Uma leitura crítica sobre saúde-doença e suas noções

A critical reading on health-disease and its notions

Emília Carvalho Leitão Biato Luís Henrique da Costa Leão Silas Borges Monteiro Sobre os autores

Resumo

Este texto põe em crítica algumas noções e elementos teóricos circulantes relativos ao conceito de saúde, tomando-os como instáveis e polissêmicos, abertos a alternativas do pensamento. Tomamos noções de saúde - em articulação com as noções de doença e cuidado - em ocorrência nos escritos atuais no campo da Saúde, especialmente da Saúde Coletiva, tendo como ensejo um movimento de leitura que contribua para ampliação dos modos de pensar sobre o tema. Elegemos cinco pontos, apresentadas como duplos, e não como dualismos, binarismos ou dilemas: generalizações e singularidades; posse e escape; medicalização e moralização; significante e significado; e limites e margens. Temos em vista percebê-los em sua potência de abertura, ampliação e proposição de mudanças, em movimentos caros ao debate acerca da saúde, no sentido de entendê-la fora de padrões rígidos estabelecidos por bases científicas unívocas. Consideramos que esse exercício pode contribuir para ampliar a noção de saúde que permeia as práticas profissionais de atenção à população.

Palavras-chave:
saúde; margens; singularidade; duplo

Abstract

This paper criticizes some notions and circulating theoretical elements related to the concept of health, taking them as unstable and polysemic. It is an exercise of thought experiment using notions of health - along with notions of disease and care - as they appear in Health writings, to contribute to broader way of thinking about this issue. Five points were elected, presented as doubles - not as dualisms, binarism or dilemmas - as follows: generalizations and singularities; possession and escape; medicalization and moralization; significant and meanings; and limits and margins. This study aims to perceive these notions in their possibilities of expansion and change, in a movement that is productive to the debates about health, far from rigid standards established by univocal scientific bases. We understand that this exercise can contribute to broaden the notion of health that permeates health professional attention to population.

Keywords:
health; margins; singularity; double

Introdução

Este texto põe em crítica algumas noções e elementos teóricos circulantes relativos ao conceito de saúde, tomando-os como instáveis e polissêmicos, abertos às experimentações do pensamento, ao modo de Nietzsche quando escreve: “quanto mais olhos, diferentes olhos soubermos utilizar para uma coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela” (NIETZSCHE, 2009, p. 177). Considerando a diversidade de teorias subjacentes à pluralidade deste conceito em exame - cuja história acompanha as continuidades e descontinuidades da formação do pensamento moderno ocidental e sua mais recente forma científica -, buscamos experimentar modos de pensar os valores de tal conceito a golpe de martelo aos dogmatismos e dualismos, com base particularmente em elementos do pensamento de Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida e Roland Barthes.

Ao serem observados os movimentos do campo de saber da Saúde Coletiva, pode-se notar um esforço por pensar e constituir estratégias de atenção à saúde que não sejam simplesmente referenciadas pelo modelo teórico-prático biomédico. Entende-se que sua superação pode garantir, de forma mais efetiva, a integralidade da atenção à saúde da nossa população, conforme os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil (CECCIM; FEUERWERKER, 2004CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 20, n. 5, p. 1400-1410, 2004.).

As discussões no campo da Saúde Coletiva têm incluído elementos socioculturais como de impacto direto sobre as condições de saúde-doença em territórios político-sociais. No entanto, não parece ser possível pensar em aspectos sociais, culturais e políticos sem considerar processos singulares que necessariamente os permeiam. Como discute Herzlich (2004), a doença é uma experiência tão singular quanto pública. Buscando contemplar todos aspectos da saúde, há um esforço por tornar seu conceito mais abrangente, como notado no debate sobre a clínica ampliada, os modos de acolhimento e participação popular nos serviços e na gestão da saúde, no valor à escuta qualificada e à humanização dos procedimentos de atenção (CUNHA, 2007CUNHA, G. T. A construção da clínica ampliada na atenção básica. São Paulo: Hucitec, 2007.). Há, portanto, nas discussões sobre saúde, um notável empenho teórico-prático por aproximar, corresponsabilizar, oferecer referência e segurança, aconchegar, cuidar, tanto da pessoa (singular), quanto da população (plural).

Torna-se relevante que este empenho seja fortalecido e chegue a abarcar novas bases teóricas, no sentido de fazer frente ao modelo biomédico, que ainda “parece enrijecer concepções, condutas e medidas tomadas em saúde” (BIATO, 2015BIATO, E. C. L. Oficinas de Escrileituras: possibilidades de transcriação em práticas de saúde, educação e filosofia. 177 f. (Tese) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2015.). Esse modelo afasta profissionais e usuários, enfatiza aspectos curativos, as especialidades e acaba por fragilizar a promoção da saúde da população (NUNES, 2000; CASTELLANOS et al., 2014CASTELLANOS, E. P.; LOYOLA, M. A.; IRIART, J. A. B. Ciências sociais em saúde coletiva. In: PAIM, J.; ALMEIDA-FILHO, N. (Orgs.). Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014, p. 567-584.).

Neste texto, de caráter ensaístico, colocamo-nos a buscar aproximações diversas em relação ao tema saúde, por entender que esse conceito encontra-se implicado nos processos de oferecer atenção à saúde, desde os diagnósticos e levantamentos epidemiológicos, até a atenção clínica e a implementação de políticas públicas. Para tanto, tomamos noções de saúde em ocorrência nos escritos circulantes no campo da Saúde, especialmente da Saúde Coletiva, tendo, como ensejo, um movimento de leitura que contribua para ampliação dos modos de pensar sobre o tema. Nesse sentido, este ensaio se caracteriza pelo esforço de operar fora da lógica das identidades e dos absolutos e em afastamento em relação ao pensamento biomédico.

O estudo ousa buscar uma construção que não seja “fechada, dedutiva ou indutiva” (ADORNO, 2003ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I. Tradução Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003, p. 15-45., p. 25) e se opõe, especialmente,

[...] contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este é novamente condenado ao conceito (idem).

Neste sentido, não temos a pretensão de manipular todas as referências e noções. Elegemos cinco pontos, apresentados como duplos, e não como dualismos, binarismos ou dilemas; tendo em vista percebê-los em sua potência de abertura, ampliação e proposição de mudanças, em movimentos caros ao debate acerca da saúde, no sentido de entendê-la fora do padrões rígidos estabelecidos por bases científicas unívocas. Entendemos que esse exercício pode contribuir para ampliar a noção de saúde que permeia as práticas profissionais de atenção à população.

Ponto 1: generalizações e singularidades

Muitas concepções sobre saúde tratam de médias acerca das manifestações das doenças nos organismos e de cálculos sobre a frequência e distribuição de doenças em populações, lugares e tempos específicos. No entanto, essas médias que levam a concepções generalizadas de saúde não dão conta de nos dizer sobre o que caracteriza a experiência singular. Se, por um lado, elas ajudam na construção de políticas públicas e de modelos de atenção à doença em si, por outro deixam lacunas no que se refere a responder aos desafios que se colocam a quem cuida, no sentido de proporcionar a afirmação da vida e a formação de coletivos que valorizem a diferença (CECCIM, 2005______. Réplica. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005.). Parece ser este o sentido da noção deleuziana de diferença, que se coloca contrária às generalizações, pois a diferença refere-se ao que é universalmente singular (DELEUZE; GUATTARI, 2006DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.).

Isso implica pensar a saúde também como um convite à contínua criação de si, a movimentos de tornar-se o que se é (NIETZSCHE, 1995). De forma móvel, a vida segue em modos diversos de fazê-la andar, o que torna impossível a determinação de definições estáticas do ser saudável ou doente, afinal,“no viver humano não há precisão” (CECCIM, 2008CECCIM, R. B. A difusão da dimensão cuidadora da saúde, a invenção de mundos e a comunicação do conhecimento como superfícies de contágio. Editorial. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, n. 24, p. 5, 2008., p. 5), nem possibilidade de fixações.

Trata-se do singular como um impulso do vivente de ser criador, como um instinto ao tornar-se “além do homem” (NIETZSCHE, 1995, p. 167) - aquele que cria valores para si e enfrenta os modelos de vida preestabelecidos, firma seu lugar como sede dos valores, afastando-se do instinto de rebanho (NIETZSCHE, 2011). O instinto de rebanho é um movimento de comportar-se como “igual entre iguais” (MARTON, 1990, p. 84), de forma previsível e estável. Já a diferença parece abrir a possibilidade de pertencer a um coletivo sem fixação de condutas estabelecidas. Percebemos, nesse aspecto,

[...] o esgarçamento entre o dizer do corpo individual e as generalizações. Isso, absolutamente, não significa afirmar que o homem está alheio às coletividades, aos espaços de vida, às relações sociais e às experiências culturais. Ao contrário: está inserido nestes contextos, aí imbricado; mas nem por isso é possível que se definam de modo generalizado suas vivências e as características mais íntimas da saúde de seu corpo (BIATO, 2015BIATO, E. C. L. Oficinas de Escrileituras: possibilidades de transcriação em práticas de saúde, educação e filosofia. 177 f. (Tese) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2015., p. 74).

Se tomarmos como exemplo o caso do teatrólogo francês Antonin Artaud - em seus quase dez anos de internação em manicômios, por esquizofrenia -, é possível notar traços de protocolos da atenção à saúde permeados de valores negativos e generalizantes. Artaud escreve ao Dr. Ferdière, um dos médicos que já havia cuidado dele, relatando sua dor diante do tratamento com eletrochoque:

Meu mui caro amigo,

Preciso de um grande favor seu. No que me diz respeito, é preciso terminar com as aplicações de eletrochoques já que meu organismo manifestamente não suporta e que são certamente a principal causa reveladora de meu deslocamento vertebral de agora. [Carta a Dr. Gaston Ferdière, 25 de junho de 1943] (MÈREDIEU, 2011, p. 736).

No prontuário de Artaud, há uma comunicação de Ferdière e Latrémolière (MÈREDIEU, 2011, p. 737):

[...] atacado de psicose alucinatória crônica, com manias delirantes polimorfas luxuriantes [...] a radiografia mostra uma compressão de corpos D8 e D9 […] O repouso no leito faz que cessem os fenômenos dolorosos e novas sessões são praticadas sem inconvenientes.

A experiência da dor gerada pelos eletrochoques a princípio provocaria os médicos a tomarem medidas de maior conforto, cura e alívio. No entanto, o que parece ser julgado como de maior importância é o quadro de psicose, com episódios de alucinações, delírios e manias. Isso porque a racionalidade científica não é neutra: é permeada e sustentada por juízos de valor, que são igualmente percebidos na mensagem de mãe de Euphrasie Artaud (mãe) ao médico Gaston Ferdière:

Estou muito ansiosa para saber como meu querido paciente tem suportado a aplicação da eletroterapia.

Estou muito contente de o senhor ter tomado essa decisão, pois isso prova que meu filho está mais forte, e que pode reagir mais facilmente. […] Confio muito na Eletricidade e espero que tenhamos um bom resultado (MÈREDIEU, 2011, p. 738).

A concepção de doença como algo que entra no corpo e que precisa ser dominado, em nome da garantia da cura e da manutenção da vida, ainda predomina nas Ciências Médicas. Orientam-se por controlar o mal que afeta a vida e, no processo, violentam a pessoa (como mostra a história dos tratamentos psiquiátricos), no afã de restabelecer, assim, a normalidade.

Em crítica a esse olhar, Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.) aproxima, embora não tome como equivalentes, a normalidade e a patologia, de forma alternativa ao dualismo. Parece ser mais produtivo tomar, como saúde, justamente a capacidade de normatizar a própria vida - capacidade esta que é singular. A diferença, nesse contexto, torna-se mais relevante do que a generalidade. O filósofo médico aponta para a saúde como muito além da vida confortável e adaptada em relação ao meio, pois implica a capacidade de criar, para si, novas normas a partir de novas situações. Justamente essa gestão singular é característica de um corpo que é orgânico e, ao mesmo tempo, subjetivo (CAPONI, 2009CAPONI, S. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, D. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, p. 59-81.). Nesse sentido, a polaridade dinâmica da vida - na qual os dois polos são saúde e doença - “trata-se de uma atividade normativa… e difere em cada um de nós” (p. 66).

Há, inseridas nos debates acerca do processo saúde-doença na ciência moderna, diversas abordagens acerca do risco como possibilidade de dano, como por exemplo riscos ocupacionais, ambientais e epidemiologia dos fatores de risco. Com Caponi (2009CAPONI, S. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, D. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, p. 59-81.) é possível pensar a saúde, não apenas como cuidados e prevenções, mas como o que permite, inclusive, a abertura ao risco. Tal qual a grande saúde em Nietzsche, que não permite a recusa de altos e baixos próprios à vida (BIATO; COSTA; MONTEIRO, 2017BIATO, E. C. L.; COSTA, L. B.; MONTEIRO, S. B. Pequenas e grandes saúdes: uma leitura nietzschiana. Ciênc. saúde coletiva, v. 22, n. 3, p. 965-974, 2017.).

A palavra saúde - “qualidade dos seres intactos (…) que indica solidez, firmeza, força” (ALMEIDA-FILHO, 2000ALMEIDA-FILHO, N. Qual o sentido do termo saúde? Editorial. Cad. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 300-301, abr.-jun., 2000., p. 300) - pode, assim, ganhar novo sentido, ao tomarmos “a patologia como uma dimensão nova da mesma vida: mudança que não se classifica a priori nem como mal, fraqueza e mácula, nem como bem ou força. Acontecimento.” (BIATO, 2015BIATO, E. C. L. Oficinas de Escrileituras: possibilidades de transcriação em práticas de saúde, educação e filosofia. 177 f. (Tese) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2015., p. 76). A referência posta nos valores do indivíduo pode ser acrescida aos padrões da Fisiologia e da Anatomia, tornando a percepção de saúde mais ampla, concreta e próxima da vida mesma. É uma fonte mais complexa, por dizer de funcionamentos singulares, nem sempre expressos nas médias de saúde-doença.

As formas vivas perfeitas se aproximam das formas vivas malogradas, uma vez que “este privilégio concedido ao erro nos fala claramente de um conceito de saúde, que é alheio a qualquer padronização e a qualquer determinação fixa e preestabelecida” (CAPONI, 2009CAPONI, S. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, D. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, p. 59-81., p. 65).

O cuidado à saúde que se expressa nesses termos parece se aproximar das necessidades e possibilidades da vida, mesmo com suas imprevisibilidades, uma vez que se torna aberto à vontade do outro, a suas crenças, anseios e sensibilidades. O encontro entre profissional, paciente e cuidadores/familiares parece ser capaz de fugir da ação puramente protocolar, tornando-a direcionada a um cuidado e promoção da saúde como produção compartilhada de vida, enfatizando simultaneamente aspectos coletivos e a diferença.

Ponto 2: posse e escape

Agora meu filho (portador de Alzheimer) está mais calmo, apesar de ainda estar desmemoriado. Assim eu fui me acalmando e a pressão controlou. Eu entendi que é um problema que vai e vem, quando ele fica nervoso, eu também fico, porque ele telefona muito para mim. Agora eu estou melhorando, estou mais calma (Depoimento retirado de FAVORETO; CABRAL, 2009, p. 11).

Se entendermos a saúde também por seu caráter vivencial e singular, marcada pela diferença, chegaremos a tratá-la como elemento relevante no processo de constituição de si, que oferta vivências específicas, alimentando a incessante trajetória de tornar-se, no contínuo vir a ser. Nesse sentido, a saúde como parte do movimento de constituição de si - cujo fim nunca se alcança - carrega a noção de sua provisoriedade, de que sua posse constitui-se como ficção: escorre por nossos dedos a experiência da “saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e (que) não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (OMS, 1946).

Lucrécio comenta de um absinto com bordas de mel, prescrito por médicos às crianças, para que logo recuperassem a saúde, e Demócrito destacava a conquista da harmonia e da saúde, a partir do sossego de alma e corpo (SOUZA, 1973). Mesmo antiga, a sensação de posse ainda hoje habita nossas noções de saúde, como o desejo de possuir e de ter de volta, retomar a vida do modo como já fora antes.

O trecho em destaque traz um “problema que vai e vem”. É uma impressão de que a patologia existe no momento em que “vem”, permitindo que se assuma o estado de tê-la. De modo semelhante, a afirmação “agora eu estou…” mobiliza um certo conforto, mas não consegue mudar a tragédia do que não se pode ter. Quando o filho telefona, escapam das mãos da mãe os planos, a tranquilidade. Ela se envolve em um pathos: a dor lhe chama e exige respostas. Perde-se o controle.

A doença parece fazer exigências e nos oferece, mais nitidamente, a experiência da vida que nunca se pode segurar, mesmo que a desejemos. O trecho de Jacques Derrida (1967) “la chose même se dérobe toujours” (p. 117), que é traduzida como “a coisa mesma sempre escapa” pode dizer dessa experiência. A palavra “toujours”, que em português se diz “sempre”, no caso relatado aqui poderia ser dito mais intensamente como “tous les jours”, como o que afeta a vida num dia, em outro dia e ainda em outro. Assim, por entender a ineficiência de tomar a saúde como uma coisa mesma ou uma coisa em si, é preciso romper com a noção de posse:

A saúde como coisa mesma, como força original, se esvai a cada dia, deixando a sensação de que é preciso ter saúde de outro modo, sem a pretensão de segurá-la: é preciso tomá-la em sua potência de afirmação, de instantes vitais. A saúde escapa, pois a coisa mesma sempre se furta ao olhar, porquanto o “em si” não se inscreve (BIATO, 2015BIATO, E. C. L. Oficinas de Escrileituras: possibilidades de transcriação em práticas de saúde, educação e filosofia. 177 f. (Tese) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2015., p. 77).

A compreensão da saúde como o que escapa pode ser associada à noção derridiana de rastro (DERRIDA, 2009DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Tradução: Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2009 (Estudos, 271).). Ao tratar do encontro de Moisés com Deus no Monte Sinai, Derrida diz que Deus se mostra a Moisés, ao mesmo tempo que sua face lhe é furtada. Deus se expõe e se esquiva ao mesmo tempo. Moisés ocupa um lugar atrás de uma pedra, consegue estar em sua presença, ser coberto por sua mão, mas só vê o rastro da passagem de Deus. A rocha tem porosidades que permitem acesso a rastros da sua glória, que imediatamente lhe escapam.

A cada dia, a saúde habita o mesmo corpo da doença e escapa. Parece ser porosa a relação entre esses dois estados, que se adicionam e não se excluem, nem mesmo criam um terceiro termo na combinação, ao que podemos chamar de “margem” (DERRIDA, 1991). Se a saúde é perdida, deixa rastros, já que o corpo cria modos de lidar com a doença e essa capacidade de criação seria, justamente, a medida necessária ao que se chama “saudável”. Quando o corpo se restabelece, a doença também deixa nele rastros, uma vez que as vivências de adoecer potencialmente alimentam forças e constituem subjetividades, não sendo possível o retorno à condição anterior. Portanto, há múltiplos sentidos a serem atribuídos a cada circunstância vivida, sem haver pureza e nem manutenção do estado em nenhuma delas.

Ponto 3: medicalização e moralização

De modo diverso das sensações singulares de dor e prazer - que coexistem no mesmo corpo -, parece que as noções de saúde que definem a condução das ações nos serviços têm, sistematicamente, se enviesado por padronizações firmadas na soberania do saber científico e em suas verdades.

A medicalização nas sociedades ocidentais parece vir ganhando forças aliadas à noção de verdades absolutas. Este fenômeno cresce desde meados dos séculos XVII e XVIII, quando a saúde se tornou questão de ordem sociopolítica. Os Estados estabelecem aliança com a Medicina para evitar as ausências de operários em seus postos de trabalho e garantir a manutenção da produção na Europa do contexto da Revolução Industrial. A saúde passa a ser assunto de interesse público e político, firmando ações disciplinares, de normatização da vida e de controle dos estilos de vida das pessoas e comunidades (CASTELLANOS et al., 2014CASTELLANOS, E. P.; LOYOLA, M. A.; IRIART, J. A. B. Ciências sociais em saúde coletiva. In: PAIM, J.; ALMEIDA-FILHO, N. (Orgs.). Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014, p. 567-584.).

No esteio da medicalização, as Ciências da Saúde e suas práticas se desenvolvem em sistematização e formalização, profissionalização e tecnificação. Inicialmente, as recomendações para se viver com saúde vincularam-se ao aumento da intensidade no uso de medicamentos, bem como do valor atribuído à indústria farmacêutica. Em seguida, essa lógica chega a atingir os modos de conceber a alimentação e as atividades físicas, de forma até mesmo imperativa.

Um exemplo de prática medicalizadora é discutido por Ferreira (2010), que aponta a existência de um vínculo, na contemporaneidade, entre o que se nomeia “saúde” e os ideais de corpos perfeitos. Para alcançar as formas físicas modelos, as performances corporais idealizadas, o prolongamento da juventude, etc. - ideais das novas regras de sociabilidade emergentes na relação Capital, Medicina e Biotecnologias - ocorre um aumento da disciplina e das práticas de adestramento dos corpos, que Ortega (2005) chama de “bio-ascese”.

O autor notou um deslocamento das práticas ascéticas greco-romanas antigas, em que o sentido de prática de liberdade, resistência cultural e transcendência, outrora dominante, cede lugar à bio-ascese contemporânea, enquanto conjunto de práticas apolíticas e individualistas e de caráter assujeitador e disciplinador do corpo. Nelas, as performances corporais medidas por novas regras higiênicas e seus critérios de mérito-reconhecimento formam novos modelos ideais de sujeito, em um processo de subjetivação e construção de bio-identidades como modos de existência conformistas. Nota-se, ainda, que o modelo biomédico, que dá sustentação a essa contemporânea obsessão pelo corpo perfeito, gera, por outro lado, os estereótipos dos corpos desviantes e uma nova forma de moralização e definição de “bons” e “maus”.

Ainda para Ortega (2005), a pessoa adoecida ou mesmo em processo de envelhecimento, por exemplo, é interpretada a partir de bases morais pelas quais o olhar censurador do outro indica que está em jogo uma interiorização do risco e responsabilização exclusiva do indivíduo pelo seu adoecimento, considerado resultado de irresponsabilidade e fracasso pessoal. Assim se constrói a figura dos novos desviantes: aqueles que não cuidam de si, pois corpos fora desse padrão e/ou adoecidos seriam tomados como resultados de falha de caráter, tornando-se, portanto, objeto de repulsa moral.

Essa linguagem, que permeia práticas sociais, cria processos de subjetivação nos quais os indivíduos se submetem a uma perene autovigilância e autoperitagem:

[...] as modernas asceses corporais, as bio-asceses, reproduzem no foco subjetivo as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção das identidades pessoais, das bio-identidades. Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna (ORTEGA, 2005, p. 156).

Nas formas contemporâneas de ascese, o Helthism é emblemática da medicalização social como expressão da face de moralidade da saúde: o fitness, as dietas e a busca de incessante autoaperfeiçoamento também são formas soteriológicas (doutrinas da salvação) contemporâneas ligadas à emergência de novas expressões do poder pastoral: os pastores do corpo (ROSE, 2013), os gurus do Helthism.

Ao tomar as pessoas por seus desvios que se desdobram em compaixão e culpa, o processo de medicalização percorre nossa sociedade, moldando concepções de saúde que permeiam a formação e as práticas institucionais, em movimentos moralizantes que tendem a desvanecer a noção do sofrimento como um bem - na medida em que os humanos criam, inventam e insistem em lutar contra aquilo que lhes é contrário (BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2011BRANT, L. C.; MINAYO-GOMEZ, C. A temática do sofrimento nos estudos sobre trabalho e saúde. In: MINAYO-GOMEZ, C.; MACHADO, J.; PENA, P.(Orgs.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011, p. 385-408.). Essa inventividade seria uma marca da Grande Saúde, que transvalora os valores do rebanho, firmando-se numa moral nobre, capaz de criar modos de viver próprios (BIATO; COSTA; MONTEIRO, 2017BIATO, E. C. L.; COSTA, L. B.; MONTEIRO, S. B. Pequenas e grandes saúdes: uma leitura nietzschiana. Ciênc. saúde coletiva, v. 22, n. 3, p. 965-974, 2017.). Afinal, “altos e baixos são faces de uma mesma vida, ao que a doença se acresce à saúde e constituem elementos implicados na constituição de estilos de individuação” (p. 972).

O conceito de saúde, da forma como foi cientificamente constituído, tornou-se excessivamente biológico, ao que deixamos escapar vários potenciais, rigor e habilidade para lidarmos com a vida, que inclui altos e baixos, frustrações, desânimos e enfraquecimentos.

Perdemos o potencial, a competência e a segurança para enfrentarmos grande parte das frustrações, sofrimentos, tristezas, adoecimentos mais ou menos passageiros […]. Tornamo-nos menos exuberantes em saúde do corpo…mais pobres em saúde, mais dependentes de especialistas, menos livres (TESSER, 2009, p. 13).

Convém ainda dizer que essa medicalização e moralização contemporânea se retroalimentam, mas não sem formas de resistência, como bem nos lembram Brown e Zavestoski (2004BROWN, P.; ZAVESTOSKI, S. Social movements in health: an introduction. Sociol Health Illness, v. 26, n. 6, p. 679-694, 2004.), ao observarem os contrapontos políticos e culturais nos quais a saúde/doença mobilizam ações coletivas que põem em questão o domínio da expertise médica frente ao saber popular e à tecnocracia no âmbito das políticas sociais e na cultura.

Ponto 4: sentidos da saúde

Seguindo essa reflexão crítica - que toma por pressuposto a importância da multiplicidade de conceitos acerca da saúde e do reconhecimento de que ainda há predominância de saberes e práticas biomédicas nesse campo de conhecimento - faz-se a experimentação do conceito usado por Roland Barthes: amphibologie, publicado em 1975. Barthes (2003) emprega este termo para dizer de palavras que são “preciosamente ambíguas” (p. 86), palavras que se despregam da obrigação de significar o que se espera delas. E haveria razão para tal deslocamento, qual seja, trazer um termo da crítica literária a uma crítica sanitária? Esse movimento funcionou com a filosofia estruturalista e pós-estruturalista.

Ao apostarmos no conceito de anfibologia, em quais circunstâncias seria possível falar e operar com este conceito? Esse parece ser um bom ponto. Ao partirmos de Barthes, temos um bom começo de enunciação dessa ideia. Por outro lado, parece que Derrida amplia o perímetro conceitual colocado por Barthes, em termos como aporia ou na noção de jogo. Barthes começa um importante trabalho ao que foi chamado, posteriormente, de pós-estruturalismo, pois levou ao limite a força estruturalista, principalmente contra ela mesma. As primeiras corrosões da lógica significante-significado, ao estrito estilo saussuriano, vem da caneta de Roland Barthes. Assim, quando Barthes começa a encontrar não apenas as ambiguidades das elaborações dos signos, mas a impossibilidade de obter estabilidade do par significante-significado, a potência de revisão do modelo consagrado no pensamento francês começa a ser refeito.

Saussure estrutura os pares da linguagem em significante-significado, ao que Barthes, também um estruturalista, começa a forçar os limites desse solo semântico. Contudo, talvez seja em Derrida que encontraremos a dissolução das margens desse campo.

Com respeito ao termo “anfibologia”, Barthes (2003BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.) escreve, à luz de Saussure, que o significante terá significados ambíguos, por si, carecendo de uma textura que acolha o significante a fim de dar-lhe significado: a transformação do significado dependerá do solo onde o significante se colocará. O enfraquecimento do rompimento produzido pelo contexto vem de uma espécie de saudade platônica que procura uma outra parte de si; faz isso ao dizer que um significado pisca para o outro, como se soubessem da vida significadora que o signo tem em múltiplos contextos.

Ao tratar dos pares clássicos da linguagem saussuriana, Derrida (2005) escolhe seguir na trilha da anfibologia de maneira, nos parece, mais radical; o faz com termos como pharmakon, palavra que concentra níveis altos de ambiguidade. Com certo risco, pode-se dizer que o pharmakon é a desconstrução operada na relação significante-significado. A desconstrução, seminal em lidar com este par, cresce a ponto de tomar um texto ou uma filosofia.

A ocorrência mais comum seria recorrer aos caracteres dos anfíbios e, neles, encontrar os pontos que nos ajudem a erguer possibilidades analíticas em outro platô: um de terreno não metafísico. Contudo, dos anfíbios se diz serem capazes de sustentar-se em terra ou submerso em água. A questão que cria um problema é que aí está presente uma ideia de sucessão, algo próprio do Tempo, deus que derrotou o caos, além de que a concepção de tempo que se sucede é do âmbito da ordem, pois cosmos fala da ordem, da sequência, da sucessão. Ora, assim, um anfíbio submete-se ao princípio da ordem de sucessões. Nosso propósito neste trabalho não é falar de sucessões, mas tratar de uma composição de simultaneidades entre as noções de saúde e doença, de normal e patológico, de vida e morte. Algo como Nietzsche escreve ao seu amigo Peter Gast:

[...] houve dias maus em abundância: e um tal declínio de saúde, ânimo e “vontade de vida”, falando de modo schopenhaueriano, que me pareceu difícil crer na existência daquele breve idílio de primavera (NIETZSCHE, 2006, p. 156).

Juntamente com a obra O crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com um martelo (NIETZSCHE, 2006), Nietzsche envia a carta a Peter Gast. Os dois textos se entrelaçam, como uma obra que inventa a vida, como a vida que habita a obra. A alegria de fazer o amigo lembrar-se dele, por ocasião do livro pronto, está associada aos dias de declínio da saúde, que são, simultaneamente, dias impetuosos por mais vida, pois a vida anseia por mais vida. A carta, que conta características da dor que esmaga Nietzsche, se imbrica aos sentidos de seu próprio texto-livro. O nascimento do texto parece se dever, necessariamente, aos dias de dor, o que torna sua escrita uma composição híbrida e não fixada aos significados tradicionais, típica de uma saúde que não dispensa a doença. Assim é que podemos compreendê-la com a lógica da margem, tal como esse termo é usado por Derrida (1991, p. 26): “válvula aberta a um duplo entendimento, não formando mais um único sistema”.

Em busca de uma alternativa aos estudos que se limitam a entender a saúde a partir de questões como frequência estatística e normas, Caponi (2009CAPONI, S. A saúde como abertura ao risco. In: CZERESNIA, D. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009, p. 59-81.) a apresenta como uma “saúde sem ideia, presente e opaca” (p. 64), algo que requer uma linguagem um tanto imprecisa, que permita significados marginais. Assim, a autora destaca o papel do profissional da saúde como um auxiliar na tarefa de traduzir signos e conjuntos de sintomas, tendo em vista constituir, em parceria, os sentidos da saúde na vida de quem a tenta decifrar.

Ponto 5: limites e margens

Derrida (1991) faz um exercício de retomada e rompimento com a tradição idealista, de forma levar o martelo (de Nietzsche) à rocha da vontade de verdade. O desejo de fincar os pés em conceitos imutáveis parece oferecer segurança. No entanto, essa imobilidade resulta, justamente, da perda da vontade de criar.

Timpanizar é movimento de enfrentamento da lógica dualista de compreensão das palavras e das coisas a partir da metafísica ocidental, de luxar o tímpano, sabendo-se que este é uma membrana fina e transparente que separa “o canal auricular do ouvido interno” (DERRIDA, 1991, p. 15). É um modo de operar pela via da instabilidade das margens, como opção à fixidez dos limites. Nesse sentido, timpanizar significa quebrar o tímpano, criando poros entre o dentro e o fora, como um modo de filosofar a marteladas: o martelo dá as pancadas. Por outro lado, sem o martelo - estrutura do ouvido médio -, o tímpano sofreria as dores da violência das vibrações. O martelo também é órgão que amortece as vibrações e evita que o tímpano sofra. As marteladas, portanto, apresentam-se em caráter duplo: rasgar e amortecer a membrana.

Esticada a membrana e rompida até a porosidade, estabelece-se o jogo de sentidos das palavras, em alternativa à busca pela arché. O mesmo gesto rompe com os dualismos que se impõem com precisão: dentro/fora, bem/mal, sanidade/loucura, normal/patológico, saúde/doença (BIATO, 2015BIATO, E. C. L. Oficinas de Escrileituras: possibilidades de transcriação em práticas de saúde, educação e filosofia. 177 f. (Tese) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2015. p. 113).

A noção de margem como “transbordamento de um limite; o lugar do suplemento” (SANTIAGO, 1976, p. 57) traduz essa relação: os limites entre a saúde e a doença são imprecisos e o mesmo corpo as leva, em seus excessos. Maurice Blanchot (2005BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.) conta a experiência de Proust com a narrativa e o tempo. Apresenta a visão de uma ilha e os sons do canto de sereias, num momento de fascínio e fabulação, de narrativas originais e únicas. Esse tempo parece conter, no texto e no corpo de seu autor, “todas as possibilidades, todas as contradições, todas as maneiras pelas quais o tempo se torna tempo”, e o tempo se torna tempo de contradições, como “simultaneidades mágicas” (p. 15).

O corpo, nas simultaneidades singulares de sempre tornar-se o que é, magicamente envolve a sanidade e a doença. É uma coexistência relacionada à vontade de potência, impulso de vida que quer sempre mais vida e que ganha efeito, justamente, no conjunto de forças que se encontram sempre em combate umas com as outras (MÜLLER-LAUTER, 1997). A realidade das forças em luta é a de que nenhum vetor é totalmente eliminado, uma vez que isso ocasionaria o enfraquecimento da vida. Há, no entanto, uma alternância de forças mais alimentadas e outras menos nutridas, quase definhando, compondo sempre novas combinações de forças que estabelecem o que se é (COLLI, 2000COLLI, G. Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d’água, 2000.).

Nesse sentido, consideramos o combate entre saúde e doença como ocupantes do mesmo corpo e típico da vida e da saúde. Com Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.), por exemplo, vemos que o sistema imunológico afirma que a doença está prevista na vida. O que nos parece instigante, nessa perspectiva, é assumirmos a coexistência como um modo de compreender a saúde em seu caráter marginal: singular, impreciso, espaço de porosidades.

Abre-se a possibilidade de tratar esses opostos fora da noção dualista, e não apenas a partir da produção de uma síntese. Para o corpo que tem seu funcionamento em combates incessantes, ter saúde consiste em assumi-la como um indecidível. O já citado pharmakón é palavra usada ora para dizer do remédio, ora para dizer do veneno (DERRIDA, 2005). Diante da impossibilidade de conciliação ou de resolução desse problema, o filósofo firma o indecidível. Se pensarmos a saúde nesses termos, entenderemos que a dor não é necessariamente uma afronta à vida: “se felicidade já não tens para me dar, pois bem!, ainda tens a minha dor…” (NIETZSCHE, 1995, p. 112), e a saúde não exclui a doença, elemento que ativa plasticidades de corpos viventes.

É notável um exemplo da plasticidade da vida na atenção à saúde, conforme conduzida por Oliver Sacks - que foi neurologista num hospital psiquiátrico. A experiência lhe permitiu relatar vários casos inusitados. A história Nivelado (SACKS, 1997) conta de um senhor com mal de Parkinson, que em parceria com ele, inventou, produziu e possibilitou o uso de óculos de nível por vários outras pessoas com a doença. Anexou, ao corpo dos óculos, uma bolha usada para pregar quadros na parede, o que foi muito importante para a qualidade de vida de pessoas com mal de Parkinson, com reações de inclinação e problemas nos reflexos posturais.

Esse exemplo parece esbanjar possibilidades inventivas e criadoras na atenção à saúde, na partilha do cuidado e dos modos de fazer a vida andar. São estilos singulares de profissionais e pacientes e que estabelecem linhas de fuga às tradicionais relações assimétricas embasadas em protocolos herméticos. A performance desse corpo com Parkinson é expressão de sua potência, forças nobres e das inúmeras saúdes existentes. Nietzsche (1995, p. 47 e 50) chega a afirmar que a doença lhe trouxe à razão (1995) e explica que as dores mais duradouras lhe foram impulso para vários pensamentos, concluindo que “cada um possui nisso a sua medida… o seu cuidado de si”.

Ainda que o filósofo alemão enfatize, em seus escritos, a importância do conhecimento originado no ar das alturas, pela refeição tomada num determinado lugar, com a preferência de uma dada visão do espaço, não toma o conhecimento e um modo de pensar como recompensas de seu sofrimento; não come, bebe ou faz qualquer outra coisa com a declarada intenção de aliviar a dor. Deseja tanto a felicidade quanto a dor, por reconhecê-las como partes inevitáveis e desejáveis da mesma vida - amor fati (NIETZSCHE, 2004; 2001). Ao experimentarmos as circunstâncias mais difíceis, o corpo toma o lugar dos sofredores; no entanto, “não nos aborrecemos quando os encantos da saúde recomeçam seu jogo - olhamos como que transformados, abrandados e ainda exaustos.” (NIETZSCHE, 2004, p. 154).

O vivente se sente cansado, mudado, mórbido. Esse não é um efeito sobre as massas ou o rebanho, mas expressos em cada um. Trata-se de um jogo, em um instável processo de criação de si mesmo, ainda que não despregado do outro, do grupo, do todo. São movimentos que provocam alguém a tornar-se o que é (NIETZSCHE, 1995). O movimento criador de tornar-se o que se é se mostra menos como adaptação, e mais como expansão.

Teoricamente, nada ou ninguém pensaria em recair mas de toda maneira está sujeito, sobretudo porque recai sem consciência, recai como se nunca antes… De onde vem a penosa amizade da brancura com o amarelo? O mero permanecer é recaída: o jasmim, então. E não falemos das palavras, essas recaidiças deploráveis, nem dos bolinhos frios, que são recaída certa. (CORTÁZAR, 2010CORTÁZAR, J. A volta ao dia em 80 mundos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p. 65).

Nesse jogo de recaídas e perturbações com a abundância, a vida e a exuberância, múltiplos estilos se apresentam e fazem frente à tirania do que rigorosamente é considerado saudável, como tipo de superioridade. A noção de interpenetração dos estados de saúde e doença como elementos marginais permite conceber a multiplicidade de saúdes e faz surgir uma opção às concepções e práticas que dicotomizam a vida saudável a ser almejada e os comportamentos de risco a serem rechaçados (BAGRICHEVSKY, 2010BAGRICHEVSKY, M. et al. Discursos sobre comportamento de risco à saúde e a moralização da vida cotidiana. Ciência & Saúde coletiva, v. 15, supl. 1, p. 1699-1708, 2010.). Parece tratar-se de “mil veredas que não foram percorridas; mil saúdes e ilhas recônditas da vida. Inesgotados e inexplorados estão ainda o homem e a terra humana” (NIETZSCHE, 2011, p. 172).

Considerações finais

Este artigo se propôs a ser um gesto de abertura no sentido de provocar mais debates sobre os modos de pensar e fazer da Saúde, que é um campo de conhecimento tão instigante quanto desafiador. Foram discutidas ressonâncias das noções de saúde que circulam e, de algum modo, norteiam práticas. Alguns recortes do pensamento nietzschiano e de outros pensadores sobre saúde nos serviram de fonte de provocação para pensar em bases alternativas e firmar o caráter ambíguo, impreciso, marginal do conceito. Assim, o estudo destacou a importância de a saúde expressar modos originais de conduzir a própria vida, como espaço aberto à singularidade dos regimes do corpo: traços de vida, seus gestos de cada dia. Regimes funcionam como deliberações: as coisas incomparavelmente mais relevantes do que todas as outras que dizemos da vida. Nisso, é preciso um aprendizado - um aprendizado de si. Cada vivente faz sua própria coleção de modos, informações, experiências, jeitos de fazer. E assim, constitui maneiras de viver e lidar com seu próprio corpo e saúde.

Neste sentido, ao problematizar a compreensão da saúde e de lidar com ela, o estudo trouxe a possibilidade de olhá-la por meio do acontecimento e das sensações experimentadas pelo corpo, como quem inventa mil saúdes, em seu caráter multifário. Estabelece uma perspectiva crítica às generalizações e propõe que se resista à moral da renúncia de si, do apagamento da diferença. Ainda aborda a medicalização que permeia nossa sociedade, fixando modos de viver, seja em termos terapêuticos e preventivos, no trabalho clínico ou em ações coletivas.

Discute o problema de se tomar a saúde como entidade completa, uma vez que sua tragicidade a coloca como o que sempre escapa: não é possível possuir a saúde e dizer “eu tenho”, sem carregar os rastros da doença. Saúde e doença dão ensejo à noção de anfibologia e constituem-se como margens - que, ao contrário das marcas, não apresentam limites precisos e, portanto, extravasam, invadem -, e um estado se acresce ao outro. Ao tratarmos do conceito de saúde, parece precioso trazê-lo como pensamento que se faz em meio a vida, com milhares de nuances e espaços escondidos, com incertezas e permeabilidades.11E. C. L. Biato idealizou o trabalho sobre o conceito de saúde na forma de ensaio teórico e elaborou o texto. L. Henrique e S.B. Monteiro elaboraram e revisaram o texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2020
  • Aceito
    31 Ago 2020
  • Revisado
    07 Out 2020
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