Resumo
Pesquisas que descrevem a anatomia e fisiologia do movimento humano têm objetivado produzir comparações entre capacidades físicas de homens e mulheres, para especificar e descrever “diferenças sexuais”. Uma das consequências desse tipo de pesquisa é sua influência em pedagogias de ensino utilizadas por profissionais da educação física, produzindo a materialidade do gênero nos corpos. Esse artigo utiliza análise do discurso Foucaultiana para interrogar como a produção de diferenças sexuais ocorre em artigos científicos dedicados ao estudo de desempenho físico que comparam os sexos em relação à força. Através dessa análise, objetivamos descrever e analisar como epistemologias de sexo/gênero estão envolvidas nessa produção de forma a reiterar ideias naturalizadas do que significa ser homem e ser mulher, assim como também questionar a inteligibilidade de corpo/gênero/sexualidade que regula a materialização do sexo/gênero na cultura e na ciência.
Palavras-chave:
força; sexo biológico; gênero; educação física
Introdução
A educação física é uma disciplina que lida com as diversas manifestações da cultura corporal. Parte dessa cultura se refere às possibilidades fisiológicas de produção de força, agilidade e resistência num contexto de rendimento esportivo. Para a compreensão de como essas variáveis podem ser afetadas pelo treinamento, existe uma produção científica relacionada à produção da força muscular. Em relação ao gênero como categoria de análise, a disciplina tem, majoritariamente, produzido diferenças na forma como meninos e meninas são tratados nas práticas educativas (Dornelles, 2012DORNELLES, P. G. (2012). Do corpo que distingue meninos e meninas na educação física escolar. Cad. Cedes, Campinas, vol. 32, n. 87, p. 187-197, mai.-ago. 2012.). Existe também, de acordo com Dornelles (2012), um marcador de faixa etária na passagem da infância para o início da adolescência em que os/as professores/as percebem e produzem a diferença entre meninos e meninas e uma separação das atividades nas aulas de educação física, justificando-a a partir de noções naturalizadas de masculinidade e feminilidade. A autora destaca ainda que a intensidade da atividade física é um fator relevante nas formas de significar gênero nas aulas de educação física. A aptidão física está relacionada diretamente com as modulações de variáveis de treino como intensidade e, portanto, essa é uma questão chave na análise sobre gênero e aptidão física.
Altmann (2016ALTMANN, H.; MARIANO, M. (2016). Educação Física na Educação Infantil: educando crianças ou meninos e meninas? Cadernos pagu (46), janeiro-abril de 2016) relata que a atuação do/a professor/a é fundamental para a produção de diferenças no desempenho de atividades durante as aulas de educação física. Quando o/a professor/a já acredita anteriormente na ideia de que as meninas e os meninos devem ter características e comportamentos diferentes em relação à prática de atividades físicas (como a insegurança, sensibilidade e passividade para as meninas, e a coragem e a força para os meninos) produz-se, pela condução da/o professor/a, esses grupos com características distintas. Ao passo que uma aula que não enfatiza esses marcadores sociais do gênero proporciona atividades em que não se observa essa separação obrigatória. (ALTMANN, 2016ALTMANN, H.; MARIANO, M. (2016). Educação Física na Educação Infantil: educando crianças ou meninos e meninas? Cadernos pagu (46), janeiro-abril de 2016).
Partir dessa breve introdução de como a relação entre sexo e aptidão física influencia a sua prática escolar criando um efeito diretamente relacionado à construção dos corpos e identidades de homens e de mulheres, propomos aqui a análise de artigos que legitimam essa diferença sexual na área da educação física e esporte. Essa análise é importante pelo embasamento teórico que estes artigos são passíveis de proporcionar para os/as professores/as e pelos efeitos de verdade produzidos.
Método e Conceitos centrais
Para descrever a rede de enunciados que constitui as noções de diferença sexual e performance física serão analisadas as hipóteses e comparações entre sexos realizadas por estudos que têm o objetivo de mapear diferenças fisiológicas entre “homens” e “mulheres” relacionadas a mecanismos de produção de força.
Foram selecionados 4 artigos a partir de buscas por palavras-chave: “Sex differences AND strength”, “força AND homens AND mulheres”, “Male AND female AND strength” nos mecanismos de busca: Google acadêmico, Scielo e PubMed. A busca foi feita em janeiro de 2019. Foram selecionados aqueles que tinham em seu título ou resumo um resultado de comparação entre sexos de alguma destas capacidades mencionadas. Foi considerado o período dos últimos 40 anos, com a tentativa de escolher um artigo por década, para observar uma possível mudança de paradigma ao longo do tempo. Foram descartados resultados que não tinham como objetivo (ou conclusão) relacionar aptidão física com gênero/sexo. Foram selecionados métodos diferentes de teste de força (isocinética, Força Muscular- 1RM, Dinâmica). O objetivo da seleção foi fazer uma análise de diferentes caminhos epistemológicos escolhidos por cada artigo, numa análise qualitativa da produção de ciência disponível no campo.
O quadro abaixo descreve as características dos artigos, em ordem cronológica:
O problema de pesquisa centra-se na análise da rede enunciativa que justifica a divisão e comparação de aspectos fisiológicos de corpos ditos masculinos e corpos ditos femininos, bem como os possíveis efeitos dessa divisão enquanto componente da performatividade de gênero (BUTLER, 2003). Assim, busca-se elencar os elementos que constituem a lógica da divisão de sexos e visibilizar seus possíveis efeitos na educação, onde existe uma pedagogia do corpo sexuado e os regramentos de gênero diferenciados (LOURO, 1999LOURO, G. L. (1999). Pedagogias da sexualidade. In: Louro, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.), sendo na educação física mais especificamente relacionados a uma diferenciação biológica entre “sexos” (ALTMANN; AYOUB; AMARAL, 2011ALTMANN, H.; AYOUB, E.; AMARAL, S. C. F. Gênero na prática docente em educação física: "meninas não gostam de suar, meninos são habilidosos ao jogar"? Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 491-501, ago./2011.).
Será utilizado o conceito de gênero a partir de Butler (2003), i.e., que o sexo em si não é um dado da natureza anterior à construção do gênero, uma vez que a marcação de gênero dos corpos é a matriz de inteligibilidade que constrói esse corpo. Posto que não há um corpo anterior à cultura, e os corpos são todos marcados pela matriz sexo, gênero e desejo, tanto o gênero, pensado aqui como produto cultural da diferenciação de corpos sexuados (SCOTT,1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol.20 (2), jul/dez.1995: 71-100.) quanto o sexo, são performativos, ou seja, construídos através da repetição iterativa de atos de fala e dos regramentos em torno das práticas corporais (BUTLER, 2003). Assim, a leitura dos corpos por meio do sexo, dito biológico, materializa e torna possível sua existência, através da repetição de ideias como “meninos urinam em pé”, “meninas urinam sentadas”, “meninos são mais agressivos”, “meninas necessitam menos movimento”.
Entretanto, isso não quer dizer que os corpos não possuam características fisiológicas específicas relacionadas ao que a medicina e a biologia vêm chamando de “sexo” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.; FAUSTO-STERLING, 2000FAUSTO-STERLING, Anne. (2000), Sexing the body: gender politics and the construction of sexuality. Nova York, Basic Books.). O objetivo aqui é verificar como as características fisiológicas relacionadas a corpos sexuados vêm sendo analisadas em artigos que procuram a diferença sexual em atividades de força muscular. É possível que se investigue a relação entre capacidades físicas sem atrelar características fisiológicas a sexo/gênero? Sempre é o sexo/gênero que define o resultado em uma determinada capacidade física, nesse caso, a força? O modelo de análise que utiliza o sexo enquanto um dado estável e binário ao tomar como dada uma suposta natureza constitui um dos atos enunciativos que materializam a performatividade do sexo/gênero?
Como afirmado, será utilizada a análise dos enunciados (FOUCAULT, 1986) que conformam as redes discursivas dos artigos que buscam evidenciar e comparar essa diferença entre sexos. Assim, busca-se interrogar acerca dos jogos de verdade que se apresentam nos discursos das ciências relacionadas ao exercício. Serão feitos questionamentos sobre os limites e rupturas possíveis do enunciado “sexo biológico”, considerando que ele pode estar relacionado a uma produção de hierarquias entre seres humanos (BUTLER, 2003).
Para que seja possível analisar como as verdades são construídas, devemos descrever as condições espaço-temporais que permitem seu surgimento e determinar os enunciados fundamentais que definem a sua construção e as práticas discursivas correspondentes:
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 2008, 7ª edição., pg. 132-133)
As formas de legitimação da ciência, por meio de pesquisas, como aqui analisadas, podem apontar as formas de enunciação tornadas ilegítimas nos jogos de verdade. Desta maneira, busca-se compreender como os enunciados sobre “sexo biológico” se configuram enquanto uma verdade produzida por diversos discursos e, assim, podem manifestar-se no campo da educação em forma de práticas diferenciadas que produzem a materialidade, e o que é performado a partir daí, em termos de inteligibilidade dos corpos.
É essa matriz de pensamento que será utilizada na análise dos artigos, lendo com estranhamento a relação direta, natural, estável e anterior ao corpo. Este pensado aqui enquanto construção cultura da masculinidade e feminilidade atribuída aos corpos bem como a estabilidade do que se chama de “sexo biológico” a partir de uma cadeia de marcadores fisiológicos como taxas hormonais, composição corporal e morfologia muscular.
Descrição e Discussão dos resultados
O primeiro artigo, publicado em 1987, buscou evidenciar as diferenças de força comparando homens e mulheres descritos como igualmente treinados. Os sujeitos considerados tinham experiência de longa data no treinamento de natação, com início do treino na infância. A média de treino por dia em km era diferente entre homens e mulheres, sendo de 9,72 +- 2,7 para homens e 7,34 +- 3,5 para as mulheres. Essa diferença não foi considerada suficiente para desqualificar a proposta dos sujeitos serem “igualmente treinados”.
A hipótese inicial é que a diferença entre sexos em relação à força seria explicada pela massa muscular. Assim, as medidas de força foram comparadas com uma correção em relação à massa livre de gordura, e ao diâmetro muscular. Com isso, seria uma comparação entre quantidades equivalentes de massa muscular. A escolha de sujeitos com históricos de treino semelhantes visava a minimizar o fator de diferenças sociais entre sexos e refletir, principalmente, diferenças biológicas.
Primeiramente, em relação à análise, considerando-se o conceito de gênero proposto por Scott (1995SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Vol.20 (2), jul/dez.1995: 71-100.), como diferenças socialmente construídas a que estão sujeitas as pessoas, reconhecidas a partir de corpos sexuados, a partir das identidades políticas de homens e mulheres dos indivíduos pesquisados, pode-se pensar que existiu um treinamento de gênero desde o nascimento. As diferenças de tratamento em relação a homens e mulheres interferem nos padrões corporais em relação à força? O artigo não considera esse efeito do treinamento de gênero, e sim que o treinamento desde a infância e a média de quilômetros por dia é o suficiente para determinar que os sujeitos são equivalentemente treinados.
Logo, mesmo que o treinamento de natação seja “equivalente”, existem dois fatores a serem considerados na análise dos dados: 1) o treinamento de gênero desde a infância, que interfere nos padrões de movimento, a partir da autoidentificação com a produção de masculinidades e feminilidades e 2) a autoidentificação dos sujeitos com estes padrões de gênero. Lembrando a perspectiva de gênero a partir de Butler (2003), que coloca o gênero como uma performance repetida ou, ainda, uma repetição estilizada de atos, que não é só individual, mas também tem uma dimensão temporal e coletiva, existe uma consequência na construção corporal dos corpos a partir do gênero enquanto um elemento consolidador do sujeito.
Em nenhum momento do artigo existe essa reflexão, ou uma indicação de medida do quanto as pessoas pesquisadas se identificam com o que é tido como masculino ou feminino. Este pode ser um dado importante, pois se as diferenças sociais produzidas pela identificação com um gênero influenciam na construção corporal, então seria importante visibilizar a aproximação (ou não) dos sujeitos com essa produção normativa de gênero. Assim, poder-se-ia dimensionar o quanto estas auto atribuições de identidade são responsáveis por um perfil mais forte, ou não.
Além disso, a identificação com a masculinidade ou feminilidade desde a infância interfere na tomada de decisões em relação à performatividade corporal. Altmann (2016ALTMANN, H.; MARIANO, M. (2016). Educação Física na Educação Infantil: educando crianças ou meninos e meninas? Cadernos pagu (46), janeiro-abril de 2016) aponta que a motivação para a realização de atividades na aula de educação física pode ser diferente de acordo com a condução do/a professor, caso esse/a esteja inclinado a perceber e incitar diferenças relativas a gênero.
Outro trecho importante para a análise encontra-se nos objetivos do artigo, que são:
(1) determinar a magnitude da diferença sexual de força na parte superior e inferior do corpo em grupos de homens e mulheres com histórico de atividade física similar e (2) determinar a extensão com a qual a diferença sexual em relação a força é explicada por diferenças de massa magra (massa livre de gordura) e área do diâmetro muscular. Por dedução, a parte da diferença sexual em relação a força que não for explicada pela massa magra e pela área do diâmetro muscular, poderia ser atribuída a fatores neuromusculares e/ou outros. (BISHOP, 1987BISHOP, P; CURETON, K.; COLLINS M. (1987) Sex difference in muscular strength in equally-trained men and women, Ergonomics, 30:4, 675-687., pg. 676, tradução minha¹)
E: “Por causa das diferenças sexuais em tamanho corporal, foi necessário ajustar as diferenças inerentes potenciais em relação à massa livre de gordura e/ou força por área de secção transversa do músculo”.
Primeiramente, como a hipótese do treino “equivalente” é aceita, as diferenças de desempenho são atribuídas inteiramente a fatores biológicos: massa magra e/ou fatores neuromusculares. Entretanto, é perceptível que, como hipótese inicial do artigo, já se pressupõe que existe uma diferença biológica entre os sexos que causa essa discrepância. A questão aqui é: essa diferença pode ser significada a partir do dado “sexo” como uma variável qualitativa nominal, que tem como característica impor obrigatoriamente ao sujeito marcado por ele com um perfil bem definido e sempre igual? Ou seja, todos os sujeitos marcados com sexo masculino possuem, obrigatoriamente, a mesma relação de tamanho, massa magra e aptidão física, bem como os sujeitos marcados por sexo feminino? Se os dados “massa magra” e/ou “tamanho” fossem considerados como parte de um contínuo, sem estarem atrelados a uma marcação pré discursiva de sexo masculino ou feminino, seria possível prever o desempenho de força da mesma maneira?
A partir dos resultados do estudo, que dizem que as diferenças de força podem ser explicadas em função da massa muscular livre de gordura muito mais do que pela variável sexo, podemos pensar que a lógica utilizada pelo artigo impõe que se pensem os dados de massa magra e tamanho como uma consequência direta da marcação de sexo biológico. Não existe outro sentido possível para estes dados biológicos fora dessa relação de comparação entre variáveis quantitativas discretas binárias opositoras. Esta escolha de utilização da variável sexo atua na manutenção da inteligibilidade do sexo biológico como necessariamente relacionado a quantidades previamente conhecidas de elementos fisiológicos (como massa muscular livre de gordura e tamanho).
O segundo artigo selecionado para análise faz um estudo sobre as diferenças sexuais na geração de força necessária para repetições máximas de extensão de joelho. O estudo mediu o número de repetições máximas consecutivas desse movimento, e ao longo da tentativa, a força média a cada 5 repetições. Foi calculado o percentual de declínio da força a partir das 50 primeiras contrações. A amostra era composta por 63 pessoas, dentre elas 36 mulheres e 27 homens. Foi medida a área de secção transversa do músculo.
Os resultados do artigo mostram que o percentual de declínio tem relação com o valor da área de secção transversa do músculo, o que já era de se esperar, considerando publicações anteriores. Em relação à diferença entre os grupos, os resultados demonstraram que o percentual de declínio da força era igual para os dois grupos. Entretanto, indicou que, se fossem observadas somente as primeiras 5 tentativas, o declínio no grupo das mulheres era maior.
Sobre as hipóteses das causas de diferenças: é provável que a influência de hormônios sexuais possa ser um fator responsável pelas diferenças sexuais na performance anaeróbica. Entretanto, não existe uma medida da quantidade de tais hormônios nos sujeitos estudados. Há uma pressuposição de que já se conhecem as quantidades de hormônios em cada sujeito a partir da variável qualitativa nominal “sexo biológico”. Embora existam valores médios esperados a partir desse marcador, seria adequado para propor tal correlação que a medida da concentração hormonal aparecesse para sustentar esse argumento, sendo possível então traçar uma relação linear entre concentração hormonal e declínio de força. Nesse sentido, novamente a variável qualitativa (sexo biológico) parece ter o efeito de uma variável quantitativa, pois ela corresponde a um dado de quantidade de níveis hormonais. Supõe-se que todos os sujeitos correspondam a uma faixa normativa de hormônios sexuais, mas isso não é evidenciado no estudo, ou seja, ele produz em ato performativo ao afirmar que estas são as quantidades possíveis e que elas produzem esse efeito na produção de força, sem a possibilidade de um espectro de efeitos, ou da demonstração de correlação direta por meio da medida de hormônios e produção de força.
Na discussão dos resultados, os autores mencionam que não se sabe o porquê de as mulheres apresentaram um declínio percentual menor, mas que foram encontrados por outros autores diferenças entre homens e mulheres em relação a tipos de fibra muscular, índices de metabolismo muscular e performance anaeróbica. Uma breve revisão de estudos anteriores é apresentada e a seguinte conclusão é enunciada:
Sob a luz dos dados anteriores sobre a influência da composição de fibras musculares e/ou metabolismo muscular em performances anaeróbicas, parece difícil, portanto, explicar o resultado apresentado, bem como as diferenças entre sexo da D e de F. Em resumo, a capacidade de geração de força durante contrações máximas repetidas teve alta correlação com a área de secção transversa do músculo independentemente do sexo. (KANEHISA, 1996KANEHISA, H; OKUYAMA, H; IKEGAWA, S; FUKUNAGA, T. (1996) Sex difference in force generation capacity during repeated maximal knee extensions. Eur J Appl Physiol, 73:557-562., pg. 561, tradução própria22In the light of previous data concerning the influence of muscle fibre composition and/or muscle metabolites on anaerobic performances, it seems to be difficult, therefore, to explain the present result as to the sex differences in the %D of F.)
As investigações anteriores, que apontaram diferentes composições musculares “entre sexos”, não foram consideradas relevantes para explicar o resultado. A conclusão é de que o sexo não é uma variável que por si só influencia a geração de força, mas sim, a área de secção transversa do músculo. Assim, o artigo reforça a naturalização da diferença sexual na construção da pesquisa, mesmo após a conclusão de que ele não é determinante para a produção de força. Poderia ser possível enunciar um modelo de comportamento de força baseado somente na área de secção transversa, sem atribuir ao sexo biológico?
A partir dessa conclusão, entretanto, os autores decidiram finalizar o artigo da seguinte forma:
Os presentes resultados, no entanto, indicam que as mulheres mostraram uma produção de força inferior quando comparadas aos homens, mesmo quando expressa por unidade muscular da área de secção transversa do músculo. Além disso, as mulheres tinham um maior percentual de declínio de força que os homens quando a força produzida por área muscular da primeira até a quinta contração foram comparadas. (KANEHISA, 1996KANEHISA, H; OKUYAMA, H; IKEGAWA, S; FUKUNAGA, T. (1996) Sex difference in force generation capacity during repeated maximal knee extensions. Eur J Appl Physiol, 73:557-562., pg 561, tradução própria)
Primeiramente: qual o efeito performativo da decisão de finalizar a conclusão do artigo com essa afirmativa destacando as primeiras 5 contrações? Será o de reiterar a noção de que as mulheres são mais fracas? Nota-se que a conclusão dá destaque à parte do estudo que encontrou valores menores para mulheres. Quanto à produção de força ser inferior mesmo quando expressa por unidade muscular: seria possível, num desenho de pesquisa diferente, traçar definitivamente “ser mulher” como causa para essa diferença de força? Ou o desenho induz a esse tipo de conclusão?
A partir dessa escolha de narrativa, não se coloca como igualmente importante para a conclusão o fato de que o sexo foi uma variável que influenciou menos na geração de força do que a área de seção transversa. Poderia ser sugerido que para estudos futuros, fosse utilizada a área como preditora de força, ou ser comparada com a performance, sem necessariamente ser correlacionada com o sexo. Entretanto, a finalização do artigo performa a escolha política em correlacionar menor produção de força com a identidade social e política de “ser mulher”. Ao escrever o artigo desta forma, fazem funcionar enunciados que realizam a performatividade de gênero e de sexo, bem como a busca pelo seu sentido por meio de medidas de diferença, único caminho tido como inteligível para a compreensão dos mecanismos de produção de força para homens e mulheres. Não existe produção de força “sem gênero” ou “sem sexo”.
O objetivo do artigo é medir diferenças “entre sexos” e, portanto, não faria sentido para esse raciocínio desmembrar as variáveis de maneira a representar o funcionamento da força sem o filtro de inteligibilidade “sexo biológico”. Entretanto, por meio dessa possibilidade de representação, fica evidente que o objetivo de comparar os sexos faz parte dos atos performativos que produzem a diferença sexual no campo da educação física e do esporte. Em vez de ser uma diferença essencial dos corpos, anterior à medida, ela é produzida tanto a partir dos regimes de produção cultural dos corpos (GOELLNER, 2003GOELLNER, S. A produção cultural do corpo. In: LOURO, G.L. et al. Corpo, Gênero e sexualidade: um debate contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2003.) quanto pelos enunciados com efeito de verdade sobre as capacidades físicas. O enunciado que se repete nesta rede seria “mulheres são mais fracas do que homens”.
Este efeito se verifica mediante medidas que selecionam sujeitos auto identificados com essa produção de gênero, que passaram por processos de subjetivação marcados por estes regimes de construção de corpos legitimados (ou tornados inteligíveis) no corpus conceitual que sustenta treinamentos como os analisados. Os artigos concluem que “mulheres são mais fracas do que homens” e, portanto, mulheres subjetivam-se se construindo como mais fracas que homens, ou terão sua feminilidade posta em xeque ou questionada. Uma profecia autorrealizada. Homens precisam construir sua força acima do nível que reconhecem como sendo “de mulheres”, pois senão suas identidades estarão em risco.
A partir do marcador “sexo”, fica estabelecido que a produção de força resultante dos indivíduos marcados é particular a este sexo atribuído. Fica assim vetada a possibilidade de que esta produção seja resultado de um conjunto de fatores não necessariamente ligados a este marcador inicial.
O terceiro artigo utiliza um protocolo de treinamento de força com pesos (TP), durante 8 semanas, em uma amostra de homens e de mulheres. Compara tanto o efeito do treinamento, quanto às diferenças dos resultados entre os grupos. A justificativa para tal comparação é:
Apesar de existir extensa literatura indicando modificações relevantes induzidas pela prática de programas de TP, ainda não se tem clareza quanto à magnitude dessas alterações quando homens e mulheres são submetidos ao mesmo tipo de programa de treinamento, uma vez que grande parte dos estudos têm envolvido sujeitos de apenas um dos sexos, além do que os protocolos adotados têm sido bastante diferenciados. (DIAS, 2005DIAS, R. M. R. et al. (2005). Impacto de oito semanas de treinamento com pesos sobre a força muscular de homens e mulheres. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, Vol. 11, Nº 4, Jul/Ago., pg 225)
Os estudos que envolvem apenas um dos sexos, não seriam então, apropriados para descrever os mecanismos do treinamento de força em outro sexo? O modelo epistemológico indica que a análise da produção de força estaria obrigatoriamente vinculada a um sexo. Quanto ao artigo em questão, destaca-se:
Apesar de os mecanismos envolvidos nas diferentes respostas encontradas entre os gêneros para a força muscular ainda não estarem bem definidos, parece que as diferenças iniciais nos níveis de treinamento podem influenciar decisivamente nos resultados. Embora essa variável não tenha sido controlada no presente estudo, acredita-se que, via de regra, o nível de atividade física da maioria das mulheres seja inferior ao dos homens. Nesse sentido, seria esperado que os maiores aumentos na força muscular decorrentes de programas de TP ocorressem nas mulheres (17), o que realmente foi confirmado no presente estudo. (DIAS, 2005DIAS, R. M. R. et al. (2005). Impacto de oito semanas de treinamento com pesos sobre a força muscular de homens e mulheres. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, Vol. 11, Nº 4, Jul/Ago., pg. 227)
Novamente reitera-se que não se sabe exatamente quais os mecanismos que ocasionam as diferentes respostas encontradas entre estes dois grupos. Um dado importante é que não foi estimado o nível de atividade física relacionado à construção de gênero, entretanto, o estudo acredita que “via de regra” a “maioria das mulheres” tenha um nível inferior de atividade física do que os homens. De acordo com o modelo teórico (pressuposto naturalizado) proposto, isso explicaria os resultados encontrados, mas sem o controle dessa medida, pode-se considerar apenas que se trata de uma suposição.
A conclusão final do estudo coloca:
Todavia, as mulheres apresentaram aumento de força muscular proporcionalmente maior ao observado nos homens nos três exercícios investigados, o que sugere que as mulheres parecem ter maior potencial para desenvolvimento da força muscular do que os homens após curtos períodos de TP. Acredita-se que essas diferenças possam ser atribuídas, pelo menos em parte, aos menores níveis iniciais de treinamento das mulheres analisadas e/ou a uma maior contribuição dos fatores neurais no sexo feminino. (DIAS, 2005DIAS, R. M. R. et al. (2005). Impacto de oito semanas de treinamento com pesos sobre a força muscular de homens e mulheres. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, Vol. 11, Nº 4, Jul/Ago., pg 227)
As mulheres do estudo apresentaram um determinado efeito ao treinamento de força em comparação aos homens. A conclusão do estudo é, portanto, pressuposta, pois não foi comprovada, nem ao menos medidas, as diferenças no nível de treinamento e a diferença de comportamento neural no “sexo feminino”. Um conjunto de 15 mulheres, que não foi caracterizado com nenhum dado referente à cultura, regramento de gênero, hormônios, cromossomos, massa magra, metabolismo e outros marcadores passa por um protocolo de treino e o resultado encontrado é atribuído ao “sexo feminino”. Fica evidente um efeito retroativo da construção universal do dito “sexo biológico”, já que a influência do sistema neural foi uma suposição do estudo a partir de outro resultado, mas que, a partir da conclusão, adquire um efeito de “verdade do sexo biológico”. Tal processo também pode ser verificado nos estudos anteriores, que também relatam diferenças sem a comprovação de mecanismos fisiológicos que justifiquem os resultados observados, mas que, ao fim do estudo, também enunciam uma verdade do sexo, a influência de tais mecanismos nos efeitos dos protocolos.
O quarto artigo, chamado “Estudo comparativo da força muscular da mão entre cadetes homens e mulheres da Força Aérea Brasileira”, compara a força da preensão palmar e 3 tipos de pinça, contando com 16 sujeitos homens e 14 sujeitos mulheres. O protocolo de pesquisa envolveu a seleção aleatória desses sujeitos, sendo que o número de mulheres na academia da Força Aérea era bem menor e o ingresso de mulheres na Força Aérea é muito recente. Esse fato por si só demonstra efeitos sociais em relação a gênero. Um dos objetivos principais do artigo era mostrar evidências de que ser mulher não é um impeditivo para executar as tarefas motoras durante a pilotagem do avião.
Alguns dos pressupostos teóricos que permeiam as hipóteses de pesquisa para a execução do protocolo são: “Nos membros superiores, as respostas ao treino físico indicam diferenças de sexo no ganho de força, mostrando que, apesar de os músculos de homens e mulheres apresentarem a mesma composição, o diâmetro muscular de homens é maior.”
Novamente, vemos na produção científica uma repetição de que os músculos de homens e mulheres apresentam a mesma composição, entretanto, diferenças em diâmetro muscular. Essa característica pode ser influenciada pelo treinamento? Dizem os autores: “A hipertrofia muscular envolve modificações como aumento na área de secção transversa do músculo envolvido, tipo de fibra muscular, volume muscular e na síntese de proteínas.”. Então, a partir da literatura apresentada, a resposta é sim. A partir dessa conexão, é possível então que nesse tipo de estudo estão sendo comparados níveis de treinamentos diferentes em vez de grupos morfologicamente diferentes em essência? Diz o artigo:
Isso provavelmente ocorre por diferenças morfológicas e anatômicas entre os sexos, como a área e diâmetro das fibras musculares, que são maiores nos homens do que nas mulheres; e essa diferença é maior quando se comparam adultos jovens - faixa etária dos cadetes neste estudo. Outra provável causa pode ser o aumento na expressão gênica de genes específicos, presente na musculatura em resposta ao exercício, na população masculina. (TEIXEIRA, 2009TEIXEIRA, M. D. M. et al. Estudo comparativo da força muscular da mão entre cadetes homens e mulheres da Força Aérea Brasileira. Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.2, p.143-7, abr./jun. 2009., pg 146)
O estudo não propõe como hipótese as diferenças culturais que permeiam a construção dos corpos de cada indivíduo. A interpretação da diferença recai em diferenças morfológicas, anatômicas e genéticas, que coincidentemente também têm relação com o treinamento e a experiência corporal a que estas populações são sujeitas. No próprio artigo, é possível vislumbrar o contexto de treinamento prévio a que os grupos estiveram sujeitos:
Uma consideração importante na comparação entre os sexos são os valores pré-treino. O valor absoluto de força pré-treino em homens é maior do que nas mulheres, mas estas respondem de modo superior aos níveis relativos de aumento de força. Portanto, apesar das diferenças, os valores de força muscular das cadetes femininas não impedem que possam controlar a aeronave. (TEIXEIRA, 2009TEIXEIRA, M. D. M. et al. Estudo comparativo da força muscular da mão entre cadetes homens e mulheres da Força Aérea Brasileira. Fisioterapia e Pesquisa, São Paulo, v.16, n.2, p.143-7, abr./jun. 2009., pg 146)
Percebe-se que os grupos comparados, não como unicamente diferenciados por fatores morfológicos estáveis e bem definidos, mas também como grupos que tiveram treinamentos diferentes desde a infância devido à subjetivação de gênero. O impacto dessa subjetivação em cada sujeito não aparece como preditor no modelo que a pesquisa utiliza. Em vez disso, o efeito discursivo de realizar a comparação nesses termos é o da repetição de uma diferença morfológica essencial que explicaria os sujeitos. Sem essa visão, a lógica do artigo não faria sentido.
Considerações Finais
A partir dos artigos analisados é possível resumir algumas características dessa rede enunciativa que sustenta o “sexo biológico” como dado estável e bem-definido, assim como a inteligibilidade que se constrói utilizando este dado no contexto histórico em que ele é utilizado.
O “sexo biológico” é naturalizado em dados que não são medidos.
Quando a pesquisa utiliza o dado “sexo biológico”, atribui implicações obrigatórias aos sujeitos na forma de características fisiológicas e morfológicas. Como, por exemplo, as quantidades maiores ou menores de hormônios, massa muscular e área da seção transversal do músculo. Alguns desses dados (como hormônios) nunca são medidos no estudo, eles são pressupostos sabidos e utilizados como explicação para os resultados observados. A medida de massa muscular aparece, mas ela reproduz uma diferença de quantidade como um dado imutável, ou seja: o grupo intitulado como “mulheres” sempre tem uma média menor e isso é estabelecido como uma verdade biológica anterior à cultura. Quando os estudos equiparam algumas dessas variáveis (como força absoluta ou massa) as diferenças são minimizadas ou quase inexistentes. Contudo, isso nunca é o suficiente para abandonar a hipótese de que existe uma diferença morfológica essencial entre os ditos “sexos biológicos”, já que esse é o efeito de verdade principal do enunciado.
Essas numerosas características ganham sentido e unificação sociais mediante sua articulação na categoria do sexo. Em outras palavras, o “sexo” impõe uma unidade artificial a um conjunto de atributos de outro modo descontínuo. Como discursivo e perceptivo, o “sexo” denota um regime epistemológico historicamente contingente, uma linguagem que forma a percepção, modelando à força as inter-relações pelas quais os corpos físicos são percebidos. (BUTLER, 2003, p. 199)
Esse enunciado compõe um ato performativo que constrói a verdade dos corpos. O uso do “sexo biológico” é um filtro de inteligibilidade pré-estabelecido que nunca é colocado em questão, mesmo quando os dados indicam que ele não é um fator estável na característica analisada.
A observação de um efeito que é tido como causa.
Os resultados diferentes dos grupos marcados como “homens” e “mulheres” em relação ao desempenho de força podem ser pensados como efeito de um treinamento de gênero que é social. (GOELLNER, 2003GOELLNER, S. A produção cultural do corpo. In: LOURO, G.L. et al. Corpo, Gênero e sexualidade: um debate contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2003.). Entretanto, o caminho lógico sustentado pelos artigos é que essa diferença observável é parte da constituição essencial do corpo e, portanto, faria parte de uma natureza que causaria a diferença observada. Para sustentar esse argumento, logo após a constatação de diferenças nas médias, a discussão aponta diferenças de constituição corporal, amparadas pela mesma lógica de inteligibilidade anterior, ao tentar estabelecer uma relação causal entre esses estudos que apontam diferenças morfológicas e o resultado observado de diferenças de desempenho.
Ao considerar as medidas de capacidades físicas como “naturais” do “ser homem” ou “ser mulher” que causa esse efeito, os artigos não consideram as punições sociais que regulam os sujeitos pelos regramentos de gênero. Assim, se naturaliza o corpo como a origem do gênero, e não outra possibilidade.
O deslocamento do efeito social do gênero para um substrato biológico
Como demonstrado por Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.) e Fausto-Sterling (2000), a verdade sobre o sexo biológico foi modificada ao longo do tempo. Passando por uma etapa em que as diferenças sociais eram tidas como fundamentais para a compreensão do que era o gênero que depois foi modificada para um substrato biológico (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.). Isso é perceptível na argumentação desses artigos. Nenhum deles oferece uma quantificação para o efeito social das diferenças observadas no desempenho de força. Muitos deles nem consideram em sua análise que essa diferença pode ter relação com questões sociais. Mesmo aqueles que consideram essa hipótese, não propõem ferramentas para quantificar a responsabilidade das questões sociais no efeito observado. Em vez disso, recaem no substrato biológico e tentam estabelecer a relação deste com o observado. Nesse caminho, existem muitas contradições, pois são citados estudos que não corroboram as mesmas conclusões, mas no fim de cada artigo, a verdade intocada é de que mulheres são pessoas com um determinado perfil corporal (hormônios, cromossomos, quantidade de músculo) e são essencialmente mais fracas do que homens. Assim, constrói-se uma realidade em que o “sexo biológico” é um dado que expõe absolutamente toda a verdade de um corpo, como se ali não houvesse contradições entre as quantidades de hormônios, cromossomos e massa muscular.
A inteligibilidade limitada de corpos a partir desse sistema.
Como lidar com alguém cujo “sexo verdadeiro” não se sabe? Se a medida do estudo depende desse dado, não são todos os sujeitos que podem fazer parte do que é produzido como humano. As pessoas intersex, por exemplo, passam por um conjunto de práticas médicas para terem o seu “sexo verdadeiro” decidido (MACHADO, 2005MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. Cad. Pagu, Campinas , n. 24, p. 249-281, Junho 2005 .). Frequentemente as pessoas não sabem qual sexo atribuir para uma pessoa trans33Entende-se aqui, pessoa trans como uma pessoa que teve um sexo designado ao nascer, mas que ao longo de sua vida construiu uma identidade de gênero e sexo diferente desse que foi designado. (JESUS, 2014JESUS, J. G. (2014). Transfeminismo: Teorias e Práticas. Rio de Janeiro: Metanoia.). No Brasil, as situações que são percebidas como desvios da norma de gênero, tornam as pessoas alvo de preconceito (COSTA et. al., 2013COSTA, A. B., Peroni, R. O., Bandeira, D. R., & Nardi, H. C. (2013). Homophobia or sexism? A systematic review of prejudice against nonheterosexual orientation in Brazil. International Journal of Psychology, 48(5), 900-909.). Isso também se dá no ambiente escolar. Quando pesquisas tomam como inteligíveis apenas corpos que seguem um determinado padrão, torna-se impossível pensar em direitos iguais para as pessoas que constroem seu corpo e identidade em modelos diferentes desse padrão.
Não há ontologia do gênero sobre a qual possamos construir uma política, pois as ontologias do gênero sempre operam no interior de contextos políticos estabelecidos como injunções normativas, determinando o que se qualifica como sexo inteligível, invocando e consolidando as restrições reprodutoras que pesam sobre a sexualidade, definindo as exigências prescritivas por meio das quais os corpos sexuados e com marcas de gênero adquirem inteligibilidade cultural (BUTLER, 2003, p. 256).
Para fazer parte da amostra de seres humanos que produzem força muscular e constituem essas diferenças sexuais, é necessário um pré-requisito corporal onde se tem uma estabilidade entre o sexo designado no nascimento e a construção de sexo/gênero? Os resultados obtidos pela pesquisa só fazem sentido para esses humanos? A rede de enunciados indica que sim.
Então, a partir dessa análise pode-se concluir que o dado “sexo biológico” utilizado pelos artigos analisados reforça um modelo binário de corpo sexuado que só faz sentido a partir de uma cadeia de significados de corpo (sexo) /gênero/sexualidade (BUTLER, 2003). É a partir destas estratégias enunciativas que é possível construir a ideia do sexo biológico como fundamental para entender a produção de força muscular, tendo como critério primeiro este dado para tornar inteligível a cadeia entre corpo (quantidade de músculos, hormônios etc.) e gênero (desempenho, performance, motivação, acesso ao treinamento etc.).
É necessário que os estudos relativos ao desempenho de capacidades físicas considerem a possibilidade de um modelo que não se baseie unicamente na ideia de sexo biológico estável e bem-definido para que seja possível compreender uma matriz ampla de possibilidades de construção corporal.
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- 1The purposes of this study were to determine: (1) the magnitude of the sex difference in upper- and lower-body strength in groups of men and women with similar backgrounds of physical activity and (2) the extent to which the difference in strength could be explained by indices of muscle size.
- 2In the light of previous data concerning the influence of muscle fibre composition and/or muscle metabolites on anaerobic performances, it seems to be difficult, therefore, to explain the present result as to the sex differences in the %D of F.
- 3Entende-se aqui, pessoa trans como uma pessoa que teve um sexo designado ao nascer, mas que ao longo de sua vida construiu uma identidade de gênero e sexo diferente desse que foi designado.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Jul 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
29 Jul 2019 - Aceito
11 Out 2019 - Revisado
18 Maio 2021