O capitalismo não tem a menor consideração pela saúde ou duração da vida do trabalhador, a não ser quando a sociedade o força a respeitá-la.
Marx, K. O capital, v. 1.
Introdução
Há poucos meses, o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS) era bem mais incerto do que agora. A manutenção da PEC-95, que estabelece um teto de gastos para a Saúde, mantinha-se incontestável no mainstream econômico e midiático brasileiro. A extinção do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde, em 2017, e o projeto de desfinanciamento da Atenção Primária à Saúde, aprovado em 2019, compunham a fraseologia rotineira das infindáveis “reformas de Estado” rumo à “modernidade”. A desconstitucionalização dos gastos em saúde, parte do plano de Paulo Guedes para a construção de um novo pacto federativo, comparecia em suas negociações prioritárias com o Congresso Nacional.
Com a dramática pandemia do novo coronavírus, não se pode dizer, por certo, que a voracidade desse arranjo neoliberal tenha encontrado seu ocaso. Definitivamente, não se trata disso. Nossa assertiva consiste em salientar que a amplitude dos impactos sociais decorrentes da Covid-19 cria um fato político novo. Precisamente, a pandemia reposiciona a saúde pública como elemento central da narrativa que desestabiliza o ethos neoliberal, que, até aqui, deu direção à conjuntura sem nenhum contraponto político consistente. Se estamos certos, a desestabilização política a que nos referimos, organizada em torno do apelo elementar à vida, tem como efeito imediato e mais visível uma inédita legitimação pública do SUS. Considerando essa abertura histórica, impõe-se o desafio de avaliar as possibilidades dos movimentos pela Reforma Sanitária disputarem com mais centralidade o rumo das lutas políticas pela democracia brasileira.
Partindo desse diagnóstico, apontaremos neste texto que os impactos sociais da pandemia reposicionam as mais variadas questões afetas ao universo da economia e da política, que, em alguma medida, passaram a prestar contas ao domínio do direito público à saúde. Nessa nova “pedagogia cívica”, no sentido do republicanismo humanista maquiaveliano, o ensinamento é que sem o SUS não se supera a crise causada pela pandemia do novo coronavírus.
Apontar a expansão da erupção de uma sensibilidade paradigmática, que coloca o direito à saúde como interesse público central, como princípio regulador da ordem democrática brasileira, não implica a certeza de qual SUS será valorizado no momento pós-pandemia. Como todo fenômeno histórico, seu sentido e direção geral se encontram expostos às disputas no plano da política. Assim, o estudo das possibilidades deve vir associado ao reconhecimento dos limites e constrangimentos que também se impõem.
Como se sabe, é possível elencar pelos menos mais duas versões que disputam o entendimento do sistema de saúde brasileiro: aquela reconhecida como cobertura universal de saúde, e o modelo denominado “SUS para os pobres”. Enquanto na primeira versão o núcleo de proposições consiste em aprofundar o hibridismo público e privado de interesses como lógica organizadora do sistema, o segundo projeto se inspira na experiência norte-americana, que vislumbra o fim da universalidade e a focalização da assistência pública como ponto de sustentação.
Considerando esses desafios, em um primeiro momento, apresentaremos um breve balanço das ações tomadas até aqui pelo Governo Federal, que, como veremos, aprofunda o passivo das desigualdades interseccionais existente no Brasil. Em seguida, analisamos como a conjuntura da pandemia requalifica o debate das escolhas e ações políticas, uma vez que vistas a partir da perspectiva da saúde pública e do direito à vida. Por fim, encerramos nossa reflexão indicando que a pluralidade das lutas e segmentos sociais que se organizam em torno da Saúde Coletiva têm diante de si o ascenso inédito de uma consciência pública sanitária, abrindo condições para que um SUS radicalmente republicano, público e universal, se coloque com mais centralidade no debate político nacional.
Os movimentos de força e consenso do neoliberalismo
O SUS está entre as principais políticas públicas de alcance redistributivo nacional que brotaram das lutas pela redemocratização brasileira. Dos quilombolas às populações ribeirinhas, nenhuma política estatal foi mais longe no território brasileiro. Elucida essa condição a didática reivindicação dos povos indígenas na Câmara dos Deputados, em abril de 2019, pelo cumprimento da determinação constitucional do atendimento de saúde básica aos povos indígenas. O controle social da saúde, presente em 5.417 municípios brasileiros, vem contribuindo para a transformação do desenvolvimento regional, reduzindo desigualdades e dinamizando a economia.
O reconhecimento desses méritos, por óbvio, não nos autoriza a dizer que a saúde como “direito de todos e dever do Estado” tenha se firmado como fato no plano nacional. E, talvez, isso seja mesmo por não ter conseguido aglutinar em torno de si uma base estável de movimentos sociais e, menos ainda, fazer-se núcleo orgânico do programa político dos partidos democráticos e populares do país. As realizações do SUS, mundialmente reconhecidas, sempre tiveram um déficit de reconhecimento do seu valor no plano nacional. Por anos, a preocupação com a saúde, constando como problema número um para os brasileiros, desagua no desejo de consumo dos seguros de saúde. Com os impactos sociais da pandemia, essa preocupação, elevada ao paroxismo, tem o efeito inverso de colocar o SUS no primeiro plano das esperanças nacionais. Essa é uma dimensão importante dos deslocamentos da atual conjuntura.
Considerando as últimas três décadas, possui inegável ineditismo o fato de que o agravamento diário das condições de resposta do SUS à pandemia não convertam o setor privado em seu substituto desejável. Diferentemente da conjuntura pré-pandemia, o drama crescente da estrutura da assistência pública, expressos desde a ausência de leitos UTI às condições precarizadas do trabalho heroico dos seus servidores, expõe ainda mais ao debate público os fundamentos dogmáticos da política de austeridade fiscal. Nesse sentido, as necessidades da saúde pública, e do SUS por derivação, se voltam como ativo político contrário ao pacto liberal conservador que sustenta a coalizão política que governa o país desde 2016.
É certo que a desventura do Brasil com o neoliberalismo tem seus capítulos anteriores, como atestam a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, a liberação de Organizações Sociais para realizar atividades-fim do Estado e a aprovação da Lei nº 13.097/15, que autoriza o capital estrangeiro a investir no setor privado da saúde nacional. Mas com o golpe de 2016, entramos decisivamente em outro tempo, de franca “apartação social fortemente vincada aos valores mercantis, de legitimação das desigualdades e de culturas do ódio”. Um tempo em que foram “alterados os próprios procedimentos de funcionamento da democracia [...] em prol de uma autarquização do exercício do poder.” (GUIMARÃES; SANTOS, 2019GUIMARÃES, J. R.; SANTOS, R. T. Em busca do tempo perdido: anotações sobre os determinantes políticos da crise do SUS. Saúde em Debate, v.43, n. esp, p. 219-233, dez. 2019., p. 223). Com a pandemia do novo coronavírus, é essa estrutura que se encontra em desestabilização, no Brasil e no plano internacional.
No desencontro entre o direito à vida e as diretrizes neoliberais, o presidente Jair Bolsonaro vem deixando clara a possibilidade de rompimento definitivo da convalescente democracia brasileira. Erráticas e desencontradas, as ações do governo têm se mostrado profundamente desorganizadas, deixando transparente sua incapacidade de planejar respostas públicas às demandas coletivas da conjuntura. Nos casos em que se curva às pressões externas, as medidas que assumem relevância são acompanhadas pela insuficiência e o atraso.
O marco zero de suas ações voltadas à pandemia do novo coronavírus se deu com a Lei nº 13.979/20, de 6 de fevereiro, reconhecendo a calamidade pública no plano nacional. A partir daí, suas principais medidas primaram pelo remanejamento e antecipação de orçamentos (MP nº 924; Portaria nº 395), a concessão de recursos bilionários às operadoras de saúde, renúncias de arrecadação como ajuda a empresas, e o socorro aos estados e municípios (PLC n° 149/19), com vistas à recomposição das perdas na arrecadação de ICMS e ISS. Somente com a chamada “PEC do orçamento de guerra” - que propõe um regime fiscal, financeiro e de contratação pública paralelo à gestão corrente do planejamento federal -, abriu-se um questionamento efetivo ao dogma neoliberal, suspendendo, pela primeira vez, a chamada “regra de ouro” que impede o Governo Federal de se financiar para bancar gastos correntes. Em sentido político, é preciso frisar que essa regra vem justificando argumentos para o fim da estabilidade no emprego público, a flexibilização dos gastos constitucionais em saúde e educação, além de ter constado como fundamento técnico da narrativa de desmonte da previdência social e da destituição da presidenta Dilma Rousseff.
Outro revés que o direito à saúde impõe ao dogma neoliberal, é a recente prorrogação do prazo de transição ao novo financiamento da Atenção Primária em Saúde (Portaria nº 29). Como indicaram muitos estudos da Saúde Coletiva, o modelo de financiamento previsto impacta fortemente a capacidade da APS enquanto coordenadora do cuidado e ordenadora das redes de atenção à saúde dos municípios. A bem da verdade, esse adiamento não deixa de ser a desmoralização do falacioso argumento de que a captação ponderada elevaria os recursos da APS. Nesse descompasso, mantém-se, não obstante, o curso de implantação da chamada ADAPS, que abre condições para a franca penetração do setor privado na Atenção Básica (GIOVANELLA et al., 2019GIOVANELLA, L. et al. Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde? Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 10, 2019.).
Considerar as fissuras no ethos neoliberal não significa minorar o entendimento de que o tempo continua ditado pelo seu ritmo. A dicotomia entre a vida e a economia colocada por Bolsonaro não deixa mesmo de ser a explicitação correta dos fundamentos do neoliberalismo que ainda se colocam na proa da conjuntura. Sob a repulsa internacional e de costas para a maioria dos brasileiros, Bolsonaro seguiu, nos meses de março e abril, tendo a morte como cálculo político e econômico, insistindo para que milhares de trabalhadores retomassem suas rotinas de trabalho.
A busca pela reprodução do lucro, tendo a vida sob ameaça constante tornam ainda mais explícita a dinâmica das desigualdades no Brasil. O deslocamento aqui é que a exclusão cotidianamente vivenciada por milhões de brasileiros - rotinizadas nas condições de trabalho e moradia, no transporte e no acesso à alimentação e higiene - ganhou uma dimensão nova ao transcender o custo econômico e tornar-se um problema de saúde pública.
Medidas como a “MP da Liberdade Econômica” e a chamada “Carteira de contrato verde e amarela”22Contrariando as intenções do governo e das principais entidades patronais do país, essa reforma trabalhista foi revogada no senado no dia 20 de abril de 2020. assumem o sentido de lançar milhares de brasileiros em condições ainda mais precárias de subsistência nesse contexto. Em sintonia direta com o espírito das transformações iniciadas no governo Michel Temer, como a Lei da “terceirização irrestrita” e o estabelecimento do “negociado sobre o legislado”, o que se tem de concreto é a completa desconfiguração do sistema de relações de trabalho do país. Considerando a realidade laboral brasileira, salta aos olhos o sentido racista e patriarcal dessas mudanças no regime de contratação do trabalho formal assalariado.
Nas pesquisas do IBGE (2019), encontra-se documentado que nos postos de trabalho mais precarizados - com vínculos intermitente e temporário -, pretos e pardos compõem ampla maioria. Na população ocupada, as mulheres pretas e pardas chegam a receber, em média, 44,4% do que obtém um homem branco com o seu trabalho. Seguindo esse sentido, como os cargos gerenciais estão predominantemente concentrados entre brancos (68,9%), a desvalorização dos laços de trabalho estabelecidos pela CLT atinge em cheio e com mais intensidade um segmento específico da sociedade brasileira (IBGE, 2019).
Insensível a essa condição, o governo adotou ações em sequência, favorecendo o domínio patronal no processo produtivo, suspendendo benefícios adquiridos em negociações coletivas, e permitindo acordos entre patrão e empregados, às expensas da representação sindical. A desconfiguração do sistema brasileiro de relações de trabalho é, sem dúvida, uma base forte do neoliberalismo que continua firme mesmo após a pandemia. O empobrecimento acelerado da classe trabalhadora e os elevados níveis de desemprego tornam praticamente impossível para esses segmentos adotarem as medidas de isolamento social necessárias neste momento de evolução da pandemia no país, caso o governo não os subsidie fortemente. Em sentido contrário, o que se tem observado é que essa condição de vulnerabilidade se torna um álibi para o governo acelerar decisões na linha do “ou se tem direitos ou se tem emprego”.
Em 2020, os trabalhadores sem carteira de trabalho já correspondem a 41% do mercado de trabalho, aproximadamente 38 milhões de pessoas, em sua maioria, pretos e pardos (47,3%). Nas regiões Norte e Nordeste, o percentual de trabalhadores em situação de subemprego chega 60% dos ocupados, evidenciando que o desequilíbrio regional é outro componente que reforça a exclusão estrutural de raça e gênero no Brasil. Em nível nacional, “apesar de serem pouco mais da metade da força de trabalho (54,9%)”, pretos e pardos formavam, em 2018, cerca de dois terços dos desocupados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%) (IBGE, 2019, p. 2). A chamada “Lei do coronavoucher” (PL nº 13.982) tem a pretensão de atender a essa realidade - microempreendedores, trabalhadores informais, autônomos e famílias de baixa renda. Essa renda básica emergencial tem a expectativa de alcançar 75 milhões de brasileiros. Até o dia 17 de abril, somente 16,6 milhões haviam, de fato, acessado o benefício. Os cadastros rejeitados devem-se, sobretudo, aos problemas na regularização no CPF. A esse respeito, é revelador que empresas em situação irregular com suas obrigações fiscais e trabalhistas não tenham sido desautorizadas de participar de processos públicos de compra de mercadorias ligadas à área da saúde (MP nº 296). Claramente, na modernidade neoliberal, o pressuposto da dignidade e idoneidade pública não pertence ao trabalhador, mas a quem domina o processo de compra do trabalho.
O impacto da Covid-19 sobre as populações periféricas é uma epopeia que já se torna realidade em expansão. Até o dia 10 de abril, as notificações informavam que, apesar de serem apenas 23,1% dos hospitalizados, o número de mortos entre pretos e pardos somavam 32,8% do total (MENA, 2020MENA, F. Entre casos identificados, covid-19 se mostra mais mortífera entre negros no Brasil, apontam dados. Folha de São Paulo (online). 10 de abr. 2020.). Esse ritmo desproporcional não apenas é convergente com o movimento de expansão da pandemia rumo às periferias dos grandes centros urbanos do país, como se encontra associado ao comportamento de outros indicadores de saúde da população não branca para doenças já conhecidas. Ante esse fato, estudos têm-se preocupado se a Covid-19 e sua associação a alterações imunológicas e comorbidades podem ganhar uma dinâmica própria em sociedades largamente desiguais como o Brasil, que carecem do fornecimento de água e outros insumos básicos de cidadania. Como alerta o Coletivo Juntos Pelo Complexo do Alemão (2020), se as “subnotificações da Covid-19 são uma realidade no país, será menos notificado ainda nas favelas, sobretudo quando explodir o contágio”.
Com a pandemia, eleva-se a exposição das desigualdades sociais brasileiras. No entanto, à luz das exigências do direito público à saúde, essas rotinas da exclusão são requalificadas, deslocando o enquadramento costumeiro das abordagens. Nesse espaço que se abre, um confronto direto, distinto e mais aprofundado com a narrativa que subordina as questões sociais ao custo fiscal, coloca-se em cena.
Conclusão
O direito à vida é hoje o maior ativo político, se não o único, que pode emparedar o ritual macabro desempenhado por Bolsonaro. No momento em que escrevo, 86% dos brasileiros são favoráveis às medidas de quarentena. Governadores, prefeitos e o Congresso Nacional elevam sua aprovação por convergirem com tal princípio. Bússola da conjuntura, o humanismo radical da saúde pública está sendo, mais uma vez, instado a dar direção histórica aos desafios nacionais.
Em seu nascimento, o SUS já se colocou na contracorrente do movimento neoliberal que estava em expansão no plano internacional. A crítica severa à ousadia de se buscar na periferia do capitalismo a realização de um sistema de saúde universal, gratuito, integral e participativo, não impediu, no entanto, que o pensamento sanitarista contribuísse para a formação do Estado nacional. Como apontam historiadores da Casa Oswaldo Cruz, na Primeira República, a formação da identidade nacional e do próprio Estado também passara por um forte movimento público de intelectuais da saúde que disputavam “caminhos para o saneamento”. Considerando essa narrativa ampliada, este talvez possa ser considerado o terceiro momento de grande centralidade da saúde pública na vida nacional. Se no nascimento do SUS houve o esforço de vincular a saúde às políticas econômicas e sociais sob o lema da democracia, com a pandemia do novo coronavírus, é o debate da economia política que busca na agenda do direito à saúde o percurso a ser seguido. Procuramos identificar aqui essa requalificação conjuntural do debate público.
Como linguagem política de contraponto ao neoliberalismo, encontram-se na tradição sanitária reflexões plenas de sentido para o enfrentamento dos problemas vigentes. Nesse campo de estudos guiados pelo interesse público da saúde já foram localizados, por exemplo, os efeitos da regressividade tributária brasileira, a importância da soberania da indústria nacional e os caminhos mais consistentes para um pacto federativo que supere os desequilíbrios regionais de forma democrática, com densa participação comunitária.
Nessa conjuntura, as variadas demandas dos movimentos sociais tornam-se dramaticamente reconhecidas como agendas de saúde. São muitos os que lutam por moradia, por acesso e demarcação a terras, por alimentos saudáveis, por uma vida livre de opressões de raça, gênero, sexualidades, e pela dignidade do seu trabalho. Por ângulos variados e laços de interseccionalidade todas essas agendas podem ser consideradas dimensões políticas da luta pelos direitos públicos da saúde, que, no entanto, se encontram fragmentados.
Com a pandemia virando o seu leme para as periferias brasileiras, pode-se dizer que a tradição sanitária está sendo desafiada a ampliar seu diálogo com as carências do povo brasileiro. Com apontamos acima, as desigualdades estruturais que se pode verificar nas condições de saúde a partir da clivagem raça/cor e gênero no Brasil se associam diretamente às condições de classe e vínculos estabelecidos no mercado de trabalho. O direito à fala e audiência reivindicado pelos moradores das periferias, atores antigos da reforma sanitária, atualizam o ensinamento de que a crítica aos determinantes políticos da exclusão, reeditada na conjuntura, não pode contornar a soberania popular.
Como procuramos discutir neste ensaio, o impacto da pandemia evidencia que o pacto político formado em torno do neoliberalismo negocia o direito à vida como meio frívolo de sua reprodução. São tragadas para esse entendimento dramático a fragilização das carreiras públicas, as reformas trabalhistas, a ausência de assistência nas periferias, o desinvestimento na indústria nacional, a EC 95 e a reiterada cultura dos ajustes fiscais. O direito à vida deixa essa linguagem que se serve de pulsões de morte com sérias dificuldades de se legitimar nessa conjuntura.
A consciência desse deslocamento, no entanto, não implica acreditar no ocaso do ethos neoliberal. Seus lugares de força política, sabemos, vão para além do bolsonarismo torpe. Além do seu lastro internacional, constituem a narrativa das principais empresas que controlam a comunicação no Brasil. É a identidade que articula segmentos expressivos de empresários e banqueiros a partidos políticos com forte representação no Congresso Nacional.
Tudo isso considerado, não se deve esquecer que a terra se move. E, se estamos certos em identificar o direito público à saúde como premissa para as lutas de resistência da própria democracia, a narrativa dos movimentos da Reforma Sanitária Brasileira são centrais. Nesse caminho, se colocam a fragmentação das várias agendas e a dificuldade histórica dos principais partidos comprometidos com a democracia em tomar o sanitarismo como programa orgânico central de suas ações. Esse também pode ser um reposicionamento ensejado pela conjuntura.
Referências
- INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, v. 41, 2019.
- GIOVANELLA, L. et al. Médicos pelo Brasil: caminho para a privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde? Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 10, 2019.
- GUIMARÃES, J. R.; SANTOS, R. T. Em busca do tempo perdido: anotações sobre os determinantes políticos da crise do SUS. Saúde em Debate, v.43, n. esp, p. 219-233, dez. 2019.
- MENA, F. Entre casos identificados, covid-19 se mostra mais mortífera entre negros no Brasil, apontam dados. Folha de São Paulo (online). 10 de abr. 2020.
- COLETIVO JUNTOS PELO ALEMÃO. Coronavírus na visão dos moradores de favelas. Dicionário Marielle Franco. Rio de Janeiro, 2020.
- 2Contrariando as intenções do governo e das principais entidades patronais do país, essa reforma trabalhista foi revogada no senado no dia 20 de abril de 2020.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
24 Jul 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
22 Abr 2020 - Aceito
25 Abr 2020 - Revisado
27 Abr 2020