Moradia assistida para pessoas em situação de rua no contexto da política de drogas brasileira: avaliação de implantação

Adriana Pinheiro Carvalho Juarez Pereira Furtado Sobre os autores

Resumo

Iniciativas de moradia assistida para pessoas em situação de rua vêm sendo desenvolvidas no Brasil, na política de drogas brasileira, tendo como referência a abordagem Housing First (Moradia Primeiro). Nesse contexto, é relevante analisar as influências das características locais no grau de implantação dessa modalidade de intervenção no cenário nacional. Para isso, realizamos análise de implantação, por meio de estudo de caso de projeto piloto de moradia assistida desenvolvido em Brasília-DF. Por meio de documentos oficiais, observação participante nos ambientes reais e virtuais, sistematização das perspectivas de trabalhadores e gestores responsáveis pela intervenção e modelização da proposta, caracterizamos a iniciativa. Em seguida, esta foi confrontada com critérios extraídos da proposta Housing First. Os resultados indicam a adequação da intervenção ao princípio fundamental de colocar a moradia em primeiro lugar, desvinculada de tratamento e abstinência, utilizando para isso soluções e adaptações locais. Entretanto, carências no processo de gestão do cuidado integral e precariedade da rede de políticas sociais aparecem como desafios à transposição do componente de inserção social que constitui a proposta. A interface entre os setores Saúde e Assistência precisa ser mais bem analisada e a matriz inspiradora do projeto melhor conhecida em seu contexto de origem.

Palavras-chave:
habitação; saúde mental; mental; situação de rua; análise de implantação

Introdução

Os diferentes posicionamentos políticos sobre o tema das drogas trazem repercussões importantes para os modelos de atenção à saúde das pessoas que usam drogas (ALVES, 2009ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 2309-2319, nov. 2009.; CSETE et al., 2016CSETE, J. et al. Public health and international drug policy. Lancet, v. 387, n. 10026, p. 1427-1480, Apr 2016.; TEIXEIRA et al., 2017bTEIXEIRA, M. B. et al. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1455-1466, maio 2017b.; GOMES-MEDEIROS et al., 2019GOMES-MEDEIROS, D. et al. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 7, 2019.). De um lado, o compromisso do Estado com o combate ao tráfico e consumo de drogas ilícitas projeta, para o campo da saúde, a abstinência como única condição, meio e finalidade do tratamento dos problemas relacionados ao uso de drogas (ALVES, 2009). Por outro, há o reconhecimento de que, embora o porte de substâncias ilícitas seja proibido e existam padrões de consumo prejudiciais, a supressão da demanda por drogas da sociedade constitui objetivo ilusório e o estabelecimento da abstinência como única meta de tratamento tende a excluir parcela importante das pessoas que necessitam de atenção à saúde (ANDRADE, 2011ANDRADE, T. M. de. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Cien Saude Colet., v. 16, n. 12, p. 4665-4674, 2011.; CSETE et al., 2016), especialmente de grupos socialmente vulnerabilizados, como o de pessoas em situação de rua (BOURGOIS, 2010BOURGOIS, P. Useless Suffering: The war on Homeless Drugs Addicts. In: GUSTERSON, H.; BESTEMAN, C. (Eds.). The Insecure American. How we got here and what we should do about It Los Angeles: University of California Press; 2010. p. 238-254.; RUI, 2014RUI, T. Nas Tramas do Crack: Etnografia da abjeção São Paulo: Terceiro Nome, 2014.). Esta última perspectiva sustentou, ao menos nos últimos 15 anos (LEAL; FERRARI, 2019LEAL, E. M.; FERRARI, I. F. A realidade social brasileira e o retrocesso na Saúde Mental. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 22, n. 3, p. 421-438, set. 2019.), o posicionamento do governo brasileiro (BRASIL, 2004; 2005; GARCIA et al., 2014GARCIA, L. S. L.; KINOSHITA, R. T.; MAXIMIANO, V. Uma perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as políticas públicas. In: BASTOS, F. I. BERTONI, N. (Orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014, p. 147-157.) de que políticas públicas de atenção ao uso de drogas devem imperiosamente garantir, para aqueles que não consigam ou não queiram interromper o consumo, o acesso a direitos sociais, o que inclui bens e serviços de saúde, assistência social e moradia.

O primeiro levantamento nacional sobre o uso de crack no Brasil (BASTOS; BERTONI, 2014BASTOS, F. I.; BERTONI, N. (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014.), realizado em 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal, revelou a vulnerabilidade social entre pessoas que usam crack em cenas públicas/abertas, grupo que configura a maioria absoluta do total de usuários dessa droga no país. São jovens (média de 30,3 anos), homens (78,7 %), não brancos (79,15%), solteiros (60%), com baixa escolaridade (80% não alcançou o ensino médio), sem trabalho regular (apenas 12,39% têm trabalho regular), sem moradia fixa (46%) e com histórico de passagem pelo sistema prisional (48,8%). A contaminação pelo vírus HIV, nesse grupo, é oito vezes maior do que na população geral, sendo ainda maior entre as mulheres usuárias. A maioria dos participantes da mesma pesquisa refere ainda acesso limitado aos serviços de saúde associando barreiras burocráticas e estigma como obstáculos.

Na literatura nacional e internacional verifica-se que a ausência de moradia e o consumo de drogas são condições que frequentemente se sobrepõem (PAULY et al., 2013PAULY, B. et al. Housing and harm reduction: what is the role of harm reduction in addressing homelessness? Int J Drug Policy, v. 24, n. 4, p. 284-90, jul 2013.; TEIXEIRA et al., 2017aTEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M. Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual. Saúde debate. Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 311-330, mar. 2017a.; HINO et al., 2018HINO, P.; SANTOS, J. de O.; ROSA, A. da S. People living on the street from the health point of view. Revista brasileira de enfermagem, v. 71, p. 684-692, 2018.; VAN WIJK; MÂNGIA, 2018VAN WIJK, L. B.; MÂNGIA, E. F. Atenção psicossocial e o cuidado em saúde à população em situação de rua: Uma revisão integrativa. Cien Saude Colet. Rio de Janeiro, v. 24, n. 9, fev. 2018.; SICARRI; ZANELLA, 2018), sendo os danos do uso de substâncias possivelmente agravados quando se vive nas ruas e em albergues (CHENG et al., 2014CHENG, T. et al. Increases and decreases in drug use attributed to housing status among street-involved youth in a Canadian setting. Harm reduction journal, v. 11, n. 1, p. 12, 2014.; DIDENKO; PANKRATZ, 2007DIDENKO, E.; PANKRATZ, N. Substance use: Pathways to homelessness? Or a way of adapting to street life. Visions: BC’s Mental Health and Addictions Journal, v. 4, n. 1, p. 9-10, 2007.). Antes de iniciar o consumo de drogas e de viver nas ruas, a maioria das pessoas frequentemente apresentam condições de vida precárias e instáveis (MATS; 2008MATS, B.; ARNE, G.; AKE, B. Prediction of Homelessness and Housing Provisions in Swedish Municipalities, European Journal of Housing Policy, v. 8, n. 4, p. 399-421, 2008.; FITZPATRICK et al., 2013FITZPATRICK, S.; BRAMLEY, G.; JOHNSEN, S. Pathways into Multiple Exclusion Homelessness in Seven UK Cities. Urban Studies, v. 50, n. 1, p. 148-168, 2013.; BASTOS; BERTONI, 2014BASTOS, F. I.; BERTONI, N. (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014.; PIAT et al., 2015PIAT, M. et al. Pathways into homelessness: Understanding how both individual and structural factors contribute to and sustain homelessness in Canada. Urban Studies, v. 52, n. 13, p. 2366-2382, 2015.), sendo que o uso de substâncias pode preceder e/ou ser simultâneo à falta de moradia. Tais evidências enfraquecem a visão simplista e estigmatizante da conexão entre a dependência química e a situação de rua e exigem um olhar ampliado sobre os objetivos da política de drogas que compreenda, para além da oferta de tratamento de saúde, a redução dos impactos sociais do consumo.

Nesse sentido, consensos internacionais (UNITED NATIONS, 2012; 2018) e políticas nacionais (BRASIL, 2004; 2005) reconhecem que no atendimento de pessoas com dificuldade de acesso e adesão ao cuidado em saúde, como as que se encontram em situação de rua, a abordagem de redução de danos e outras ações sociais são absolutamente estratégicas, compreendendo desde ofertas básicas como abrigo, alimentação e higiene pessoal, até intervenções mais arrojadas que incluam moradia associada a diferentes níveis de apoio que facilitem a inserção social.

Apoiado nessa perspectiva e nos resultados do mencionado estudo sobre o consumo de crack em espaços públicos (BASTOS; BERTONI, 2014BASTOS, F. I.; BERTONI, N. (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014.), o Governo Federal induziu, a partir de 2014, no âmbito da Política Nacional de Drogas, o desenvolvimento de iniciativas intersetoriais focadas na inserção social de pessoas em situação de rua com problemas relacionados ao uso de drogas. Inspiradas no modelo internacional Housing First (TSEMBERIS et al., 2004TSEMBERIS, S.; GULCUR, L.; NAKAE, M. Housing first, consumer choice, and harm reduction for homeless individuals with a dual diagnosis. American journal of public health, 2004, v. 94, n. 4, p. 651-656.), essas iniciativas buscaram experimentar a oferta integrada de moradia a oportunidades de trabalho para PSR, sem exigir abstinência ou adesão a tratamentos para ingresso ou permanência nos projetos (GARCIA et al., 2014GARCIA, L. S. L.; KINOSHITA, R. T.; MAXIMIANO, V. Uma perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as políticas públicas. In: BASTOS, F. I. BERTONI, N. (Orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014, p. 147-157.).

O Housing First (HF) surgiu nos anos 90, nos Estados Unidos, como uma estratégia de cuidado de pessoas em situação crônica de rua (TSEMBERIS; 1999TSEMBERIS, S. From streets to homes: An innovative approach to supported housing for homeless adults with psychiatric disabilities. J Community Psychol, 1999, v. 27: p. 225-241.), condição na qual se apresenta longo histórico de desabrigamento associado a problemas graves de saúde mental, incluindo o consumo prejudicial de drogas. Sua principal inovação, esclarecida na própria palavra Housing First (Moradia Primeiro), é o entendimento de que atender à necessidade de moradia é condição fundamental para o cuidado de PSR com problemas de saúde mental, independentemente da sua adesão a determinados comportamentos ou padrões de consumo de drogas. O modelo busca essencialmente superar práticas tradicionais baseadas na lógica de etapas de adesão e de cumprimento de exigências para se alcançar a moradia permanente (PADGETT et al., 2016PADGETT, D.; HENWOOD, B. F.; TSEMBERIS, S. J. Housing First: Ending homelessness, transforming systems, and changing lives. Oxford University Press, USA, 2016.). Nessa perspectiva, soluções para problemas sociais e de saúde não podem ser condições para o acesso à moradia. Pelo contrário, a moradia é uma condição que permite e favorece que outros problemas sejam tratados.

O HF se estrutura, basicamente, em torno da oferta simultânea de dois componentes - Moradia individual e Apoio Psicossocial, habitacional e para integração social, sendo reconhecido como um tipo de moradia assistida, modalidade de serviço habitacional desenvolvido no final dos anos 1980, no contexto do processo de desinstitucionalização de hospitais psiquiátricos, para atender a demanda de moradia de pessoas com transtorno mental (TABOL et al., 2010TABOL, C.; DREBING, C.; ROSENHECK, R. Studies of “supported” and “supportive” housing: A comprehensive review of model descriptions and measurement. Evaluation and program planning, 2010, v. 33, n. 4, p. 446-456.). A moradia deve ter caráter permanente, em unidades residenciais ou congregadas (várias unidades individuais em um mesmo prédio), e as ações de apoio devem ser baseadas nos princípios da reabilitação psicossocial e da redução de danos (TSEMBERIS et al., 2004TSEMBERIS, S.; GULCUR, L.; NAKAE, M. Housing first, consumer choice, and harm reduction for homeless individuals with a dual diagnosis. American journal of public health, 2004, v. 94, n. 4, p. 651-656.).

Impulsionado por um conjunto de evidências que apontam efetividade do HF no aumento do tempo de permanência das PSR nas moradias, em comparação com os serviços tradicionais de albergue, o modelo foi amplamente implantado nos Estados Unidos e Canadá e atualmente encontra-se também em desenvolvimento em países da Europa e na Austrália (PADGETT et al., 2016PADGETT, D.; HENWOOD, B. F.; TSEMBERIS, S. J. Housing First: Ending homelessness, transforming systems, and changing lives. Oxford University Press, USA, 2016.). Entretanto, estudos recentes apontam barreiras ao processo de implantação do programa de forma consistente com o modelo original, especialmente com relação à prática de redução de danos (WATSON et al., 2017WATSON, D. P. et al. Housing first and harm reduction: a rapid review and document analysis of the US and Canadian open-access literature. Harm reduction journal, v. 14, n. 1, p. 30, 2017.) e a outros fatores de contexto - financiamento, estrutura organizacional, recursos humanos (MACNAUGHTON et al., 2015MACNAUGHTON, E. et al. Implementing Housing First across sites and over time: Later fidelity and implementation evaluation of a pan-Canadian multi-site Housing First program for homeless people with mental illness. American Journal of Community Psychology, v. 55, n. 3-4, p. 279-291, 2015.; LANCIONE, 2018LANCIONE, M.; STEFANIZZI, A.; GABOARDI, M. Passive adaptation or active engagement? The challenges of housing first internationally and in the Italian case. Housing Studies, v. 33, n. 1, p. 40-57, 2018.).

Para realizar o estudo aqui apresentado, partimos do pressuposto de que o conjunto de iniciativas incentivadas pelo governo federal brasileiro, em 2014/2015, configurou-se como um relevante campo de aprendizagem e fonte de conhecimento para compreender como essa modalidade de abordagem - Moradia Primeiro - se desenvolve no contexto da política pública brasileira. Delimitamos, assim, o processo de implantação como atributo central a ser avaliado, ou seja, analisar como e em que medida uma dessas intervenções foi implantada, conforme concebida. Para tal aspiração, utilizamos o referencial metodológico da Análise de Implantação (CHAMPAGNE et al., 2011aCHAMPAGNE, F. et al. A análise de implantação. In: BROUSSELLE, A. et al (Orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011a.).

Método

Analisamos, por meio de estudo de caso único, a implantação de uma intervenção piloto de moradia assistida para PSR desenvolvida na cidade de Brasília-DF: Projeto Cuidando da Vida (PCV), executado pelo órgão gestor local de assistência social em parceria com uma Organização da Sociedade Civil. A iniciativa fez parte do conjunto de projetos financiados pela então Secretaria Nacional de Política de Drogas do Ministério da Justiça e Cidadania para experienciar a abordagem Housing First/Moradia Primeiro e foi desenvolvido por dezenove meses ao longo de 2017/2018.

Estudos avaliativos podem priorizar aspectos específicos, como a análise da implantação (HARTZ, 1997HARTZ, Z. M. de A. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1997.; CHAMPAGNE et al., 2011aCHAMPAGNE, F. et al. A análise de implantação. In: BROUSSELLE, A. et al (Orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011a.), que privilegia a identificação dos fatores que facilitam ou dificultam a introdução de propostas teóricas em contextos reais. Nessa perspectiva, buscamos conhecer a dinâmica de funcionamento do PCV e identificar seu grau de implantação, por meio da análise de seus elementos estruturais (recursos humanos e físicos) e contextuais (práticas, interações e fatores sociopolíticos locais).

Por meio da triangulação (MINAYO, 2005MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G. de; SOUZA, E. R. de. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rido de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.), estabelecemos diversas fontes de informação para a efetivação da análise proposta, utilizando referencial qualitativo (FURTADO, 2006) e participativo de pesquisa (BRANDÃO, 2006BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. R. Pesquisa participante: o saber da partilha. In: ______. Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida: Editora Ideias & Letras; 2006.; FURTADO; ONOCKO-CAMPOS, 2008). Realizamos observação participante, análise documental, Grupos de Apreciação Partilhada (GAP) com os profissionais e gestores do projeto e elaboramos o Modelo Lógico Operacional do PCV. Por fim, cotejamos as informações sistematizadas com uma Matriz de Critérios, para dimensionar o grau de implantação do projeto e identificar os fatores - barreiras e facilitadores - que o influenciam.

Analisamos documentos oriundos do plano federal (matriz de padronização e orientações técnicas da SENAD que caracterizam o programa nacionalmente); da gestão local (termo de referência, relatórios e pareceres técnicos de acompanhamento e fiscalização); e do próprio projeto (projeto técnico-operacional, diário de campo coletivo e prontuários dos beneficiários), com atenção aos objetivos presentes nos documentos, aos critérios apresentados para a implantação e avaliação da intervenção e aos conceitos, princípios e noções que conformam os parâmetros orientadores da proposta.

Utilizando a noção de experiência e contexto (LEJANO, 2012LEJANO, R. Parâmetros para a análise de políticas: a fusão de texto e contexto. Campinas, SP: Ed. Arte Escrita, 2012.), o trabalho de campo consistiu no acompanhamento do cotidiano da intervenção, vivenciando as práticas e interações nela produzidas, por meio de observação participante, e realização de GAPs com os profissionais diretamente envolvidos no projeto. Durante cinco meses, foram realizadas 100 horas de imersão no campo para acompanhamento de quatro trabalhadores responsáveis pelo suporte aos moradores - dois redutores de danos e duas educadoras terapêuticas - função que propõe a combinação de habilidades e conhecimentos inerentes aos educadores sociais e acompanhantes terapêuticos. Utilizamos caderno de campo e curtas gravações de áudio para registrar as impressões e reflexões da atividade de observação, posteriormente utilizadas na produção de diários de campo, acrescidos de outras informações, impressões, fotos e aspectos advindos do encontro com os agentes da intervenção.

A pesquisadora principal mantinha, previamente à realização da pesquisa, imersão no contexto social analisado, dada sua condição de profissional da rede de saúde mental do território onde a intervenção estudada se desenvolveu. O caráter participante de sua observação se deu concretamente por meio da interação com os agentes do campo nas visitas domiciliares, realizadas em conjunto com a equipe técnicas, nas quais foram mantidos diálogos informais, questionamentos e participação em atividades de apoio aos moradores.

Buscou-se observar as práticas e recursos de cuidado utilizados pela equipe (técnicas, tipo de interação, rede de serviços acionada), a estrutura das moradias (espaço físico e ambiência) e a experiência dos moradores (interação com equipe/proprietários/vizinhos/comunidade e relação com os espaços da casa). Nos dois GAPs, buscamos identificar os componentes do modelo operacional do projeto e compreender as dificuldades enfrentadas na implantação e as propostas de aprimoramento do modelo teórico. Os GAPs se constituíram como espaços de mediação da participação dos envolvidos no processo da pesquisa, contribuindo para a construção de um quadro interpretativo mais amplo para a avaliação (FURTADO et al., 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, v. 29, p. 102-110, 2013.).

O compartilhamento das vivências e decisões diárias, os acontecimentos que atravessam a rotina e as tomadas de posições do grupo de trabalhadores no interior do projeto foram captadas por meio de nossa inserção e posterior sistematização no grupo virtual utilizado na comunicação dos principais agentes da intervenção - trabalhadores, coordenação da organização executora e supervisor vinculado ao órgão governamental local, consistindo esse espaço virtual em lócus de observação (MARKHAM, 2005MARKHAM, A. N. The methods, politics, and ethics of representation in online ethnography. In: ______. The Sage handbook of qualitative research. Thousand Oaks, CA: Sage. 2005, p. 793-820.).

O conjunto de iniciativas dirigidas a compreender e descrever o presente objeto de estudo constituiu base sobre a qual elaboramos a modelização do PCV. Para isso, compusemos um modelo lógico do programa - estratégia amplamente preconizada e debatida no interior da avaliação de programas e serviços (CHEN, 1990CHEN, H.-T. Theory-driven evaluations. Beverly Hills: Sage, 1990.; CHAMPAGNE et al., 2011b______. Modelizar as intervenções. In: BROUSSELLE, A. et al (Orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011b.) - esquematizando recursos, atividades e produtos do mesmo. O modelo lógico foi legitimado junto à equipe acompanhada, estabelecendo consenso sobre o que constitui a intervenção abordada e oferecendo ocasião para o debate sobre as questões que atravessam seu cotidiano.

Considerando que a proposta do governo federal para o PCV tem o HF como modelo, adotamos dimensões e critérios de fidelidade utilizados na avaliação de programas de HF em diferentes contextos dos Estados Unidos e Canadá (STEFANCIC et al., 2013STEFANCIC, A. et al. The Pathways Housing First fidelity scale for individuals with psychiatric disabilities. American Journal of Psychiatric Rehabilitation, v. 16, n. 4, p. 240-261, 2013.) para estruturar a matriz de critérios do grau de implantação do PCV, agregando elementos específicos da proposta federal. A convergência entre os princípios das duas propostas - abordagem de redução de danos, reabilitação psicossocial e atuação intersetorial com base territorial e comunitária - nos permitiu usar os mesmos para identificar eventuais variações sofridas na implantação do projeto nacional.

Nossa matriz é composta por cinco dimensões: escolha e estrutura das moradias, adequação aos critérios para acesso e permanência, pressupostos e diretrizes técnicas da intervenção, gestão do cuidado e intersetorialidade e organização dos processos de trabalho. Utilizamos a pontuação proposta por Nelson et al. (2014NELSON, G. et al. Early implementation evaluation of a multi-site housing first intervention for homeless people with mental illness: a mixed methods approach. Evaluation and Program Planning, v. 43, p. 16-26, 2014.), que define valores em uma escala padronizada que varia de 1 (baixo grau de implantação) a 4 (elevado grau de implantação), sendo que as pontuações 1 e 2 representam desafios à implantação e 2 e 4 oportunidades/facilidades.

A modelização e descrição densa da intervenção, em conjunto com os registros produzidos em campo, foram abordadas segundo o método interpretativo, agrupadas em categorias relacionadas às dimensões da matriz de critérios e em outros recortes temáticos oriundos de aspectos emergidos do campo.

Resultados e Discussão

Caracterização do Projeto Cuidando da Vida

O órgão gestor da política de assistência social do Distrito Federal recebeu recursos financeiros do governo federal para implantar 30 moradias assistidas para usuários de drogas em situação de rua, por meio do Projeto Cuidando da Vida (PCV), executado em parceria com Organização da Sociedade Civil (OSC) pertencente ao campo da assistência social. O piloto teve duração de 19 meses, abril de 2017 a novembro de 2018, e o público-alvo foi constituído por um grupo de PSR pertencente a uma região central de Brasília conhecida por ser uma cena de uso e tráfico de drogas.

As ações do PCV foram organizadas de forma progressiva e estão representadas no Modelo Lógico Operacional.

Figura 1
Modelo Lógico Operacional do Projeto Cuidando da Vida

A primeira etapa da intervenção durou três meses e foi dedicada à constituição e formação inicial da equipe - uma coordenadora, um assistente administrativo, quatro redutores de danos, quatro educadoras terapêuticas, três facilitadores com vivência de situação rua e uma supervisora clínica institucional. Em seguida, os profissionais dedicaram-se ao reconhecimento do espaço comunitário, realizando mapeamento do público de referência, identificação de líderes de opinião e demais recursos disponíveis no território e implementação de estratégias de vinculação. Finalmente, deram início à seleção dos potenciais beneficiários, efetivação do aluguel e estruturação dos imóveis e estabelecimento da rotina de acompanhamento dos novos moradores. A seguir, descrevemos o funcionamento do PCV, que formou a base para as justificativas das pontuações atribuídas na análise do grau de implantação, apresentada na tabela 1.

Seleção dos participantes

A experiência de situação crônica de rua, caracterizada pelo longo período de vivência nas ruas - superior a cinco anos - associado ao uso prejudicial de drogas e/ou transtorno mental, constituiu o principal critério para inclusão de beneficiários nas moradias. Este perfil foi definido levando em consideração experiências do modelo HF desenvolvidas no Canadá (GOERING et al., 2014GOERING, P. et al. National at Home/Chez Soi Final Report. Calgary, AB: Mental Health Commission of Canada; 2014) nas quais os beneficiários apresentavam múltiplas necessidades decorrentes do consumo de drogas e a presença de transtorno mental. Ao longo da execução, novos critérios de inserção foram incorporados pela equipe do PCV, frente às demandas do público local, como mulheres em situação violência e grávidas. Em todos os casos, exigiu-se dos participantes o compromisso em participar de encontro semanal com a equipe de referência, o que foi formalizado em contrato escrito. Não houve exigência de adesão a tratamento para dependência química ou de outros comportamentos como abstinência, sobriedade, uso de medicação, estabilidade de sintomas e não envolvimento criminal.

Os trabalhos de campo da pesquisa foram iniciados no 12º mês de execução do projeto, quando 22 pessoas haviam sido inseridas nas moradias assistidas, sendo 13 homens e nove mulheres, com idades entre 24 a 54 anos. Todas estavam na rua há mais de cinco anos e faziam uso predominante de álcool e crack, oito haviam passado pelo sistema prisional e cinco deles apresentavam transtorno mental grave. Dentre os participantes, havia uma família com três filhos e um casal com dois bebês.

Escolha e estruturação das casas

A busca e escolha das casas foi realizada pela equipe de referência, em conjunto com os futuros moradores, procurando atender suas preferências com relação ao bairro e ao tipo de moradia. Em casos pontuais, houve inclusão em casas previamente alugadas, mediante desocupação de outros participantes. Majoritariamente, os imóveis foram constituídos por pequenas unidades residenciais, inseridas em bairros urbanos do Distrito Federal, de modelo frente-fundos em terreno dividido com vários domicílios, possuindo quarto, banheiro e cozinha privativos, e compartilhamento de lavanderia, quando existente. A negociação dos valores e condições do aluguel foi realizada diretamente pela equipe com os proprietários e o pagamento mensal efetivado pela OSC.

A possibilidade de escolha do imóvel se restringiu ao valor disponível para cada aluguel, teto de R$ 608,00 estabelecido em legislação local (DISTRITO FEDERAL, 2014), e aceitação do perfil dos futuros moradores, pelos proprietários, que eram informados sobre o projeto. Em alguns casos, os locatários estabeleceram regras verbais de não consumo de drogas nas dependências do terreno. Os participantes foram incluídos nas unidades residenciais em menos de dois meses após a vinculação ao projeto.

A aquisição de mobília e utensílios domésticos mínimos não contou com financiamento do governo federal. Como alternativa para a compra dos referidos itens, foi prevista a concessão de valor em pecúnia aos moradores, repassado diretamente pela Secretaria de Assistência Social. Entretanto, fatores relacionados às regras de concessão limitaram o processo e, em vários casos, não foi possível estruturar as moradias no tempo adequado. O custo com água, energia e outras necessidades básicas - higiene pessoal e limpeza - foi previsto para ser arcado pelos moradores, quando possível, com recursos adquiridos a partir de atividades de geração de renda ou de benefícios governamentais. A alimentação foi provida com recursos próprios do governo local por meio da concessão de cesta básica mensal.

Suporte ofertado aos novos moradores

O acompanhamento, conduzido por duplas de referência (educadora terapêutica e redutor de danos), teve a função de favorecer a adaptação e permanência no novo contexto de habitação e caracterizava-se essencialmente pela realização das visitas domiciliares semanais, previamente combinadas com os moradores. Entretanto, para atendimento de outras demandas do projeto ou de intercorrências relacionadas aos próprios moradores, esse cronograma era descontinuado, sem às vezes ser possível comunicar os participantes com antecedência. Em média, o projeto manteve contato presencial semanal com 80% dos participantes.

Nos momentos de interação com os moradores, a equipe fazia orientações voltadas ao desenvolvimento de habilidades domésticas, hábitos de cuidado à saúde (higiene pessoal, métodos preservativos e contraceptivos, utilização de medicações prescritas, alimentação adequada, redução do consumo de drogas e cuidados maternos infantis) e planejamento para utilização dos recursos financeiros oriundos dos benefícios sociais recebidos. Na interação com os proprietários dos imóveis e vizinhos, os profissionais frequentemente realizavam mediação de eventuais conflitos com os moradores, mas também foram estabelecidas relações significativas de cooperação, como controle de medicação, preparação de alimentos e intermediação da comunicação com equipe.

Os moradores, em alguma medida, eram também acompanhados em seus itinerários, nos serviços de assistência social e previdência social, em busca de benefícios sociais e, eventualmente, em consultas nos CAPS e em outras unidades especializadas de saúde (HIV/Aids). Entretanto, houve pouca integração com esses serviços, no sentido de efetivar planos compartilhados de acompanhamento que ultrapassassem a realização de atendimentos pontuais e fragmentados. A participação dos moradores em atividades relacionadas a trabalho, educação, cultura/esporte foi praticamente inexistente e, em poucos casos, identificou-se a manutenção de conversas informais e ações de apoio entre os moradores e vizinhos. De maneira geral, percebeu-se que, no cotidiano dos moradores, os profissionais do projeto eram os principais e comumente únicos pontos de apoio e assumiam, quase que integralmente, as atribuições para viabilizar a moradia, para desenvolver o cuidado em assistência social e saúde, sem apoio de profissionais de outras áreas ou especialidades.

A não frequência em serviços de saúde, ou a outros que tenham sido acordados ao longo do acompanhamento, não influenciou a permanência na casa, sendo permitido que os moradores recusassem a participação nos serviços de apoio disponibilizados, com exceção da visita semanal. Com frequência a equipe estimulava os moradores a diminuir o uso de drogas, sem exigir comportamentos de abstinência. Entretanto, percebia-se que os profissionais não dispunham de recursos operacionais (transporte e carga horária) e repertório técnico (manejo clínico e terapêutico) para intensificar os cuidados dispensados aos moradores e desenvolver propostas consistentes de integração comunitária.

Observamos que, nos casos de conflito com o proprietário do imóvel ou de outros eventos que geraram a perda da moradia, os moradores foram realocados, respeitando o mesmo padrão estrutural da residência anterior e sem limite de realocações realizadas por participante. Uma situação de comportamento violento com equipe e outra de furto a vizinho implicaram a saída da casa, sem realocação. Nesses e em outros casos que houve interrupção da moradia - abandono da casa, internação em comunidade terapêutica, prisão e mudança para morar com familiares - os participantes continuaram recebendo atendimento da equipe, para seguimento dos processos de apoio iniciados e busca de outras alternativas de habitação.

Organização do processo de trabalho

O projeto estipulou a proporção de três profissionais - redutor de danos, facilitador e educador terapêutico - para o acompanhamento de cada dez moradores. Entretanto, ao longo da execução, o acompanhamento foi efetivamente realizado por duas duplas de profissionais (educador terapêutico e redutor de danos). O projeto não previu estrutura de prontidão para atendimento de demandas dos moradores de forma ininterrupta, mas os profissionais acolhiam, frequentemente, demandas dos participantes fora do horário de trabalho, em seus telefones e redes sociais particulares, e buscavam articular o atendimento na rede de apoio.

A coordenação do projeto realizava reuniões periódicas com a equipe para discutir temas relacionados ao projeto, não sendo essas exclusivamente voltadas para planejamento e avaliação do acompanhamento dos moradores. Com grande frequência, as decisões e encaminhamentos relacionados aos moradores eram realizadas por meio de contato telefônico e trocas de mensagens no grupo virtual da equipe. A discussão de casos ocorria, de forma menos sistemática, com a participação de psicólogo da unidade especializada de assistência social para PSR - Centro Pop, nas quais eram também estabelecidos acordos e orientações para a concessão de benefícios em pecúnia da assistência social. A equipe contou também com supervisão externa, realizada aproximadamente a cada três meses. Essa atividade formativa foi conduzida por psiquiatra especializada na área de cuidado em álcool e outras drogas e teve como como foco o manejo clínico-institucional dos casos e a oferta de apoio emocional para equipe.

Análise da implantação

A tabela a seguir (tabela 1) apresenta a pontuação média atribuída a cada uma das dimensões da matriz de avaliação do grau de implantação, a pontuação individual por critério e os elementos que embasaram o julgamento de cada item. Dimensionamos o grau de implantação da intervenção em 2,87, em um total possível de 4,00. Evidencia-se, a adequação da intervenção aos pressupostos fundamentais do modelo teórico (moradia em primeiro lugar e redução de danos). Por outro lado, identificam-se desafios à implantação associados à gestão intersetorial e organização dos processos de trabalho, em especial na concretização de ações voltadas à dimensão de integração social e comunitária. Nessas dimensões, a ausência de interface com outros setores previstos (saúde e trabalho) e a dificuldade na sustentação de espaços coletivos para planejamento e discussão das atividades desenvolvidas pela equipe aparecem como fatores críticos, em conjunto com a baixa participação dos moradores na avaliação e condução do projeto.

Com relação aos aspectos estruturais, respeitou-se a proporção de moradores acompanhados por cada profissional e a participação de pessoa com experiência vivida em situação de rua como componente da equipe. A carga horária disponibilizada por esses profissionais para atividade de acompanhamento, aproximadamente 16 horas semanais, também esteve abaixo das 30 horas sugeridas na proposta teórica. No que diz respeito à condição das casas, estas respeitaram, de maneira geral, os critérios estabelecidos para privacidade, integração comunitária e valor de custeio por parte do morador. Nessa dimensão, o obstáculo foi a baixa capacidade do projeto em estruturar todas as casas com mobília e utensílios domésticos no tempo adequado para entrada dos moradores.

Nas dimensões 1 e 2, nas quais o projeto alcançou média satisfatória de implantação (> 3), destaca-se a elevada possibilidade dos participantes em escolher o local de moradia, a rápida disponibilização das casas e a utilização de imóveis residenciais individuais inseridos na comunidade. A adoção de critérios adequados ao público para inclusão e permanência nas moradias, a não exigência de adesão a serviços de tratamento em saúde e a realocação dos participantes para outras moradias, quando necessário, demonstram elevada fidelidade ao modelo teórico, assim como a priorização de pessoas em situação crônica de rua como público-alvo do projeto.

Tabela 1
Matriz de avaliação do grau de implantação. Brasília-DF, 2019

O que facilitou a implantação

Em que pese o distanciamento cultural e social entre o Brasil e os países nos quais o HF é utilizado em grande escala - Estados Unidos e Canadá - o modelo guarda estreita aproximação com os princípios e diretrizes das políticas brasileira de saúde mental e de cuidado a usuários de álcool e outras drogas, com destaque para a reabilitação psicossocial, a redução de danos e a abordagem de base territorial e comunitária.

O processo de seleção dos profissionais favoreceu a formação de equipe com elevado engajamento na defesa dos direitos de PSR e identificada com os princípios e valores do projeto, promovendo o estabelecimento de vínculo com os participantes e diminuindo barreiras decorrentes ao estigma e preconceito, normalmente associados ao perfil do público-alvo.

A vinculação da intervenção ao órgão gestor de assistência social aparece também como facilitador, na medida em que favoreceu a concessão dos benefícios sociais para a estruturação e manutenção da moradia, além de viabilizar a utilização dos recursos federais para aluguel de imóveis residenciais, ambas concessões previstas em legislação específica do órgão. Por sua vez, a opção pela execução indireta, por meio de organização da sociedade civil, permitiu o aluguel de unidades residências informais - modelo frente-fundo, tipologia de quase todas as residências alugadas pelo projeto, mais acessíveis pelo seu menor valor no mercado imobiliário.

O que dificultou a implantação

Os elevados preços do mercado imobiliário privado, associados ao baixo valor disponibilizado pelo projeto para cada aluguel, dificultaram a disponibilização de casas nas áreas com maior mobilidade e acesso a serviços públicos, levando ao aluguel de imóveis em áreas distantes do território central da cidade. O estigma relacionado ao perfil dos participantes do projeto gerou resistência entre proprietários e vizinhança, constituindo barreira para o processo de locação e foi também o principal motivo de realocação de moradores.

A pouca experiência da equipe em processos de cuidado em álcool e drogas, associada a baixa frequência de atividades de supervisão, formação continuada e apoio institucional intersubjetivo dificultaram a implantação do modelo de gestão de cuidado proposto, em especial no que diz respeito à capacidade da equipe em efetuar manejo clínico dos casos e elaborar planos terapêuticos individualizados que contemplem ações que extrapolem a oferta de ações pontuais de assistência social e saúde.

Ainda com relação aos processos de trabalho dos profissionais, verifica-se que a equipe se encontra sobrecarregada com a dupla função de efetivar o aluguel da casa (busca do imóvel, negociação com proprietário, mudança e manejo de recurso para mobília) e articular a rede intersetorial do território para apoio no acompanhamento compartilhado. Fator que parece ser agravado pela precariedade da rede intersetorial de políticas sociais - serviços insuficientes e desarticulados.

Conclusão

A análise do grau de implantação permitiu identificar que o projeto priorizou a inclusão do público-alvo em casas individuais, inseridas na comunidade, respeitando a escolha individual e os critérios de baixa exigência para acesso e permanência na moradia, adotando os princípios fundamentais do modelo proposto, ou seja, colocando em prática o conceito da moradia em primeiro lugar. Nesse sentido, houve criação de meios para garantir melhorias nas condições de vida dos beneficiários do projeto.

Por outro lado, são necessários ajustes para melhor estruturação da intervenção, sobretudo na garantia de equipamentos mínimos para mobília das casas, treinamento e supervisão da equipe, organização do processo de trabalho com definição de tarefas administrativas e técnicas, além de garantia de maior mobilidade da equipe para realização do acompanhamento nos territórios e estreitamento da relação com os serviços de saúde mental e atenção básica. Outra questão a ser enfrentada é a necessidade de garantir a composição de equipes multidisciplinares com habilidades para atender a diversidade das necessidades dos moradores, conforme previsto no modelo HF.

Dentre os fatores limitadores, destaca-se a baixa oferta de ações que extrapolem a estruturação e manutenção básica da moradia e a promoção do acesso aos serviços de assistência social e saúde, evidenciando o desafio em transpor a proposta de inserção social - o principal resultado almejado - para a prática, em especial no que diz respeito à integração dos moradores em espaços e experiências de geração de renda, participação social, política e cultural.

Evidenciar melhor a interface entre a Moradia e a Inserção Social constitui questão fundamental para a compreensão dos limites e possibilidades de propostas como a que analisamos. Para elucidar as implicações postas nessa relação são necessários estudos que aprofundem o conceito de reinserção social, em diálogo com o campo da saúde mental. A investigação de experiências concretas de programas de Housing First, em seu contexto de origem, pode fornecer aprendizados úteis no enfrentamento das fragilidades apresentadas pela intervenção brasileira, dada a proximidades dos princípios do modelo internacional com os pressupostos do sistema de proteção social brasileiro, como identificado em nossa análise.11 A. P. Carvalho e J. P Furtado: concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação, revisão crítica e aprovação da versão final do artigo.

Referências bibliográficas

  • ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 2309-2319, nov. 2009.
  • ANDRADE, T. M. de. Reflexões sobre políticas de drogas no Brasil. Cien Saude Colet., v. 16, n. 12, p. 4665-4674, 2011.
  • BASTOS, F. I.; BERTONI, N. (Org.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014.
  • BOURGOIS, P. Useless Suffering: The war on Homeless Drugs Addicts. In: GUSTERSON, H.; BESTEMAN, C. (Eds.). The Insecure American. How we got here and what we should do about It Los Angeles: University of California Press; 2010. p. 238-254.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Ministério da Saúde. Brasília, 2004.
  • ______. Ministério da Saúde. Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2005.
  • BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. R. Pesquisa participante: o saber da partilha. In: ______. Pesquisa participante: o saber da partilha. Aparecida: Editora Ideias & Letras; 2006.
  • CHAMPAGNE, F. et al. A análise de implantação. In: BROUSSELLE, A. et al (Orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011a.
  • ______. Modelizar as intervenções. In: BROUSSELLE, A. et al (Orgs.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011b.
  • CHEN, H.-T. Theory-driven evaluations. Beverly Hills: Sage, 1990.
  • CHENG, T. et al. Increases and decreases in drug use attributed to housing status among street-involved youth in a Canadian setting. Harm reduction journal, v. 11, n. 1, p. 12, 2014.
  • CSETE, J. et al. Public health and international drug policy. Lancet, v. 387, n. 10026, p. 1427-1480, Apr 2016.
  • DISTRITO FEDERAL. Decreto n° 35.191, de 21 de fevereiro de 2014. Regulamenta a Lei nº 5.165, de 04 de setembro de 2013, que dispõe sobre os benefícios eventuais da Política de Assistência Social do Distrito Federal e dá outras providências. Brasília, 2014.
  • DIDENKO, E.; PANKRATZ, N. Substance use: Pathways to homelessness? Or a way of adapting to street life. Visions: BC’s Mental Health and Addictions Journal, v. 4, n. 1, p. 9-10, 2007.
  • FITZPATRICK, S.; BRAMLEY, G.; JOHNSEN, S. Pathways into Multiple Exclusion Homelessness in Seven UK Cities. Urban Studies, v. 50, n. 1, p. 148-168, 2013.
  • FURTADO, J. P.; CAMPOS, R. O. Participação, produção de conhecimento e pesquisa avaliativa: a inserção de diferentes atores em uma investigação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 11, p. 2671-2680, nov. 2008.
  • FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, v. 29, p. 102-110, 2013.
  • GARCIA, L. S. L.; KINOSHITA, R. T.; MAXIMIANO, V. Uma perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as políticas públicas. In: BASTOS, F. I. BERTONI, N. (Orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014, p. 147-157.
  • GOMES-MEDEIROS, D. et al. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, n. 7, 2019.
  • GOERING, P. et al. National at Home/Chez Soi Final Report. Calgary, AB: Mental Health Commission of Canada; 2014
  • HARTZ, Z. M. de A. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 1997.
  • HINO, P.; SANTOS, J. de O.; ROSA, A. da S. People living on the street from the health point of view. Revista brasileira de enfermagem, v. 71, p. 684-692, 2018.
  • LANCIONE, M.; STEFANIZZI, A.; GABOARDI, M. Passive adaptation or active engagement? The challenges of housing first internationally and in the Italian case. Housing Studies, v. 33, n. 1, p. 40-57, 2018.
  • LEAL, E. M.; FERRARI, I. F. A realidade social brasileira e o retrocesso na Saúde Mental. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 22, n. 3, p. 421-438, set. 2019.
  • LEJANO, R. Parâmetros para a análise de políticas: a fusão de texto e contexto. Campinas, SP: Ed. Arte Escrita, 2012.
  • MACNAUGHTON, E. et al. Implementing Housing First across sites and over time: Later fidelity and implementation evaluation of a pan-Canadian multi-site Housing First program for homeless people with mental illness. American Journal of Community Psychology, v. 55, n. 3-4, p. 279-291, 2015.
  • MARKHAM, A. N. The methods, politics, and ethics of representation in online ethnography. In: ______. The Sage handbook of qualitative research. Thousand Oaks, CA: Sage. 2005, p. 793-820.
  • MATS, B.; ARNE, G.; AKE, B. Prediction of Homelessness and Housing Provisions in Swedish Municipalities, European Journal of Housing Policy, v. 8, n. 4, p. 399-421, 2008.
  • MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G. de; SOUZA, E. R. de. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rido de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
  • NELSON, G. et al. Early implementation evaluation of a multi-site housing first intervention for homeless people with mental illness: a mixed methods approach. Evaluation and Program Planning, v. 43, p. 16-26, 2014.
  • PADGETT, D.; HENWOOD, B. F.; TSEMBERIS, S. J. Housing First: Ending homelessness, transforming systems, and changing lives. Oxford University Press, USA, 2016.
  • PIAT, M. et al. Pathways into homelessness: Understanding how both individual and structural factors contribute to and sustain homelessness in Canada. Urban Studies, v. 52, n. 13, p. 2366-2382, 2015.
  • RUI, T. Nas Tramas do Crack: Etnografia da abjeção São Paulo: Terceiro Nome, 2014.
  • VAN WIJK, L. B.; MÂNGIA, E. F. Atenção psicossocial e o cuidado em saúde à população em situação de rua: Uma revisão integrativa. Cien Saude Colet. Rio de Janeiro, v. 24, n. 9, fev. 2018.
  • PAULY, B. et al. Housing and harm reduction: what is the role of harm reduction in addressing homelessness? Int J Drug Policy, v. 24, n. 4, p. 284-90, jul 2013.
  • SICARI, A. A.; ZANELLA, A. V. Pessoas em Situação de Rua no Brasil: Revisão Sistemática. Psicol. cienc. prof. Brasília, v. 38, n. 4, p. 662-679, out. 2018.
  • STEFANCIC, A. et al. The Pathways Housing First fidelity scale for individuals with psychiatric disabilities. American Journal of Psychiatric Rehabilitation, v. 16, n. 4, p. 240-261, 2013.
  • TABOL, C.; DREBING, C.; ROSENHECK, R. Studies of “supported” and “supportive” housing: A comprehensive review of model descriptions and measurement. Evaluation and program planning, 2010, v. 33, n. 4, p. 446-456.
  • TEIXEIRA, M. B.; ENGSTROM, E. M.; RIBEIRO, J. M. Revisão sistemática da literatura sobre crack: análise do seu uso prejudicial nas dimensões individual e contextual. Saúde debate. Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 311-330, mar. 2017a.
  • TEIXEIRA, M. B. et al. Tensões paradigmáticas nas políticas públicas sobre drogas: análise da legislação brasileira no período de 2000 a 2016. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1455-1466, maio 2017b.
  • TSEMBERIS, S. From streets to homes: An innovative approach to supported housing for homeless adults with psychiatric disabilities. J Community Psychol, 1999, v. 27: p. 225-241.
  • TSEMBERIS, S.; GULCUR, L.; NAKAE, M. Housing first, consumer choice, and harm reduction for homeless individuals with a dual diagnosis. American journal of public health, 2004, v. 94, n. 4, p. 651-656.
  • UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Social Cohesion, Social Disorganization and Illegal Drugs, International Narcotics Control Board. Report of the International Narcotics Control Board for 2011 (E/INCB/2011/1): New York, January 2012.
  • ______. Treatment and care for people with drug use disorders in contact with the criminal justice system. Draft pre-launch publication for initial circulation. March 2018.
  • WATSON, D. P. et al. Housing first and harm reduction: a rapid review and document analysis of the US and Canadian open-access literature. Harm reduction journal, v. 14, n. 1, p. 30, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2020
  • Aceito
    10 Mar 2020
  • Revisado
    23 Mar 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br