Resumo
Este estudo busca refletir sobre o movimento em prol da construção das Redes de Atenção à Saúde à luz dos fundamentos hermenêuticos, notadamente, na noção de jogo (Spiel) e suas repercussões para a Saúde Coletiva. Foi pautado a partir da experiência de pesquisa avaliativa de abordagem qualitativa sobre a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil desenvolvida no estado do Ceará. A discussão gira em torno de três unidades, a saber: organização e funcionamento dos serviços de saúde em redes; Jogo hermenêutico: fundamentos e relações; e Redes de Atenção à Saúde e o jogo hermenêutico: uma aproximação possível? A partir disso, foi possível compreender que o movimento em prol da constituição das Redes extrapola a dimensão técnica e a disponibilidade dos equipamentos, dispositivos e sujeitos. Por vezes, é capaz de se constituir independentemente do desenho já formatado pelos gestores e profissionais de saúde. A Rede também se constrói a partir dos próprios sujeitos, sejam eles usuários ou não, e é percebida como algo em movimento que se renova em constante repetição. Ela independe da atuação de cada um dos sujeitos que a compõem. A Rede por si só é o próprio sujeito, assim como jogo hermenêutico.
Palavras-chave:
saúde; hermenêutica; compreensão; avaliação de serviços de saúde; regionalização
Abstract
This study seeks to reflect on the movement towards the construction of Health Care Networks based on hermeneutic foundations, notably on the notion of Spiel and its repercussions for Collective Health. It was based on the experience of evaluative research of qualitative approach on the Maternal and Child Health Care Network developed in the state of Ceará. The discussion lists three units, namely: organization and operation of health services in networks; Hermeneutical game: fundamentals and relationships; and, Health Care Networks and the Spiel: a possible approach? From this, it was possible to understand that the movement towards the constitution of the networks goes beyond the technical dimension and the availability of equipment, devices and subjects. Sometimes it is able to constitute itself independently of the design already formatted by managers and health professionals. The Network is also built from the subjects themselves, whether they are users of health services or not and it is perceived as something in movement and that is renewed in constant repetition. It is independent of the performance of each of the subjects that compose it. The Network itself is the subject itself, as well as the Spiel.
Keywords:
health; hermeneutics; comprehension; health services evaluation; regional health planning
Introdução
A organização dos sistemas de saúde em Redes surgiu como resposta ao modelo fragmentado, hegemônico, organizado de forma isolada, sem comunicação entre os pontos de atenção à saúde e incapaz de prestar uma atenção contínua à população (SHIMIZU, 2013SHIMIZU, H. E. Percepção dos gestores do Sistema Único de Saúde acerca dos desafios da formação das Redes de Atenção à Saúde no Brasil. Physis. Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1101-1122, dez. 2013.; OPAS, 2009). Esse debate fez parte do Relatório Dawson, publicado em 1920 no Reino Unido, e ganhou destaque no Brasil desde o movimento de reforma sanitária que culminou na construção do SUS (ARRUDA et al., 2015ARRUDA, C. et al. Redes de atenção à saúde sob a luz da teoria da complexidade. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 169-173, mar. 2015.; KUSCHNIR; CHORNY, 2010KUSCHNIR, R.; CHORNY, A. H. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2307-2316, ago. 2010.; OPAS, 1964).
No Brasil, por meio da Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010, foram estabelecidas diretrizes para a organização e funcionamento dos serviços em Redes de Atenção à Saúde (RAS). Essa base normativa definiu as RAS como "arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas que são integradas por meio de sistemas de apoio técnico logístico e de gestão e buscam garantir a integralidade do cuidado" (BRASIL, 2010, p. 88). Aqui, alguns destaques foram elaborados, a saber: formação de relações horizontais entre os pontos de atenção; centro de comunicação na Atenção Primária à Saúde (APS); centralidade nas necessidades em saúde de uma população; responsabilização na atenção contínua e integral; cuidado multiprofissional; compartilhamento de objetivos e compromissos com os resultados sanitários e econômicos (ARRUDA et al., 2015ARRUDA, C. et al. Redes de atenção à saúde sob a luz da teoria da complexidade. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 169-173, mar. 2015.; BRASIL, 2010; 2011).
De fato, a temática de Redes de Atenção à Saúde (RAS) envolve aspectos diversos que contribuem para sua compreensão (ALBUQUERQUE; VIANA, 2015ALBUQUERQUE, M. V.; VIANA, A. L. A. Perspectivas de região e redes na política de saúde brasileira. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. esp., p. 28-38, dez. 2015.). Tal assunto, que agrega referenciais do “ser” e “fazer” aplicados à saúde, diz respeito a algo próprio da natureza das Redes, isto é, sua pluralidade construída a partir dos sujeitos (usuários, profissionais e gestores), além de setores, equipamentos e outros dispositivos.
O “ser” diante desse movimento em Rede está relacionado com questões de construção de uma identidade profissional alternativa, ou seja, seus comportamentos e atitudes. Não diz respeito somente aos profissionais e gestores desse setor diante da necessidade de organização e funcionamento das ações e serviços de saúde. Faz referência, também, à constituição dos próprios sujeitos que participam da experiência de cuidado e da busca por um modelo de saúde que responda às necessidades, demandas e representações percebidas nos territórios e comunidades. Nesse sentido, não cabe um processo único, predeterminado, a ser aplicado em toda e qualquer circunstância, mas antes passa pela atenção a uma situação na qual está em jogo algo mais que acontece na própria experiência do cuidado (GADAMER, 2006______. O caráter oculto da saúde. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.).
Já o “fazer”, a que estávamos nos referindo, busca responder a questões práticas, tais como: O quê? Para quê? Por quê? Como? Com que recursos? Em quanto tempo? Isto envolve a reunião de esforços e recursos para a materialização do cuidado em saúde que deve ser garantido por meio de estratégias de trabalho oportunas e adequadas à situação percebida, considerando o cenário e contexto em que atuam (FRANCO, 2015FRANCO, T. B. Redes de cuidado: conexão e fluxos para o bom encontro com a saúde. In: ALMEIDA, P. F.; DOS SANTOS, A. M.; DE SOUZA, M. K. B. (Orgs.). Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em regiões de saúde. Salvador: EDUFBA, 2015. 309p.).
Entre essas duas perspectivas do “ser” e “fazer”, alguns autores mencionam limitações para responder efetivamente às complexas necessidades e demandas de saúde de indivíduos e populações (AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, dec. 2004.; AYRES et al., 2003). Na tentativa de superar as limitações do sistema de saúde e construir alternativas para a organização das práticas de atenção à saúde no Brasil, algumas propostas foram elaboradas e estiveram apoiadas na humanização e integralidade no cuidado em saúde (AYRES, 2004; PINHEIRO; MATTOS, 2001PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro, UERJ, IMS: ABRASCO, 2001.).
Assim, tratar de Redes é considerar variadas possibilidades de compreensão das relações construídas entre os sujeitos, aliada à disponibilidade, acionamento, articulação e integração dos recursos. Desse modo, a hermenêutica filosófica de Gadamer pode ser um referencial teórico relevante para pensar essa proposta de lidar com o outro (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p.; AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, dec. 2004.; 2007) em sua condição de alteridade. Pode constituir um referencial importante para que os sujeitos (as pessoas, os profissionais de saúde, os gestores) repensem sobre as suas próprias atitudes e comportamentos no sentido de atuar de modo mais efetivo na busca da promoção da saúde, compreendendo o próprio processo do cuidado como um acontecer da saúde enquanto condição básica comum dos indivíduos envolvidos na construção das terapias.
Para isso, consideraremos o conceito de jogo (Spiel), noção-chave que possibilita a visualização de elementos de uma condição de relação estabelecida entre as partes, na relação que se encontra “em jogo” (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p.). Tal jogo diz respeito às relações que estão postas na Rede e que são construídas levando em consideração os sujeitos imersos em contextos e cenários específicos. Acreditamos que a noção de jogo pode nos ajudar o compreender os momentos não previstos pelas RAS e que, de alguma maneira, são necessidades e demandas da comunidade. Assim, pode nos ajudar a ressignificar a própria ideia de Rede.
Assim, este estudo busca refletir acerca do movimento em prol da construção das Redes de Atenção à Saúde à luz dos fundamentos hermenêuticos, notadamente, na noção de jogo (Spiel) e suas repercussões para a Saúde Coletiva. Trata-se de uma discussão ainda inexplorada na pesquisa em saúde e que menciona uma possível aproximação entre esses conceitos sob diferentes perspectivas. Aliado a isso, permite repensar nas atitudes e comportamentos dos sujeitos que estão inseridos na Rede na tentativa de superar a externalidade sujeito-objeto.
Para tanto, exploramos, de um lado, o referencial teórico da Saúde Coletiva acerca do movimento em prol da construção das Redes de Atenção à Saúde (RAS); e de outro, a proposta de Hans-Georg Gadamer acerca da noção hermenêutica de jogo (Spiel). Vale mencionar que essa aproximação foi realizada a partir da experiência de pesquisa avaliativa (GUBA; LINCOLN, 2011GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Avaliação de quarta geração. Campinas: Unicamp. 2011.) de abordagem qualitativa (BOSI; MERCADO-MARTÍNEZ, 2004BOSI, M. L. M; MERCADO-MARTÍNEZ, F. J. (Org.). Pesquisa Qualitativa de Serviços de Saúde. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.; TONG; SAINSBURY; CRAIG, 2007) sobre a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil no estado do Ceará (TAJRA; PONTES; CARVALHO, 2017TAJRA, F. S.; PONTES, R. J. S.; CARVALHO, F. H. C. The possible meanings of care: self-care and care-for-the-other. Invest. educ. enferm, Medellín, v. 35, n. 2, p. 199-209, ago. 2017.).
Após essa imersão em campo e o resgate à contribuição filosófica de Gadamer, elaboramos uma discussão a partir de três unidades, a saber: Organização e funcionamento dos serviços de saúde em redes; Jogo hermenêutico: fundamentos e relações; e Redes de Atenção à Saúde e o jogo hermenêutico: uma aproximação possível?11 Artigo inédito e produto de tese de doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará, financiada com recursos próprios. Os autores declaram não haver conflito de interesses na concepção deste trabalho.
Organização e funcionamento dos serviços de saúde em redes
As Redes de Atenção à Saúde (RAS) constituem produto do processo de regionalização adotado pelo Brasil após o movimento em prol do incentivo à autonomia e independência dos municípios e estados (SILVA, 2011SILVA, S. F. Organização de redes regionalizadas e integradas de atenção à saúde: desafios do Sistema Único de Saúde (Brasil). Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2753-2762, jun. 2011.). Isso significa dizer que não podemos dissociar essa temática, também, da experiência de descentralização que o país vivenciou na década de 90 (ARRETCHE, 2011ARRETCHE, M. T. S. Estado Federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 304p.; LIMA et al., 2012LIMA, L. D. et al. Descentralização e regionalização: dinâmica e condicionantes da implantação do Pacto pela Saúde no Brasil. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 17, n. 7, p. 1903-1914, jul. 2012.).
O princípio da descentralização permitiu constituir um cenário único da gestão na saúde, uma vez que passou a responsabilidade da tomada de decisões e condutas o mais próximo possível de onde surgiam os fatos. A partir disso, cada um dos estados e municípios começou a construir uma identidade própria de gestão (ARRETCHE, 2011ARRETCHE, M. T. S. Estado Federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 304p.). Acreditamos que isso foi bastante coerente, uma vez que o processo de tomada de decisões deve ficar mais próximo possível do lugar onde emergem as demandas e necessidades. Isso possibilitaria a elaboração de um plano de ação baseado na experiência de cada um dos sujeitos implicados.
Após uma década inteira de aperfeiçoamento do processo de gestão da saúde e investimento quanto à descentralização, foi possível tratar da regionalização. Esta buscou ampliar a percepção sobre si mesmo e sobre o outro na perspectiva da garantia do direito à saúde. Isso incluiria o reconhecimento da capacidade instalada, potencial produtivo, recursos disponíveis, formação e qualificação do potencial humano e rede de apoio e logística. Nesse sentido, os municípios deveriam conhecer suas necessidades, agregar recursos para a elaboração de respostas às demandas, perceber seus limites e buscar estabelecer pactuações independente de seus limites territoriais (SOUZA, 2001SOUZA, R. R. A regionalização no contexto atual das políticas de saúde. Ciênc. saúde coletiva, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 451-455, 2001.; VIANNA; LIMA, 2013VIANNA, R. P.; LIMA, L. D. Colegiados de Gestão Regional no estado do Rio de Janeiro: atores, estratégias e negociação intergovernamental. Physis. Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1025-1049, dez. 2013.).
A percepção sobre si mesmo, enquanto município, deveria reunir aspectos de estrutura, processo e resultados próprios para, em seguida, desencadear um processo de avaliação e compreensão sobre sua realidade. Já a percepção sobre o outro deveria agregar conhecimento sobre o potencial de outros municípios na busca de compartilhar recursos e atender às suas necessidades. Isso deveria estar aliado à compreensão ampliada de território e exercício de uma postura solidária entre os municípios envolvidos (SOUZA, 2001SOUZA, R. R. A regionalização no contexto atual das políticas de saúde. Ciênc. saúde coletiva, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 451-455, 2001.; VIANNA; LIMA, 2013VIANNA, R. P.; LIMA, L. D. Colegiados de Gestão Regional no estado do Rio de Janeiro: atores, estratégias e negociação intergovernamental. Physis. Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1025-1049, dez. 2013.). Na medida em que essas relações se efetivam (entre os sujeitos, setores, serviços e / ou municípios), são construídas as RAS. Sendo assim, cada encontro ou cada aproximação entre os sujeitos ou sujeito-serviços, tendo em vista a atenção à saúde, de forma articulada e integrada e legitimada por um processo de pactuação e programação, compõe o conjunto expresso nessa trama.
Por definição, as RAS envolvem diferentes unidades de gestão, interdependentes, motivadas por uma finalidade própria e dispostas em um regime de cooperação mútua, que possibilitam a garantia do direito à saúde. A efetivação da integralidade é um de seus princípios e, junto à economicidade e humanização, busca relacionar o acesso às ações e serviços de saúde aos sujeitos em tempo, lugar, custo e qualidade adequados (MENDES, 2010MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2297-2305, aug. 2010.). Para isso, depende de um processo de corresponsabilização e perspectiva solidária.
Vale comentar que a definição de território expressa pela diretriz de regionalização é limitada e segue as orientações do Estado. O território seria definido por uma base normativa e estaria relacionado com a delimitação de um espaço geográfico que reunisse elementos técnico-administrativos já definidos historicamente.
Compreendemos, contudo, que para a busca do cuidado, há uma referência espacial, mas não há necessariamente um limite estabelecido (MONKEN et al., 2008MONKEN, M. et al. O território na saúde: construindo referências para análises em saúde e ambiente. In: CARVALHO, A. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.). No movimento em busca do cuidado, os sujeitos constroem percursos diversos que atendem ou não àqueles previstos em bases normativas. Não se preocupam onde e como conseguir experimentar respostas às suas necessidades; recorrem a estratégias múltiplas instituídas ou não (TAJRA; PONTES; CARVALHO, 2017TAJRA, F. S.; PONTES, R. J. S.; CARVALHO, F. H. C. The possible meanings of care: self-care and care-for-the-other. Invest. educ. enferm, Medellín, v. 35, n. 2, p. 199-209, ago. 2017.). Aqui, poderíamos fundamentar o conceito de Redes de Cuidado que seriam construídas a partir daquilo que é, de fato, reconhecido como necessidade e demanda pelos próprios sujeitos (FRANCO, 2015FRANCO, T. B. Redes de cuidado: conexão e fluxos para o bom encontro com a saúde. In: ALMEIDA, P. F.; DOS SANTOS, A. M.; DE SOUZA, M. K. B. (Orgs.). Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em regiões de saúde. Salvador: EDUFBA, 2015. 309p.).
No que diz respeito ao investimento do governo brasileiro que busca sustentar essa proposta, foram elaboradas bases normativas relevantes para a constituição das RAS. A Portaria nº 4.279/2011, por exemplo, mencionou aspectos teórico-conceituais e operacionais para sua materialização. Além disso, o Decreto nº 7.508/2012 apontou a contratualização numa perspectiva regional e solidária que agregasse recursos diversos para a sua efetivação (SHIMIZU, 2013SHIMIZU, H. E. Percepção dos gestores do Sistema Único de Saúde acerca dos desafios da formação das Redes de Atenção à Saúde no Brasil. Physis. Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1101-1122, dez. 2013.). Com base nisso, foram definidas redes temáticas que respondessem às diversas expressões das questões sociais que acometiam o país. Sendo assim, foram mencionadas redes voltadas à saúde materna e infantil, urgências, pessoas com deficiência, demandas psicossociais e destinadas aos pacientes crônicos.
A Rede Cegonha, por exemplo, foi proposta em consonância com o movimento de alcance internacional em prol da saúde materna e infantil. Um de seus grandes desafios é a redução da mortalidade materna e infantil (componente neonatal). Nesse sentido, parte da organização e funcionamento de serviços de forma articulada e integrada, a fim de constituir uma trama que possibilite efetivar o direito à saúde de mulheres e crianças (CAVALCANTI, 2013CAVALCANTI, P. C. S. et al. Um modelo lógico da Rede Cegonha. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 4, p. 1297-1316, dec. 2013.; TAJRA; PONTES; CARVALHO, 2017TAJRA, F. S.; PONTES, R. J. S.; CARVALHO, F. H. C. The possible meanings of care: self-care and care-for-the-other. Invest. educ. enferm, Medellín, v. 35, n. 2, p. 199-209, ago. 2017.).
Vale ressaltar que as RAS seguem uma contratualização prévia. Surgem da identificação de pontos de atenção à saúde potenciais, disponibilização da carteira de serviços, pactuação e programação em coerência com aspectos elencados por meio da Epidemiologia. São destinadas aos sujeitos; no entanto, correspondem a uma construção da gestão em saúde e nem sempre envolvem os profissionais de saúde e comunidade na tomada de decisões. Percebemos, no entanto, que os profissionais de saúde têm assumido, cada vez mais, papel instrumental de cumprimento à proposta elaborada pelas esferas administrativas. De fato, a atuação da comunidade tem sido colocada em segundo plano. Não temos assegurada a participação da comunidade na construção dessa trama. Isso corresponde a uma relação técnica que não dá conta do conceito ampliado de saúde (TAJRA; PONTES; CARVALHO, 2017TAJRA, F. S.; PONTES, R. J. S.; CARVALHO, F. H. C. The possible meanings of care: self-care and care-for-the-other. Invest. educ. enferm, Medellín, v. 35, n. 2, p. 199-209, ago. 2017.).
A reflexão que pretendemos lançar aqui neste artigo é se, de fato, a Rede existe ou não, uma vez que são valorizados aspectos técnico-administrativos em detrimento das relações informais que se constroem na busca pelo cuidado em saúde. Além disso, gostaríamos de saber como ela se materializa. Acreditamos que a proposta de jogo (Spiel) hermenêutico de Gadamer pode fundamentar este nosso debate e contribuir para a elaboração de possíveis respostas a estes questionamentos. A seguir, trataremos de alguns conceitos importantes para a fundamentação de nossa reflexão. Logo após, buscaremos relacionar esses dois assuntos.
Jogo hermenêutico: fundamentos e relações
A hermenêutica filosófica constitui uma orientação do pensamento contemporâneo que pretende esclarecer os modos como lidamos com as coisas em geral, nos termos da compreensão (Verstehen), como fenômeno básico de relação com as coisas e com os outros, além de suas repercussões (GRONDIN, 2012GRONDIN, J. O pensamento de Gadamer. São Paulo: Paulus, 2012. 536p.). Um dos principais representantes dessa corrente foi o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, que não somente desenvolveu uma concepção própria de hermenêutica, mas também buscou relacionar seu pensamento a diversos temas relevantes para a sociedade contemporânea, como o direito, a literatura, as artes e, entre eles, a saúde (DE LA MAZA, 2005DE LA MAZA, L. M. Fundamentos de la filosofía hermenéutica: Heidegger y Gadamer. Teol. vida, Santiago, v. 46, n. 1-2, p. 122-138, 2005.; ARAUJO; PAZ; MOREIRA, 2012ARAUJO, J. L.; PAZ, E. P. A.; MOREIRA, T. M. M. Hermenêutica e saúde: reflexões sobre o pensamento de Hans-Georg Gadamer. Rev. esc. enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 200-207, fev. 2012.).
Um dos conceitos-chave de seu pensamento, a noção de jogo (Spiel), foi desde o primeiro momento concebido como um elemento estrutural da relação entre intérprete e seu objeto, não mais em termos estritamente objetivos, mas a partir de uma relação, desde sempre atuante que, por conseguinte, aproxima esses dois polos. Em outras palavras, o jogo é o momento teórico e prático chave no qual um sujeito se relaciona com outro sujeito ou com um objeto e se coloca numa condição de relação próxima a ele, podendo inclusive ser transformado por ele e vice-versa. Dito de outra forma, é a estrutura do jogo que rompe com o caráter previamente objetivo e científico da relação estabelecida entre o sujeito e seu objeto, pois é no entregar-se à relação, ou seja, no jogar, que aparece a condição básica relacional mais própria, anterior à concepção científico-objetiva já estabelecida. Conforme afirma Gadamer, “o modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como se fosse um objeto” (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p., p. 155). Assim, compreendemos que o jogo se constitui em um processo interativo, experiencial e dialógico (ALVES, 2011ALVES, M. A. O modelo estrutural do jogo hermenêutico como fundamento filosófico da educação. Ciênc. educ. (Bauru), v. 17, n. 1, p. 235-248, 2011.).
Considerando a condição dos envolvidos no jogo, ou seja, os que estão no engajamento lúdico em uma situação, não está em jogo um sujeito diante de um objeto, mesmo encontrando uma “afinidade estranha” (LAWN, 2006LAWN, C. Wittgenstein and Gadamer: towards a post-analytic philosophy of language. London and New York: Continuum, 2006, 160p., p. 133) com Wittgenstein e sua concepção de jogos de linguagem. Tendo em vista o pensamento de Wittgenstein, Gadamer compreende a noção de jogo em outra perspectiva, enfatizando uma concepção de linguagem distinta, mesmo que ainda se aproxime de Wittgenstein ao afirmar o caráter linguístico e teorético do jogo, tal como está presente na formulação wittgensteiniana de jogos de linguagem.
Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que a formulação do modo de processar do jogo em Gadamer está inserida em sua discussão crítica da estética filosófica na tentativa de salientar uma experiência hermenêutico-ontológica da obra de arte, ressaltando especialmente as contribuições de Johann Huizinga, notadamente em sua obra Homo Ludens e de I. Kant na Crítica do Juízo.
Mesmo se referindo, posteriormente, a Wittgenstein e seus jogos de linguagem e seu caráter analítico de pensar a linguagem humana e seu caráter comunicacional, Gadamer não perde de vista o horizonte de consideração do modo de ser do jogo enquanto uma estrutura que não tem fundamento puramente subjetivo, mas constitui-se enquanto um processar no qual o evento interpretativo-linguístico da compreensão acontece à medida que os jogadores estão envolvidos no próprio jogo. Ressalta, assim, o aspecto de relação como um elemento que possibilita pensarmos o acontecer linguístico enquanto uma experiência lúdica de um sujeito sempre em relação.
A manifestação do jogo, percebido como parte do processo de compreensão, tem implicações importantes para se pensar as relações estabelecidas na área de saúde. Isso sem perder de vista a ideia de que a saúde é, ao mesmo tempo, uma experiência pessoal e comunitária. Gadamer inspira-nos a pensar que toda relação estabelecida em um ambiente tendo em vista o cuidado em saúde requer algo mais que a consideração do paciente como um corpo a ser curado a partir de um protocolo objetivo. É importante também considerar mais um passo, ou seja, certo envolvimento com o paciente, não mais limitando-o a um corpo enfermo, mas como alguém com que nos relacionamos pela atenção e cuidado da sua saúde e da comunidade da qual ele faz parte. O jogo traz-nos uma condição na qual as medidas para a promoção da saúde impõem-se na relação, ou seja, no jogar. Em geral, o jogo está referido a um movimento lúdico, mas também social e cultural que agrega pontos importantes para a reflexão acerca do modo de “ser” e, consequentemente, sobre o modo do “agir” (GADAMER, 1985GADAMER, H. G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 83p.; 2015).
O sentido do apresentar do jogo (Spiel) como algo caracterizado pela relação de pelo menos dois elementos que jogam, significa dizer que cada um de seus jogadores (Spielenden) está sob os efeitos das tensões e expectativas desta relação (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p.). Isso amplia a perspectiva de jogo que trazemos até aqui. Se pensarmos, por exemplo, em uma partida de futebol, percebemos o jogo a partir da disputa da bola entre as equipes adversárias na perspectiva de gol. Contudo, o sentido do jogo que apresentamos é construído sob um ponto de vista ampliado. Além das equipes de jogadores, também participam do jogo seus técnicos e preparadores físicos, árbitros, espectadores, presidentes dos clubes, patrocinadores, trabalhadores do estádio, equipe da televisão ou rádio, cambistas, todos que, direta ou indiretamente, estão envolvidos com aquela apresentação. Cada um destes atores assume papel diante dele e, assim, o jogo se configura como uma representação. Ao mesmo tempo, se pensarmos em um estabelecimento de saúde, o jogo também acontece, provocando uma série de repercussões para além da relação entre o agente (profissional) e o paciente (usuário). Não está restrito somente à consulta médica. Em torno de um estabelecimento de saúde, também estão em jogo diversos atores que participam direta e indiretamente dos processos de atenção e cuidado em saúde, ampliando o próprio movimento do jogo.
Podemos ainda mencionar que, para compreender o jogo hermenêutico, é importante percebê-lo em sua totalidade e não somente a relação dos jogadores com a bola naqueles 90 minutos previstos. O jogo tem um tempo próprio que extrapola o período de bola em campo. Envolve um período antes, durante e após a partida, e não está relacionado apenas ao resultado imediato. Isso também se aplica à saúde. O jogo envolve um período antes, durante e após a ação ou serviço a ser estabelecido entre os sujeitos. Abrange a assistência, mas também as ações que visam transformar os saberes e práticas tendo em vista o cuidado em saúde. Ou seja, há no jogo, seja em um estádio ou em um hospital, um modo de processar próprio, com temporalidade própria, especialmente, considerando a relação entre as partes e o todo. Essa questão é própria do modo de ser interpretativo de relação com as coisas que o próprio jogo promove. Assim, podemos mencionar que o jogo é o que chamamos de “o próprio acontecer hermenêutico” (ALVES, 2011ALVES, M. A. O modelo estrutural do jogo hermenêutico como fundamento filosófico da educação. Ciênc. educ. (Bauru), v. 17, n. 1, p. 235-248, 2011.).
Aliado a isso, o jogo possui uma narrativa própria que pode ser descrita por diferentes olhares. Cada um dos envolvidos pode narrar uma experiência particular e mencionar uma possível compreensão do jogo da forma como participou e interagiu (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p.). Isso acontece independentemente da bola rolando na partida de futebol ou durante uma consulta médica, porque o jogo produz uma atmosfera singular que é capaz de preencher cada um dos envolvidos, levando-os a considerar os mais diversos aspectos em jogo na relação. Desse modo, para compreender o jogo, é preciso apropriar-se de um “ser-jogado” que provoca uma reação em cada um dos envolvidos e cria essa atmosfera que lhe é própria. A partir disso, percebemos o jogo como a realização do movimento como tal. Sendo assim, acontecem e imprimem-se riscos. Nesse caso, os riscos são percebidos como oportunidades ou ameaças a depender daquilo ou de quem se adota como referencial.
Outro aspecto que deve ser destacado nesse debate é a possibilidade de liberdade de decisão no jogo. Na medida em que os fenômenos se sucedem, surgem demandas para o agir. Aqui, as escolhas são parte constituinte desse movimento. Não se trata de uma ação acrítica. Cada uma dessas escolhas carrega em si uma influência histórica, cultural, social e política. Isso acontece mesmo que de maneira imperceptível.
É importante mencionar, ainda, que nenhum dos elementos que jogam são insubstituíveis. Qualquer elemento joga quando está em relação com outro independentemente se cada um joga num sentido e modo diferente, se possui metas ou não, etc. Como afirma Gadamer, o jogo “só cumpre a finalidade que lhe é própria, quando, aquele que joga, entra no jogo” (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p., p. 155). Não é possível, contudo, graças à condição livre do próprio jogo, ser jogado duas vezes da mesma forma; cada jogo é uma possibilidade que não acontece mais de uma vez. Isso significa dizer que, mesmo sendo diferente a cada situação diferente, ainda, é compreendido como jogo.
Após esse momento de apropriação teórico-conceitual, passaremos a relacionar cada uma dessas temáticas.
Redes de Atenção à Saúde e o jogo hermenêutico: uma aproximação possível?
Do ponto de vista técnico e instrumental, o processo de regionalização e implantação das Redes de Atenção à Saúde (RAS) pode ser abordado por meio de vários tipos de estudo como, por exemplo, análise do potencial regional de cada um dos agregados territoriais (regiões e macrorregiões de saúde), análise do processo de trabalho e gestão, monitoramento e avaliação dos seus indicadores, dentre outros. Podem seguir naturezas diversas que compreendem, por exemplo, a estrutura, o processo e os resultados.
Aliado a isso, podemos relacionar aspectos importantes que dizem respeito aos próprios comportamentos e atitudes dos sujeitos que constroem essas relações na perspectiva das Redes. Isso amplia a nossa compreensão sobre a temática para além da articulação entre os setores e programação de serviços. Trata também das relações que ali surgem entre os sujeitos que atuam nessa trama. Esses mesmos sujeitos, imersos nesse cenário e mediante a sua relação, por si só, já produziria efeitos. Já desenvolveria uma atmosfera e preencheria os sujeitos envolvidos. É nesse ponto que buscamos relacionar a ideia do jogo hermenêutico de Gadamer.
Assim, um município de pequeno porte, por exemplo, com os seus recursos limitados, não se isentaria da constituição dessa atmosfera. Isso se justificaria pelo fato de que a comunidade, os profissionais de saúde e gestores (jogadores ou participantes), na busca pela efetivação do cuidado em saúde, promoveriam uma tensão que se assemelharia àquela proposta no jogo hermenêutico. Na medida em que os líderes comunitários, profissionais das áreas afins, gestores e demais representantes (espectadores ou não) mantivessem sua aproximação com o setor saúde na intenção de otimizar o bem público e garantir esse direito social, ampliaríamos a tensão entre os sujeitos e, com isso, a sua atmosfera própria. Quanto maior a atuação de cada um deles, maior seria o seu alcance.
A partir do momento em que o município de pequeno porte reconhece que deverão ser estabelecidos laços com municípios vizinhos para a constituição de regiões de saúde na perspectiva da garantia do acesso às ações e serviços de saúde nos mais variados níveis de atenção e exercício da integralidade, seus limites geográficos e políticos seriam ultrapassados e a atmosfera, expandida. Assim, um sujeito que reconhece uma demanda e vislumbra o cuidado a partir do encontro com um profissional em determinado equipamento de saúde, experimenta (ou compreende) a proposta de jogo hermenêutico. Na medida em que o profissional de saúde conta com o acionamento de novos atores para a ampliação do cuidado, são oportunizadas novas relações e a ampliação da tensão entre eles. O efeito disso pode mesmo ser o acesso, a efetivação da assistência e, consequentemente, o restabelecimento do estado de saúde, conforme o princípio hermenêutico (AYRES, 2007______. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 43-62, abr. 2007.; GADAMER, 2006______. O caráter oculto da saúde. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.). Dessa forma, o objetivo seria cumprido, mesmo que pontualmente. No entanto, seriam necessários outros elementos para que se efetivasse uma transformação nas suas vidas. Só assim poderíamos mencionar a garantia do cuidado em saúde. Essa seria a confirmação do conceito já expresso de Redes de Cuidado (FRANCO, 2015FRANCO, T. B. Redes de cuidado: conexão e fluxos para o bom encontro com a saúde. In: ALMEIDA, P. F.; DOS SANTOS, A. M.; DE SOUZA, M. K. B. (Orgs.). Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em regiões de saúde. Salvador: EDUFBA, 2015. 309p.).
Na discussão sobre as RAS, uma trama com profissionais de saúde dispersos em equipamentos de diferentes níveis de atenção integrados, seguindo protocolos previamente elaborados e conduzidos por gestores articulados, estaria à disposição da comunidade. A intenção seria oportunizar a assistência aos sujeitos, na medida em que fossem percebidas necessidades e demandas para a saúde. Isso poderia ser oportunizado no próprio município ou, de forma alargada, envolvendo municípios de uma mesma região de saúde. Contudo, isso não tem sido percebido ou mesmo tem se dado de forma insuficiente. Quando percebido, mantém uma função instrumental (TAJRA; PONTES; CARVALHO, 2017TAJRA, F. S.; PONTES, R. J. S.; CARVALHO, F. H. C. The possible meanings of care: self-care and care-for-the-other. Invest. educ. enferm, Medellín, v. 35, n. 2, p. 199-209, ago. 2017.).
De fato, o processo de trabalho e de gestão constitui um aspecto que devemos levar em consideração quando se trata das Redes. Há a necessidade de se pensar na programação, organização, comunicação e funcionamento dos serviços, bem como nas estratégias de abordagem e materialização do cuidado em cada um dos casos. A elaboração de um mapa da saúde, a adoção de protocolos, o desenho de fluxos e a perspectiva de matriciamento são aspectos importantes nesse sentido e precisam ser discutidos, quando se pretende experenciar as Redes.
No entanto, parte das relações a serem construídas e dizem respeito aos comportamentos e atitudes. Isso também deve ser pautado, quando se pretende compreender a temática de Redes. Aqui, é importante ressaltar que a Rede citada faz referência a uma experiência e isso se materializa na medida em que se vive. O sujeito, na medida em que percebe e reconhece que algo interfere no seu estado de equilíbrio, busca possibilidades para seu restabelecimento (cuidar-de-si). Isso também acontece, quando outros sujeitos, próximos ou não a ele, percebem ou reconhecem algo (cuidar-dos-outros). A materialização do cuidado é aqui percebida por meio dos encontros com outros sujeitos e com os diversos serviços de saúde e de assistência que tem contato. Esse é um primeiro exercício de Redes de Cuidado. Contudo, independentemente da relação de cuidado direta, é possível manter um contato com essa Rede, seja como ator principal ou coadjuvante, expectador ou equipe de apoio.
Quando mencionamos a experiência, não estamos nos referindo ao comportamento, estado de ânimo ou liberdade assumida pelos atores que a compõe. Sua finalidade não se encontra nisso. Estamos tratando do seu modo de ser e da essência que lhe são próprios. Nesse sentido, é importante oportunizar experiências diversas para se construir uma Rede que lhe é própria.
Para os atores que integram a Rede, a estrutura rígida proposta e já instituída não é o quesito mais relevante e, independentemente dela, são construídas novas possibilidades. Até mesmo observamos que essas novas possibilidades ora se justapõem àquilo que já está definido e seguem os mesmos caminhos pré-formatados, ora são traçadas na medida em que se experiência sem a preocupação com o rigor de qualquer percurso proposto. A Rede é percebida como algo em movimento e que se renova em constante repetição. Ela independe da atuação de cada um dos sujeitos que a compõem. A Rede por si só é o próprio sujeito, assim como jogo hermenêutico.
É importante comentar, ainda, que mesmo a Rede assumindo um papel de sujeito, os atores (“jogadores”) não são passivos a ela. Todos têm liberdade para construir novos caminhos e criar novas possibilidades. No entanto, essa liberdade não está relacionada à ausência de riscos. A própria Rede pode ser vista como um risco para aquele que a experiencia. No âmbito da Rede, os atores escolhem seguir ou renunciam a ela em detrimento de outra possibilidade a ser construída e experimentada. Usualmente, delimitam expressamente seu comportamento frente aos outros pelo fato de que pretende e quer construir uma Rede. Também realiza sua escolha no âmbito da sua disposição em “jogar”, “escolhe este jogo e não aquele” (GADAMER, 2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p., p. 161).
Cada experiência de Rede direciona uma tarefa aos seus integrantes. Nos casos de Redes já instituídas, as tarefas são impostas; nas Redes em construção, as tarefas são edificadas a partir desse processo. No entanto, isso não garante que seja mantido o diálogo e a participação. Aliado a isso, há a necessidade de reflexão acerca da relação de cada um dos atores com a Rede. De acordo com Gadamer (2015______. Verdade e método. V. 1. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. 631p., p. 162), “o entregar-se à tarefa do jogo é, na verdade, um modo de identificar-se com o jogo”. Nesse sentido, os usuários, profissionais de saúde e gestores exercem às suas tarefas na medida em que se identificam e se veem parte da rede formada.
De uma forma geral, o “jogo” adquire uma identidade hermenêutica e cria uma esfera de atração que envolve cada um dos “jogadores” (GADAMER, 1985GADAMER, H. G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. 83p.). É esse campo que preenche o “jogador” com o seu espírito (GADAMER, 2015). Nesse aspecto, é importante apontar que “é aquele que não participa do jogo, mas assiste quem faz a experiência mais autêntica e que percebe a ‘intenção’ do jogo” (GADAMER, 2015, p. 164).
Considerações finais
A partir de uma perspectiva hermenêutica, o jogo está relacionado com as relações que estão participando da Rede, sejam elas oportunizadas pelos usuários, família e comunidade, a equipe e profissionais de saúde disponíveis, os gestores envolvidos, os estabelecimentos sociais e de saúde em que foram pensadas e nas relações se constroem nesses cenários e contextos.
Por um lado, a ideia de jogo ajuda-nos a ressignificar a própria ideia de Rede, ou seja, permite repensar não somente a organização e o funcionamento das ações e serviços, mas o próprio modo como se pensa a saúde nos termos de um acontecimento, que é também possível por meio de uma experiência relacional básica na qual estão inseridos os procedimentos terapêuticos e a gestão em saúde. Por outro, pode ser um dispositivo para que os sujeitos pensem em suas próprias práticas, atitudes e comportamentos, no sentido de atuar de modo mais efetivo na promoção da vida. Isso porque não se limita a compreender cientificamente a própria saúde, mas também a considera como um processo social e coletivo, no qual está em jogo não somente a cura daquele paciente, mas a promoção de práticas de saúde na própria comunidade em jogo em que todos estão inseridos.
O jogo ajuda, ainda, a repensar tais questões que, muitas vezes, não estão claras ou são desconsideradas, quando se pensa na própria natureza da Rede, não somente enquanto proposta, mas também em seu efetivo funcionamento. É interessante pensar que a figura do jogo também considera as inúmeras eventualidades que muitas vezes são reconhecidas, especialmente, quando se busca o cuidado em saúde, mas nem sempre são evidenciadas. Por isso, o processo hermenêutico do jogo pode ser um bom caminho para refletir e lidar de modo prático com os diversos desafios da Rede.22 F. S. Tajra: concepção, coleta, análise e interpretação dos dados, além da redação do artigo. G. S. Batista, R. J. S. Pontes e F. H. C. Carvalho: concepção, análise e interpretação dos dados, revisão crítica do artigo e aprovação da versão a ser publicada.
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- 1Artigo inédito e produto de tese de doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará, financiada com recursos próprios. Os autores declaram não haver conflito de interesses na concepção deste trabalho.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Nov 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
22 Dez 2019 - Aceito
03 Mar 2020 - Revisado
23 Mar 2021