Referência e contrarreferência para a integralidade do cuidado na Rede de Atenção à Saúde

Cleise Cristine Ribeiro Borges Oliveira Elaine Andrade Leal Silva Mariluce Karla Bomfim de Souza Sobre os autores

Resumo

Objetivou-se analisar o funcionamento do sistema de referência e contrarreferência para a integralidade do cuidado na Rede de Atenção à Saúde. Estudo qualitativo, realizado a partir de entrevistas com 66 participantes - gestores, trabalhadores e usuários de um município da Bahia, Brasil, e mediante aprovação em Comitê de Ética conforme parecer número nº 334.737. O material foi analisado a partir da Análise de Conteúdo de Bardin, finalizada em 2014. Foram identificadas diversas concepções de referência e contrarreferência, dentre estas: encaminhamento dos usuários; visão ampliada do usuário; cuidado não fragmentado; cuidado integral. Para os usuários, as dificuldades e facilidades nos fluxos concentram-se na Central de Regulação e Marcação e Unidades de Saúde da Família. Conclui-se que, para que a rede seja estabelecida com integralidade, é necessário identificar estratégias importantes instituídas no SUS e fortalecê-las, bem como identificar os empecilhos para saná-los.

Palavras-chave:
Redes de Atenção à Saúde; comunicação; integralidade em saúde; gestão da qualidade; Sistema Único de Saúde

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) veio concretizar o sistema público de saúde no Brasil pautado por princípios de integralidade, universalidade e equidade (BRASIL, 1990). No entanto, entre muitos desafios que permeiam esse sistema, a integralidade se inclui, representando a dificuldade de tratar cada indivíduo como um ser indivisível que faz parte de uma sociedade (SILVA; MIRANDA; ANDRADE, 2017SILVA, M. V. S.; MIRANDA, G. B. N.; ANDRADE, M. A. Sentidos atribuídos à integralidade: Entre o que é preconizado e vivido na equipe multidisciplinar. Interface: Communication, Health, Education, v. 21, n. 62, p. 589-599, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0420.
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).

A Portaria nº 4.279 de 2010 do Ministério da Saúde (MS) reafirma a responsabilidade do SUS por um cuidado integral, apresenta a estratégia de organização de Redes de Atenção à Saúde (RAS) e a define como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”; dessa forma, as redes viabilizam a operacionalização do SUS, promovendo cuidado contínuo e assim vêm ganhando destaque em discussões (BRASIL, 2011, p. 4).

Para a operacionalização das RAS pelos serviços de saúde, é preciso o funcionamento do sistema de referência e contrarreferência (RCR), o qual se refere ao mecanismo para o estabelecimento da comunicação. Através desse sistema é possível perceber, nos serviços de saúde, que o usuário obtém a continuidade no cuidado ofertado, em que cada informação sobre o usuário, advinda por diferentes profissionais de saúde e por diferentes serviços, é sempre válida para continuidade do cuidado desse indivíduo, visto como um todo e recebendo atenção integral.

O sistema de RCR faz parte dos sistemas logísticos, entendidos como tecnologias de informação que fornece a organização racional do trânsito de informações de saúde de cada indivíduo assistido. Ou seja, são fluxos e contrafluxos de informações dos usuários entre os serviços que formam a rede, assim como das pessoas e produtos entre os serviços que compõem as redes, fazendo com que seja eficaz a troca de informações ao longo dos pontos das RAS, estabelecendo uma comunicação para a constituição da integralidade do cuidado de cada usuário (MENDES, 2011MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Organização Pan-Americana da Saúde, Brasília, 2011. Available at: <http://www.saude.sp.gov.br/resources/ses/perfil/gestor/documentos-de-planejamento-em-saude/elaboracao-do-plano-estadual-de-saude-2010-2015/textos-de-apoios/redes_de_atencao_mendes_2.pdf>. Retrieved: 22 May 2020.
http://www.saude.sp.gov.br/resources/ses...
; ALVES et al., 2015ALVES, M. L. de F. et al. Reference and counter reference network for emergency care assistance in a municipality in the countryside of Minas Gerais - Brazil. Revista Médica de Minas Gerais, v. 25, n. 4, p. 469-475, 2015. DOI: http://www.dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20150110.
http://www.dx.doi.org/10.5935/2238-3182....
; PEREIRA; MACHADO, 2016PEREIRA, J. S.; MACHADO, W. C. A. Referência e contrarreferência entre os 1033 serviços de reabilitação física da pessoa com deficiência: a (des)articulação na microrregião Centro-Sul Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 26, n. 3, p. 1033-1051, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312016000300016.
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).

Esse sistema é um elemento importante para comunicação na RAS, mas dentro dele ainda são vistas algumas limitações, como falhas na comunicação e desconhecimento dos trabalhadores sobre o sistema de RCR. É, portanto, incapaz de garantir assistência de forma não fragmentada, limitações que dificultam o sobressalto de transposição da barreira da comunicação para produção do cuidado integral em saúde (MELO; CRISCUOLO; VIEGAS, 2016MELO, D. F.; CRISCUOLO, M. B. R.; VIEGAS, S. M. F. Referência e contrarreferência no cotidiano da atenção à saúde de Divinópolis-MG, Brasil: o suporte às decisões da atenção primária. Rev Fund Care Online, v. 8, n. 4, p. 4986-4995, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i4.4986-4995
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; BRONDANI et al., 2016BRONDANI, J. E. et al. Desafios da referência e contrarreferência na atenção em saúde na perspectiva dos trabalhadores. Cogitare Enferm., v. 21, n. 1, p. 01-08, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v21i1.43350.
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).

Sabendo disso, considera-se relevante este estudo em um município situado no estado da Bahia, o qual é parte integrante de uma RAS onde se encontra instalada uma universidade federal com um centro de ciências da saúde; também se faz importante para a formação de profissionais qualificados e a educação permanente em saúde, por ser um município que abarca o atendimento de diversas regiões circunvizinhas, fortalecendo o princípio de integralidade do SUS.

Este estudo tem como objetivo geral analisar o funcionamento do sistema de referência e contrarreferência para a integralidade da Rede de Atenção à Saúde (RAS) em um município da Bahia, tendo como objetivos específicos: conhecer a(s) concepção(ões) dos gestores e trabalhadores de saúde sobre a referência e contrarreferência; identificar as ações demandadas e desenvolvidas pelos gestores e trabalhadores, respectivamente, para o funcionamento do sistema de referência e contrarreferência; e discutir facilidades e dificuldades para o fluxo e contrafluxo dos usuários na Rede de Atenção à Saúde.

Metodologia

Trata-se de estudo com abordagem qualitativa, de cunho descritivo e exploratório. Constitui um recorte temático de uma pesquisa maior, do Programa de Educação Pelo Trabalho para Saúde - ESF e RAS de uma universidade federal situada no estado da Bahia, intitulado “A estruturação e operacionalização da Rede de Atenção à Saúde em um município da Bahia”, finalizada em 2014.

O estudo foi realizado em um município situado na Bahia, Região Nordeste do Brasil, o qual, apresenta uma Rede de Atenção à Saúde SUS que possui grande dimensão com diversos serviços de saúde do SUS e em todos os âmbitos tecnológicos apresentados em: Atenção Básica à Saúde (ABS), média densidade tecnológica e alta densidade tecnológica.

Figura 1
Mapa da Rede de Atenção à Saúde do município estudado, 2014

O campo de estudo da pesquisa vigente compreendeu 13 cenários de saúde, de forma a abarcar todos os níveis de densidade tecnológica da Rede de Atenção Saúde SUS do município em questão. Através de entrevista semiestruturada, foram convidados a participar do estudo seis gestores de saúde, 32 trabalhadores de saúde, de nível médio e superior, e 28 usuários dos cenários de saúde da pesquisa, os quais compõem a Rede de Atenção à Saúde SUS do município estudado, somando um total de 66 participantes.

A análise de dados foi realizada a partir da técnica de Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Almedina Brasil, Edição 70, 2011.), seguindo os três polos cronológicos: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Foram preservados os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos, com apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob parecer consubstanciado nº 334.737. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e receberam com codinome T (trabalhador), G (gestor). Para os diferentes cenários investigados, atribui-se a identificação da letra C (cenário), seguida da numeração crescente por local e ordem dos entrevistados.

Concepções dos gestores e trabalhadores de saúde sobre a referência e contrarreferência

Os gestores e trabalhadores de saúde, em seus depoimentos atribuíram a referência e contrarreferência algumas concepções, dentre as quais discutem-se as seguintes: encaminhamento dos usuários; visão ampliada do usuário. Os trabalhadores explanaram outras concepções, discutindo-se algumas como: feedback do usuário; acompanhamento do usuário; cuidado continuado; organização em RAS e articulação em RAS.

Analisando e discutindo alguns dos achados, pode-se inicialmente ser revelado pelos gestores e trabalhadores de saúde que o sistema de referência e contrarreferência compreende o encaminhamento dos usuários de um ponto a outro da RAS, a fim de suprir a necessidade de saúde, explicitado no depoimento a seguir:

[...] essa referência é que tem como encaminhar o que não pode ser feito aqui. A gente encaminha e tem o retorno de volta, com a contrarreferência [...] (C7T27).

Frente a isso, Mendes (2010MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, ago. 2010. Available at: <http://www.scielosp.org/pdf/csc/v15n5/v15n5a05.pdf>. Retrieved: 22 May 2020.
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) afirma que tal sistema constitui uma tecnologia de informação que garante a organização racional dos fluxos e contrafluxos de informações e dos usuários ao longo dos pontos da rede de atenção à saúde. Assim, é fácil reconhecer que a RCR de fato se aplica ao encaminhamento dos usuários e pode receber tal concepção, a qual se mantém presente em diversos depoimentos, tanto dos gestores como dos trabalhadores da pesquisa, como observado no depoimento acima.

Apesar de ser uma concepção verdadeira e importante, será que o encaminhamento dos usuários se constitui suficiente para representar a função da RCR? Pode-se sugerir que é uma concepção superficial obtida do que é explícito no ato de referenciar. É necessário desenvolver um olhar crítico, capaz de compreender o sistema de referência e contrarreferência e suas aplicabilidades.

Segundo Mendes (2011MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Organização Pan-Americana da Saúde, Brasília, 2011. Available at: <http://www.saude.sp.gov.br/resources/ses/perfil/gestor/documentos-de-planejamento-em-saude/elaboracao-do-plano-estadual-de-saude-2010-2015/textos-de-apoios/redes_de_atencao_mendes_2.pdf>. Retrieved: 22 May 2020.
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), no ato de referenciar e contrarreferenciar, o profissional da Atenção Básica (ABS), além de encaminhar deve definir por que razões ele está solicitando a consulta ou procedimento, realizar perguntas cujas respostas gostaria de conhecer, listar os procedimentos que está realizando no usuário, medicamentos prescritos, listar os resultados que tem apresentado e dizer o que solicita do especialista no momento. Por sua vez, o especialista terá uma visão ampliada do usuário e deverá preencher a contrarreferência, informando o que realizou no indivíduo e os resultados alcançados, fazendo recomendações para a continuidade do cuidado na ABS e especificando no formulário quando o usuário deverá retornar a ele, caso necessário.

Sendo assim, vê-se que a RCR representa muito além do encaminhamento dos usuários, e à medida que as ideias foram sendo apresentadas pelos entrevistados na pesquisa, outras concepções foram reveladas e podem ser consideradas importantes para a integralidade na RAS, entre elas a concepção de visão ampliada do usuário, elucidada no contexto anteriormente. Tal concepção permite que o profissional entenda o usuário para além da doença. Uma compreensão importante sob a ótica dos gestores e trabalhadores de saúde é observada nos depoimentos a seguir:

Eu acho que é importante [...] então funciona para dar uma visão mais ampliada do usuário (C8T4).

[...] a questão da referência e da contrarreferência é um olhar mais completo sobre o usuário, então não basta simplesmente a gente estar referenciando esse usuário [...] (C3G6).

No entanto, diante de tais depoimentos colocados sobre a importância da visão ampliada do usuário, cabe perguntar qual a magnitude da definição de visão ampliada do usuário os gestores e trabalhadores de saúde compreendem? Será que os gestores e os trabalhadores de saúde deste município, estão sensibilizados quanto à gestão do cuidado embasado em uma visão ampliada do usuário nas práticas de saúde?

Primeiramente, destaca-se a visão holística imbricada no conceito de visão ampliada do usuário, a qual amplia a percepção do sujeito doente como ser humano que é envolvido em um contexto biopsicossocial e que traz consigo uma história de vida, impregnado de valores culturais, e uma situação de saúde, e que a partir do momento que entra em uma instituição de saúde vivencia situações diferentes, pois é retirado do seu cotidiano (SILVA; MIRANDA; ANDRADE, 2017SILVA, M. V. S.; MIRANDA, G. B. N.; ANDRADE, M. A. Sentidos atribuídos à integralidade: Entre o que é preconizado e vivido na equipe multidisciplinar. Interface: Communication, Health, Education, v. 21, n. 62, p. 589-599, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0420.
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). Assim, esta compreensão, observada nas entrevistas dos gestores e trabalhadores de saúde do município estudado, infere que o profissional de saúde deve conhecer todos os aspectos que envolvem o cotidiano do usuário além da doença. Para que esse conhecimento se faça presente nas práticas do profissional de saúde, ele precisa de algum instrumento que lhe apresente todo o contexto biopsicossocial de vida do doente, e a partir daí avaliar a situação de saúde do usuário, suas reais necessidades, para então estabelecer cuidados direcionados ao mesmo.

Além da visão holística, a concepção da RCR como visão ampliada do usuário denota ideia de clínica ampliada. Nessa perspectiva, na prática assistencial, o profissional deixa-se tomar pelas singularidades do sujeito doente, além de outros saberes teóricos já adquiridos, e produz um plano de cuidados que leva em conta tanto os saberes teóricos adquiridos como as singularidades do usuário (SILVA et al., 2018aSILVA, K. A. B. et al. Desafios no processo de referenciamento de usuários nas redes de atenção à saúde: perspectiva multiprofissional. Cienc. Cuid. Saúde, v. 17, n. 3, p. 1-8, 2018a. DOI: 10.4025/cienccuidsaude.v17i3.43568.
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; SILVA et al., 2018b). Pressupõe que cada indivíduo interfere de modo ativo no fenômeno saúde-doença, sem deixar de lado a interferência do meio social para o sujeito.

Nesse sentido, pode-se dizer que o rompimento das intervenções terapêuticas que dissociam o indivíduo constitui um grande desafio a ser enfrentado na área da saúde, pois se contrapõe ao princípio da integralidade. O olhar profissional para o usuário deve ir além da doença, apropriando-se do que abrange o indivíduo, estabelecendo um cuidado integral e humanizado, ou seja, cuidados que sejam consonantes com as singularidades dos usuários.

Há uma tendência de organização dos serviços de saúde e dos processos de trabalho com base em um discernimento de gerência hegemônica, de modo a influenciar no objeto de trabalho dos profissionais de saúde reduzindo-o a procedimentos, técnicas, doenças e partes do corpo. Observa-se, ainda, que os profissionais de saúde dentro dos serviços se responsabilizam pelos sujeitos apenas quando o mesmo se encontra no espaço físico do serviço ao qual trabalha, deixando a responsabilidade para trás quanto ao momento antes e após passagem do sujeito no serviço (CUNHA; CAMPOS, 2011CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. S. Apoio Matricial e Atenção Primária em Saúde. Saúde Soc., v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000400013.
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). Logo, faz-se importante considerar o apoio matricial como estratégia complementar ao sistema de RCR.

Apoio matricial consiste em oferecer retaguarda assistencial através de suporte técnico e pedagógico aos profissionais envolvidos no referenciamento de cada sujeito. Esse suporte trabalha em conjunto com a o sistema de RCR, objetivando promover integração dialógica entre profissionais de distintas especialidades e consequente promoção da clínica ampliada e a responsabilidade longitudinal de todos os profissionais das distintas especialidades e serviços envolvidos com o paciente, ou seja, durante todo o tempo necessário e independente de qual serviço ele esteja (CAMPOS; DOMITTI, 2007CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007000200016
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).

Outras concepções identificadas para a RCR nos depoimentos dos entrevistados - feedback, acompanhamento e continuidade do cuidado - podem ser representadas em um único depoimento de um trabalhador de saúde ao falar da RCR, demostrando a interligação das tais concepções:

Eu acho que a referência e contrarreferência é um subsídio utilizado para continuidade do serviço que a partir do momento que eu enviei um, uma, um paciente pro viva mulher ou qualquer outro programa que seja, a partir do momento que eu encaminho ela, eu aguardo uma resposta de como foi lá, então eu enquanto unidade, vou estar ciente daquele problema de saúde pra dar um subsídio e também acompanhar não abandonar aquele paciente [...] a continuidade do serviço da atenção à saúde (C4T22).

A contrarreferência, efetivada através do preenchimento do formulário específico, consolida informações relevantes do usuário, as quais permitem que a unidade que referenciou compreenda quais condutas foram adotadas na unidade ao qual foi encaminhado, com finalidade de dar continuidade da assistência na unidade de origem do usuário e promover a integralidade (SILVA et al., 2018aSILVA, K. A. B. et al. Desafios no processo de referenciamento de usuários nas redes de atenção à saúde: perspectiva multiprofissional. Cienc. Cuid. Saúde, v. 17, n. 3, p. 1-8, 2018a. DOI: 10.4025/cienccuidsaude.v17i3.43568.
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).

Além das concepções discutidas, muitas outras foram apresentadas pelos entrevistados em seus depoimentos. Obviamente, todas as concepções concedidas à RCR contribuem para formação de serviços interligados e com práticas interdependentes formando redes organizadas que se comunicam, a fim de prestar assistência à saúde da população. No entanto, todas essas concepções foram apresentadas pelos entrevistados de forma superficial e não podem representar a magnitude da concepção da referência e contrarreferência.

Diante de tantas compreensões, é interessante ressaltar que em nenhum momento da pesquisa os entrevistados trazem o cuidado integral ao usuário como concepção para o sistema de RCR. Ao que parece, veem todas essas concepções, mas de forma que cada entrevistado pontua uma ou outra, concepções dissociadas, quando na verdade todas essas concepções estão envolvidas com o cuidado integral, que é imprescindível para a assistência à saúde dos indivíduos, imbuído no conceito de integralidade.

Nota-se, ainda, que os participantes da pesquisa não fazem menção ao apoio matricial, que remete ao funcionamento dialógico e integrado das equipes envolvidas no referenciamento do paciente. Nessa direção, faz-se necessário trazer esta pauta sobre a potencialidade do trabalho integrado e dialógico para RAS tendo a RCR com potencializador deste processo. No apoio matricial, as equipes podem discutir casos clínicos e situações sanitárias, de gestão e organização nos serviços, e ainda contribuir conjuntamente com intervenções que podem agregar conhecimentos que aumentam a capacidade de resolução dos problemas vivenciados pelos pacientes e seus familiares no sistema de RCR (CAMPOS; DOMITTI, 2007CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007000200016
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).

Ações dos trabalhadores e gestores de saúde para o funcionamento da referência e contrarreferência na Rede de Atenção à Saúde

Os trabalhadores de saúde devem ter atenção direcionada aos usuários atendendo a solicitações e direitos dos usuários dos serviços com incessante busca pela resolutividade, visto que as práticas de saúde geram encontros entre os trabalhadores e usuários nos quais os trabalhadores fazem um esforço para prestar o cuidado necessário e integral, responsabilizando-se pela saúde do usuário e concretizando a política pública de saúde (BRONDANI et al., 2016BRONDANI, J. E. et al. Desafios da referência e contrarreferência na atenção em saúde na perspectiva dos trabalhadores. Cogitare Enferm., v. 21, n. 1, p. 01-08, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v21i1.43350.
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).

É sabido também que os gestores de saúde possuem, imbricados no seu profissionalismo, o desafio constante de buscar alcançar os princípios orientadores do SUS por meio da regulação e planejamento de ações e serviços, considerando sempre a garantia da assistência de acordo com as necessidades de saúde da população. Portanto, é necessário que os gestores e trabalhadores de saúde estejam motivados a procurar constantemente desenvolver a formação de RAS (PAULA; VOLOCHKO; FIGUEIREDO, 2016PAULA, S.H.B.; VOLOCHKO, A.; FIGUEIREDO, R. Linha de cuidado de câncer de mama e de colo de útero: um estudo sobre referência e contrarreferência em cinco regiões de saúde de São Paulo, Brasil. Boletim do Instituto de Saúde, v. 17, n. 2, p. 146-166, 2016. Available at: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/ses-34272. Retrieved: 20 May 2020.
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). Assim, o preenchimento da ficha de referência e contrarreferência é um instrumento que possui valor indispensável para o cuidado do usuário de saúde do SUS, possibilitando atenção de qualidade para atender à necessidade de saúde das pessoas, com caráter continuado sem fragmentar a assistência à saúde (TORRALBO; JULIANI, 2016TORRALBO, F. A. P.; JULIANI, C. M. C. M. O sistema de referência e contrarreferência no atendimento ao adolescente: realidade x integralidade. Rev enferm UFPE online, v. 10, n. 3, p. 1016-21, 2016. DOI: 10.5205/reuol.8702-76273-4-SM.1003201610.
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).

O preenchimento da ficha de referência e contrarreferência, juntamente com o apoio matricial, constituem metodologias de trabalho que buscam diminuir a fragmentação existente entre serviços de saúde e entre profissionais de saúde, viabilizando a comunicação, interdisciplinaridade, compartilhamento de responsabilidade longitudinal da atenção integral aos pacientes e seus respectivos projetos terapêuticos - contribuindo, portanto, para a eficácia das intervenções em saúde (CAMPOS; DOMITTI, 2007CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007000200016
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).

Na análise das entrevistas, foi possível identificar muitas ações apresentadas pelos trabalhadores desenvolvidas para o funcionamento da RCR, dentre as quais podemos citar: preenchimento da ficha de referência e contrarreferência; educação em saúde; diálogo; e cuidado continuado. Quanto aos gestores, dentre muitas ações, discutem-se aqui as atividades na comunidade envolvendo toda a rede; e o fórum interdisciplinar e intersetorial.

Nesse sentido, os trabalhadores de saúde da pesquisa relataram que realizam o preenchimento da ficha de referência e contrarreferência, identificadas abaixo:

[...] Então a gente referencia o paciente para, não é, para ele passar pela rede, que é necessário, para o tratamento dele, ele precisa de um especialista. E tem que usar a rede para encaminhar ele para outra unidade de tratamento que dispõe de especialista. Aí a gente usa a referência e a contrarreferência [...] (C7T28).

Os trabalhadores apontam para a ação do encaminhar/direcionar através do instrumento de referência e contrarreferência. Percebe-se, através dos documentos levantados no município, que apenas o Manual de Procedimento Operacional Padrão da Central de Regulação e Marcação normatiza o fluxo dos usuários do SUS e de modo unidirecional (Unidade de Saúde da Família para especialidades ambulatoriais de média e alta densidade tecnológica). Como a perspectiva unidirecional e vertical pode orientar o fluxo diante das diferentes portas de entrada? Nesse contexto, como se dá o fluxo dos usuários do SUS quando se encontram nos serviços de saúde de maior densidade tecnológica, ou seja, o contrafluxo?

Entende-se que, por mais que diferentes profissionais estejam à frente dos diversos projetos terapêuticos dos pacientes, é importante definir, entre os envolvidos, o responsável por conduzir cada caso e orientar os fluxos e contrafluxos. Isso não significa assumir responsabilidade de todas as especialidades envolvidas no cuidado ao paciente, mas a capacidade de coordenar o diálogo para compreender cada caso e suas respectivas propostas terapêuticas, considerando o sujeito de forma global, conduzindo as discussões para definição de prioridades e determinando orientações a cada caso que transita pelo sistema de RCR (CUNHA; CAMPOS, 2011CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. S. Apoio Matricial e Atenção Primária em Saúde. Saúde Soc., v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000400013.
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).

Os gestores relataram que toda a rede; fórum interdisciplinar e intersetorial. Observamos tais ações nos trechos seguintes: realizam ações para o funcionamento da RCR, tais como atividades nas USF relacionados a outros níveis de densidade tecnológica; atividades na comunidade envolvendo

[...] a gente desenvolve atividades nas unidades relacionadas como outros níveis, outros setores, como a vigilância epidemiológica, é, rede hospitalar, além da rede básica mesmo, a gente envolve todos os níveis [...] atividades com, com a comunidade envolvendo todas as redes (C5G4).

[...] nesse planejamento de 2014 nos colocamos alguns fóruns, nesses fóruns são articulados as questões de na verdade vai ser um fórum interdisciplinar, um fórum intersetorial, onde vai existir uma articulação entre todos os serviços de urgência e emergência do município com toda a rede de assistência a saúde do município [...] (C3G6).

No entanto, os depoimentos dos gestores permitem a seguinte reflexão: essas atividades e fórum interdisciplinar, desenvolvidas para o funcionamento da RCR, enfatizam a aplicabilidade da RCR, sua importância para a integralidade do cuidado na RAS e o direito que os usuários têm de recebê-las? Todo gestor de saúde é um ator em situação de governo que deve cumprir suas responsabilidades e planejar a oferta de ações e serviços com base nas necessidades dos indivíduos que fazem parte da população. Aos gestores também cabem o cumprimento das metas assumidas pelos serviços de saúde dos diferentes níveis de densidade tecnológica, a regulação e o monitoramento dos resultados alcançados para avaliação e ajustes no planejamento das ações e serviços ofertados (PAULA; VOLOCHKO; FIGUEIREDO, 2016PAULA, S.H.B.; VOLOCHKO, A.; FIGUEIREDO, R. Linha de cuidado de câncer de mama e de colo de útero: um estudo sobre referência e contrarreferência em cinco regiões de saúde de São Paulo, Brasil. Boletim do Instituto de Saúde, v. 17, n. 2, p. 146-166, 2016. Available at: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/ses-34272. Retrieved: 20 May 2020.
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).

Ao longo de experiências na gestão de saúde do município em questão, observa-se que os gestores, em meio a tantas atribuições, podem por vezes deixar de exercer atividades fundamentais para o SUS. Como exemplo disso, parece ser observada uma não priorização do processo de educação permanente sobre RAS, gestão do cuidado e sobre referência e contrarreferência, arcabouços importantes à integralidade e, por conseguinte, fortalecimento do SUS, diretamente ligado ao fortalecimento do Pacto pela Saúde em suas três dimensões: Pacto pela vida, Pacto em defesa do SUS e o Pacto pela gestão, divulgado pelo Ministério da Saúde em 2006, os quais são focados na busca de superar a fragmentação das políticas e programas de saúde, bem como qualificar o acesso da população à atenção integral à saúde.

Por outro lado, os trabalhadores afirmam na pesquisa que em seu trabalho realizam educação em saúde; em seus depoimentos, deixam claro que são ações voltadas ao cuidado com a saúde alimentar, saúde do corpo, promoção e prevenção de doenças, mas não retratam ações educativas voltadas para a aplicabilidade da ficha de RCR e do direito que os usuários têm de receber a mesma, o que pode ser demonstrado através do relato abaixo:

Eu acho que a principal é a ação educativa, não é, de educação em saúde, não é? De conscientizar a população da importância de um cuidado com a saúde, de um cuidado com a alimentação, de um cuidado com o corpo, de uma prevenção é de doenças e de algo desse tipo e meu trabalho vai muito nesse sentido. Eu acho que ele é de uma importância muito grande para estar ajudando a população a melhorar a qualidade de vida (C7T26).

Nesse contexto, a educação em saúde fortalece o acesso às informações em saúde e empodera o cidadão na execução dos seus direitos. Um exemplo factível é a Carta de Direitos dos Usuários da Saúde, do SUS, que margeia situações que vão desde o direito de identificar o profissional que presta cuidado ao direito ao acesso ordenado e organizado ao sistema de saúde (BRASIL, 2007). Entretanto, a educação em saúde por si só não responde a todas as demandas emergentes para consolidação do SUS e a operacionalização da RAS.

Isso é intrigante, pois, ao que parece, ao mesmo tempo que os gestores afirmam desenvolver fórum intersetorial e interprofissional e atividades envolvendo toda a rede para o funcionamento da RCR, percebe-se que muitos não compreendem quais são as ações que devem ser desenvolvidas direcionadas ao funcionamento da RCR, quais ações implicam a efetividade da ficha de RCR. Isso faz pensar que essas ações dos gestores de saúde podem não ser suficientes para revelar aos trabalhadores de saúde a importância da RCR e as atividades necessárias a serem implementadas para a operacionalização da mesma, ou talvez pode acontecer que os gestores, em suas ações, não consigam revelar aos trabalhadores de saúde sua responsabilidade de efetivar a RCR nos seus espaços de trabalho.

Os trabalhadores de saúde precisam reconhecer quais ações de saúde devem ser implementadas para o alcance de uma assistência completa e o fortalecimento das RAS, em que o usuário seja o centro do seu trabalho, cumprindo suas tarefas e construindo estratégias para favorecer as tecnologias que viabilizam a integralidade do SUS. Assim, eles irão favorecer a construção de uma política de saúde eficaz, trazendo satisfação e resolutividade dos problemas à população que procura os serviços de saúde.

Ao discutir integralidade do cuidado, cabe refletir sobre suas dimensões: por um lado, é referida como um conjunto de serviços ofertados para a saúde da população, articulando ações preventivas com ações assistenciais suprindo as necessidades das pessoas; por outro, a integralidade inclui uma permanente organização e interação de recursos e profissionais nos diversos níveis de atenção à saúde (TORRALBO; JULIANI, 2016TORRALBO, F. A. P.; JULIANI, C. M. C. M. O sistema de referência e contrarreferência no atendimento ao adolescente: realidade x integralidade. Rev enferm UFPE online, v. 10, n. 3, p. 1016-21, 2016. DOI: 10.5205/reuol.8702-76273-4-SM.1003201610.
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).

A prática em saúde é um desafio no qual o trabalhador de saúde tem que buscar o comprometimento na perspectiva de construir ações de saúde articuladas e estabelecer a integração entre as informações de saúde geradas, integração entre os profissionais com vistas ao cuidado integral. Nesse sentido, se faz importante o comprometimento do trabalhador com o referenciamento do usuário durante seu percurso pelos serviços da rede. Logo, a atuação dos trabalhadores de saúde tem sido um constituinte importante no processo de cuidar dos usuários, pela complexidade que existe e comprometimento que deve existir na atuação profissional (PAULA JÚNIOR; RIZZON; MACHADO, 2018PAULA JÚNIOR, W. M. P.; RIZZON, A. M.; MACHADO, C. J. Comunicação entre profissionais como ferramenta para cuidado integral aos pacientes oncológicos por mecanismos de referência e contrarreferência. Revista Interdisciplinar Ciências Médicas, v. 2, n. 2, p. 1-5, 2018. Available at: http://revista.fcmmg.br/ojs/index.php/ricm/article/view/90. Retrieved: 22 May 2020.
http://revista.fcmmg.br/ojs/index.php/ri...
).

Portanto, é importante considerar a realização de ações educativas para os usuários da rede. Existe na Secretaria Municipal de Saúde do município em questão, o Relatório da sala de espera das Unidades de Saúde da Família, que comprova a existência de algumas ações educativas que aconteceram. No entanto, apenas três USF do município realizaram ações educativas referentes a RCR, e que ainda assim foram realizadas em parceria com o PET-SF e RAS através dos alunos e professores da universidade federal do município. Tiveram por finalidade esclarecer a função da RCR e tornar os usuários cientes do direito de receber e cobrar a RCR. Para isso, tiveram como temas: “O que é a referência e contrarreferência?”, “Referência e contrarreferência: o que eu tenho a ver com isso?”, “Referência e contrarreferência e RAS” e “Referência e contrarreferência: garantindo seus direitos”.

É visto que esse registro de ações educativas é autoexplicativo e consegue passar seu objetivo ao leitor; no entanto, não é orientador, não está disponível on-line nem é de fácil acesso às pessoas, o que poderia contribuir para que outros profissionais e até mesmo usuários entendessem a relevância dessas ações, e os profissionais fossem motivados a realizar tais atividades em seus serviços.

Uma ação compreendida como imprescindível para conferir mudanças nos trabalhadores de saúde é a educação permanente, que pode ser sugerida para o município em estudo, superando algumas dificuldades e fragilidades, pois não se mudam práticas sem primeiro mudar os sujeitos atores, sem formar pessoas. Ou seja, é preciso que o sujeito reconheça a realidade e a si mesmo para pode recriar as práticas em saúde (BRONDANI et al., 2016BRONDANI, J. E. et al. Desafios da referência e contrarreferência na atenção em saúde na perspectiva dos trabalhadores. Cogitare Enferm., v. 21, n. 1, p. 01-08, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v21i1.43350.
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). As mudanças que acontecem nas práticas em saúde requerem tempo para amadurecimento e consciência dos trabalhadores de saúde.

Conhecendo o Plano Municipal de Saúde (PMS) 2014-2017, documento que deveria ser público mas que foi acessado a partir de solicitação à Secretaria Municipal de Saúde, é possível observar um quadro de propostas e encaminhamentos realizados pelos grupos de trabalhos da 3ª Conferência Municipal no ano de 2011. Nele consta como proposta a implantação em toda a rede de saúde de um sistema efetivo de RCR, assim como a criação de um sistema informatizado para agendamento de consultas e para garantia da RCR.

Consta também nesse PMS, dentre os problemas priorizados, a baixa efetividade do sistema municipal de referência e contrarreferência. No entanto, quando se verificam nesse documento as ações propostas de educação permanente, planejadas para solucionar os problemas priorizados, percebe-se que em nenhuma delas há enfoque na RCR. Isso parece ser uma falha de planejamento, que deixa de lado um problema importante a ser solucionado. Pode-se sugerir aos gestores a observação desse problema e a criação de estratégias com objetivos e metas para reverter o quadro de baixa efetividade do sistema municipal de RCR.

As entrevistas dos trabalhadores entrevistados apontaram que eles colocam também como ação desenvolvida o diálogo e o cuidado não fragmentado, o qual pode ser representado por meio do depoimento a seguir:

[...] precisa existir o diálogo entre essas unidades. Se não dá para fazer é... Em reuniões, vamos tentar pelo menos que exista, no papel ou telefone essa relação porque se o mesmo paciente que eu estou recebendo aqui, a unidade “x” está recebendo, por vez o hospital “x” tá recebendo, por vez outras instituições é... Sociais estão recebendo, então é interessante que esse cuidado se dê em conjunto e não fragmentado (C8T3).

Afirmam, assim, a necessidade do diálogo para a continuidade do cuidado, para que as ações não se deem de forma fragmentada, e sim integral. E isso é inevitável, pois não há como existir cuidado continuado sem o diálogo, a troca de informações entre os profissionais e os serviços, o que se dá a partir do sistema de referência e contrarreferência. Se não há o compromisso com a RCR, não há cuidado não fragmentado, não há integralidade na rede.

O trabalhador enfatiza a importância do cuidado não fragmentado e para a existência do mesmo enfatiza a necessidade da RCR; no entanto, diz que se a RCR funcionar será um “sonho realizado”, o que deixa a entender e perceber ainda mais o quanto o ato de referenciar e contrarreferenciar está distante da prática para os trabalhadores, muito enfraquecido no município em questão. Essa discussão é enfatizada por outros trabalhadores:

[...] quando um paciente é referenciado para uma outra unidade e a gente não recebe uma contrarreferência, não sabe direito o que aconteceu com ele, não tem nenhuma informação sobre o que foi feito, o andamento da rede (C7T28).

O usuário, ao ser encaminhado para os serviços, carece de uma comunicação eficaz entre os profissionais por meio do sistema de referência e contrarreferência. A dificuldade dos indivíduos de serem referenciados com todas suas informações de saúde para outros serviços compromete o princípio da integralidade, impedindo a continuidade da assistência aos indivíduos (BRONDANI et al., 2016BRONDANI, J. E. et al. Desafios da referência e contrarreferência na atenção em saúde na perspectiva dos trabalhadores. Cogitare Enferm., v. 21, n. 1, p. 01-08, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/ce.v21i1.43350.
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). Ao contrário, a existência de retaguarda assistencial através do apoio matricial potencializa as equipes interdisciplinares e, consequentemente, pode resultar em melhores padrões de responsabilidade para a clínica ampliada e integração entre usuários e profissionais de forma mais humana e eficaz (CAMPOS; DOMITTI, 2007CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2007000200016
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
).

É visto na pesquisa que os trabalhadores de saúde trazem mais ações para o funcionamento da RCR que os gestores, demostrando também que os gestores podem não estar efetivando suas experiências no cotidiano para o funcionamento da RCR na rede. Os trabalhadores e gestores de saúde apresentam ações dissociadas, muito enfraquecidas, relatadas de forma sucinta, muitas não são pertinentes a efetividade da RCR e que juntas não são suficientes para efetivar o sistema de RCR, e nem todos possuem o compromisso de realizá-la. Portanto, a partir dos achados, pode-se inferir também que os gestores de saúde possuem poucas estratégias e suas ações demandadas aos trabalhadores são incipientes para o funcionamento da referência e contrarreferência.

Facilidades e dificuldades para o fluxo e contrafluxo dos usuários na Rede de Atenção à Saúde

No SUS destaca-se a existência de múltiplas redes entre os serviços de saúde, as quais se comunicam entre si, em diferentes percursos, formando as linhas de cuidado a partir da construção de fluxos conectivos. Para tanto, é a partir da formação de encontros entre trabalhadores e usuários que é possível desenvolver o trabalho em saúde, pois constroem fluxos de comunicações e permitem a formação de uma rede entrelaçada na prática do cuidado. Neste âmbito, a RCR faz parte dessa rede de comunicações, por articular os serviços de saúde a partir dos encaminhamentos mútuos de pacientes (TORRALBO; JULIANI, 2016TORRALBO, F. A. P.; JULIANI, C. M. C. M. O sistema de referência e contrarreferência no atendimento ao adolescente: realidade x integralidade. Rev enferm UFPE online, v. 10, n. 3, p. 1016-21, 2016. DOI: 10.5205/reuol.8702-76273-4-SM.1003201610.
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).

No que tange aos encaminhamentos, quando questionado aos usuários do SUS no município se eles recebem algum encaminhamento para outro serviço de saúde, a maioria afirma já ter recebido, poucos dizem que não. Quando perguntado aos mesmos usuários se já receberam algum formulário para ser devolvido na unidade de saúde, a maioria responde que não, poucos dizem que já receberam. Isso sugere que nem todos os usuários estão sendo encaminhados com a ficha de referência e quase todos estão retornando ao serviço de origem sem a contrarreferência.

Quanto perguntado aos usuários dos serviços de saúde do município quais facilidades são encontradas ao serem encaminhados na rede, a maioria remete às marcações que estão sendo realizadas nas USF ou no CAPS sem a necessidade de ir a CRM - marcações sem necessidade de enfrentar fila e a marcação que está acontecendo de forma mais rápida. Esses resultados podem ser exemplificados, respectivamente, nos depoimentos que seguem:

É mais fácil... É... mais rápido, não é muito demorado eu não acho demorado. Se eu fosse para eu ir lá para central para tá marcando por mim mesmo ia ser mais demorado do que sendo encaminhado pelo posto” (C2U1).

CAPS é um facilitador de encaminhamentos para quem tem problema, a gente não precisa enfrentar uma Central de Marcação, tudo a gente já vai encaminhado daqui (C8U8).

Observa-se que os usuários reportam facilidade nas marcações realizadas na USF, as quais antes eram na Central de Regulação e Marcação. No ano de 2013, o processo de descentralização das marcações foi implantado no município. As unidades assumiram as marcações de procedimentos e exames da população coberta por cada unidade, e os profissionais realizaram a priorização das marcações conforme as necessidades mais urgentes, encaminhando quinzenalmente via malote por transporte da secretaria municipal para a Central de Regulação e Marcação.

Ao tratar de dificuldades ao serem encaminhados, os usuários referiram: o número de vagas insuficientes para os serviços; o horário de chegada na CRM para conseguir vaga; as longas filas formadas no dia anterior a marcação; dificuldade de transporte para ir a CRM. Estas podem ser evidenciadas nos trechos abaixo:

A dificuldade que eu estou encontrando é que esses pessoal lá na central de marcação só fica me dizendo que não tá tendo vaga ainda e que tá esperando é terminar os pessoal que tem problema de câncer que é para depois é mandar me chamar, ligar para poder marcar o meu, já tem tudo lá, já estou esperando só ligar pá mim (C1U7).

Porque muitas vezes chega lá, não encontra... Não tem mais ficha, tem que dormir lá pra conseguir alguma ficha, ainda mais pra que tem filho, não pode tá saindo de madrugada pra dormir fora. É isso aí (C2U3).

Porque é longe, [risos] pegar transporte (C7U28).

Diante das facilidades e dificuldades reportadas pelos usuários nas entrevistas, percebe-se que o argumento comum para eles se encontra voltado para a marcação de especialidades e procedimentos para média e alta densidade tecnológica. Tanto os que se referem às facilidades quanto às dificuldades são relacionados à concretização dessas marcações, que se dão no âmbito da CRM e USF, constituindo o “gargalo” para esses usuários do município.

No entanto, essa concentração de facilidades e dificuldades no fluxo e contrafluxo dos usuários voltados a CRM e a USF, no sentido de conseguir ou não marcações para consultas e procedimentos de especialidades, sugere que os usuários dos serviços de saúde do município podem não possuir conhecimento acerca da ficha de referência e contrarreferência. Desta forma, podem também não a reconhecer como facilidade ou dificuldade ao serem encaminhados na rede, não tomando conhecimento da importância dessa ficha durante seu encaminhamento na rede e para a integralidade do cuidado. E ainda pode-se sugerir que, consequentemente, os usuários desconhecem o direito de recebê-la.

No município estudado, há um Manual de Procedimento Operacional Padrão da Central de Regulação e Marcação (2013), o qual é destinado à padronização dos procedimentos, exames e consultas solicitados do município para realização na policlínica municipal, hospital maternidade do município, hospital regional e prestadores conveniados da rede especializada, com o objetivo de universalizar o diálogo e ações, facilitando as marcações e efetivando o acesso da população e consecutiva resolução de suas necessidades.

Com base nesse Manual, os percursos predeterminados para os usuários do município são descritos de forma unidirecional, apenas com os fluxos da Atenção Básica para a média e alta densidade tecnológica. Não existem percursos descritos quanto aos contrafluxos dos usuários, revelando que quando o usuário já foi encaminhado, precisa percorrer outros serviços ou até mesmo retornar ao seu serviço de origem para continuidade do cuidado, pois não há possíveis direcionamentos descritos no manual para o mesmo. Os fluxos descritos nesse protocolo seguem de acordo com o fluxograma (figura 2):

Figura 2
Fluxo dos usuários na Rede de Atenção à Saúde de acordo com o Manual de Procedimento Operacional Padrão da Central de Regulação e Marcação do município estudado, 2013

Neste sentido, retornamos ao mapa da rede de atenção à saúde do município, apresentado na figura 1, onde estão expostas as diferentes possibilidades de fluxos e contrafluxos que o usuário pode estabelecer no seu processo de cuidado dentro da RAS, a depender de sua necessidade de saúde. Dessa forma, para efetivação da integralidade do cuidado, torna-se importante a adequação de um documento municipal que normatize os diferentes fluxos e contrafluxos dos usuários na RAS.

Esse documento deve transcender o discurso e a experiência de fluxo e contrafluxo na rede para a regulamentação do usuário, sendo regulado nos diferentes pontos da rede e que o permita permear esses pontos de diferentes densidades tecnológicas conforme suas necessidades, já que a descrição no documento do fluxo normatizado pelo município sai da USF e se esgota na policlínica, rede especializada, hospital regional e hospital maternidade, não descrevendo todos os caminhos que o usuário pode percorrer na RAS. O documento deve apresentar todas as possibilidades de fluxo e contrafluxo na rede do município e nortear os trabalhadores e usuários diante dos encaminhamentos; portanto, deve ser um documento orientador e autoexplicativo, que traduz seu objetivo, e de fácil acesso para que o usuário possa percorrer a RAS.

Dado o exposto e sabendo que o preenchimento da ficha de RCR possui valor indispensável para o cuidado do usuário, com atenção de qualidade que garante atendimento em todas as esferas de cuidado de acordo com as necessidades de saúde, além de organização racional dos fluxos e contrafluxos de informações (PEREIRA; MACHADO, 2016PEREIRA, J. S.; MACHADO, W. C. A. Referência e contrarreferência entre os 1033 serviços de reabilitação física da pessoa com deficiência: a (des)articulação na microrregião Centro-Sul Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 26, n. 3, p. 1033-1051, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312016000300016.
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), percebe-se que os usuários, ao serem encaminhados na RAS, precisam tomar conhecimento dos seus direitos e da relevância da RCR para o cuidado em saúde a ser aplicado pelos profissionais. De fato, isso não foi visto na pesquisa, pois os usuários em nenhum momento citam a RCR como facilidade ou dificuldade no encaminhamento, o que permite sugerir que não possuem compreensão da RCR.

A RCR poderia ser posta em argumentos pelos usuários como uma facilidade durante o encaminhamento na rede, pois, como já discutido aqui, permite o cuidado integral de qualidade ao indivíduo, ou talvez poderia ser colocada como uma dificuldade caso não estivesse sendo eficaz no município.

Para potencializar o funcionamento do sistema de RCR, o apoio matricial é sugerido, concomitantemente, para facilitar o processo por meio de especialista de apoio, que deve manter o contato com a equipe de referência e assumir decisões para o projeto terapêutico de cada paciente. Desse modo, a CRM seria acionada apenas na urgência e com o objetivo de acompanhar e avaliar os projetos terapêuticos de acordo com a pertinência (CUNHA; CAMPOS, 2011CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. S. Apoio Matricial e Atenção Primária em Saúde. Saúde Soc., v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902011000400013.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Considerações finais

Para que a rede seja estabelecida com integralidade, é necessário identificar estratégias importantes instituídas no SUS e fortalecê-las, bem como identificar os empecilhos para saná-los e ainda, reconhecer a relevância do sistema de referência e contrarreferência para a integralidade na RAS. Com esse intuito, a presente pesquisa foi idealizada. Em cumprimento aos seus objetivos, constata-se que os gestores e trabalhadores de saúde possuem diferentes concepções, entretanto, apresentadas de forma dissociada pelos entrevistados e que não representam a importância e a complexidade da RCR.

Verificou-se também que as ações dos gestores e trabalhadores de saúde para o funcionamento da RCR são incipientes; além disso, algumas ações não são pertinentes a efetividade da referência e contrarreferência.

Quanto aos usuários, identificou-se que todas as dificuldades e facilidades abordadas por eles durante seus percursos na rede concentram-se na CRM e USF, no sentido de conseguirem ou não as marcações para procedimentos e especialidades. Diante disso, sugere-se que os mesmos podem não possuir conhecimento acerca da RCR e logo não a reconhecem como uma facilidade ou talvez como dificuldade nos seus encaminhamentos na rede, não reconhecendo a ficha de RCR como importante para a construção do seu cuidado integral. Pode-se inferir ainda que os mesmos desconhecem o direito de recebê-la no ato do fluxo e contrafluxo nos serviços.

Embora a coleta para o desenvolvimento dessa pesquisa tenha sido finalizada no ano de 2014, observa-se a partir da discussão com base em publicações recentes, que os achados da realidade investigada se aproximam de muitas realidades do país e que em parte destas permanecem problemas no funcionamento da RAS com dificuldades persistentes no fluxo dos usuários. Os investimentos de cunho político e operacional no SUS nacional e local ainda não foram capazes de transpor as dificuldades ora apresentadas.

Ressalta-se que este estudo contribuiu para destacar a importância da construção de Redes de Atenção à Saúde e sua comunicação, destacando a RCR como instrumento potencial para o alcance dessa comunicação favorecendo a concretização de um dos princípios do SUS, a integralidade. Espera-se que os resultados e discussões deste estudo sirvam para que os profissionais de saúde vislumbrem Redes de Atenção à Saúde concretas e integradas, dispondo de cuidados continuados e contribuindo para a concretização das políticas públicas de saúde existentes e que assim os usuários disponham cada vez mais de assistência integral e de qualidade.

Recomenda-se, por fim, que outros estudos sejam realizados no sentido de investigar a RCR em outros contextos e cenários, e também o desenvolvimento de pesquisa-ação aliada com tecnologia de informação para fortalecer a operacionalização do fluxo e contrafluxo dos usuários na Rede de Atenção à Saúde.11 C. C. R. B. Oliveira: coleta de dados; análise de dados; conceitualização; gerenciamento de recursos; gerenciamento de projeto; investigação; metodologia; redação: preparo do original, revisão e edição; supervisão. E. A. L. Silva: aquisição de financiamento; coleta de dados; análise de dados; conceitualização; gerenciamento de recursos; gerenciamento de projeto; investigação; metodologia; redação: preparo do original, revisão e edição; supervisão. M. K. B. de Souza: coleta de dados; análise de dados; conceitualização; gerenciamento de recursos; gerenciamento de projeto; investigação; metodologia; redação: preparo do original, revisão e edição; supervisão.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2020
  • Aceito
    07 Dez 2020
  • Revisado
    20 Jan 2021
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