forma conseguiam atendimento médico e internação, quando necessária.

Em dois relatos essa “ajuda” foi fundamental para a vida de quem solicitava:

Como já teve fato aqui, um motorista de ônibus conhecido meu estava infartando, aí peguei e botei pra dentro, por conta própria. “Vem comigo”. Ele entrou, fui lá dentro. O médico falou agradece a Deus primeiro, depois a esse guarda aí, porque se fosse pro Souza Aguiar você ia morrer. Não ia dar tempo de ir pro Souza Aguiar, você estava infartando. Primeiro a Deus, depois ao guarda. Então isso pra mim é uma vitória: conseguir ajudar o próximo. Aí quando chega aí, de ambulância ou de maca, a gente vai, pede pra aguardar, vai na triagem lá, encaminha pro médico. (E11).

Teve um caso aqui que me marcou muito. Uma paciente chegou e foi pra medicina fetal. Ela saiu porque marcaram a ultra dela pra depois que ela tivesse tido bebê. Não tinha agenda pra aquela época. Ela veio chorando me contar: “Eu não consegui, marcaram só pra depois que o neném nascer, e o neném tá com probleminha”. E ia nascer com problema, e os outros hospitais não tinham condição pra aquilo. Aí uma coisa bateu em mim, “ajuda essa menina”. E eu sabia como poderia ajudar ela. Na admissão onde eu trabalho, na recepção, você pra passar pelo médico você tem que estar com dor, não pode passar se não estiver com dor. Falei “Não está sentindo nada?”. “Não, senti, mas hoje não”. “Mas faz quanto tempo que você sentiu uma dor?” Eu tinha que fazer com que ela me falasse que estava com dor. Ela: “ontem eu senti...”. “Ah, então você estava com dor ontem! Então vem cá. Me dá teu documento aí”. Menina, ela passou pela médica, imediatamente ela foi pro centro cirúrgico. Ela foi internada e naquele dia ela foi pro centro cirúrgico, teve o bebê. Aquilo me marcou muito, porque hoje ele está com 3 anos, e toda vez que ela vem pra consulta, ela vem me visitar e traz o bebê. (E6).

Os vigilantes empreendem a triagem de pacientes na entrada das unidades de saúde. Ao contrário do que ocorria na instituição investigada por Giglio-Jacquemot (2005) em outro estado brasileiro, a “triagem informal” é restrita aos acessos externos e não à própria unidade de emergência.

Entre as atividades descritas pelos vigilantes nas entrevistas, consta também o uso de força para contenção de pacientes e de familiares. Um entrevistado referiu-se a este uso como “o meio necessário” em situações em que conversas para convencimento não foram suficientes para aceitação das normas institucionais:

Em outro hospital, uma vez, nego saiu de lá quase de camburão, porque tentou me matar. Você vai falar com a pessoa, a pessoa não quer aceitar. Agora, tem que tirar essa pessoa, a pessoa não quer sair. Aí tem que usar o meio necessário com a pessoa. Aí o que tem que fazer, meio necessário, é pegar a pessoa, precisa pegar à força e tirar. Aí nego fica te ameaçando, falando um monte de coisa. E assim a gente toca o barco. (E11).

O tema é recorrente, sobretudo nas falas de vigilantes que atuaram em hospitais psiquiátricos. Segundo seus relatos, a equipe solicitou ajuda para conter pacientes, quando o uso da força foi visto como necessário, pois a argumentação não se fez ouvida. Em seus discursos, mencionaram zelo na coerção para não machucar ou deixar marcas nos corpos de pacientes:

Às vezes um paciente que você conversava sempre, aí de repente aquele paciente surtava, aí você era obrigado a agir com um pouco de truculência. Porque ele tinha que tomar medicamento, estava quebrando tudo. Pra mim esse era o pior momento, porque a pessoa está doente, ali, cheio de problema, e você tem que agir com truculência, força, às vezes até machucar um pouco, porque, nesta de fazer força, você acabava excedendo um pouquinho, eles também. Aí não era uma hora muito legal, um momento muito bom. Pelo menos era o momento que eu menos gostava. “Surtou aqui, tá quebrando tudo aqui”. Eu já sabia que ia ser um grande problema. Então é bem complicado a gente controlar uma situação dessa com paciente psiquiátrico assim. Bem difícil. (E7).

Tem que saber pegar no paciente, segurar o paciente. Entendeu? Pra não ter que usar muita força bruta no intuito de você querer quebrar algum osso do paciente... Porque aí também a família, quando vier fazer visita, quando vê que ele tá com braço quebrado, ele fala “ah, foi o segurança”. Da própria família falar que foi a segurança que fez aquilo com o paciente, ta entendendo. (E1).

Por outro lado, a maioria dos vigilantes abordou a importância de calma e de não recorrer à violência, mas é recomendado cuidado na forma de falar com pacientes e familiares:

É sempre assim. Pode chegar qualquer pessoa aqui, a gente sempre trata bem. Sem agredir. Sem agressão. Nós podemos até ser agredidos, mas vamos sempre manter nossa postura. Nunca agredir. A gente segura e tal, mas agredir, jamais. Segurar sim, até um familiar, a pessoa quando vai a óbito... se descontrola... A gente chega ali, tenta acalmar aquela pessoa, tem que segurar. Tem pessoas que se jogam no chão. A gente, estando próximo, a gente segura aquela pessoa, bota ela numa cadeira de rodas, bota numa maca, e corre com a pessoa pra emergência, pra tomar um calmante, um remédio, uma coisa assim. Sempre ocorre. É difícil. (E9).

Os vigilantes queixaram-se de não contar com treinamento ou estímulo das empresas para aprender a lidar de forma não violenta com o público. Outros entrevistados consideraram ações no sentido da violência, como possibilidade de “resolver” a situação, o que seria o “meio necessário”:

Os cursos dão informação em linha geral, eles não dão um preparo para você chegar e, “ah, olha”, “não senhor, fica calmo”. Nada disso. Simplesmente “o teu trabalho é esse, e você não se mete aqui, e não se mete ali. É isso aqui, tu foca nisso aqui. Você tem que chegar e não deixar a pessoa passar e acabou, se tiver que bater, bata” (voz autoritária). Essa é a linha geral dos cursos pra ensinar o vigilante. (E5).

A responsabilidade pela retirada de visitas e acompanhantes, ao final do horário de visitas, e o uso de força física para tanto, “se necessário”, não é consenso entre os entrevistados. Dois vigilantes expressaram não considerar esta atividade como atribuição da vigilância, mas da polícia. Entretanto, referiram a existência de expectativa dos profissionais de unidades de saúde de que eles se responsabilizassem e resolvessem qualquer situação que envolvesse a retirada de pessoas da instituição.

Um dos entrevistados criticou a formação dos vigilantes, por ser responsável pelo surgimento de profissionais acríticos, para os quais a função se resume em conferir “cara-crachá”. Ao mesmo tempo em que existem críticas, este tipo de vigilante “duro” consiste em padrão a ser seguido. Entretanto, o vigilante “real”, presente em cenários de saúde, encontra-se sujeito a emoções, pressões e relações de poder em suas atividades cotidianas. O contato com o público, a princípio não descrito no escopo do trabalho do vigilante, para que este tomasse conhecimento, torna-se ação diária. Assim, “saber como falar” e lidar com pacientes, visitantes e profissionais constitui prerrogativa central para o fluxo da instituição e do trabalho ali empreendido.

As representações em torno do vigilante e da maneira como ele deve atuar revelam a imagem de profissional maleável e sensível, com capacidade de compaixão pela fragilidade e sofrimento de pacientes e familiares. Neste sentido, o vigilante pode abrir exceções, em contraste com a figura de profissional insensível ou violento. Muitos entrevistados referiram as representações do que seria o vigilante padrão: uma “máquina” que não apresentava emoções ou cedia a qualquer tipo de exceção. Este perfil parece constituir a representação da norma, o contraponto de todo “jeitinho”, de todo “coração”, de todo afeto que burla as regras, que cria novas maneiras para resolver problemas, que traz “a norma universal” para o campo do pessoal.

A maior parte das entrevistas apontou o seguinte funcionamento: as empresas de segurança são contratadas pelo governo (federal, estadual ou municipal) após licitação, quando enviam às instituições de saúde o número de vigilantes solicitado. Um supervisor, também contratado pela empresa, é enviado para ser contato entre vigilantes/empresa, unidade/empresa e entre administração da unidade/vigilantes (formalmente). Em geral, o contato dos vigilantes com a empresa é efetuado via supervisor, raramente é direto com a empresa, que não oferece qualquer informação ou orientação acerca do trabalho a ser realizado. Com o ingresso na unidade de saúde, os vigilantes terão conhecimento de suas atribuições, fruto de negociações formais e informais entre a empresa e a instituição.

As entrevistas revelaram distintos níveis de contato entre equipe de saúde e administração da unidade e os vigilantes. As diferentes unidades de saúde contam com demandas distintas aos profissionais de vigilância. Nos serviços de psiquiatria são frequentes as solicitações para contenção de pacientes agressivos, em fuga ou com comportamento tido pela equipe como hipersexualizado. O depoimento de E1 relata o procedimento em caso de fuga de pacientes psiquiátricos:

No caso, tentar segurar o paciente o máximo que puder, enquanto o outro vigilante liga pra enfermaria, eles se dirigem pra portaria pra segurar o paciente ou ali mesmo ser medicado e levar o paciente pra enfermaria. (E1).

A fala de E1 evidencia que a prática é não apenas solicitada, mas reconhecida pela equipe de saúde que acompanha a abordagem dos seguranças. Entretanto, a direção da empresa opõe-se a essa conduta, “não dá respaldo” a esse tipo de atuação:

Não, a orientação que você recebe é pra não botar a mão, em hipótese nenhuma. Você não tem que ir lá dentro, você não tem que meter a mão no paciente. É esse tipo de instrução que você recebe da empresa, essa é a instrução que a empresa passa para o segurança: "Olha não quero chegar aqui e encontrar você empurrando a maca, não quero encontrar você segurando garrafinha de soro pro paciente. Não quero ver você fazendo curativo na perna do paciente. Não quero ver você fazendo torniquete em paciente”. Funciona dessa forma. É assim que a empresa instrui o funcionário de segurança patrimonial dentro da área hospitalar. (E1).

A despeito das orientações da empresa e, por vezes, sem qualquer solicitação da equipe de saúde, os vigilantes decidem abordar pacientes e ajudá-los:

Nenhum deles que trabalha em hospital é instruído pra fazer aquilo ali. Empresa nenhuma arca com a responsabilidade de fazer a função de maqueiro, do vigilante fazer a função de enfermeiro. Nenhuma empresa respalda isso. Eles fazem por vontade própria, fazem porque gostam, fazem porque querem, fazem por aprendizado. Porque vê que é um ser humano que está ali. Muitos fazem, não vêm que é pelo trabalho, vêm que é um ser humano, precisa de ajuda e não tem gente pra ajudar, e ele está ali parado igual um babaca, pela empresa, que a empresa paga pra ele estar ali parado, por causa do patrimônio, não do paciente. Mas ele vê que não tem ninguém tomando conta do paciente, ou ninguém pra ajudar o paciente. Ele vai lá e faz essa função. Mas não no intuito de agradar a gestão do hospital, ele faz no intuito, porque vê que é um ser humano. (E1).

O entrevistado aponta como a empresa que o contratou expressa a norma de ausência de contato entre vigilantes e pacientes. Entretanto, enfermeiros e médicos do serviço de psiquiatria em que E1 trabalha solicitam sua ajuda para contenção de pacientes em fuga e para os agressivos em surto. Além disso, o próprio vigilante pode sentir compaixão diante da situação de colegas de plantão, no caso, um grupo restrito de mulheres (médicas e enfermeiras) para cuidar de surtos de agressividade de pacientes homens adultos:

Quando tem uma emergência, paciente muito agressivo, por exemplo, no plantão de hoje à noite, na enfermaria masculina tem quatro mulheres, enfermeiras, e só homem (internado). Aí, conclusão, aí tem um surto lá dentro, com dois, três pacientes brigando. Elas não vão poder conter, elas não vão poder entrar na briga. Aí chamam o segurança pra ir lá dentro. Conclusão, ela chama a gente, a gente chama os paciente pra conversar. Quando o cara tá muito acelerado, não quer conversa, aí tem que ser na força, pra ele ser medicado. Mas isso com acompanhamento do médico, com acompanhamento da enfermeira. (E1).

O contato pessoal foi referido como relevante elemento, nas ocasiões em que normas são burladas. Entretanto, não é em situação ou para ajudar qualquer paciente e/ou profissional que os vigilantes decidem não seguir as normas. Algumas falas evidenciam a existência de avaliações em torno de quem merece ou não “ajuda” dos vigilantes. Pacientes, visitantes e funcionários podem ser alvo dessa avaliação, expressa na fala de E3:

É porque gosto de ajudar os outros! Quem merece né, quem é merecedor. Quem não merece, que você vê que vem na marra, não tem como ajudar. Vem, porque acha que tem que conseguir. Vou gritar, vou fazer, vou quebrar aquilo ali... Aí não. Aí eu vejo que aquilo ali já está passando dos limites, aquilo ali é uma malandragem. Não ajudo. (E3).

Burlar a norma para “ajudar” alguém categorizado como necessitado é um comportamento aceito e bem avaliado por grande parte dos vigilantes entrevistados. A quebra da regra, na relação entre vigilante/ equipe de saúde, em resposta às demandas de auxílio, também é aceita. Entretanto, diante de coação para burlar uma norma, seja por paciente/familiar, seja por algum policial, a resposta dos vigilantes tende a ser negativa, no sentido de seguir a regra.

Entre a norma e o “jeitinho”

A análise dos dados da pesquisa, tanto coletados na pesquisa documental quanto das entrevistas com vigilantes, revelou diferença central entre as normas e as atividades realizadas pelos vigilantes na prática cotidiana em unidades de saúde. A pesquisa documental evidenciou que os cursos de formação para vigilantes, bem como os de reciclagem, a cada dois anos, oferecem escassa informação sobre o trabalho na área da saúde. De fato, a Portaria DG/DPF n. 3.233/2012 (BRASIL, 2012), que regulamenta os cursos na área, não inclui a “vigilância hospitalar” no rol dos cursos de formação, extensão ou reciclagem.

A “especialização” desses profissionais é efetuada em seu cotidiano no trabalho institucional. Eles recebem as orientações e exemplos do modo de atuar de diversos atores sociais da unidade de saúde: outros vigilantes, supervisores, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, entre outros.

Deste modo, passam por um aprendizado informal que acaba por preencher algumas lacunas decorrentes do treinamento formal, com informações para além de dados técnicos, como os limites do que é ou não esperado e considerado adequado naquele contexto. Da equipe de saúde, os vigilantes recebem certas instruções, como a importância de lavar as mãos ao entrar e permanecer em locais de atendimento; a adequação ou não da permanência de um visitante ou familiar junto a um paciente, entre outras. A partir de observação em seu cotidiano, aprendem também a avaliar sinais de agravamento de quadro clínico e as principais características de urgência de atendimento.

As entrevistas indicaram que os vigilantes são considerados “a cara” de algumas unidades de saúde, dão o primeiro “bom dia” aos pacientes e são os primeiros funcionários disponíveis para oferecer informações e responder dúvidas. São eles também os responsáveis por abrir os portões da unidade, organizar filas, manter a ordem, direcionar usuários para certos setores ou salas de atendimento. De modo semelhante ao que ocorria na unidade de saúde em outro estado brasileiro, investigada por Farias (2010FARIAS, H.X. No fio da navalha: o processo de trabalho de uma unidade de saúde da família de Vila Velha-ES. 2010. 136f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Institucional). Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e Sociais. Vitória, 2010.), as entrevistas evidenciaram a presença de vigilantes que assumiram temporariamente a função de maqueiros, em situação de urgência. Para identificar tais casos, usualmente o vigilante avaliava os casos críticos, com base em conhecimentos adquiridos na própria unidade de saúde. Assim, viabilizava ou agilizava seu atendimento, assumindo a função de triagem, como na unidade observada por Giglio-Jacquemot (2005).

Apesar de apenas um entrevistado utilizar o termo “desvio de função”, a maioria dos entrevistados relatou atividades não normatizadas como “não patrimoniais” ou a execução de tarefas para além das atividades de “vigilância patrimonial” - aquelas “fora da norma”. Tais tarefas consistem em transformação da regra, de modo a resolver problemas do cotidiano institucional, criando um “jeitinho”.

O “jeitinho” é uma categoria situada entre o legal e o ilegal, entre o prescrito e o realizado (BARBOSA, 2005BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005.). Efetua a conjugação da impessoalidade de um modelo individualista com a pessoalidade tradicional do sistema brasileiro. É uma tentativa de reunião do indivíduo com a pessoa, de transformação do sistema de leis e normas universais em particularidade de situações reais e pessoais. Assim é que os vigilantes conseguem transformar situações reais de trabalho, incompatíveis com regras pré-existentes, em novas condições “mais aceitáveis”. O doente em situação de urgência, que só poderia ser transportado pelo maqueiro, pode ser conduzido pelo vigilante, dado que “naquela circunstância particular” o maqueiro não está presente e o enfermo corre risco de vida. A regra é adaptada à situação. O “jeitinho” burla a norma, sem se contrapor diretamente a ela.

O indivíduo (enquanto valor) faz parte do universo constituído em termos de leis e decretos universalizantes e impessoais que buscam instaurar a igualdade. Não há mediação entre ele e a totalidade. O indivíduo da sociedade moderna é aquele caracterizado por perceber a si e aos outros como universos singulares, com a vontade orientando os comportamentos. Sua vida se divide entre os domínios público e privado, com diferentes ênfases. A pessoa, por sua vez, é o personagem típico das sociedades tradicionais, hierárquicas e holistas. Seu contato com a realidade é mediado pelo clã, pela família, pela linhagem. O ser social participa compulsoriamente da vida da sociedade, sem a opção de optar pela vida individual (BARBOSA, 2005BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005.). Segundo DaMatta (1997), o dilema básico da sociedade brasileira é a tensão entre as categorias indivíduo, expressão da tendência individualista e a pessoa, expressão da tendência hierarquizante. As duas se entrecruzam em nosso universo social.

A pesquisa empreendida conta com falas nas quais os vigilantes, cientes da norma, decidem “ajudar” alguém que não se enquadra nas normas de atendimento na instituição, solicitando à equipe médica um atendimento, em geral de urgência. Nesse momento, esses profissionais utilizam estratégias para conseguir seu intento - uma consulta para quem precisaria de atenção imediata - sem acarretar problemas na relação com o médico assistente ou com a instituição. Assim, apresentam o doente a ser atendido como seu familiar, de modo a transformar a situação em um pedido e favor pessoal ou, ainda, enfatizar a ajuda. Este tipo de atitude contém um apelo emocional, que algumas vezes não se restringe à demanda técnica de um atendimento emergencial. Trata-se, sobretudo, da valorização moral e emocional de uma “ajuda” para quem precisa.

O “jeitinho” aproxima pessoas e situações reais, contrapondo-se a regras universais e impessoais. No entanto, apesar de burlar as normas, o “jeitinho” também possui suas próprias normas e mecanismos. Um dos fatores que influenciam a obtenção de um “jeitinho” é saber pedir: “a maneira de falar deve ser simpática, cordial, igualitária, jamais arrogante ou autoritária” (BARBOSA, 2005BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005., p.53). Neste sentido, o “jeitinho” funciona em meio a uma relação de igualdade, na qual aquele que recebe a ajuda hoje poderá ser ajudado amanhã. “Saber pedir” é importante, ao tratar-se das demandas de vigilantes. Nas entrevistas, eles apontam a importância e a centralidade do “saber falar”. “Saber pedir” integra uma via de mão dupla, que garante o trânsito do “jeitinho” nos dois sentidos.

Assim, pessoas tidas como carentes, são acolhidas por vigilantes desde que tenham postura humilde, enquanto os avaliados como “arrogantes” ou os que buscam favores com uso de recursos da “malandragem” são recebidos com resistência e, por vezes, com hostilidade. A regra do “saber pedir” não é facilmente quebrada e, por vezes, o “autoritarismo” de alguns pode ser respondido pela indagação “você sabe com quem está falando?”, expressando a contrapartida da autoridade institucional do vigilante.

A pergunta “você sabe com quem está falando?” não constitui uma via de igualdade e duplicidade, mas o caminho da hierarquização. Faz uso da autoridade e do poder, enfatiza a diferença entre os interlocutores. O “jeitinho” e o “você sabe com quem está falando?” são mecanismos de transformação de indivíduos em pessoas. Em ambos, “um agente, personalizando-se tenta escapar da subordinação a uma lei ou norma universalizante e impessoal” (BARBOSA, 2005BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005., p. 54).

O vigilante na empresa é apenas mais um funcionário, enquanto na unidade de saúde foge à lei geral das normativas da legislação e dos “não pode”, representados pela empresa. Ele cria o “mas”, condição que permite burlar a norma e operar na esfera do “jeitinho”. Assim, a equipe de saúde funciona no registro do “como se fosse” uma família, e as relações de trabalho também seguem a lógica da esfera relacional. Imerso no “dilema brasileiro” (DAMATTA,1997DaMATTA, R. Você sabe com quem está falando? In: DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, p.181- 248,1997., p. 183), o vigilante oscila entre o indivíduo das leis universais e a pessoa das relações sociais. Ele está situado entre uma linha de autoridade formal e legal e uma posição de autoridade relacional. Sua legitimidade é estabelecida no cotidiano da instituição.

Esses profissionais da vigilância patrimonial atuam entre a autoridade impessoal das normas da empresa e as relações pessoais estabelecidas com a equipe. Em certas circunstâncias, entendem que devem obedecer as normas da empresa e da instituição , enquanto em outras ocasiões, devem atender à determinação da enfermagem, por exemplo. Os vigilantes encontram-se imersos em uma rede de múltiplas figuras de autoridade, respondendo a diferentes atores institucionais, o que pode ser ilustrado pelas seguintes falas: “o que a enfermeira pede eu faço” e “a empresa manda não colocar a mão no paciente”.

Chama atenção o fato de que os médicos são pouco mencionados nas entrevistas com os vigilantes, em comparação com os profissionais da enfermagem. Este dado consiste em indício de que o contato dos vigilantes é mais intenso com enfermeiros ou técnicos de enfermagem, profissionais mais próximos do paciente e de seus acompanhantes, razão pela qual estão presentes no gerenciamento de situações de crise. Neste tipo de situação, por vezes a equipe de enfermagem demanda suporte dos vigilantes para “expulsar” visitantes da enfermaria, colocar ordem no ambiente ou conter pacientes.

Carapinheiro (1993CARAPINHEIRO, G. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento, 1993.), em sua revisão bibliográfica de estudos sociológicos sobre o hospital, aponta que o hospital moderno conta com um “sistema dual de autoridade”, no qual coexistem e se interrelacionam duas linhas de autoridade. Uma desce da administração ao pessoal hospitalar, enquanto a outra, que emana do corpo médico, tem origem na valorização de sua competência técnica. Embora em estudos sociológicos clássicos acerca de instituições de saúde sejam os médicos os profissionais apontados como as figuras de autoridade em hospitais, as falas dos entrevistados indicam outros atores sociais, associados ao “você sabe com quem está falando?”, que variam de acordo com a situação. As duas linhas de autoridade reconhecidas por Carapinheiro (1993) - administrativa e pessoal médico - dão lugar a vigilantes que têm poder de retirar visitantes da enfermaria, que seguem as orientações de enfermeiras e até a pacientes que “sempre têm razão” aos olhos da direção. As interações cotidianas que envolvem os poderes são mais complexas do que as normas e as referências teóricas que o vigilante deve atender.

O vigilante atua em prol da manutenção da ordem institucional para garantir que todos ocupem adequadamente suas posições: o doente no “lugar de doente” passivo, para receber os cuidados, as determinações e os limites da unidade; os familiares e acompanhantes, que se preocupem e cuidem de seus doentes, sem atrapalhar a rotina institucional; o médico e a equipe de enfermagem em sua posição de poder. Paralelamente, atua burlando algumas normas.

Considerações finais

A pesquisa evidenciou que os vigilantes inseridos em unidades de saúde realizam um número expressivo de atividades não normatizadas para sua profissão. Assumem tarefas que envolvem contato direto com doentes e familiares, preenchendo lacunas institucionais. Cumprem atividades de vigilância patrimonial e atividades fora da norma. Nas primeiras, enquadram-se certas tarefas, como a ronda, a observação e atuação em situações de furto e violência na unidade, contato com a polícia para notificação de agravos. Nas atividades não normativas constam a triagem informal de pacientes, a facilitação do atendimento emergencial, a contenção física de pacientes e familiares, o contato com usuários da unidade, o transporte de pacientes graves até o atendimento.

A pesquisa apontou, também, a importância da existência de normas que fundamentem o trabalho dos vigilantes em instituições de saúde, indicando limites para sua atuação a nível institucional e administrativo e, principalmente, no que concerne às interações com usuários. A carência de formação e treinamento específicos dos vigilantes foi indicada recorrentemente nas entrevistas, com menção aos desafios cotidianos na atuação na área da saúde, sobretudo no que tange ao contato com a doença, o sofrimento e a morte.

Nas tarefas que realizam nas unidades de saúde, por vezes há envolvimento dos vigilantes em situações de risco físico e/ou emocional, diante dos quais usualmente não há qualquer medida de cuidado da parte da unidade em que estão inseridos ou da empresa em que são contratados. Assim, evidencia-se uma carência de instrução para proteção de possíveis riscos, como orientações referentes à contaminação hospitalar, bem como oferta de suporte para sofrimento psíquico advindo do contato com pacientes e familiares, além da escassez de recursos em muitas unidades de saúde, passível de causar sofrimento. Portanto, os vigilantes aproximam-se do que é apontado como necessidade de atenção e suporte em relação aos profissionais de saúde. Neste sentido, trata-se do “cuidado com quem cuida”.

Este artigo abordou o trabalho realizado pelos vigilantes em unidades de saúde, no que tange à sua relação com as normas desse trabalho, a partir de entrevistas com 11 vigilantes. O material apontou a multiplicidade de tarefas realizadas e a escassez de informações recebidas na formação destes profissionais, bem como a importância de conhecimentos recebidos nas unidades de saúde em que atuam. Por fim, indicamos a relevância de uma formação adequada à atuação de vigilantes em unidades de saúde, bem como a reformulação das regras e normas do trabalho destes profissionais, de modo a atender à realidade dos contextos em que estão inseridos.22P.O.G. Cassemiro foi responsável pela concepção e delineamento da pesquisa; coleta e análise dos dados; redação do artigo. R.A. Menezes foi responsável pela concepção e orientação no delineamento da pesquisa e na análise dos dados; redação e revisão do artigo; e orientou a pesquisa de mestrado que deu origem ao artigo.

Referências

  • BARBOSA, L. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2005.
  • BOTH, E. Família e rede social. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
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    » http://www.pf.gov.br/servicos/seguranca-privada/legislacao-normas-e-orientacoes/portarias/Portaria%20n3233.12.DG-DPF.pdf
  • CARAPINHEIRO, G. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento, 1993.
  • DaMATTA, R. Você sabe com quem está falando? In: DaMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, p.181- 248,1997.
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  • 1
    Para preservar o anonimato, os entrevistados são referidos como E1, E2, E3 e assim por diante.
  • 2
    P.O.G. Cassemiro foi responsável pela concepção e delineamento da pesquisa; coleta e análise dos dados; redação do artigo. R.A. Menezes foi responsável pela concepção e orientação no delineamento da pesquisa e na análise dos dados; redação e revisão do artigo; e orientou a pesquisa de mestrado que deu origem ao artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2018
  • Revisado
    10 Fev 2019
  • Aceito
    15 Fev 2019
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