Resumo
Com o objetivo de descortinar aspectos da vida social das pílulas anticoncepcionais, o artigo analisou o conteúdo de suas bulas publicados no guia de medicamentos Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF), entre 1971 e 1990. Procuramos explorar os discursos veiculados nesses dispositivos - a quem se dirigiam, o que propunham e que efeitos pretendiam - e compreender como contribuíram e o que nos revelaram sobre o seu percurso biográfico. As bulas se comportaram como importantes veículos de intercomunicação entre os atores que participaram da trajetória desses medicamentos, desde sua produção pela da indústria farmacêutica, até chegarem às suas consumidoras finais, as mulheres, passando também por médicos, enfermeiros, farmacêuticos, donos e balconistas de farmácias e transitando entre consultórios, serviços de saúde, entidades de planejamento familiar, estabelecimentos comerciais, lares e bolsas femininas. Nessa enorme cadeia de associações produzidas pelas pílulas, as bulas contribuíram para a geração de um mínimo denominador comum que permitiu a normalização e naturalização das práticas de controle da fecundidade hormonal e para a formação do mercado - não só no sentido econômico, mas em sentido sociológico, como redes de interações e trocas, onde circularam bens que agregaram a um só tempo valores econômicos, simbólicos e normativos.
Palavras-chave:
pílulas anticoncepcionais; bulas; mercado farmacêutico; vida social; biografia
Abstract
In order to uncover aspects of social life of pharmaceutical pills and based on the theoretical-methodological perspective of the drugs biography, this paper analyzes the instructions of their leaflets, published in the Dictionary of Pharmaceutical Specialties (DEF), between 1971 and 1990. It seeks to explore the speeches conveyed in papers that accompanied the packaging of the "medicine pill" - to whom they were headed, what they proposed and what social effects they intended - and to understand their participation in the set of associations that allowed the stabilization of oral contraceptives in Brazil. Leaving the pharmaceutical laboratories, the patient information leaflet transited among physicians, nurses, pharmacists, owners and shopkeepers of pharmacies and women, passing from hand to hand, in offices, health services family planning entities, pharmacy counters, medical departments of companies, households and women's bag. They were the important intercommunication vehicles between these actors and in the big chain of associations produced by contraceptive pills, the patient information leaflets contributed to a minimum common denominator that allowed to return a normal and natural control practices of hormone-mediated fecundity and the formation of the fertility control pill market, where goods were giving movement to add economic, symbolic and normative values at the same time.
Keywords:
contraceptive pills; patient information leaflet, pharmaceutical market; medicines; biography
Introdução
Desde sua produção até o seu consumo final, a vida social dos medicamentos flui por múltiplos circuitos, envolvendo distintos atores, instituições, saberes, valores, ideias e sentidos, engendrando associações, posicionamentos e reposicionamentos específicos. Estudar esses diferentes aspectos, nessas distintas etapas, se mostra um campo fértil para a construção de sua biografia e a compreensão dos seus modos de circular e seus efeitos nos espaços sociais (GEEST; WHYTE; HARDON, 1996GEEST, S. VAN DER; WHYTE, S. R.; HARDON, A. The anthropology of pharmaceuticals: a biographical approach. Annual review of anthropology, v. 25, n. 1, p. 153-178, 1996.).
Este artigo se propõe a explorar aspectos da vida social de uma classe de medicamentos, as pílulas anticoncepcionais, em sua juventude, isto é, nos anos de 1970 e 1980, tendo como base a materialidade de certos dispositivos que os acompanham ao longo de sua vida “dentro, fora, antes e depois de suas embalagens” (AZIZE, 2012AZIZE, R. L. Antropologia e medicamentos: uma aproximação necessária. Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.4, n.1, jan.-jun., p.134-139, 2012.): as bulas. Das bulas, podemos dizer que “passam de mão em mão”, desde a sua elaboração no/pelo laboratório até chegarem aos armários e gavetas de medicamentos dos lares, sendo dispositivos importantes no processo de farmacologização da vida cotidiana, nos termos de Fox e Ward (2008FOX, Nick; WARD, Katie. Pharma in the bedroom...and the kitchen...The pharmaceuticalisation of daily life. Sociology of Health & Illness, v.30, nº 6, p. 856-868, 2008.). Esses pequenos papéis podem nos dar pistas da pluralidade de significados, sentidos e interações sociais construídos ao longo do percurso desses produtos e nos ajudar na compreensão dos efeitos sociais que se produzem nesse caminho (AZIZE, 2012; GEEST; WHYTE, 2011GEEST, S. V. D.; WHYTE, S. R. O encanto dos medicamentos: metáforas e metonímias. Sociedade e Cultura, v. 14, n. 2, 2011.).
Desde sua introdução, nos anos de 1960, a produção e a comercialização das pílulas anticoncepcionais no Brasil estiveram submetidas a controles governamentais. Como “produtos éticos” (FRENKEL, 1978FRENKEL, J. Tecnologia e Competição na Indústria Farmacêutica Brasileira. Rio de Janeiro: Finep. Mimeo; 1978.), esses medicamentos não poderiam ser vendidos sem receita médica e sua propaganda deveria ser restrita a profissionais de saúde, através de publicações e eventos especializados. Sem a possibilidade de promover seus produtos diretamente junto aos usuários finais - isto é, às consumidoras -, os laboratórios se concentraram em estratégias de marketing voltadas para os usuários intermediários: médicos e profissionais do mundo da farmácia, incluindo farmacêuticos, balconistas e proprietários de farmácia. Somados, médicos e farmacêuticos -possuidores de conhecimentos relativos à terapêutica e à farmacologia - e balconistas e donos de farmácia -agentes envolvidos na comercialização dos produtos - garantiriam a legitimação das práticas de consumo dos contraceptivos hormonais orais e atuariam como importantes difusores desses medicamentos (DIAS, 2019DIAS, T.M. A vida social das pílulas anticoncepcionais no Brasil (1960-1970): uma história do cotidiano. [Tese]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz, 2019.). Responsáveis pela prescrição e acompanhamento dos pacientes, os médicos deveriam ser persuadidos sobre qualidades e potenciais benefícios dos medicamentos. Os profissionais atuantes na farmácia, por sua vez, ao adquirirem conhecimento sobre os produtos, passariam a recomendá-los aos consumidores, pois driblando a exigência da receita médica, a compra direta na farmácia foi prática comum (RICHERS; ALMEIDA, 1975RICHERS, R.; ALMEIDA, E. A. B. DE. O planejamento familiar e o mercado de anticoncepcionais no Brasil. Revista de Administração de Empresas, v. 15, n. 4, p. 07-21, ago. 1975.).
A indústria farmacêutica sempre se encarregou de fornecer para os médicos grande parte das informações sobre os medicamentos (BARROS, 2000BARROS, J. A. C. A (des)informação sobre medicamentos: o duplo padrão de conduta das empresas farmacêuticas. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 2, p. 421-427, jun. 2000.). O marketing farmacêutico, com a finalidade de popularizar os produtos, prioriza conteúdos que chamem atenção para as potencialidades benéficas dos medicamentos, coloca ao alcance dos profissionais aquelas informações que incentivam a prescrição - salientando as indicações, a eficácia, a segurança, as qualidades terapêuticas e outras - e minimiza a importância das contraindicações e das reações adversas que os produtos possam apresentar (TONE; WATKINS, 2007TONE, A e WATKINS, ES. Medicating Modern America: Prescription Drugs in History. New York Press. New York and London, 2007.).
Diante das várias possibilidades de propaganda, visando influenciar o mercado de medicamentos, a bula é um importante dispositivo, pois assume o papel de transmitir conhecimentos básicos e necessários - como composição, utilidade, posologia, indicações e contraindicações - não somente aos médicos, prescritores legais dos medicamentos, e a outros profissionais de saúde, mas também aos pacientes (CALDEIRA; NEVES; PERINI, 2008CALDEIRA, T. R.; NEVES, E. R. Z.; PERINI, E. Evolução histórica das bulas de medicamentos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, n. 4, p. 737-743, abr. 2008.; GONÇALVES et al., 2002GONÇALVES, S. DE A. et al. Bulas de medicamentos como instrumento de informação técnico-científica. Revista de Saúde Pública, v. 36, n. 1, p. 33-39, fev. 2002.).
O conteúdo das bulas é moldado pelos interesses de diferentes atores que participam da rede de relações que compõem a trajetória de um medicamento, dos fabricantes às autoridades estatais. No Brasil, o processo de regulação das bulas acompanha a criação de órgãos de fiscalização em saúde e vigilância sanitária, desde 1931. Entretanto, foi a partir de 1999, com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que as bulas passaram a ser regulamentadas com maior rigor, tendo suas informações técnico-científicas, seu formato e sua linguagem guiadas pela agência reguladora (PINTO, 2013PINTO, J. M. Bulas de medicamentos comercializados no brasil enquanto fontes de informação. Perspect. ciênc. inf., vol.18, n.4, p. 262, dec 2013.; CALDEIRA; NEVES; PERINI, 2008CALDEIRA, T. R.; NEVES, E. R. Z.; PERINI, E. Evolução histórica das bulas de medicamentos no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, n. 4, p. 737-743, abr. 2008.).
Com o pressuposto da importância das bulas na vida social dos medicamentos, perguntamo-nos sobre a participação desses objetos na urdidura das redes de relações e práticas tramadas pelas pílulas anticoncepcionais, nas primeiras décadas de sua circulação. Neste artigo, analisamos as bulas de contraceptivos hormonais orais publicadas no guia de medicamentos Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF). Procuramos compreender os discursos veiculados nas bulas - a quem se dirigiam, o que propunham e que efeitos pretendiam -, como elas contribuíram e o que podem revelar sobre o percurso biográfico das pílulas anticoncepcionais.
Metodologia
Trata-se de estudo com enfoque sócio-histórico (MOTA; SCHRAIBER, 2014MOTA, A.; SCHRAIBER, L. B. Medicina sob as lentes da História: reflexões teórico-metodológicas. Ciênc. saúde coletiva, vol.19, n.4, pp.1085-1094, abr. 2014.), que utiliza perspectiva biográfica no estudo dos medicamentos (GEEST; WHYTE; HARDON, 1996GEEST, S. VAN DER; WHYTE, S. R.; HARDON, A. The anthropology of pharmaceuticals: a biographical approach. Annual review of anthropology, v. 25, n. 1, p. 153-178, 1996.). A fonte foi o Dicionário de Especialidades Farmacêuticas (DEF), único acervo encontrado que disponibiliza bulas antigas de pílulas anticoncepcionais. Criado em 1971, por José Maria de Sousa e Melo11 Propagandista de laboratório e, posteriormente dono do Jornal Brasileiro de Medicina, criador da Editora de Publicações Científica (EPUC) e editor do DEF. Disponível em: http://itapagece.blogspot.com.br/2015/02/15-de-fevereiro-de-20150-osonho-do.html. Acesso em 01 de novembro de 2018., e publicado anualmente ou bianualmente até 2016, o DEF é considerado uma das principais fontes de consulta no cotidiano de médicos e de farmacêuticos brasileiros (BARROS, 2000BARROS, J. A. C. A (des)informação sobre medicamentos: o duplo padrão de conduta das empresas farmacêuticas. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 2, p. 421-427, jun. 2000.). Com a finalidade de seguir os rastros das pílulas anticoncepcionais, em suas décadas iniciais, e jogar luzes no processo de normalização desses medicamentos em nosso meio, optamos por analisar as 17 edições compreendidas entre 1971 e 1990. O material foi coletado em 2016, na sede da Editora de Publicações Científicas (EPUC), no Rio de Janeiro, onde havia um acervo de todas as edições impressas.
No período analisado, o DEF apresentava em média 800 páginas. Toda edição continha uma Seção Inicial, com Nota do Editor, Mensagem da Associação Brasileira de Indústrias Farmacêuticas (ABIFARMA) e Prefácio. A Seção 1 elencava endereços e produtos de cada laboratório; a Seção 2 continha o índice geral dos produtos, com os nomes comerciais em ordem alfabética; a Seção 3 apresentava grupos farmacológicos, onde eram reunidas as variadas marcas; a Seção 4 listava os nomes químicos de cada produto anunciado; a Seção 5 agrupava as indicações terapêuticas gerais dos medicamentos; na Seção 6, se apresentava o bulário propriamente dito, por ordem alfabética dos produtos anunciados; a Seção 7 era de anúncio de serviços médicos e, por fim, a Seção 8 era a seção científica do dicionário.
Para levantamento de material de pesquisa, em primeiro lugar, compilamos os nomes comerciais na Seção 3 (grupos farmacológicos), especificamente nas listas de anovulatórios e anticoncepcionais. De 46 marcas encontradas, apenas 28 tiveram suas bulas apresentadas na Seção 6, o bulário. Considerando as 17 edições revisadas, foram compiladas 169 bulas. Essas bulas, assim como o conteúdo completo da Seção Inicial das 17 edições - notas do editor, mensagens da ABIFARMA e prefácios - foram digitalizadas e compõem o corpus deste estudo.
O Quadro 1 apresenta, em ordem alfabética, os nomes comerciais das pílulas anticoncepcionais e os nomes e países de origem dos laboratórios fabricantes.
Os fabricantes eram predominantemente laboratórios europeus e americanos, refletindo o domínio das multinacionais no mercado brasileiro da época (TEMPORÃO, 1986TEMPORÃO, J.G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1ª edição, 1986.; FRENKEL, 1978FRENKEL, J. Tecnologia e Competição na Indústria Farmacêutica Brasileira. Rio de Janeiro: Finep. Mimeo; 1978.). Os destaques foram F. Wyeth, Berlimed, Searle e Johnson & Johnnnson. Havia 3 laboratórios brasileiros que produziam contraceptivos, nas décadas em questão. O Novaquímica produzia os contraceptivos Megestran e Microsteron e o Laboratório S.A.R.S.A. (Silva Araújo-Roussel Sociedade Anônima), junção do Laboratório Silva Araújo e do laboratório francês Roussel, produzia o Previson, porém suas bulas não estavam disponíveis na Seção 6. Dos produtos de laboratórios nacionais, encontramos apenas a bula da Malthus 22, produzida pela Panquímica e, posteriormente, pelo laboratório Gross.
Após leituras subsequentes, o material foi organizado segundo critérios da análise de conteúdo temático (MINAYO, 2013MINAYO, MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: HUCITEC, 13 edição, 2013.; GOMES, 2012GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. MINAYO, M. C.S.; DELANDES, S. F.; GOMES, R. (Org). In: Pesquisa social Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Editora Vozes, 32ª edição, p. 79-108; 2012.). Com esse procedimento, quantificamos e qualificamos dados mais descritivos e extraímos as temáticas recorrentes, para compreender para quem e com quem o DEF e as bulas falavam e, o que pretendiam.
O DEF fala ao que veio: notas, mensagens e prefácios
“É com orgulho que podemos dizer que a obra hoje é considerada como a fonte de referência definitiva para todos os profissionais que militam na área da saúde. A filosofia da obra, sua honestidade, rigor científico e abundância de informações fizeram-na adquirir esta reputação, que atualmente ultrapassa até o meio médico, sendo o DEF também já conhecido, citado e consultado em outras áreas. Podemos já, sem qualquer sentimento de inferioridade, compará-lo a grandes obras similares publicadas no estrangeiro” (Prefácio 1981/1982)
Desde suas primeiras edições, o DEF se apresentou como um livro científico, uma obra que, muito além de um manual técnico-especializado, pretendia disponibilizar informações científicas atualizadas e seguras para os seus leitores: “o DEF é informação estritamente científica proporcionada à classe médica” (Nota do editor, 1974)22 As citações são apresentadas pelo nome da mensagem inicial seguido do ano de edição do DEF.. Propunha-se a “colocar à disposição da classe médica uma obra atualizada”, “considerada imprescindível para o exercício diário da medicina”, que ia “ao encontro desta necessidade profissional, [garantindo] rapidez na obtenção de informações” (Nota do Editor, 1973); “um livro prático e fácil de ser manuseado, [que traz] a informação mais objetiva sobre os mais importantes produtos comercializados no Brasil, bem como sobre os últimos avanços terapêuticos” (Nota do editor, 1974). Enfim, acesso a informações seguras, atualização científica e terapêutica continuada e assessoramento na prática da prescrição eram “as crescentes necessidades do médico brasileiro” (Nota do editor,1974) - necessidades que o DEF não somente propunha-se a atender, mas ajudava a criar.
Com uma década de vida, os editores do DEF declaravam que “é com orgulho que podemos dizer que a obra hoje é considerada como a fonte de referência definitiva para todos os profissionais que militam na área da saúde” (Prefácio, 1981/1982). Enfim, um instrumento “versátil no dia-a-dia da profissão médica” (Nota do editor, 1983/1984), que “veio preencher uma lacuna, pois, simplesmente, antes do DEF, nada havia” (Prefácio, 1985/1986).
O surgimento do DEF é coetâneo ao boom da indústria farmacêutica mundial, ocorrido a partir da segunda metade do século XX, num contexto de aceleração das inovações científicas no campo da biomedicina e, especificamente, dos medicamentos, que se traduz em necessidade de produção e difusão de conhecimentos sobre esses produtos, para atender os profissionais de saúde e os consumidores (PEPE; CASTRO, 2000PEPE, V. L. E.; CASTRO, C. G. S. O. DE. A interação entre prescritores, dispensadores e pacientes: informação compartilhada como possível benefício terapêutico. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 3, p. 815-822, set. 2000.).
Desde o início, as relações do DEF com a indústria farmacêutica foram explícitas e exaltadas. “Colaboração” e “cooperação” eram os atributos da parceria, conforme reconhecido pelos próprios atores. “Naturalmente que não fazemos tudo sozinhos e nunca é demais agradecer a colaboração da indústria farmacêutica e, acima de tudo do constante apoio que nos dão os profissionais da área da saúde”, diziam os editores (Prefácio, 1983/1984). A boa relação era a garantia do sucesso da obra, confirmavam os laboratórios: “grande parte do êxito deve-se também a cooperação da indústria farmacêutica que vem, cada vez mais, oferecendo todas as informações necessárias ao uso correto dos produtos que fabrica” (Mensagem da ABIFARMA, 1983/1984).
A criação de vínculos entre indústria farmacêutica e a categoria médica foi necessária para a constituição do mercado de medicamentos (BARROS, 2000BARROS, J. A. C. A (des)informação sobre medicamentos: o duplo padrão de conduta das empresas farmacêuticas. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 2, p. 421-427, jun. 2000.; TEMPORÃO, 1986TEMPORÃO, J.G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1ª edição, 1986.; FRENKEL, 1978FRENKEL, J. Tecnologia e Competição na Indústria Farmacêutica Brasileira. Rio de Janeiro: Finep. Mimeo; 1978.). No desenvolvimento do mercado dos hormônios sexuais, particularmente, as parcerias entre indústria farmacêutica, cientistas e médicos datam da primeira metade do século XX (OUDSHOORN, 1994OUDSHOORN, Nelly. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. Londres e New York: Routlegde, 1994.; TRAMONTANO, 2017TRAMONTANO, L. Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula. [Tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/UERJ, 2017.). O DEF aspirava ser expressão e instrumento dessas parcerias: porta voz da indústria farmacêutica, veículo das boas novas científicas e aliado dos profissionais de saúde, que eram convocados a assumir papel ativo na co-autoria do guia: “rever todo o trabalho feito, acrescentar, retirar isto já é rotina nossa de ano para ano. Mas não é o principal. O mais importante é, isto sim, consultar sempre a classe médica, estar-se sempre atualizando, de modo que o DEF seja cada vez mais dinâmico, mais completo, mais perfeito” (Prefácio, 1985/1986).
Ao anunciar novos medicamentos e disponibilizar informações e atualizações, o DEF transmitia duas ideias importantes no processo de farmacologização da sociedade, entendido como “tradução ou transformação de condições, habilidades e capacidades humanas em oportunidades de intervenção farmacêutica” (WILLIAMS; MARTIN; GABE, 2011WILLIAMS, S. J.; MARTIN, P.; GABE, J. The pharmaceuticalisation of society? A framework for analysis. Sociology of Health & Illness, v. 33, n. 5, p. 710-725, 2011.). Primeiro, a crença no avanço e acúmulo progressivo dos conhecimentos científicos produzidos pela indústria farmacêutica. Em mensagem a ABIFARMA afirmava que “a disponibilidade de informações científicas e objetivas sobre os produtos farmacêuticos disponíveis é de vital importância para seu uso correto” e prometia colaborar com os editores do DEF para “manter estas informações atualizadas através de suas várias edições”, por meio de “um grande esforço e, principalmente, responsabilidade em revisar, atualizar ou mesmo modificar informações sobre produtos farmacêuticos” (Mensagem ABIFARMA, 1988/1989).
Essa base científica seduzia e aproximava a classe médica, sempre sedenta pelas atualizações do mercado. A credibilidade do laboratório junto à classe médica dependia do seu desempenho enquanto assessoria científica (TEMPORÃO, 1986TEMPORÃO, J.G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1ª edição, 1986.). Em segundo lugar, incutia-se a ideia do papel central dos medicamentos nas práticas de saúde, em afirmações como: “os produtos farmacêuticos são indispensáveis para a prevenção e tratamento da saúde humana como todos sabem” (Mensagem ABIFARMA, 1988/1989).
O papel assumido pela indústria farmacêutica na educação continuada dos médicos já foi reconhecido na literatura (TEMPORÃO, 1986TEMPORÃO, J.G. A propaganda de medicamentos e o mito da saúde. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1ª edição, 1986.; DUMIT, 2012DUMIT, J. Drugs for life: how pharmaceutical companies define our health. Durham and London: Duke University Press, 2012.). O DEF funcionou como mais um dispositivo promotor da associação desses atores. Na edição 1983/1984, uma propaganda do laboratório Fontoura Wyeth, apresentada antes das mensagens iniciais do guia, afirmava:
Congressos, jornadas, simpósio, conclaves, seminários, reuniões clínicas... Seriam, na realidade, todos esses eventos, úteis para o constante desenvolvimento da prática médica? Não temos qualquer dúvida a respeito! Nossa preocupação em cada vez melhor servir à classe médica é tão grande que dispomos de um Departamento especializado para dar assistência a esse tipo de atividade. O Programa Nacional de Atualização Médica Fontoura- Wyeth já participou de centenas de reuniões médico-científicas e está estruturado para continuar nesse propósito (...) Sua presença em nossos stands será sempre bem-vinda! Apareça! (Mensagens iniciais, 1983/1984).
No início dos anos de 1990, 65% dos médicos utilizavam o DEF como uma das principais fontes de informação, sendo uma das principais publicações capazes de influenciar a prescrição médica (BARROS, 1995). Isso parece ter sido estratégia meticulosamente elaborada pelos editores e seus parceiros na indústria: “O DEF, através dos anos, vem se modificando em busca de um melhor atendimento e facilidade de manuseio para os leitores (...). Cada vez mais tem se tornado um livro de consultas, um livro de referências e o ajudante infatigável do médico na sua luta diária” (Nota do editor, 1977/1978).
Nas mensagens da Seção Inicial, havia preocupação de reafirmar a idoneidade e o compromisso ético da indústria com os consumidores. Os laboratórios chamavam para si a responsabilidade de servir como fonte legítima de atualização terapêutica para médicos e farmacêuticos, mas queriam se prevenir da acusação de aliciamento e indução ardilosa da prescrição de seus produtos. Muitas vezes, se disse que o DEF representava “uma obra ímpar, levando a todos os médicos informações absolutamente fidedignas e úteis para o exercício diário da clínica, sem que os autores tenham a pretensão de induzir prescrições dirigidas, pois não está sugerido o uso de quaisquer dos produtos relacionados” (Nota do editor, 1974) e com “as melhores e mais completas informações”, os médicos poderão “decidir sobre o uso do melhor produto que lhe convém” (Idem). Os laboratórios advertiam que “para se aproveitar totalmente de seus benefícios, estes produtos devem ser usados criteriosamente. A responsabilidade por este adequado e correto uso recai igualmente nas autoridades sanitárias de nosso país como também nos seus pesquisadores, fabricantes, distribuidores e, principalmente, na comunidade médica prescritora” (Mensagem ABIFARMA, 1988/1989).
A análise dessas mensagens iniciais foi importante para compreensão e contextualização das relações estabelecidas entre indústria farmacêutica e consumidores intermediários de seus produtos (médicos e farmacêuticos), no processo de constituição do mercado das pílulas anticoncepcionais. O DEF funcionava como dispositivo de ligação entre esses atores, sendo instrumento de tradução de conhecimentos e geração de necessidades, interesses e valores, que foram importantes para circulação, aceitação e incorporação das pílulas anticoncepcionais no cotidiano dos profissionais.
O Bulário: orientando a prescrição médica, a venda nas farmácias e o uso das pílulas anticoncepcionais
As bulas são textos técnico-científicos que acompanham os medicamentos e tem como principal função o fornecimento de informações relevantes sobre os produtos para as classes médica e farmacêutica (CINTRA, 2012CINTRA, A. D. Bulas de medicamentos alemãs e brasileiras em contraste: alguns resultados da análise linguística. Pandaemonium Germanicum, v. 15, n. 20, p. 224-261, dez. 2012.). No Brasil, nos anos de 1970 e 1980, havia pouca regulamentação das bulas (FUJITA; MACHADO; TEIXEIRA, 2014FUJITA, P. L.; MACHADO, C. J. S.; TEIXEIRA, M. DE O. A bula de medicamentos e a regulação de suas configurações em termos de forma e conteúdo no Brasil. Saúde e Sociedade, v. 23, n. 1, p. 277-292, mar. 2014.). Como reflexo desse contexto, as bulas dos anticoncepcionais apresentavam pouca padronização, no que diz respeito ao formato, e seus conteúdos eram bastante heterogêneos. Para isso, também contribuía o fato de que o DEF era um guia comercial, cuja fonte principal de financiamento era a venda de espaço para anúncio de medicamentos, portanto a extensão das bulas estava condicionada ao montante que cada laboratório estava disposto a pagar 33 Informações disponibilizadas pela equipe editorial do DEF durante a coleta de dados.. Como vimos, algumas pílulas anticoncepcionais apareciam com seus nomes comerciais nas seções iniciais, mas não estavam presentes ou estavam de modo muito sucinto no bulário. Isso nos faz supor que, em um número de casos, as bulas que vinham nas caixas dos medicamentos comercializados eram editadas e apenas fragmentos eram publicados no DEF.
A linguagem das bulas era pouco padronizada. O registro linguístico de algumas bulas ou de trechos delas eram mais técnicos, falando o idioma médico: “cada comprimido contém d-13-beta-etil-17-etinil-17-beta-hidroxigen-4-em-3-ona 0,25 mg; etinil-estradiol 0,05 mg” (Evanor, 1975). Outras bulas ou trechos eram mais coloquiais e explicativos, como se falassem às consumidoras e a públicos não especializados, transmitindo informações básicas sobre fisiologia feminina e ensinando o modo de usar corretamente o medicamento: “o tratamento começará rigorosamente a partir do 5º dia do ciclo menstrual (considera-se, como primeiro dia do ciclo, o dia do início da menstruação). De 1 a 4 dias após o término do tratamento, surge, habitualmente, uma menstruação com aparência normal” (Ciclofarlutal, 1975). Frases de alerta e trechos claramente instrucionais, indicando o que devia ser feito em determinadas situações, também foram encontrados: “se a paciente esqueceu em determinado dia a ingestão da drágea, poderá tomá-la, sem inconveniente algum, na manhã seguinte, sem olvidar a do dia correspondente” (Neovlar, DEF 1973). Alguns recursos gráficos - negritos e caixa alta - eram usados principalmente para destacar aquelas partes do conteúdo das bulas que poderiam ser mais necessárias e acessadas pelas consumidoras: “posologia e modo de usar” (Ciclofarlutal, 1975); “NOTAS DE INTERESSE” (Neovlar, 1973).
Informações contidas em bulas podem servir como complemento àquelas recebidas nas consultas médicas e na dispensação de medicamentos e exercer grande influência no consumo desses produtos (MORAES, 2016MORAES, CG. Efeito do formato de informações escritas sobre reações adversas na compreensão dos usuários de medicamentos. [Tese]. Porto Alegre: UFRGS, 2016.; NICOLSON et al., 2009NICOLSON, D. J. et al. Written information about individual medicines for consumers. The Cochrane Database of Systematic Reviews, v. 2009, n. 2, 15 abr. 2009.). É razoável supor que em um contexto no qual, de fato, os medicamentos são vendidos livremente, bulas que estabelecem uma situação comunicativa prática e direta favorecem o consumo desses produtos.
No DEF, as bulas começavam com a apresentação do nome comercial, em negrito, e, ao lado, a logomarca do laboratório. Sob esse nome, às vezes, havia um pequeno texto introdutório, resumindo a composição da pílula, acrescentada ou não de alguma outra informação, como: “Nordette / A primeira redução balanceada de estrógeno e progestágeno que mantém eficácia e oferece à paciente conforto e segurança para uso por longo tempo” (Nordette, 1973) ou “Evanor / Associação progestágeno-estrogênica” (Evanor, 1973)44 As citações dos verbetes do bulário são apresentadas pelo nome comercial do produto seguido do ano de edição do DEF.. Entretanto, na maioria das bulas, abaixo do nome comercial, era colocado o termo “Anovulatório”, como: “Anfertil/ Anovulatório (Anfertil, 1973) ou “Anagran/Anovulatório e regulador do ciclo menstrual” (Anagram/1973).
Devido às restrições legais ao anúncio e uso de métodos contraceptivos - a Lei das Contravenções Penais, de 1941, no capítulo I, artigo 20, proibia: “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto ou evitar gravidez” (BRASIL, 1941) - e às restrições morais e religiosas, nas décadas de 1960 e 1970, nos materiais de divulgação farmacêutica, as pílulas anticoncepcionais eram designadas como “anovulatórios” e anunciadas como medicamentos para controle da ovulação. Ao deixar implícito o efeito contraceptivo desses remédios, tratando-o quase como um efeito colateral (DIAS et al., 2018aDIAS, T. M. et al. “Estará nas pílulas anticoncepcionais a solução?” Debate na mídia entre 1960-1970. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, 2018a.), a indústria farmacêutica prosseguia em sua prática, finalmente já tradicional, de mascarar efeitos principais - e perseguidos - dos hormônios sexuais, para não melindrar as sensibilidades da época (OUDSHOORN, 1994OUDSHOORN, Nelly. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. Londres e New York: Routlegde, 1994.; TRAMONTANO, 2017TRAMONTANO, L. Testosterona: as múltiplas faces de uma molécula. [Tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/UERJ, 2017.). Nas bulas analisadas, o controle dos hormônios sexuais e de seus efeitos no corpo era a indicação primordial, e não o efeito contraceptivo. A primeira aparição de uma indicação diretamente contraceptiva acontece somente em meados dos anos 1980, quando na bula do Anfertil se diz que “é indicado para: 1- Prevenção de gravidez” (Anfertil, 1985/1986)”. Nessa década, as restrições legais, morais e religiosas já não possuíam tanto peso e as controvérsias públicas sobre as pílulas anticoncepcionais já haviam se arrefecido (DIAS et al., 2018a).
Conforme Dias et al (2018aDIAS, T. M. et al. “Estará nas pílulas anticoncepcionais a solução?” Debate na mídia entre 1960-1970. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, 2018a.), o debate público em torno dos contraceptivos hormonais girou em torno de três pontos fundamentais: eficácia, segurança e oportunidade. Particularmente, a ideia da “oportunidade” dos hormônios sexuais femininos não cessou de se expandir desde as primeiras décadas de sua descoberta e síntese. OUDSHOORN (1994OUDSHOORN, Nelly. Beyond the natural body: an archeology of sex hormones. Londres e New York: Routlegde, 1994.) discutiu a ampliação das indicações desses medicamentos, da ginecologia à psiquiatria e outras áreas clínicas, entre os anos 1920 e 1930. Outros autores discutiram como esses produtos - principalmente no seu formato de pílula anticoncepcional - foram erigidos como oportunidade para resolução de problemas sociais e viabilização de estratégias geopolíticas nacionais e globais, entre os anos 1950-1970, especialmente o controle do crescimento demográfico (WATKINS, 1998WATKINS, E. S. On the pill. A social history of oral contraceptives: 1950-1970. The Johns Hopkins Press Ltd., London, 1998.; BONAN, 2002BONAN, C. Reflexividade, sexualidade e reprodução: processos políticos no Brasil e no Chile. 2002. [Tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ, 2002. Medicina Social/UERJ, 2017.).
Nesse mesmo período, as pílulas também foram apresentadas como parte da solução de questões morais e legais, como o grande número de ‘abortos criminosos’, e questões epidemiológicas correlatas, como taxas elevadas de morte materna (SOBRINHO, 1993SOBRINHO, D.F. Estado e população: uma história do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1993.). Enfim, esses medicamentos - em forma de pílulas, injeções, implantes ou outras - foram, desde o início de sua comercialização, apresentados como oportunidade para a modernização dos estilos de vida das mulheres: participação no mercado de trabalho, aumento da escolaridade, liberdade sexual e reprodutiva (SILVA, 2017SILVA, C.V. Histórias de utilização de pílulas anticoncepcionais na década de 1960. [Dissertação]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira/Fiocruz, 2017.) e, nas décadas mais recentes, para aprimoramento corporal, sexual e mental (NUCCI, 2012). A terminologia utilizada nos textos das bulas analisadas também contribui para a estruturação desses sentidos de oportunidade, que foram minuciosamente incorporados ao conceito dos contraceptivos e necessários à legitimação social da necessidade de um medicamento contraceptivo hormonal.
As pílulas anticoncepcionais representavam uma oportunidade de atender às necessidades femininas, seja de tratamento das desordens ginecológicas, até então sem nenhum tratamento comprovado cientificamente, seja de controle de estados orgânicos e psíquicos. As indicações mais corriqueiramente elencadas nas bulas eram relacionadas à atividade ovariana - “controle da ovulação”, “inibição da ovulação”, “regulação da fertilidade” - ou à menstruação - “distúrbios menstruais”, “dismenorreias funcionais” “hemorragia uterina”, “irregularidades menstruais”, “tensão pré-menstrual”. A mensagem que se transmitia era a de um corpo que, se não doente, tinha ao menos a necessidade de “descansar” de tantas ovulações e gestações, assim como de se “equilibrar” frente à espoliação, à perturbação e ao fardo que representariam os eventos ginecológicos.
“Medicação supletiva da ação progestional-estrogenica. Normalização do ciclo menstrual. Indicada em distúrbios pélvicos dolorosos” (Novulon, Johnson & Johnson, 1971).
“Micronor proporciona estabilidade fisiológica, em relação direta com o tempo de uso e a dose. Tratamento das hemorragias uterinas funcionais e distúrbios do ciclo menstrual. Dismenorréia. Tensão pré-menstrual. Algias pélvicas. Mastodinia. Distúrbios da fertilidade” (Micronor, 1983/1984).
Menstruar, ovular e conceber, a fragilização do corpo pelos desequilíbrios hormonais entre excessos e faltas, foram os problemas que as pílulas anticoncepcionais encontraram para chamar de seu; novos estados patológicos ou de risco foram sendo criados na medida em que os medicamentos hormonais se apresentavam como solução. A visão do corpo e do psiquismo feminino como débil, em instável equilíbrio entre saúde e doença já existia muito antes da chegada das pílulas anticoncepcionais (MARTINS, 2004MARTINS, APV. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.). Esse olhar avançou com o advento da ideia de uma bioquímica desarranjada, que oferecia de bandeja a justificativa terapêutica que as pílulas anticoncepcionais buscavam. Desequilíbrios, desordens, transtornos e anormalidades desse corpo hormonal agora podiam ser resgatados e trazidos à normalidade e à naturalidade (ROHDEN, 2008ROHDEN, F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 15, p. 133-152, 2008.; VIEIRA, 2002VIEIRA, EM. A medicalização do Corpo Feminino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 84p. 2002.).
“Indicadas para a normalização do ciclo menstrual” (Novulon, 1975/1976) e o “controle terapêutico da ovulação” (Anacyclin, 1985/186), as pílulas deviam não somente trazer de volta ao “normal”, mas mimetizar o “natural”: “seguro anovulatório e eficaz regulador do ciclo menstrual. Impede a ovulação e simula o ciclo menstrual normal” (Femagest, 1973); “induz a regularização do sangramento uterino que, em relação à quantidade e duração do fluxo, aparenta sangramento menstrual normal” (Lindiol, 1986/1987). Segundo Watkins (1998WATKINS, E. S. On the pill. A social history of oral contraceptives: 1950-1970. The Johns Hopkins Press Ltd., London, 1998.), a forma de apresentação do medicamento com o ciclo de 21 dias de comprimidos ativos com pausa de 7 dias não se baseou em nenhum princípio científico e só foi estabelecido dessa maneira para simular o ciclo menstrual "natural" e torná-lo mais bem aceito por todos.
As bulas das pílulas foram incansáveis em propagandear essa proximidade de seus efeitos com estados fisiológicos reafirmados como naturais e normais: “o uso produz modificações bioquímicas do muco cervical e adaptações endometriais típicas da fase luteínica do ciclo menstrual que se relaciona com a fisiologia feminina da menstruação e da fertilidade” (Micronor, 1976/1977). Conforme Oudshoorn, (1990OUDSHOORN, N. On the Making of Sex Hormones: Research Materials and the Production of Knowledge. Social Studies of Science, v. 20, n. 1, p. 5-33, 1 fev. 1990.), essa preocupação em anunciar que os hormônios sexuais sintéticos atuavam exatamente como os hormônios já produzidos pelo organismo, sendo assim cópia fiel ao natural do organismo, não foi observada com os outros métodos como camisinha, DIU, diafragma e outros.
Vários autores chamaram a atenção para a prática da indústria farmacêutica, em sua comunicação com a classe médica, de omitir ou atenuar informações sobre efeitos adversos e precauções que devem ser observadas no uso dos medicamentos, o que atende às intenções de instigar a prescrição, a venda e o consumo, ou seja, advertir sobre os riscos funcionaria como uma contrapropaganda do produto (NASCIMENTO; SAYD, 2005NASCIMENTO, Á. C.; SAYD, J. D. Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado: isto é regulação? Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 15, n. 2, p. 305-328, 2005.; OLDANI, 2002; DUMIT, 2012DUMIT, J. Drugs for life: how pharmaceutical companies define our health. Durham and London: Duke University Press, 2012.; FARO; RUSSO, 2017FARO, L; RUSSO, J.A. “Testosterona, desejo sexual e conflito de interesse: periódicos biomédicos como espaços privilegiados de expansão do mercado de medicamentod. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 23, n. 47, p. 61-92, jan./abr. 2017). No cômputo geral, as bulas de pílulas divulgadas no DEF, em sua forma e conteúdo, foram organizadas para celebrar benefícios e vantagens e minimizar quaisquer aspectos que pudessem ser desagradáveis. O conjunto de itens contidos em cada bula era variado, com combinações de tópicos como “apresentação”, “composição”, “propriedades”, “indicações”, “posologia”, “contraindicações”, “precauções”, “advertências”, entre outros. A questão da segurança, sempre mais enfatizada do que problematizada nos textos analisados, somava pontos com a classe médica, o pessoal da farmácia e as consumidoras. Desde 1971, ano da primeira edição do DEF, nas bulas das pílulas anticoncepcionais havia menção a “precauções” e “contraindicações”, mas essas advertências diziam respeito somente às mulheres que tivessem alguma “questão prévia de saúde, como por exemplo, neoplasia hormônio-dependente, vasculopatias tromboembólicas, hepatopatia, insuficiência renal e AVC” (Ciclogest, 1973). As bulas deixavam subentendido que as pílulas anticoncepcionais não ocasionariam efeitos adversos se as mulheres fossem previamente saudáveis: “não há contra-indicação conhecida para o anfertil quando prescrito para pessoas com saúde” (Anfertil, 1973).
Na primeiras duas edições do DEF (1971 e 1973), bulas de produtos muito conhecidos como o Anfertil (Fontoura Wyeth), Evanor (Fontoura Wyeth) e Neovlar (Berlimed) não utilizavam os termos “efeitos colaterais”, “efeitos secundários”, “efeitos indesejados” e quando faziam menção a questões como tromboembolia, hepatopatia ou câncer, em tópicos denominados “precauções” ou “contra-indicações”, estes agravos ficavam sob a rubrica das condições pré-existentes: “as que apresentam disfunção ou doença hepática confirmada, ou história de doença tromboembólica, não devem ser tratadas com esses fármacos” (Anfertil, 1973). Em 1971, apenas nas informações do Norlestrin (Parke Davis) encontramos a expressão “efeitos colaterais” e, ainda assim, os efeitos citados eram aqueles de menor gravidade, como distúrbios menstruais, acne, ganho de peso, enjoo ou “elevação transitória” das enzimas hepáticas. Não era incomum que as bulas enfatizassem que esses efeitos colaterais eram transitórios.
“Náuseas e outros efeitos colaterais, em geral, desaparecem espontaneamente, depois dos primeiros ciclos” (Norlestrin, 1971).
“Embora incomuns e raros alguns efeitos secundários leves poderão surgir no primeiro ciclo. Traduzem-se por cefaleias, estado nauseoso, engurgitamento mamário, etc” (Noraciclina, 1973).
Os termos “efeitos colaterais”, “efeitos adversos” ou “efeitos secundários” apareceram como tópicos nas bulas, destacados em negrito, somente a partir de meados da década de 1970. Mesmo assim, efeitos “como náuseas, dores de cabeça, ganho de peso, retenção hídrica e sangramentos” (Micronor, 1976/1977) continuaram a ser apontados como temporários e minimizados no que diz respeito a riscos à saúde feminina. Às vezes, efeitos indesejáveis eram considerados manifestações psicossomáticas: “Em certas ocasiões, possivelmente em virtude de fatores psicológicos, podem ser observadas modificações na libido” (Anfertil, 1973); outras vezes, como para minimizá-los, os mal-estares relacionados ao uso da pílula eram comparados àqueles da gravidez. Tramontano e Russo (2015TRAMONTANO, L.; RUSSO, J.A. O diagnóstico de Deficiência Androgênica do Envelhecimento Masculino e os (des)caminhos do desejo sexual masculino. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v. 20, p. 174, 2015.) observaram a mesma minimização dos efeitos adversos por parte dos prescritores de testosterona. A representação dos efeitos colaterais considerados menores como males suportáveis e passageiros remete às reflexões sobre como normas de gênero naturalizam desconfortos relacionados à gravidez, à menstruação, à contracepção e a outros eventos da vida reprodutiva como algo natural da feminilidade, inevitáveis, porém suportáveis (MARTIN, 2006MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.).
O tom geral das bulas era de exaltação dos benefícios e de minimização de riscos dos medicamentos, sugerindo que qualquer possibilidade de danos à saúde feminina era superada pelos benefícios e pelas oportunidades trazidas pelas pílulas anticoncepcionais. O discurso positivo se expressava por um meio de grande número de adjetivos, que reiteravam as qualidades dos medicamentos: “reduzidíssima dose”, “reduzidíssimos efeitos colaterais”, “produto moderno”, “proporções ideias de estrógeno e progestógeno”.
Outra ideia propagada era a de que possíveis problemas com as pílulas podiam ser evitados, minimizados ou contornados se sua utilização se desse sob acompanhamento médico. Reiterava-se a posição do médico como o detentor de um saber que garantiria o uso seguro e reconhecia-se a prerrogativa desse profissional como responsável legal pela prescrição das pílulas: “Como os demais antiovulatórios, Demilen deve ser administrado sob orientação clínica” (Demilen, 1974).
É interessante notar nos subtextos das bulas o jogo de conexões que se estabeleciam entre a indústria, os médicos e as usuárias. Como observamos anteriormente, a dupla direção da linguagem das bulas parecia querer alcançar médicos e público leigo, especialmente as mulheres. Por sua vez, a reiteração da necessidade de visita e controle médico para a segurança à saúde feminina promovia o estreitamento de laços entre os agentes da indústria farmacêutica e os profissionais médicos - parceria e reciprocidade garantiam ampliação de mercado para ambos, concentrada na figura da usuária da pílula: “Deve-se manter sob contínua vigilância clínica as mulheres que usem anovulatórios” (Evanor, 1978/1979).
Nos anos finais das décadas de 1970, as advertências sobre efeitos iatrogênicos dos contraceptivos orais começam a ser mais prolixas. “Os fenômenos tromboembólicos, quadros cardiovasculares, neurovasculares e hepáticos agudos, tumores, entre outros”, passaram a ser apresentados como possíveis agravos consequentes ao uso das pílulas anticoncepcionais. Na edição do DEF1978/1979, a bula do Evanor (Fontoura Wyeth) ocupava quase duas páginas do manual. Os tópicos “Advertências” e “Precauções” tomavam praticamente uma página inteira. Neles, se expunham minuciosamente e de maneira numerada, citando estudos científicos, os efeitos colaterais (embora esse termo não tenha sido utilizado) e complicações que o uso de anticoncepcionais poderia acarretar, muitos dos quais graves e ameaçadores à vida. O tópico das advertências começava com a observação “Advertências - (válidas para todos os anovulatórios)”. Isto é, a Fontoura Wyeth dizia que não somente a sua pílula poderia causar aqueles problemas, como também qualquer outro produto desse tipo; a sua vantagem, em relação aos concorrentes, era que o laboratório explicitava esses riscos, passava informações clínicas e científicas completas para os médicos e os orientava como acompanhar suas pacientes e observar a manifestação das complicações. “Antes da prescrição de anovulatórios e periodicamente durante sua administração, deve-se obter completa história clínica e fazer-se exame físico” (Evanor 1978/1979), assim começava o tópico das precauções que, em doze itens, detalhava metodicamente como o médico deveria monitorar os vários sistemas e órgãos de suas pacientes. No jogo de intricadas conexões, ao retirar de baixo do tapete os problemas e controvérsias que envolviam as pílulas anticoncepcionais, no que tange a sua segurança, os laboratórios também compartilhavam com os médicos as responsabilidades pelas consequências - principalmente, as ruins - do uso desses produtos.
Uma outra atenuação feita às possibilidades de riscos dos contraceptivos era a preocupação com o uso prolongado, como era um medicamento recém-lançado, havia dúvidas em relação ao efeito a longo prazo. Para contornar essa situação havia a sugestão de “recomenda-se intercalar um ciclo de descanso após 9 ciclos de tratamento” (Neovlar, 1973).
Nas várias esferas de circulação das pílulas, sua eficácia foi sempre reafirmada e pouco questionada (BONAN; TEIXEIRA; NAKANO, 2017BONAN, C.; TEIXEIRA, L. A.; NAKANO, A. R. Absorção e metabolização dos hormônios sexuais e sua transformação em tecnologias contraceptivas: percursos do pensamento médico no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 1, p. 107-116, jan. 2017.; DIAS et al., 2018aDIAS, T. M. et al. “Estará nas pílulas anticoncepcionais a solução?” Debate na mídia entre 1960-1970. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, 2018a.), e com as bulas não foi diferente. Desde os primeiros anos, elas não deixavam dúvidas sobre a eficiência dessa novidade científica: “Ação exercida através de um mecanismo tríplice cujos efeitos parciais, totalmente reversíveis uma vez suspensas a medicação, complementam-se em cada ciclo assegurando a eficácia” (Ciclogest, 1971); “A primeira redução balanceada de estrógeno e progestágeno que mantém eficácia e oferece à paciente conforto e segurança para uso por longo tempo” (Nordette, 1973). Os discursos positivos sobre as pílulas anticoncepcionais - seja o balanço eficácia/segurança, seja suas aplicações terapêuticas, seja sua praticidade - percorreram as bulas desde a primeira até a última edição revisada do DEF. A bula do Micronor (Johnson & Johnson), carregada de sonoros adjetivos, é um exemplo sintético dessa orientação de positivação e da normalização das pílulas anticoncepcionais entre nós.
“MICRONOR, medicação progestínica em dose adequada para uso contínuo, satisfaz plenamente, do ponto de vista terapêutico, como medicação controladora dos distúrbios do ciclo menstrual e da fertilidade. O uso ininterrupto da norestiterona produz modificações bioquímicas do muco cervical e adaptações endometriais, típicas da fase luteínica do ciclo menstrual, ligada à fisiologia feminina da menstrução e da fertilidade. Merece destaque, além da nítida atividade progestacional do MICRONOR, e ínfima toxicidade do sal e sua notável eficácia e segurança. Em uso contínuo, mesmo em doses mínimas, o medicamento tem sido utilizado com bastante sucesso nos distúrbios do ciclo menstrual, notadamente a dismenorréia, tensão pré-menstrual, algias pélvicas e mastodinias. Micronor permite, portanto, o controle de várias condições ginecológicas relacionadas a ação hormonal progestínica. Não alterando funções básicas de órgãos nobres e nem crase sanguínea, MICRONOR proporciona estabilidade fsiológica, em relação direta com o tempo de uso e a dose.” (Micronor, 1989/1990).
Considerações Finais
Estudos anteriores sobre a vida social das pílulas anticoncepcionais no Brasil (DIAS et al., 2018aDIAS, T. M. et al. “Estará nas pílulas anticoncepcionais a solução?” Debate na mídia entre 1960-1970. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, 2018a., 2018b; BONAN; TEIXEIRA; NAKANO, 2017BONAN, C.; TEIXEIRA, L. A.; NAKANO, A. R. Absorção e metabolização dos hormônios sexuais e sua transformação em tecnologias contraceptivas: percursos do pensamento médico no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 1, p. 107-116, jan. 2017.) discutiram os modos como esses medicamentos e seus utilizadores se moldaram reciprocamente - e aqui se incluem as mulheres, como usuárias finais, e médicos, farmacêuticos, balconistas de farmácias, propagandistas de laboratórios e outros atores, cujas práticas profissionais sofreram efeitos importantes com a introdução desses produtos -, em um processo que tem sido referido como a co-constituição usuário-tecnologia (OUDSHOORN e PINCH, 2003OUDSHOORN, N. e PINCH. How users matter: the co-construction of users and technologies. Cambridge: The MIT Press, 2003.). Foi discutido também como, ao longo de sua trajetória, as pílulas urdiram novas associações, tramando redes de interação e agenciamentos de visões de mundo e interesses, que possibilitaram a estabilização do uso das pílulas anticoncepcionais no país (DIAS et al., 2018a). O novo medicamento se apresentou como “a pílula da oportunidade” (DIAS et al., 2018; BONAN; TEIXEIRA; NAKANO, 2017): sua eficácia foi entusiasticamente louvada, sua segurança prometida, com apostas em avanços científicos no campo dos produtos hormonais; seu papel como instrumento para enfretamento de questões sociais, sanitárias, terapêuticas, comerciais, profissionais, entre outras, foi incansavelmente destacado; suas contribuições à “modernização” das práticas profissionais e dos estilos de vida - práticas afetivo-sexuais, padrões reprodutivos e relações de gênero - foi alardeada. Para Scavone (1998SCAVONE, L. Tecnologias reprodutivas: novas escolhas, antigos conflitos. Cadernos Pagu, n. 10, p. 83-112, 1998.), o largo uso dos métodos contraceptivos foi inserido no “espírito da modernidade”, no qual a ciência e a racionalidade ocuparam espaço privilegiado e definiram novas formas de viver.
Em que pese neste estudo por não ter sido possível encontrar as bulas originais - aqueles pedacinhos de papel que vinham encartados nas embalagens do medicamento - e não abranger a primeira década, ou seja, os anos de 1960, com o material disponível no DEF pudemos explorar mais algumas nuances a mais sobre a vida social das pílulas anticoncepcionais em sua juventude. Esse pequeno objeto material foi veículo de intercomunicação em uma cadeia de associações produzidas pelas pílulas anticoncepcionais que tinha, em uma ponta, a indústria farmacêutica e, em outra ponta, as mulheres consumidoras, passando por médicos, enfermeiros, farmacêuticos, donos e balconistas de farmácias, transitando entre consultórios, serviços de saúde, entidades de planejamento familiar, estabelecimentos comerciais, lares e bolsas femininas. As bulas contribuíram assim para o mínimo denominador comum que permitiu a normalização e naturalização das práticas de controle da fecundidade hormonalmente mediadas e a formação do mercado das pílulas anticoncepcionais - “mercado” não apenas no sentido econômico estrito, mas em sentido sociológico, como redes de interações e trocas, onde circulam bens que agregam a um só tempo valores econômicos, simbólicos e normativos (MAUSS, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.).
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- 1Propagandista de laboratório e, posteriormente dono do Jornal Brasileiro de Medicina, criador da Editora de Publicações Científica (EPUC) e editor do DEF. Disponível em: http://itapagece.blogspot.com.br/2015/02/15-de-fevereiro-de-20150-osonho-do.html. Acesso em 01 de novembro de 2018.
- 2As citações são apresentadas pelo nome da mensagem inicial seguido do ano de edição do DEF.
- 3Informações disponibilizadas pela equipe editorial do DEF durante a coleta de dados.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Jul 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
19 Jul 2019 - Aceito
03 Mar 2020 - Revisado
19 Maio 2021