Serviços Farmacêuticos na Atenção Primária em Saúde à luz do modelo ambiguidade-conflito

Pharmaceutical Services in Primary Health Care in light on the ambiguity-conflict model

Michele Costa Caetano Rondineli Mendes da Silva Vera Lucia Luiza Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar os níveis de ambiguidade e conflito em relação aos objetivos e meios necessários à implementação dos Serviços Farmacêuticos (SeFar) no âmbito da Atenção Primária à Saúde no município do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados por meio de entrevistas-semiestruturadas com 14 atores-chave, realizadas em 2018. Os resultados foram interpretados com base na análise temática de conteúdo e à luz do modelo ambiguidade-conflito de análise de implementação. Quanto aos objetivos dos SeFar, houve alto consenso intracategorias, porém baixo intercategorias. Quanto aos meios, foram identificadas divergências importantes intercategorias e consenso quanto a aspectos relevantes como a insuficiência de recursos financeiros e humanos. Os conflitos identificados resultam especialmente da falta de clareza de outros atores mais afastados do nível local ou de outras categorias profissionais, sobre o papel dos SeFar. Assim, considera-se que houve predomínio de características de “implementação experimental”, apresentando alta ambiguidade quanto aos objetivos e meios dos SeFar num ambiente de médio conflito e fortemente dependente dos recursos disponíveis no nível local. Também apresentou alguns atributos de “implementação política”, uma vez que em determinadas circunstâncias os resultados sofreram influência do contexto político, condicionados por conflitos em relação aos meios para a consecução dos SeFar.

Palavras-chave:
Assistência Farmacêutica; Atenção Primária à Saúde; análise de políticas; implementação de políticas

Abstract

This article aims to analyze the levels of ambiguity and conflict regarding the objectives and means required for the Pharmaceutical Services (PharmSer) implementation within the Primary Health Care in the city of Rio de Janeiro. Data were collected through semi-structured interviews applied in 2018 with 14 key actors. The results were interpreted based on thematic content analysis and in the light of the ambiguity-conflict model of implementation analysis. Related to the PharmSer aims, we found high consensus intra key actors categories and low inter categories. Related to the means, we found important inter-categories divergences and consensus regarding relevant aspects as insufficient financial and human resources. The conflicts identified result mainly from low clarity of other actors more distant from the local level or other professionals, about role of PharmSer. We conclude for the predominance of “experimental implementation” characteristics, with high ambiguity regarding the objectives and means of the PharmSer, in a medium conflict environment and being strongly dependent on the resources available at the local level. It also presented some attributes of “political implementation”, since in certain circumstances the results were influenced by the political context, conditioned by conflicts over the means for achieving the PharmSer.

Keywords:
Pharmaceutical Services; Primary Health Care; Policy Analysis; policy implementation

Introdução

Os medicamentos são uma das principais tecnologias terapêuticas utilizadas para o tratamento de doenças na sociedade moderna, e seu acesso e correta utilização ainda representam desafios a serem enfrentados (OPAS, 2013). Nesse sentido, os Serviços Farmacêuticos (SeFar) têm papel fundamental na Atenção Primária em Saúde (APS), uma vez que compreendem um conjunto de ações voltadas a garantir o acesso qualificado da população a medicamentos essenciais e a promoção do seu uso racional.

Os SeFar na APS podem contribuir positivamente no manejo de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, bem como na qualidade do uso de medicamentos (TAN et al., 2014TAN, E. C. K. et al. Pharmacist services provided in general practice clinics: A systematic review and meta-analysis. Research in Social and Administrative Pharmacy, v. 10, n. 4, p. 608-622, jul. 2014.). Melo e Castro (2017MELO, D. O. de; CASTRO, L. L. C. de. A contribuição do farmacêutico para a promoção do acesso e uso racional de medicamentos essenciais no SUS. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 1, p. 235-244, jan. 2017.) observaram que a presença do farmacêutico incorporado à equipe de saúde, no nível da APS, resultou em melhora na qualidade da prescrição e ampliação do acesso dos usuários aos medicamentos.

Os SeFar sofreram importantes avanços no município do Rio de Janeiro (MRJ) desde 2009, em paralelo à grande expansão da APS, que teve como modelo reorientador a Estratégia de Saúde da Família (ESF) (SORANZ; PINTO; PENNA, 2016SORANZ, D.; PINTO, L. F.; PENNA, G. O. Eixos e a Reforma dos Cuidados em Atenção Primária em Saúde (RCAPS) na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 5, p. 1327-1338, maio 2016.). Naquele momento, o MRJ optou por vincular os SeFar a todas as unidades básicas de saúde (UBS), com qualificação da estrutura física das farmácias, lotação de farmacêuticos em todas as unidades, contratação de profissionais de apoio (técnicos/auxiliares de farmácia) e promoção de ações de educação continuada (SILVA et al., 2016SILVA, R. M. DA et al. Assistência farmacêutica no município do Rio de Janeiro, Brasil: evolução em aspectos selecionados de 2008 a 2014. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 5, p. 1421-32, 2016.). Desse modo, o MRJ se torna uma fonte rica para estudos acerca da implementação dos SeFar na APS no contexto nacional.

Em que pesem os avanços ocorridos no MRJ dos SeFar, vale destacar que do ponto de vista histórico, a prática farmacêutica clínica-assistencial e centrada no paciente é relativamente recente (BRASIL, 2015). Por muito tempo, as ações ficaram mais centradas no produto (medicamento) e nas questões logísticas que envolvem o acesso. Os SeFar inseridos na APS, no entanto, trazem a necessidade de mudança desse paradigma, deslocando o foco de suas ações do medicamento para os indivíduos, família e comunidade. Nesse cenário, torna-se de extrema importância identificar as barreiras inseridas entre os recursos disponíveis (estruturais, humanos e financeiros) e a obtenção dos resultados, para que os desafios à institucionalização dos SeFar na APS sejam superados.

Assim, este artigo tem por objetivo analisar os níveis de ambiguidade e conflito em relação aos objetivos e meios necessários à obtenção dos resultados esperados com a implementação dos SeFar na APS no MRJ.11 O desenvolvimento do estudo é parte de uma dissertação de mestrado acadêmico. Não há conflitos de interesse envolvidos na pesquisa. O estudo contou com o apoio financeiro do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX-CAPES), para a realização da etapa de transcrição do conteúdo proveniente das entrevistas realizadas.

O modelo ambiguidade-conflito de análise de implementação de políticas

Esse modelo foi proposto por Matland (1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.) e visa superar as contradições dos modelos top-down (focado nos níveis centrais e nos formuladores de política) e bottom-up (privilegiam os implementadores locais e a população-alvo), considerando importante tanto a visão dos atores macro quanto microinstitucionais no processo de implementação de uma política.

Busca o conhecimento da implementação na perspectiva de duas dimensões, a ambiguidade e o conflito. A primeira se refere à possibilidade de existirem diferentes modos de se pensar uma circunstância ou fenômeno, dentro de um mesmo contexto e está dividida em duas subdimensões: ambiguidade nos objetivos e ambiguidade nos meios.

Apesar de poder conferir uma ideia de incerteza, a ambiguidade de objetivos pode colaborar para a criação de janela de oportunidade na tomada de decisões, por dar margem a diferentes interpretações, facilitando a aprovação de novas políticas ou programas (MATLAND, 1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.). Quanto à ambiguidade de meios, esta se relaciona, em geral, com a dúvida sobre quais são as tecnologias ideais a serem utilizadas no processo de implantação da política como insumos tecnológicos ou técnicos (CARVALHO, 2006CARVALHO, E. H. Programa de Saúde da Família: estudo sobre o processo de implementação em município do Rio de Janeiro a partir do modelo ambiguidade-conflito. Tese (Doutorado em Ciênicas em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.).

O conflito, segundo Matland (1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.), compõe um aspecto fundamental da caracterização de modelos de decisão. Segundo o autor, o conflito surge quando os atores envolvidos na implementação de uma política têm fortes interesses sobre ela e apresentam objetivos incompatíveis. Quanto maior a relevância de uma política, maior será a agressividade dos atores na busca por seus interesses e objetivos e mais importantes serão as consequências no processo de implantação.

O modelo enseja quatro tipos de classificações de implementação: administrativa, política, experimental e simbólica. As principais características de cada um são apresentadas na tabela 1 (MATLAND, 1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.).

Tabela 1
Tipos de implementação, dimensões, subdimensões e principais características, segundo o Modelo Ambiguidade-Conflito. Município do Rio de Janeiro, 2018

Método

Este estudo pertence a uma pesquisa mais abrangente que teve como objetivo analisar as convergências e dilemas dos SeFar na APS no MRJ, considerando o contexto legal e organizacional (CAETANO, 2019CAETANO, M. C. Convergências e dilemas dos Serviços Farmacêuticos na Atenção Primária em Saúde no Município do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2019.). Neste artigo são analisados os dados provenientes das 14 entrevistas semiestruturadas realizadas com atores-chave no processo de implementação dos SeFar no MRJ em diferentes níveis de atuação: 1 da macrogestão (Núcleo de Assistência Farmacêutica, estrutura responsável pela gestão deste tema na SMS-RJ (NAF-central)); 4 da mesogestão (2 de Núcleo de Assistência Farmacêutica, estrutura responsável pela gestão deste tema nas Coordenações de Área Programática (NAF-regional) e 2 de Organizações Sociais de Saúde (OSS); 2 da microgestão (de UBS); e 7 do nível transversal (3 do Conselho Regional de Farmácia (CRF-RJ), 2 da ENSP/Fiocruz e 2 do Conselho Distrital de Saúde).

A coleta de dados e o trabalho de análise foram orientados com base nas dimensões (ambiguidade e conflito) e subdimensões de análise (ambiguidade de objetivos, ambiguidade de meios, interdependência entre os atores e incompatibilidade de objetivos/meios), adaptando-se do proposto por Carvalho (2006CARVALHO, E. H. Programa de Saúde da Família: estudo sobre o processo de implementação em município do Rio de Janeiro a partir do modelo ambiguidade-conflito. Tese (Doutorado em Ciênicas em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.). Foram elaborados dois roteiros com perguntas semiestruturadas, direcionados conforme o nível de atuação do entrevistado: gestão (macro, meso ou micro) e nível transversal (reguladores, pesquisadores e representantes dos usuários).

Aplicou-se a técnica de Análise de Conteúdo com base nas fases propostas por Bardin (2011BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.), iniciando-se pela pré-análise, com a realização da transcrição das entrevistas para a constituição do corpus e a leitura flutuante do material, com retomada das bases teóricas e objetivos do estudo, a fim de obter as primeiras impressões e orientações a respeito do conteúdo. Em seguida, foi realizada a exploração do material utilizando a modalidade de análise temática, que busca identificar os núcleos de sentido presentes na comunicação.

Para o tratamento e interpretação dos resultados e utilizando por base o modelo ambiguidade-conflito (MATLAND, 1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.), foram definidas quatro categorias temáticas (Tabela 2), cuja análise considerou o modelo supracitado, tendo como foco a percepção dos atores-chave quanto ao papel dos SeFar no contexto da APS, bem como os desafios enfrentados para a implementação desses serviços.

Tabela 2
Principais ambiguidades e conflitos encontrados conforme as dimensões, subdimensões e categorias temáticas. Município do Rio de Janeiro, 2018

Todas as entrevistas foram realizadas e gravadas, mediante autorização prévia, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para conferir confidencialidade aos entrevistados, estes foram codificados conforme seu nível de atuação: GMA - gestor macro; GME - gestor meso; GMI - gestor micro; TF - transversal de pesquisa/formação de RH; TR - transversal de regulação; TU - transversal usuários. Ademais, os sujeitos citados pelos entrevistados foram codificados como ‘Maria’ para mulheres e ‘João’ para homens.

A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética e Pesquisa da ENSP e da SMS-RJ, conforme os pareceres 2.611.899 e 2.756.519, respectivamente.

Resultados

A análise do material coletado nas entrevistas permitiu extrair os temas comuns identificados no corpus do texto e elencar as quatro categorias temáticas. O agrupamento das falas nas categorias ensejou identificar a compreensão dos entrevistados quanto aos objetivos dos SeFar e os meios necessários para sua realização, bem como os desafios enfrentados na implementação desses serviços no contexto da APS no MRJ, na perspectiva dos mesmos. Os resultados encontrados foram sistematizados em tabela de análise (tabela 2).

Clareza quanto aos objetivos dos Serviços Farmacêuticos na Atenção Primária em Saúde

Os entrevistados demonstraram clareza quanto aos objetivos basilares dos SeFar: promover o acesso a medicamentos e o seu uso racional.

[...] tendo o medicamento como um insumo central ali, prover informação, prover orientação, prover apoio pros profissionais de saúde, naquilo que é em torno do medicamento, pra melhor acesso, pro uso racional do medicamento. (TF-2).

No entanto, ambos representantes dos Conselhos Distritais de Saúde (CDS), que neste estudo foram considerados os representantes dos usuários dos serviços, apesar de compreenderem em alguma medida a importância dos SeFar na promoção de acesso aos medicamentos, não demonstraram conhecimento sobre seu papel na promoção do seu uso racional.

O serviço farmacêutico é um serviço muito importante, né, desde que a farmácia, as suas grades (de medicamentos), esteja completa. (TU-1).

A boa gestão do medicamento foi um objetivo dos SeFar bastante destacado pelos entrevistados, especialmente pelos gestores da macro e mesogestão.

Primeiro é uma boa uma boa gestão de estoque [...]. (GME-4).

Já na fala dos farmacêuticos que atuavam na ponta dos serviços, destacou-se como objetivo principal dos SeFar a qualificação da dispensação de medicamentos, com oferta de orientação que facilite sua utilização pelos usuários.

Facilitar a compreensão mesmo da utilização dos medicamentos pra população. Basicamente isso. É desmitificar uma coisa que pra alguns é um bicho de sete cabeças, é uma coisa muito difícil, e transformar em algo fácil pra eles. (TR-3).

Meios para a consecução da implantação dos Serviços Farmacêuticos

Segundo os entrevistados, as atividades desenvolvidas pelos SeFar no MRJ envolvem tanto a gestão técnica do medicamento quanto a gestão do cuidado. No entanto, os farmacêuticos ainda dedicam mais tempo com a primeira, devido principalmente à sobrecarga de trabalho, sobretudo o burocrático, e à insuficiência de recursos humanos.

Bom, além do gerenciamento logístico do ciclo da assistência farmacêutica e de solicitação, aquisição, armazenamento e dispensação, as atividades assistenciais são feitas com consulta farmacêutica, participação do farmacêutico em grupos de educação em saúde. (GME-3).

Infelizmente, a gente tá mais envolvido com a parte de estoque, porque a parte assistencial a gente não tá conseguindo fazer tanto. (GMI-2).

Atores transversais aos SeFar da área de regulação (CRF-RJ) e representação social (CDS) demonstraram baixa compreensão a respeito das atividades a serem desenvolvidas pelos SeFar, limitando-as basicamente à dispensação e gestão de estoque.

Só dispensação mesmo. (TR-1).

Dispensar, organizar e enviar as suas deficiências e necessidades dos medicamentos. (TU-2).

Evidenciou-se ausência de indicadores institucionalizados que sejam capazes de monitorar os SeFar quanto às atividades realizadas e aos resultados alcançados, apesar de ter sido reconhecida a importância de se realizar o monitoramento destes serviços.

[…] a gente não tem indicadores, então pra mensurar mesmo o nosso trabalho. (GMI-1).

Quanto à disponibilidade de recursos (humanos, estruturais e financeiros) os entrevistados, de maneira geral, a consideraram insuficiente para o desenvolvimento dos SeFar na APS. Os recursos financeiros destinados à aquisição de medicamentos foram considerados deficientes para atender as necessidades da população.

[...] o orçamento que é disponibilizado não atende à necessidade do consumo médio (de medicamentos) do Rio de Janeiro. (GMI-1).

A estrutura das farmácias das UBS foi considerada adequada, sobretudo nas unidades mais novas, reconhecendo-se os avanços ocorridos desde 2009. No entanto, foram apontadas críticas importantes entre os atores que atuam no nível local, ou mais próximos a este, com destaque ao subdimensionamento do tamanho das farmácias e à ausência de sala específica para atendimento farmacêutico.

Sim, sim. E ainda mais comparando, né, com anos, desde quando eu entrei na Secretaria, a estrutura melhorou muito né? Hoje todas as farmácias são informatizadas. Todas têm computador, todas têm impressora, todas têm ar-condicionado. (GMA).

Precisa de uma estrutura pro farmacêutico atender, um consultório mesmo pro farmacêutico e uma área pra dispensação e um estoque maior que dê conta desses todos medicamentos que chegam. (GMI-1).

Em relação aos recursos humanos, o número de profissionais que compõem os SeFar foi apontado como insuficiente por quase todos os entrevistados, apesar de ter sido reconhecido o avanço que representa ter ao menos um farmacêutico para cada UBS, bem como um profissional de apoio.

Na verdade, é uma conta que tem um desequilíbrio, é fácil de identificar, porque independente do número de unidades, de equipes na unidade, só tem um farmacêutico e um técnico. Então, é claro que são demandas diferentes. (TF-1).

Mas em vista de muitos anos atrás, o nosso perfil é muito bom, já evoluiu bastante. E só o fato de ter um farmacêutico, no mínimo um farmacêutico e um técnico de farmácia em todas as unidades, isso já é um grande avanço. (GMA).

A qualificação dos profissionais que atuam nos SeFar não é adequada na opinião de boa parte dos entrevistados. As principais causas relatadas foram a deficiência na formação dos farmacêuticos na área da APS, falta de exigência de formação específica ou experiência prévia na área para contratações dos profissionais de apoio, e insuficiência nas ações de capacitação oferecidas.

[...] na média geral, as pessoas (farmacêuticos) saem da sua formação universitária com uma visão muito distorcida e limitada das suas possibilidades de atuação. (TF-1).

[...] na OSS ‘X´, por exemplo, precisa ser técnico de farmácia, aqui não precisa. O ‘João’ nunca trabalhou em farmácia. Ele é formado em publicidade [...] ele nunca tinha visto nada de medicamento”. (GMI-2).

Treinamento muito aquém do necessário, muito [ênfase] aquém, precisaria ter uma capacitação muito mais eficiente [...]. (GME-3).

Interdependência entre os atores envolvidos no processo de implementação

A comunicação e o processo decisório entre os diferentes níveis de gestão dos SeFar no MRJ se dão de maneira hierarquizada e descentralizada, com boa interação entre os gestores. Também existe fluxo transversal realizado pelos atores de regulação (CRF-RJ), de formação/pesquisa (ENSP/Fiocruz) e de usuários (CDS). Os entrevistados relataram entraves que dificultam a operacionalização dos SeFar. Um deles foi a falta de clareza dos profissionais de outras categorias sobre os objetivos e as formas de atuação dos SeFar, o que por vezes resulta em conflitos no nível local da implantação.

Pela equipe não entender, a gente tem várias histórias dos farmacêuticos contando, né? Que tipo, ele vai fazer uma intervenção e quando chega pro médico ou até pro enfermeiro: "Ah, mas porque cê tá perguntando isso? Porque cê tá questionando isso? Você tem que questionar isso? (GME-1).

Além disso, a atual (em 2018) gestão da prefeitura, segundo os respondentes, não aparentava ter como prioridade o desenvolvimento da APS no município.

Agora tá complicado, porque acho que eles (SMS) estão sem projeto, enfim, a prefeitura em si tá sem projeto. (TF-1).

Outro entrave à implantação dos SeFar relatado decorre da relação conflituosa entre CFR-RJ, OSS e SMS-RJ, que resultou em diversas autuações nas UBS por parte do CRF-RJ. O impasse parte da exigência legal da presença do profissional farmacêutico no espaço da farmácia durante todo o horário de funcionamento das UBS, o que não ocorre dependendo do horário de funcionamento da mesma. Por outro lado, o farmacêutico inserido no contexto da ESF deve também realizar outras atividades além das restritas ao espaço físico da farmácia, como visita domiciliar, grupos terapêuticos, ações de educação permanente, dentre outros.

[...] o MS fala que a função do farmacêutico, né, ele relata lá as funções do farmacêutico e aí uma delas é a visita domiciliar. Só que aquela lei que fala que o farmacêutico, ou melhor, a obrigatoriedade do farmacêutico na drogaria, na drogaria e qualquer serviço de dispensação de medicamento entra em conflito com essa questão. E aí você não pode tirar o farmacêutico porque é obrigatório ele estar presente e ao mesmo tempo você não se exime da responsabilidade de levar a atenção farmacêutica pro paciente que esteja acamado, por exemplo. (TR-3).

Vale destacar que os entrevistados do CRF-RJ se mostraram dispostos a debater o problema de modo a encontrar uma solução construtiva, por meio de debates, e não através de medidas legalistas, como as autuações.

Incompatibilidade de objetivos e meios entre os atores

Na perspectiva dos entrevistados, existem divergências entre atores com influência na implementação dos SeFar quanto aos seus objetivos, como consequência da falta de conhecimento dos gestores e profissionais de outras áreas, sobretudo de quem está mais afastado da ponta dos serviços, sobre o papel dos SeFar.

[...] principalmente quem tá mais acima, mais distante da ponta, acaba tendo só essa visão né, de que é uma mera dispensação e que é isso que tem que ser controlado e efetivado o tempo inteiro. Assim, não consegue visualizar (o farmacêutico) como um profissional que consiga atuar em outras questões né, que não seja só a parte do medicamento. (GMI-2).

Essas discordâncias favorecem o surgimento de conflitos entre os atores.

Às vezes algumas pessoas da equipe acham que é uma afronta, né? Que (o farmacêutico) tá se metendo no trabalho do outro, mas não é isso, ele quer participar do cuidado também. (GME-1).

A falta de definição de diretrizes e metas que norteiem as ações dos SeFar foi apontada como um fator que dificulta a compreensão dos diversos sujeitos sobre esses serviços. Somado a isso, o contexto político municipal também desfavorece a convergência dos atores a respeito do papel dos SeFar, uma vez que os gestores que estão à frente da SMS no momento não são profissionais tão envolvidos com a APS como na gestão anterior.

Por isso a gente vê a necessidade da implantação da Carteira de Serviços para deixar isso de forma mais clara e objetiva. (GMA).

Então, no governo passado acho que tinha uma grande convergência [...] tinha um cenário muito favorável e de mais convergência. Agora não, agora visivelmente não. Agora inclusive eu tenho muita dificuldade de saber qual é a prioridade dessa Secretaria, como é que eles pensam em implementar (os SeFar). (TF-1).

Acrescenta-se ainda que nos espaços de discussão coletiva sobre questões que envolvam a saúde no nível da APS, pouco se debate sobre os SeFar e a discussão, quando ocorre, se limita a aspectos ligados à disponibilidade de medicamentos.

Atualmente, a maioria das reuniões que eu tenho participado o foco tem sido logística, abastecimento, controle de estoque. Mais voltado pra essa parte técnica e gerencial. (GMA).

Discussão

Os SeFar compreendem o conjunto de ações que objetiva contribuir para o acesso a medicamentos e a promoção do seu uso adequado, visando atender as necessidades de saúde da população, de maneira individual ou coletiva (BRASIL, 2015; OPAS, 2013).

Encontrou-se neste estudo alto consenso quanto aos objetivos basilares dos SeFar - promover o acesso e o uso racional dos medicamentos - entre os entrevistados. Ainda que alguns entrevistados não tenham falado expressamente os termos “acesso” e “uso racional”, apontaram um conjunto de ações que coadunam com estes princípios, tais como realizar uma boa gestão do medicamento e uma dispensação qualificada. Profissionais envolvidos no processo de implementação dos SeFar em uma capital nordestina também apresentaram grande convergência quanto aos seus objetivos fundamentais (BRUNS et al., 2015BRUNS, S. DE F. et al. O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em João Pessoa (PB). Saúde em Debate, v. 39, n. spe, p. 64-75, 1 dez. 2015.).

A garantia de acesso aos medicamentos essenciais é considerada uma das responsabilidades primordiais do Estado e tem sido pauta frequente nas agendas de governos de diversos países e de organismos internacionais (LUIZA; BERMUDEZ, 2004LUIZA, V. L.; BERMUDEZ, J. A. Z. Acesso a medicamentos: conceitos e polêmicas. In: ______. Acesso a medicamentos: derecho fundamental, papel del estado. Rio de Janeiro: ENSP, 2004. p. 274.). No Brasil, o acesso a medicamentos é substancialmente comprometido pela baixa disponibilidade de medicamentos essenciais nas unidades de saúde do SUS (ÁLVARES et al., 2017ÁLVARES, J. et al. Access to medicines by patients of the primary health care in the Brazilian Unified Health System. Revista de Saúde Pública, v. 51, n. supl. 2, 2017.). A falta recorrente de medicamentos também foi relatada pelos atores entrevistados neste estudo, constituindo como um entrave ao cumprimento dos objetivos dos SeFar.

A promoção do uso racional de medicamentos (URM) é outro objetivo fundamental dos SeFar. O URM consiste em potencializar os benefícios e em reduzir os riscos associados ao uso de medicamentos, bem como diminuir o custo do tratamento para o indivíduo e a comunidade (BRASIL. MS, 2015). A maioria dos atores entrevistados apontou a promoção do URM como forma fundamental para qualificar o atendimento e atingir resultados positivos na saúde dos pacientes. No entanto, os representantes dos usuários conferiram certo nível de ambiguidade neste aspecto, uma vez que não demonstraram conhecimento sobre a importância dos SeFar na promoção do URM, vinculando a contribuição desses serviços apenas à garantia da disponibilidade de medicamentos.

Visto que os representantes dos CDS são atores estreitamente envolvidos com a rede de APS e que se articulam com os usuários, profissionais de saúde e gestores da área, sua baixa compreensão sobre os SeFar e seus potenciais de contribuição sugere que os usuários desses serviços tenham, de maneira semelhante, visão mais limitada e distorcida dos SeFar. Também indica que os usuários não têm tido a oportunidade de conhecer e experimentar plenamente os SeFar, fazendo com que sua percepção seja mediada fundamentalmente pelo acesso, ou seja, se conseguem ou não o medicamento.

Luiza e colaboradores (2006LUIZA, V. L. et al. Avaliação nacional da dispensação de medicamentos para as PVHA. Relatório final de pesquisa. Rio de Janeiro: Núcleo de Assistência Farmacêutica/ENSP, Fiocruz, 2006.) identificaram que a presença de medicamento na farmácia foi a dimensão de satisfação mais valorizada pelos usuários e, desse modo, o encontro deles com os SeFar têm sido percebido apenas como o ato de entrega de medicamentos.

Os SeFar se dividem em atividades que envolvem tanto a gestão técnica do medicamento como a gestão do cuidado. A primeira compreende um conjunto de atividades logísticas, consideradas básicas dos SeFar: seleção, programação, solicitação, armazenamento e distribuição, que são cíclicas e interdependentes e, portanto, o sucesso de uma depende do adequado funcionamento da anterior. A segunda engloba atividades referentes à relação farmacêutico-usuário-equipe de saúde. No modelo atual, a dispensação é um importante ato disparador das demais ações. É nesse momento que o farmacêutico tem contato com os usuários e tem a oportunidade de identificar suas dificuldades quanto à compreensão do seu estado de saúde e tratamento prescrito, bem como de identificar erros ou ajustes necessários. Outras ações clínicas dos SeFar são a contribuição na coordenação do cuidado, visão contínua dos processos, trabalho em equipe, educação permanente e formação, dentre outras (ibid.).

Em que pesem os avanços na organização e na estruturação dos SeFar na APS do MRJ, observou-se os farmacêuticos se dedicam mais às atividades relacionadas a gestão do medicamento em detrimento das ações ligadas diretamente ao cuidado dos indivíduos e comunidade. As principais causas apontadas foram a sobrecarga de trabalho, especialmente o burocrático, e a insuficiência de recursos humanos. Resultado semelhante foi encontrado por Barbosa e colaboradores (2017BARBOSA, M. M. et al. Avaliação da infraestrutura da Assistência Farmacêutica no Sistema Único de Saúde em Minas Gerais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 8, p. 2475-2486, 2017.), sendo a falta de tempo a principal causa apontada para a baixa atuação clínica-assistencial dos farmacêuticos. Desse modo, a compreensão dos atores sobre os objetivos dos SeFar, apesar de diminuir o grau de incerteza, não reduz o nível de ambiguidade de uma decisão. Seja pela possível imposição do nível central de instituir maior volume de trabalho burocrático aos SeFar, seja pela postura pouco ativa do farmacêutico local para realizar ações para além da logística e dispensação de medicamentos na farmácia.

Atores transversais aos SeFar da área de regulação (CRF-RJ) e representação social (CDS), apresentaram divergências em relação aos demais entrevistados quanto às atividades esperadas para os SeFar, concorrendo para ampliar o nível de ambiguidade quanto aos meios. Para os primeiros, os SeFar se relacionam especialmente ao atendimento individual dos usuários dentro do ambiente da farmácia. Vale destacar que esses atores não possuíam formação específica, nem tampouco experiência na área da APS, o que pode ter prejudicado sua visão das potencialidades das ações dos SeFar, individuais e coletivas, intra e extramuros, ou seja, dentro e fora da farmácia. Já os representantes dos CDS tinham apenas conhecimento da realização das atividades de dispensação e gestão do estoque. Isto reforça a hipótese da baixa visibilidade das ações clínico-assistenciais dos SeFar de maneira capilarizada na rede de APS do MRJ.

Cabe destaque ao alto consenso da insipiência das atividades de monitoramento e avaliação, a despeito de todos concordarem quanto à sua importância. O emprego de indicadores vinculados aos contratos de gestão parece ter sido insuficiente para amenizar este problema quanto aos SeFar (PEREIRA, 2013PEREIRA, N. C. Monitoramento do desempenho dos serviços farmacêuticos na Atenção Primária à Saúde: buscando a qualificação da gestão. Dissertação (Mestrado Profissional em Atenção Primária em Saúde) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2013.).

Em relação aos recursos necessários - humanos, financeiros e estruturais - para a consecução dos SeFar, foi consensual que estes foram insuficientes em alguma medida. Apesar da ampliação dos gastos com compra de medicamentos pelo MRJ desde a reforma local da APS (SILVA et al., 2016SILVA, R. M. DA et al. Assistência farmacêutica no município do Rio de Janeiro, Brasil: evolução em aspectos selecionados de 2008 a 2014. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 5, p. 1421-32, 2016.), ficou evidente na fala dos entrevistados que, atualmente, os recursos financeiros destinados para a aquisição de medicamentos não são suficientes para atender as demandas de saúde da população.

A ampliação no financiamento de medicamentos ocorreu em nível nacional, com especial crescimento no aporte de recursos municipais (FALEIROS et al., 2017FALEIROS, D. R. et al. Financiamento da assistência farmacêutica na gestão municipal do Sistema Único. Rev Saude Publica, v. 51, n. Supl 2, p. 14s, 2017.). No entanto, a disponibilidade de medicamentos nas unidades públicas de saúde ainda se constitui como a maior barreira de acesso a medicamentos no Brasil (ÁLVARES et al., 2017ÁLVARES, J. et al. Access to medicines by patients of the primary health care in the Brazilian Unified Health System. Revista de Saúde Pública, v. 51, n. supl. 2, 2017.).

No tocante à estrutura das farmácias das UBS, os entrevistados a consideraram adequada, especialmente aquelas mais novas. Atualmente, todas são refrigeradas, informatizadas, livres de grades e janelas e com equipamentos e materiais necessários para realizar um adequado armazenamento dos medicamentos. Desse modo, a estruturação das farmácias públicas representa fortaleza do cenário municipal carioca, uma vez que uma grande parcela de municípios brasileiros não investem nesta área e apresentam farmácias com diversos problemas estruturais (FALEIROS et al., 2017FALEIROS, D. R. et al. Financiamento da assistência farmacêutica na gestão municipal do Sistema Único. Rev Saude Publica, v. 51, n. Supl 2, p. 14s, 2017.; LEITE et al., 2017LEITE, S. N. et al. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: Analysis of PNAUM - Services data. Revista de Saúde Pública, v. 51, n. supl. 2, 22 set. 2017.).

Não obstante, atores mais próximos do nível local, diretamente envolvidos com os desafios decorrentes da infraestrutura, apresentaram opinião mais crítica apontando o subdimensionamento das farmácias e a ausência de sala para atendimento farmacêutico como os principais desafios a serem enfrentados, convergindo nesse aspecto, com o cenário nacional (LEITE et al., 2017LEITE, S. N. et al. Infrastructure of pharmacies of the primary health care in the Brazilian Unified Health System: Analysis of PNAUM - Services data. Revista de Saúde Pública, v. 51, n. supl. 2, 22 set. 2017.).

Com relação aos recursos humanos, os entrevistados relataram que a quantidade de profissionais que compõem os SeFar não é suficiente para atender às diferentes demandas entre as diversas unidades, o que gera sobrecarga de trabalho, compromete a qualidade dos serviços ofertados e limita as possibilidades de alcance dos SeFar. No entanto, reconheceram o avanço que representa ter ao menos um farmacêutico em cada UBS, bem como um profissional de apoio, frente à realidade nacional. Araújo e colaboradores (2017ARAÚJO, P. S. et al. Pharmaceutical care in Brazil’s primary health care. Revista de Saúde Pública, v. 51, n. supl.2, 22 set. 2017.) identificaram que na maior parte dos serviços de APS do Brasil, os responsáveis pela entrega de medicamentos não são farmacêuticos, nem técnicos de farmácia.

É fundamental para a implantação de uma política que os atores envolvidos estejam comprometidos com seus objetivos e tenham competência para utilizarem os recursos disponíveis de modo que atinjam os resultados desejados (BRUNS et al., 2015BRUNS, S. DE F. et al. O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em João Pessoa (PB). Saúde em Debate, v. 39, n. spe, p. 64-75, 1 dez. 2015.). É premente na fala dos entrevistados a necessidade de ampliação das ações de capacitação do corpo técnico dos SeFar. No caso dos farmacêuticos, por apresentarem uma carente instrução no campo da APS e dos profissionais de apoio, por muitas vezes não possuírem ao menos formação ou experiência prévia na área de farmácia.

Vale destacar que a qualificação, a capacitação e o aprimoramento do desempenho dos profissionais de saúde é uma estratégia para a melhoria dos serviços de saúde prestados à população. Baixos índices de ações de capacitação e qualificação dos profissionais dos SeFar foram observados em todas as regiões do país, sendo a média brasileira de apenas 12% (FALEIROS et al., 2017FALEIROS, D. R. et al. Financiamento da assistência farmacêutica na gestão municipal do Sistema Único. Rev Saude Publica, v. 51, n. Supl 2, p. 14s, 2017.). A presença de profissionais não qualificados desenvolvendo as atividades dos SeFar no nível local encontra-se entre as barreiras para a implantação dos SeFar no município.

Ainda que a comunicação e o processo decisório entre os diferentes níveis de gestão dos SeFar no MRJ ocorra de maneira hierarquizada observou-se possibilidades de autonomia nos níveis de meso e microgestão e a interação entre os atores da SMS-RJ pareceu ser boa, assim como com atores externos (regulação (CRF-RJ), de formação/pesquisa (ENSP/Fiocruz) e de usuários (CDS). Este cenário converge com os achados de Bruns (2013BRUNS, S. DE F. Política de assistência farmacêutica no município de João Pessoa, PB: contexto, desafios e perspectivas. Tese (Doutorado em Ciências em Saúde Pública) -. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2013.) que avaliou a implantação da AF no município de João Pessoa.

Foi possível identificar, neste estudo, alguns conflitos que permeiam o processo de implantação dos SeFar no MRJ. A falta de conhecimento de gestores e profissionais de outras áreas sobre o papel dos SeFar no contexto da APS foi uma das barreiras relatadas pelos entrevistados. Isso contribui para situações de conflito no ambiente local da implementação, além de reduzir o apoio político desses atores à implantação dos SeFar.

Outros estudos também observaram que a relevância dos SeFar ainda não está clara para a maioria dos gestores ou profissionais de outras áreas, bem como do papel do farmacêutico no âmbito da APS (BRUNS et al., 2015BRUNS, S. DE F. et al. O modelo de ambiguidade-conflito como ferramenta de análise dos desafios da Assistência Farmacêutica em João Pessoa (PB). Saúde em Debate, v. 39, n. spe, p. 64-75, 1 dez. 2015.; MELO; CASTRO, 2017MELO, D. O. de; CASTRO, L. L. C. de. A contribuição do farmacêutico para a promoção do acesso e uso racional de medicamentos essenciais no SUS. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 1, p. 235-244, jan. 2017.; SATURNINO et al., 2012SATURNINO, L. T. M. et al. Farmacêutico: um profissional em busca de sua identidade. Revista Brasileira de Farmácia, v. 93, n. 1, p. 10-16, 2012.). A ausência de pactuação de diretrizes e metas bem definidas para os SeFar parece dificultar mudanças nesse sentido. Ademais, os próprios farmacêuticos, por terem ainda uma formação tecnicista (SATURNINO et al., 2012), têm, por vezes, dificuldade de se reconhecerem como atores integrantes do processo de assistência à saúde e de se articularem com o demais profissionais de saúde.

Um segundo conflito, que pode estar interferindo negativamente no processo de implantação dos SeFar no âmbito municipal, se refere ao modo de interpretação da Lei no 13.021/2014 (BRASIL, 2014), que resultou em diversas autuações pelo CRF-RJ em UBS da rede, devido à ausência do farmacêutico dentro da farmácia. Esta Lei Federal exige a presença do profissional farmacêutico nas farmácias durante todo seu horário de funcionamento.

No entanto, cabe debates frente à lei. É razoável a compreensão de que o farmacêutico quando está realizando atividades inerentes ao campo da APS como, visita domiciliar, participação em grupos de cuidado, ações de educação em saúde na comunidade, dentre outras, embora não esteja dentro do espaço físico da farmácia, continua estando a serviço desta.

A ausência de conhecimento amplo sobre o papel e as potencialidades dos SeFar no âmbito da APS por parte dos representantes do CRF-RJ pode estar dificultando a criação de um consenso na aplicação da Lei no contexto deste nível de atenção à saúde. No entanto, a nova gestão do Conselho demonstrou compreender que as autuações não se configuram como o melhor mecanismo de resolução deste impasse, além de mostrar um empenho para a construção de alternativas conciliadoras. Isto induz a pensar que o ambiente político atual do CRF-RJ está favorecendo uma amenização dos conflitos existentes.

Outro desafio à implementação dos SeFar relatado pelos atores decorre do contexto atual da gestão da prefeitura, que não possui um projeto bem definido para o desenvolvimento da APS local, indicando que essa não é uma prioridade na agenda do governo. Destaca-se ainda problemas como: atrasos no pagamento dos salários, demissões em massa, fechamento de UBS e faltas de insumos. Outrossim, o cenário posto não favorece uma convergência entre os diferentes atores influentes na implantação dos SeFar, a respeito dos seus objetivos e resultados desejados.

Uma das limitações deste estudo foi a impossibilidade de entrevistar outros atores importantes no processo de implementação dos SeFar na APS, como a subsecretária de Atenção Primária, gerentes de UBS, médicos e enfermeiros da ponta dos serviços. A primeira por ausência de resposta ao reiterado convite de participação no estudo, e os demais por constrangimento de tempo, assim como de recursos financeiros e operacionais.

Cabe também mencionar que a autora da pesquisa, por ter atuado por alguns anos na rede de APS do MRJ, já havia tido interação prévia com vários dos entrevistados, o que pode ter influenciado de alguma maneira a fala dos atores.

Considerações finais

Verificou-se que a alta ambiguidade presente no processo de implementação dos SeFar possui grande força explicativa no contexto estudado. A implementação dos SeFar na APS no MRJ se desenha assumindo, predominantemente, características do tipo “experimental”, pois possui alta ambiguidade quanto aos objetivos e meios em um ambiente de médio conflito. Os objetivos também não são claros para todos os atores envolvidos na implementação e os meios ainda não estão bem estabelecidos. Assim, a implementação dos SeFar assume características locais, ou seja, depende fundamentalmente dos recursos contextuais locais disponíveis e da participação ativa e comprometida dos implementadores nos microambientes. Dessa maneira, os resultados ficam mais vulneráveis às interferências ambientais e, portanto, podem variar de acordo com o local de implantação.

Adicionalmente, considerando o papel da influência do contexto político na implementação dos SeFar, esta assume também características do tipo “política”. Nesta, ocorre maior nível de conflito, os resultados são definidos pelo poder. Apesar de existir certa clareza quanto aos objetivos, podem haver algumas divergências e disputas em relação aos meios a serem utilizados na implantação, sendo por vezes empregados mecanismos de coerção nesse processo (MATLAND, 1995MATLAND, R. E. Synthesizing the Implementation Literature: The Ambiguity-Conflict Model of Policy Implementation. Journal of Public Administration Research and Theory, v. 5, n. 2, p. 145-154, 1995.).

Mudanças na gestão tanto da prefeitura do Rio quanto no CRF-RJ impactaram o processo de implementação. As medidas coercitivas impostas pelo CRF-RJ podem intimidar os farmacêuticos a realizarem atividades assistenciais externas, limitando o escopo de ações dos SeFar. Adicionalmente, o momento de tendência à precarização da APS no MRJ atinge aspectos ligados diretamente aos SeFar, como prejuízo ao acesso da população aos medicamentos essenciais e desmotivação dos profissionais, além do cenário dificultar a convergência entre os atores quanto aos objetivos dos SeFar e seu modus operandi.

Nota-se que embora importantes avanços tenham ocorrido desde 2009, no campo dos Serviços Farmacêuticos vinculados à Atenção Primária em Saúde, no município do Rio de Janeiro, ainda se faz necessário esforços dos diferentes atores para sua consolidação. Os principais aspectos a serem melhorados são: aumento no investimento em ações de educação permanente dos farmacêuticos e profissionais de apoio; criação e institucionalização de diretrizes, metas e mecanismos de monitoramento para os SeFar na APS; e atuação mais ativa dos farmacêuticos nas ações de cuidado, junto à equipe multiprofissional.22 M. C. Caetano foi responsável pela concepção e delineamento do estudo, coleta e análise dos dados e redação do artigo. R. M. da Silva coorientou do estudo e participou da redação e revisões do conteúdo. V. L. Luiza orientou o estudo e foi responsável por nortear todas suas etapas e pela redação e revisões do artigo.

Referências

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  • 1
    O desenvolvimento do estudo é parte de uma dissertação de mestrado acadêmico. Não há conflitos de interesse envolvidos na pesquisa. O estudo contou com o apoio financeiro do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX-CAPES), para a realização da etapa de transcrição do conteúdo proveniente das entrevistas realizadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    16 Set 2020
  • Revisado
    15 Out 2020
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