Negociações no Cuidado de crianças cronicamente adoecidas: construção de possibilidades em um cenário de incertezas

Hermínia Guimarães Couto Fernandez Martha Cristina Nunes Moreira Sobre os autores

Resumo

Interessados em explorar a construção das negociações presentes nas relações de decisões no cuidado crônico complexo em pediatria em ambiente ambulatorial, acessamos Anselm Strauss e o conceito de ordem negociada e Annemarie Mol com o conceito das lógicas das decisões associada à teoria ator-rede de Latour. Fizemos uso de uma perspectiva etnográfica da pesquisa em saúde nos ambulatórios de pediatria e estomaterapia de um hospital localizado na cidade do Rio de Janeiro, no período de julho a dezembro de 2017. A interpretação do campo convergiu para 2 grandes eixos: diagnóstico e itinerários terapêuticos, onde o cuidado foi performado por meio de redes de negociação. Estas disseram respeito à organização da vida das pessoas relacionadas a este cuidado. Todo este processo de negociação se deu num cenário híbrido, marcado por borramento entre fronteiras, onde os envolvidos com o cuidado negociavam constantemente o reconhecimento de suas crianças. Na dependência dos espaços e tempos de interação, os atores transitavam por diversas identidades, numa negociação entre como eles se reconheciam e como eram reconhecidos pelas pessoas no cuidado crônico complexo. As negociações no cuidado observadas se deram entre as incertezas inerentes à condição de saúde e às possibilidades de viver com aquele diagnóstico.

Palavras-chave:
Negociação; cuidado da criança; doença crônica, etnografia

Introdução

As crianças com condições crônicas complexas de saúde (CCCS) vêm ocupando cada vez mais leitos hospitalares e consumindo recursos do sistema público de saúde brasileiro (SUS) (DUARTE et al., 2012DUARTE, J. G. et al. Perfil dos pacientes internados em serviços de pediatria no município do Rio de Janeiro: mudamos? Physis (Rio J.), p. 199-214, 2012.; GAVAZZA et al., 2008GAVAZZA, C. Z. et al. Utilização de serviços de reabilitação pelas crianças e adolescentes dependentes de tecnologia de um hospital materno-infantil no Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica, p. 1103-1111, 2008.; MOREIRA et al., 2015MOREIRA, M. C. N. et al. Diagnóstico das condições crônicas em pediatria no Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ: retrato da morbidade hospitalar e linhas de cuidados. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.; MOURA et al., 2016MOURA, E. C. D. et al. Complex chronic conditions in children and adolescents: hospitalizations in Brazil, 2013. v. 0105/2016, 2016.). Compõem esse grupo as crianças com dependência de tecnologia, de serviços especializados de saúde, que vivem com patologias complexas e apresentam comprometimentos múltiplos (COHEN et al., 2011COHEN, E. et al. Children With Medical Complexity: An Emerging Population for Clinical and Research Initiatives. Pediatrics, v. 127, n. 3, p. 529-538, 1 mar. 2011.; FEUDTNER; DIGIUSEPPE; NEFF, 2003FEUDTNER, C.; DIGIUSEPPE, D. L.; NEFF, J. M. Hospital care for children and young adults in the last year of life: a population-based study. BMC medicine, v. 1, p. 3, 23 dez. 2003.). No Brasil, as ações de saúde pública para adequação do SUS à realidade epidemiológica do aumento das doenças crônicas contemplam adultos e idosos, mas pouco reconhecem as crianças com CCCS. Estes fatos têm levado a discussões sobre a realização de ações de saúde voltadas para essas crianças, objetivando melhorar seu cuidado (MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016).

Essas crianças hoje são mais visíveis nos hospitais, onde elas crescem, adquirem habilidades, exploram seus corpos e onde são negociadas as decisões sobre seu cuidado (MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016MOREIRA, M. C. N.; CUNHA, C. C.; MELLO, A. Conversando sobre as crianças e adolescentes com condicoes crônicas complexas: interfaces entre a atenção domiciliar e a atenção de media e alta complexidade. In: SANTOS, I. S.; GOLDSTEIN, R. A. (Eds.). . Rede de pesquisa em Manguinhos : sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS. 1a. ed. São Paulo: Hucitec, 2016. p. 331.). Ao dependerem de tecnologias (RUSSELL; SIMON, 2014RUSSELL, C. J.; SIMON, T. D. Care of children with medical complexity in the hospital setting. Pediatric Annals, v. 43, n. 7, p. e157-162, jul. 2014.) as mesmas necessitam que seu cuidador familiar reconheça instabilidades e as monitore, em um mix, que acessa proximidade no cuidado comum, e um olhar próximo ao técnico, a fim de garantir uma ação a tempo para evitar riscos (MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016).

Após processos de desospitalização, essas crianças podem vir a fazer parte, não somente das rotinas de internação, mas dos ambulatórios pediátricos, das suas casas, da escola. Essa presença pode contribuir com mudanças culturais, e na necessária mudança dos olhares e formações profissionais em que o sofrimento de todos os envolvidos se acentua, pelos desafios que o trabalho com elas provoca (CASTRO; MOREIRA, 2019CASTRO, B. D. S. M. D.; MOREIRA, M. C. N. (Re)conhecendo suas casas: narrativas sobre a desospitalização de crianças com doenças de longa duração. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 28, p. e280322, 14 jan. 2019.; MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016).

As crianças com CCCS que dependem de tecnologia e são acompanhadas ambulatorialmente representam um grupo particular. Por estarem em casa, seus cuidadores apresentam mais autonomia de decisão do que quando estão internadas, ainda que essas decisões sejam construídas e negociadas nos ambulatórios pediátricos. Dessa construção de decisões faz parte o conflito, que muitas vezes pode fazer do chamado “cuidado compartilhado”, uma ferramenta de convencimento do outro a fazer o que é melhor para ele, sem a discussão sobre as assimetrias presentes na cena clínica (FERNANDEZ et al., 2019FERNANDEZ, H. G. C. et al. Tomando decisões na atenção à saúde de crianças/adolescentes com condições crônicas complexas: uma revisão da literatura. Ciênc. saúde coletiva, v. 24, n. 6, p. 2279-2292, jun. 2019.).

Destacamos aqui os aspectos socioculturais envolvidos nas negociações das decisões nas experiências de adoecimento infanto-juvenis, considerando o que está em jogo para as pessoas quando decidem. Isto significa acionar valores, crenças e as maneiras de compreender como lidar e elaborar as negociações das decisões no cuidado de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde (KLEINMAN; BENSON, 2006KLEINMAN, A.; BENSON, P. Culture, moral experience and medicine. The Mount Sinai Journal of Medicine, New York, v. 73, n. 6, p. 834-839, out. 2006.).

O presente artigo tem como objetivo analisar as negociações presentes nas relações de cuidado complexo em pediatria em ambientes de atenção ambulatorial. Nos interessou saber como as marcas da condição de saúde das crianças interferem nas negociações das decisões de Cuidado, assim como analisar como, quando e o que negociam os atores envolvidos no Cuidado dessas crianças.

As negociações no cuidado ambulatorial às crianças com CCCS

Anselm Strauss, Annemarie Mol e Bruno Latour se tornaram autores chave para construir caminhos interpretativos acerca das negociações nas decisões construídas no cuidado ambulatorial às crianças com CCCS.

O conceito de ordem negociada, segundo Strauss, diz respeito às relações entre a estrutura rígida dos hospitais, constituída por normas e leis, e os acordos feitos fora dessas normas, que acontecem em defesa dos interesses dos atores envolvidos e que dão origem a novas regras, que são informais (RANGEL, 2007RANGEL, A. M. H. A DINÂMICA COTIDIANA DA NEGOCIAÇÃO DA ORDEM HOSPITALAR ENTRE PROFISSIONAIS DE SAÚDE E ACOMPANHANTES DE CRIANÇAS INTERNADAS. doutorado-Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.; STRAUSS, 1978STRAUSS, A. L. Negotiations: varieties, contexts, processes, and social order. 1st ed. San Francisco: Jossey-Bass, 1978.; STRAUSS et al., 1982). Nossa análise, portanto, se ancora na perspectiva do interacionismo simbólico sobre as negociações que acontecem nos sistemas sociais, nos quais os hospitais também estão incluídos (LALLEMENT, 2004LALLEMENT, M. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2004.; MARTINS, 2013MARTINS, C. B. C. O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-1930) na constituição do interacionismo símbólico. Sociedade e Estado, v. 28, n. 2, p. 217-239, ago. 2013.). O interacionismo simbólico faz referência ao constante processo de interação social que ocorre entre os indivíduos e nessa interação, eles inspiram ações e são também inspirados, atribuindo sentido ao enredo vivido por eles, em relações que não são igualitárias e que são influenciadas por estruturas maiores, assim como também podem vir a fazer parte das mesmas, produzindo outras ordens (GASTALDO, 2015GASTALDO, É. Erwing Goffman. In: ROCHA, E.; FRID, M. (Eds.). . Os Antropólogos: Clássicos das Ciências Sociais. Petropolis (RJ): Vozes, 2015. p. 240 a 250.; JOSEPH, 2000JOSEPH, I. Erving Goffman e a Microssociologia. 1a ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000.; LALLEMENT, 2004).

Entendendo que a ordem social é constantemente construída através das negociações feitas nas interações entre os sujeitos, Strauss ilumina o mundo social do hospital, instituição aparentemente rígida, mas também sujeita a essa dinâmica. O mundo social do hospital constitui-se pelas negociações entre os atores envolvidos (trabalhadores, enfermos e visitantes), que através de suas atitudes contribuem também para (re) definir sua situação social (LALLEMENT, 2004LALLEMENT, M. História das idéias sociológicas: de Parsons aos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2004.; MARTINS, 2013MARTINS, C. B. C. O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-1930) na constituição do interacionismo símbólico. Sociedade e Estado, v. 28, n. 2, p. 217-239, ago. 2013.). Sendo assim, os indivíduos não sofrem os fatos sociais, mas os produzem continuamente, onde ao interpretarem a situação em que se encontram, concebem e constroem suas ações, criando seus pontos de vista e representações (LALLEMENT, 2004; MARTINS, 2013).

Consideramos que falar de ordem negociada no cuidado de crianças com CCCS nos leva ao desafio de abordar estigmatização, significações e Cuidado. Quanto aos processos de estigmatização, as marcas que essas crianças apresentam são tanto físicas quanto simbólicas, sendo estas construídas na interação social, quando as crianças com CCCS são reconhecidas como diferentes pelas outras pessoas. Segundo Goffman (GOFFMAN, 1980GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 3a. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.), nesta dinâmica, os grupos sociais, ao criarem normas, identificam essas crianças como anormais, sendo-lhes então atribuído um papel social que devem representar. Elas podem ou não preencher estas expectativas normativas. Quando seus atributos são incompatíveis com o estereótipo criado para elas, estas crianças podem ser reduzidas a pessoas “estragadas ou diminuídas”. Portanto, nesta dinâmica, os grupos sociais, ao negociarem com as chamadas identidades deterioradas, baseadas na relação com os estigmas, convocam a discrepância entre as identidades sociais virtual (que o outro atribui com base em atributos manifestos) e real (atributos efetivamente possuídos).

Viver de forma dependente de dispositivos tecnológicos, por exemplo, pode ser um estigma da condição de saúde complexa, e pode ter vários significados, diferentes para cada uma das crianças e de suas famílias, e, diante negociações de decisões no cuidado dessas crianças, torna-se essencial trazer não somente diretrizes clínicas e consensos, mas considerar o vasto campo das significações (VENTURINI, 2010VENTURINI, E. A desinstitucionalização: limites e possibilidades. Journal of Human Growth and Development, v. 20, n. 1, p. 138-151, abr. 2010.). Entendendo Cuidado como categoria filosófica de estar no mundo (ANÉAS; AYRES, 2011ANÉAS, T. DE V.; AYRES, J. R. C. DE M. Significados e sentidos das práticas de saúde: a ontologia fundamental e a reconstrução do cuidado em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 38, p. 651-662, set. 2011.; AYRES, 2004a, 2004b), a negociação da decisão não se restringe aos aspectos de tratamento médico, ampliando-se a outros enfoques da vida de uma pessoa com CCCS, como por exemplo, se ela vai para casa, ou para justiça fazer valer seus direitos, ou se vai conseguir ser matriculada na escola. Para cuidar das pessoas, é preciso considerar quais são os projetos para aquela vida, o que aquela pessoa entende por vida e o que ela quer da vida (ANÉAS; AYRES, 2011; AYRES, 2004a, 2004b).

Quanto às lógicas associadas às negociações das decisões, Mol as caracteriza em escolha e cuidado. Na escolha, o profissional vai apresentar fatos, informações ao paciente que de posse de seus valores vai fazer sua escolha. Essa escolha é entre variáveis que parecem fixas e ele vai fazer um balanço entre prós e contras, “subtraindo e somando” para chegar a uma conclusão. Essa decisão é restrita ao encontro clínico e é papel do profissional implementar cuidado (MOL, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London ; New York: Routledge, 2008., 2013).

Porém, Mol enfatiza que o cuidado prestado às pessoas com doenças crônicas não diz respeito à escolhas, mas à organização de suas vidas na prática, dando origem às decisões pautadas na lógica do cuidado. Nestas, fatos e valores se entrelaçam, as variáveis não são fixas e a escolha não resulta de uma sentença matemática, mas de um artesanato contínuo, que não se restringe aos momentos de encontro, e, após cada decisão, outra a segue. Ao profissional não cabe implementar a decisão, mas propô-la e, caso não dê certo, trocar por novas propostas (MOL, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London ; New York: Routledge, 2008., 2013).

Considerando que as negociações das decisões no cuidado de crianças crônicas complexas incluem o manejo do aparato tecnológico, o acesso ao mesmo, as mediações e mudanças que produz nos corpos e na subjetividade dos processos de negociação de decisões, fizemos um diálogo com Latour (LATOUR, 2012LATOUR, B. Reagregando o social. Salvador: Edufba, 2012.), pois torna-se importante considerar as conexões entre os atores humanos e não-humanos. A ideia de ator que aqui colocamos segue a perspectiva de Latour de actante, ou seja, tudo - humano ou não humano - que gera uma ação produtora de efeitos nos fluxos, circulações e alianças nas quais estão envolvidos. E assim, interferem e sofrem interferências contínuas (LATOUR, 2012).

Método

Este artigo constitui-se um recorte de uma pesquisa de doutorado, aprovada no CEP sob o CAAE 65417317.2.0000.5269, parecer nº 2.161.245, onde foi conduzida, pela primeira autora desse artigo, uma observação participante sistemática, seguindo a perspectiva etnográfica da pesquisa em saúde em ambientes hospitalares (CAPRARA; LANDIM, 2008CAPRARA, A.; LANDIM, L. P. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, n. 25, p. 363-376, jun. 2008.) (MENEZES, 2000MENEZES, R. A. Difíceis Decisões: uma abordagem antropológica da Prática Médica em CTI. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 10, n. 2, p. 27-49, dez. 2000., 2004) (DUARTE; MOREIRA, 2011DUARTE, M. C. S.; MOREIRA, M. C. N. Autonomia e cuidado em terapia intensiva pediátrica: os paradoxos da prática. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 38, p. 687-700, 30 set. 2011.) (BARSAGLINI, 2011BARSAGLINI, R. A. As representações sociais e a experiência com o diabetes: um enfoque socioantropológico. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz, 2011.). Isso representa compreender, da forma mais abrangente possível, o grupo ou organização sob estudo, analisando, através de uma descrição densa, suas singularidades, formas de interação e lógica institucional, ideológica ou cultural que ancora suas ações e como se correlacionam com o contexto social mais amplo (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989.) (BECKER, 1994BECKER, H. S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1994.). Buscando esta perspectiva, procuramos tanto uma abstração teórica (GEERTZ, 1989) como uma apreensão dos procedimentos, o que permitiu ultrapassar o esquema teórico inicial e tomar como referência o “concreto vivido”(MAGNANI, 2002MAGNANI, J. G. C. Insider and a close-up view: notes on urban ethnography. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002.).

A comunicação interpessoal foi somada à capacidade da pesquisadora em estabelecer relações de confiança recíproca, compreensão mútua e de longa duração (MAGNANI, 2002MAGNANI, J. G. C. Insider and a close-up view: notes on urban ethnography. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, jun. 2002.; VELHO, 1999VELHO, G. Observando o familiar. In: Individualismo e Cultura - Notas para uma antropologia da Sociedade Contemporânea. 6a edição ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 122-132.). Para isso, foi preciso dedicar tempo e habilidade para explicar os objetivos e legitimidade do trabalho, gerando adesão voluntária (FOOTE-WHYTE, 1980; VALLADARES, 2007VALLADARES, L. Os dez mandamentos da observação participante. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 63, p. 153-155, fev. 2007.). Num espaço onde a primeira autora já tinha firmada a identidade de médica, foi preciso negociar não a entrada no campo, mas o “novo” papel de pesquisadora. Teve que, literalmente, retirar seu jaleco. E isso envolveu tempo e disciplina para olhar para seu ambiente de trabalho típico, suas rotinas e seus atores, buscando surpresas, outros focos. A presença ali agora, em postura observante, no ambulatório de pediatria, de início era muito questionada: “o que você tá fazendo aí camuflada?” perguntou uma profissional frente a essa “nova pesquisadora” sentada na sala de espera sem jaleco, observando. A cada pergunta de estranhamento dessas, a resposta vinha na forma de explicitar o estranhamento e aproveitar a oportunidade para apresentar a pesquisa e o novo lugar que por agora se constituía. A sensação de que a função podia ser a “encarnação de um disfarce de espiã”, também se presentificava. E os tons de brincadeira e curiosidade matizavam a cena, em conjunto com o estranhamento da nova presença da “médica pesquisadora”. Percebido esse temor, como exercício de reflexividade gerada nos espaços de escrita do diário de campo e supervisão da pesquisa, foi necessário indicar as características dessa pesquisa. Ou seja, esse lugar de olhar para todos, sejam profissionais de saúde, trabalhadores da limpeza, famílias e crianças, em posição de observador das salas de espera, era a novidade, que deflagrava tais reações. Após um certo tempo ninguém mais perguntava nada e já se dirigiam à “médica-´pesquisadora” falando “é o seu doutorado, né?!”

Bonet (BONET, 2004BONET, O. Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da biomedicina. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz, 2004.) discute a questão do simbolismo médico do jaleco em etnografia realizada dentro de um hospital. Por ser antropólogo e não pertencente àquele ambiente de práticas profissionais que observava, para ser aceito neste, ele necessitou vestir o jaleco. Porém, nessa pesquisa não foi preciso negociar uma entrada no campo, mas a mudança de posição: temporariamente deixar de ser a médica foi importante para a construção da pesquisadora. Tal consideração lembra Da Matta (DA MATTA, 1978DA MATTA, R. O ofício de etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social E. O. Nunes (Org.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1978. p. 23-35.) no que denominou de movimento de auto exorcismo, em que, no caso da presente pesquisa, na qual foram observadas práticas nativas da profissão, tirar o jaleco significou “tirar a capa de membro de uma classe... para poder... estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir... o exótico no que está petrificado dentro de nós...” (DA MATTA, 1978) (p. 28-29).

No caso das técnicas para produção de dados, empregamos a observação participante como técnica central (CAPRARA; LANDIM, 2008CAPRARA, A.; LANDIM, L. P. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, n. 25, p. 363-376, jun. 2008.; LAPLANTINE, 1991LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo (SP): Brasiliense, 1991.). Foram observados os espaços externos (sala de espera, sala de peso, sala de procedimento e secretaria) e internos aos consultórios, por serem locais onde se apresentam variadas negociações de decisão do Cuidado dessas crianças.

O diário foi o instrumento para o registro do campo, totalizando 41 notas. As 12 entrevistas semi estruturadas com familiares se fizeram importantes para o aprofundamento das questões da pesquisa (CAPRARA; LANDIM, 2008CAPRARA, A.; LANDIM, L. P. Etnografia: uso, potencialidades e limites na pesquisa em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, n. 25, p. 363-376, jun. 2008.; MINAYO, 2011MINAYO, M. C. DE S. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Pesquisa social. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.). Foram registradas digitalmente e transcritas integralmente. No trabalho original, foram entrevistados também 8 profissionais de saúde, mas estas não serão abordadas no presente artigo.

Para construção da amostra qualitativa da pesquisa, partimos da centralidade da condição crônica complexa de saúde na vida das crianças e adolescentes e, por extensão, no cuidado de suas famílias, em acordo com a definição de Cohen (COHEN et al., 2011COHEN, E. et al. Children With Medical Complexity: An Emerging Population for Clinical and Research Initiatives. Pediatrics, v. 127, n. 3, p. 529-538, 1 mar. 2011.). Assim, a escolha das famílias contemplou a possibilidade de considerar tipos de dependência tecnológica diversificados promotores de diferentes negociações de decisões relacionadas ao Cuidado da criança em dependência de tecnologia como mudanças de medicamentos, troca de médico, opção por mudanças de tecnologias por complicações ou indicações clínicas, ou até sociais. Assim, participaram das entrevistas familiares maiores de 18 anos que aguardavam atendimento de suas crianças nos ambulatórios de estomaterapia ou pediatria. As entrevistas começaram após 3 meses do início do campo, sendo intercaladas com observações participantes dos espaços externos e internos aos consultórios.

O estudo foi realizado nos ambulatórios de pediatria e estomaterapia de uma unidade terciária, ambulatorial e hospitalar de alta complexidade, vinculada ao Sistema Único de Saúde brasileiro, dedicada à atenção, ensino e pesquisa da saúde de mulheres, crianças e adolescentes. A pesquisa se deu nos meses de julho a dezembro de 2017.

O campo foi encerrado quando o material construído foi suficiente para responder às perguntas da pesquisa e as ideias começaram a se repetir.

Os achados foram analisados e interpretados seguindo a perspectiva do marco teórico conceitual, acionando a visão do interacionismo simbólico (MARTINS, 2013MARTINS, C. B. C. O legado do Departamento de Sociologia de Chicago (1920-1930) na constituição do interacionismo símbólico. Sociedade e Estado, v. 28, n. 2, p. 217-239, ago. 2013.), articulados com objetivos e perguntas do estudo e dados empíricos.

Ao analisarmos o material empírico, procuramos compreender para além do descrito e analisado, partindo das estruturas semânticas para as sociológicas, articulando o campo com seus determinantes (GOMES, 2011GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: DESLANDES, S. F. (Ed.). . Pesquisa social. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.). Assim, numa primeira fase, organizamos o acervo a partir das perguntas e objetivos da pesquisa e caracterizamos, pela constatação de sua recorrência no campo estudado, um mapa de temas: navegação social, estranhamento do papel de pesquisadora e lugar dos adolescentes no campo, que foram aprofundados nas entrevistas, dando origem a mais 5 temas: marcas, negociações sobre as marcas, temporalidades dos atores em relação, negociações sobre tecnologias, escolhas no manejo das tecnologias e posições dos familiares e profissionais de saúde nas decisões. Num segundo momento chegamos aos sentidos derivados desses temas das entrevistas (quadro 1). Estes sentidos convergiram para 2 grandes eixos: diagnóstico e itinerário terapêutico (IT), que serão abordados na seção seguinte.

Quadro 1
Relação entre temas das entrevistas e sentidos derivados

Resultados/Discussão

As crianças cujos familiares foram entrevistados encontram-se caracterizadas no quadro 2. Suas idades variaram dos 6 meses aos 12 anos e apresentaram diagnósticos diversos, assim como marcas que foram tanto simbólicas quanto reveladas em sua aparência. Algumas referências às suas condições feitas pelos seus familiares foram: “muito paradinhas”, apresentando tremores, perdiam o ar, “ficavam roxas”, tinham “carne morta”. Outras tinham uma sequência de marcas que juntas formavam uma “síndrome” e uma tinha, segundo sua mãe, seu “código genético alterado”.

A dependência de tecnologias se deu muito precocemente, nos primeiros dias de vida. De natureza variada, houve um predomínio das crianças que dependiam de gastrostomia e cadeira de rodas.

Os sujeitos entrevistados foram anonimizados conforme a ordem em que ocorreram as entrevistas, onde M era mãe, P pai, seguidos da numeração arábica correspondente à ordem em que se deu a entrevista. Como foram 12 familiares entrevistados, a decisão foi por nomear suas crianças de acordo com o mês relativo do ano, o que facilitou na correspondência entre os familiares e as crianças, como por exemplo, na entrevista 2 chamo a criança de Fevereiro.

Quadro 2
Caracterização das crianças do estudo

Os cuidadores (quadro 3), predominantemente eram mães, a metade negras, que apesar de alguma escolaridade tinham baixa renda.

Quadro 3
Caracterização dos familiares entrevistados

As crianças desta pesquisa, apesar de apresentarem diagnósticos variados, possuíam necessidades de saúde comuns, criadas graças a aparatos médicos que salvam vidas, mas em contrapartida, criam demandas. Englobavam condições de saúde de evolução crônica, com características complexas, onde as dependências eram inúmeras. Estas condições de saúde trouxeram implicações para suas vidas, sendo significativas na construção delas para si e no seu reconhecimento social, assim como nas suas trajetórias de cuidado familiar e de sociabilidade. E, numa rede aberta de conexões entre diferentes atores, humanos e não-humanos, elas construíam as negociações no seu cuidado (LATOUR, 2012LATOUR, B. Reagregando o social. Salvador: Edufba, 2012.).

Negociações no diagnóstico:

“... o diagnóstico ... falta de oxigenação ... no cérebro...é um atraso que ela tem. Foi que me explicaram lá quando ela tava internada. Que o que ela ia ter ... ia ver com o tempo ... Então hoje dá pra ver que é o não andar.” (M2)

Familiares e profissionais de saúde buscavam por um diagnóstico, e, ao classificarem a criança após obtê-lo, iniciavam uma negociação com seus prognósticos e tratamentos. Sendo assim, nos variados diagnósticos, observamos negociações com as marcas das crianças, estas correspondendo tanto à sua condição de saúde quanto à necessidade de tecnologia. As doenças e os diagnósticos observadas nas crianças estudadas passaram a existir há alguns anos atrás e isto não se deu porque foram descobertas, como categorias naturais à espera de serem reveladas (JUTEL, 2009JUTEL, A. Sociology of diagnosis: a preliminary review. Sociology of Health & Illness, v. 31, n. 2, p. 278-299, mar. 2009.; ROSENBERG, 2002ROSENBERG, C. E. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. The Milbank Quarterly, v. 80, n. 2, p. 237-260, 2002.). Jutel e Rosenberg analisam a relação da indústria biomédica e das transformações na ciência do cuidado, nas técnicas cirúrgicas e na engenharia biomédica, com o “surgimento” destas condições de saúde. Estas abarcam uma variedade de doenças que têm em comum evolução crônica, complexidade e dependências, evocando, então, que os envolvidos com essas novas condições de saúde compartilhem experiências relacionadas ao viver com elas (ALVES, 2016ALVES, C. A. Tessituras do cuidado: as condições crônicas de saúde na infância e adolescência. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ, 2016.).

“descobriu na (ultra-sonografia) morfológica e, de lá pra cá a gente ficou numa tensão, achando que era o fim do mundo... Aí depois que ela nasceu, a gente foi um dia de cada vez, foi se acostumando.” (M6)

Os diagnósticos remeteram também às negociações com temporalidades, sendo performados como marcos, onde a sua busca foi o início das histórias das crianças e suas famílias. Eles se relacionaram ao tempo como prerrogativa do aprendizado do cuidado e, através deles, era projetado um futuro. O diagnóstico de seus filhos significou, para os pais, dentre outras coisas, possibilidade de poder ou não ver suas crianças crescerem e se desenvolverem, além de todo medo que ronda este cenário; o manejo de suas dependências; serem ou não dignos de amor e respeito; ganhar ou perder direitos, ter ou não ter acesso a serviços e status, a anulação ou o seu protagonismo, dentre outras. A gestão da doença destas crianças como fenômeno social envolveu negociar os significados dos diagnósticos entre os envolvidos (ROSENBERG, 2002ROSENBERG, C. E. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience. The Milbank Quarterly, v. 80, n. 2, p. 237-260, 2002.).

Quanto à necessidade de tecnologia, as negociações com as temporalidades se relacionaram com a autorização de instalação de dispositivo tecnológico, reversibilidade ou não deste dispositivo, e corrida contra o tempo para chegar nos hospitais nos momentos de complicação.

A técnica de enfermagem fala aos pais que a emergência é se o balonete estourar e a sonda sair. Isso porque o buraquinho pode fechar... não é nada demais, é como se ela estivesse vomitando. Vocês vão colocar a ponta da sonda e vão pro hospital (diário de campo, p.80-81, 18/10/17)

Os dispositivos tornavam possíveis as vidas destas crianças com malformações e deficiências, que graças à existência concomitante de polos extremos, mas necessários e verdadeiros - como natureza e tecnologia (HARAWAY et al., 2013HARAWAY, D. J. et al. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autentica, 2013.) - conseguiam ir para casa e iniciar uma nova trajetória por Cuidado.

Nos surpreendemos com as observações e entrevistas dos familiares dos adolescentes, pois, apesar dos prognósticos de pouco tempo de vida, suas crianças estavam crescendo e planejando suas vidas.

“... eu não queria que ela namorasse uma pessoa... porque a Setembro não tem a vagina, não tem o ânus. Eu fico focada muito assim, tem meninas que já praticam o sexo. Eu não sei como seria a Setembro. Ela é assanhada. (M9)

Ao corpo físico malformado da Setembro, foram atribuídos valores e foi através desse corpo que a menina se relacionou com o mundo, negociando sua sexualidade. Através de assuntos como estudo, trabalho, sexo, namoro, pudemos ver o crescer dessas crianças com doenças crônicas e as possibilidades criadas por elas e para elas viverem com e através de seus corpos deficientes. Estes assuntos trazem a humanidade desses corpos modificados que têm necessidades especiais, mas que também se deparam com as mesmas questões das pessoas sem doenças, que são questões específicas à natureza humana (GOODLEY; RUNSWICK-COLE; LIDDIARD, 2016GOODLEY, D.; RUNSWICK-COLE, K.; LIDDIARD, K. The DisHuman child. Discourse: Studies in the Cultural Politics of Education, v. 37, n. 5, p. 770-784, 2 set. 2016.; MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016MOREIRA, M. C. N.; CUNHA, C. C.; MELLO, A. Conversando sobre as crianças e adolescentes com condicoes crônicas complexas: interfaces entre a atenção domiciliar e a atenção de media e alta complexidade. In: SANTOS, I. S.; GOLDSTEIN, R. A. (Eds.). . Rede de pesquisa em Manguinhos : sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS. 1a. ed. São Paulo: Hucitec, 2016. p. 331.; PAEZ; MOREIRA, 2016PAEZ, A.; MOREIRA, M. C. N. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 26, n. 3, p. 1053-1072, set. 2016.).

Abordar o diagnóstico significa não só pensar em nomes de doenças e condições de saúde e em como se chega a esses nomes, mas em como eles foram culturalmente construídos, nas suas repercussões sociais e em como eles são negociados entre os diversos atores envolvidos (JUTEL, 2009JUTEL, A. Sociology of diagnosis: a preliminary review. Sociology of Health & Illness, v. 31, n. 2, p. 278-299, mar. 2009.). Considerando que esta negociação não está previamente estabelecida, mas se dá na prática do diagnóstico e do cuidado (MARTIN; SPINK; PEREIRA, 2018MARTIN, D.; SPINK, M. J.; PEREIRA, P. P. G. Corpos múltiplos, ontologias políticas e a lógica do cuidado: uma entrevista com Annemarie Mol. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 64, p. 295-305, mar. 2018.; MOL, 2002MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002., 2008), ela conduz à existência de “novas crianças” e de “novas mães”, que muito sabem sobre seus filhos e convivem com sua condição de saúde mesmo antes do nascimento (MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016MOREIRA, M. C. N.; CUNHA, C. C.; MELLO, A. Conversando sobre as crianças e adolescentes com condicoes crônicas complexas: interfaces entre a atenção domiciliar e a atenção de media e alta complexidade. In: SANTOS, I. S.; GOLDSTEIN, R. A. (Eds.). . Rede de pesquisa em Manguinhos : sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS. 1a. ed. São Paulo: Hucitec, 2016. p. 331.). Elas começam cedo, junto com suas crianças, uma “carreira de doente” e assim as conhecem nas minucias, se tornando eximias observadoras e desenvolvendo sensibilidade para suas instabilidades de saúde (MOREIRA; CUNHA; MELLO, 2016).

Negociações nos itinerários terapêuticos

Os IT se constituíram por negociações que envolveram tanto o diagnóstico quanto o caminho em busca de cuidado, envolvendo trajetos geográficos e significações. As discussões de Freidson contribuem para as concepções de itinerário terapêutico. Para este autor, ao ser socialmente definida como enferma, a pessoa inicia uma série de práticas em busca de tratamento. Por este itinerário as pessoas assumem um papel de enfermo, tendo experiências com várias agências de tratamento, onde cada uma delas atribui suas próprias noções terapêuticas, gerando diferentes status para a pessoa adoecida (ALVES, 1993ALVES, P. C. A experiência da enfermidade: consideraçöes teóricas. Cad Saude Publica, v. 9, n. 3, p. 263-71, 1993.).

Nos IT, as negociações envolveram transformação, em que os familiares se reinventavam, e através dos truques, soluções que não estavam previstas, burlavam o que lhes estava socialmente estabelecido, utilizando o conhecimento adquirido na prática.

“a gente tem nossos truques. O intestino fica minando uma água...Já aconteceu de eu pegar um pedaço de algodão fininho, envolver em volta do intestino...passar uma camada da pasta fininha e botar a bolsa... O algodão chupa. Aí dá tempo de você botar a bolsa ela colar rápido, sem estar minando. (M11)

Outra possibilidade de “truque” foi se aproximarem, dentro dos hospitais, de profissionais que mostrassem vínculos de mesmo pertencimento social, onde o poder foi definido não pelo saber, mas pelas proximidades. Observamos que as mães, no seu caminho em busca de cuidar de suas crianças, fizeram uso não somente do conhecimento técnico adquirido no viver e na pesquisa na internet, mas das redes de relações para se posicionarem frente às negociações com os profissionais de saúde:

Na hora em que a técnica de enfermagem vai puncionar a veia da menina, ela se diz muito amiga de sua mãe. “O outro filho dela ficou internado aqui por muito tempo e nós, depois disso, estabelecemos uma amizade que ficou”, fala a técnica (Diário de campo, p.20, 19/07/17)

Os “truques” se tornaram estratégias para enfrentar e reagir às peregrinações e até à violação do direito ao acesso aos cuidados em saúde que constituíram as histórias estudadas. Tais peregrinações são documentadas na literatura quando se estudam trajetórias de famílias de crianças com experiências de adoecimento crônico (FAVERO-NUNES; SANTOS, 2010FAVERO-NUNES, M. A.; SANTOS, M. A. DOS. Itinerário terapêutico percorrido por mães de crianças com transtorno autístico. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 23, n. 2, p. 208-221, 2010.). Cabe ressaltar, ainda, a identificação de componentes de violação de direitos, caracterizada como uma violência institucional, quando o itinerário se liga aos grupos populacionais associados ao marcador raça / cor, no caso quilombolas (SIQUEIRA et al., 2016SIQUEIRA, S. M. C. et al. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 1, p. 179-189, jan. 2016.). Os “truques” constituem, ao nosso ver, algo que pode ser dialogado com a discussão empreendida por Moreira, Cunha e Mello (2016MOREIRA, M. C. N.; CUNHA, C. C.; MELLO, A. Conversando sobre as crianças e adolescentes com condicoes crônicas complexas: interfaces entre a atenção domiciliar e a atenção de media e alta complexidade. In: SANTOS, I. S.; GOLDSTEIN, R. A. (Eds.). . Rede de pesquisa em Manguinhos : sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS. 1a. ed. São Paulo: Hucitec, 2016. p. 331.) quando discutem a “carreira de doentes” que essas crianças constroem.

Acionando a teoria da ordem negociada de Strauss (STRAUSS, 1978STRAUSS, A. L. Negotiations: varieties, contexts, processes, and social order. 1st ed. San Francisco: Jossey-Bass, 1978.) com o “jeitinho” de Roberto Da Matta (PINTO, 2010PINTO, A. M. S. Cultura e instituições de saúde: estudando a participação de traços culturais da sociedade brasileira no processo de trabalho de serviços de atenção básica. Cien Saude Colet [periódico na internet], 2010.; PRADO, 2016PRADO, A. M. O JEITINHO BRASILEIRO: UMA REVISAO BIBLIOGRÁFICA. Horizonte Científico, v. 10, n. 1, 7 out. 2016.), pudemos ver que a negociação no ambiente observado foi ampla. As leis, regras, protocolos, ou seja, fatores estruturais do sistema, embora fixos, estavam sempre com sua validade exposta às relações pessoais. A negociação entre a estrutura do sistema e os diversos interesses dos envolvidos nas decisões a serem tomadas, sofreu grande influência de conhecimentos relacionais e também do “jeitinho”.

Também, na busca por cuidado, os familiares negociavam com as deficiências de suas crianças e seus significados.

“...a gente sente os olhares, entendeu? Ai eu já falei:.. vou pegar um microfone aqui e avisar, a minha filha não se alimenta normal pela boca, ela se alimenta pela gastro...” (M8)

Observamos que, numa negociação do que é ser humano, os pais saíam do privado para o público para negociar o reconhecimento da existência de seus filhos. As mães atribuíam aos cuidados com os corpos deficientes de suas crianças um sentido sagrado, que elas assumiam por missão divina, onde “Deus me deu tenho que cuidar” (M8). Estes corpos que as constituíam eram raros e, por isto, preciosos, únicos para elas, continham partes intocáveis e enigmáticas (as tecnologias) as quais elas tinham medo de que outras pessoas mexessem. Elas encaravam este cuidado com coragem, “atirando para todos os lados” (M1) e, mesmo com todo sofrimento, não medindo esforços se doavam integralmente.

As deficiências e o viver com deficiências marcaram o IT das famílias e de suas crianças cronicamente complexas, no qual “além da experiência da opressão pelo corpo deficiente, havia uma convergência de outras variáveis de desigualdade, como raça, gênero, orientação sexual ou idade” (DINIZ, 2007DINIZ, D. O que é deficiência. 1a ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 2007.) (p.61). No campo, tivemos as mães como cuidadores principais (familiar com responsabilidade de auxiliar a criança no seu cuidado diário, como administração de medicamentos, realização de procedimentos e acompanhamento de consultas e internações (ALVES et al., 2018ALVES, S. P. et al. The profile of caregivers to pediatric patients with cystic fibrosis. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 5, p. 1451-1457, maio 2018.)) e em poucas situações, a avó. Visto como uma tarefa das mulheres, restrito ao cenário da vida privada, este cuidado vulnerabilizou ainda mais mães/irmãs/avós que ficaram com este trabalho e tiveram que abandonar suas vidas para viver em função das crianças. Estas cuidadoras, completamente absorvidas, eram “os braços e pernas” (M5) de suas crianças.

As condições destas mães para cuidarem de seus filhos dentro de casa foram tão deficientes quanto as que elas se depararam no âmbito público. A sociedade nega valor e relevância ao cuidado - que acaba por se tornar invisível - não pelas tarefas em si, mas pelos sujeitos que as executam (BIROLI, 2015BIROLI, F. Responsabilidades, cuidado e democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 18, p. 81-117, dez. 2015.). Logo, pela divisão sexual do trabalho doméstico, as mulheres são as responsáveis por cuidar da família, sendo oprimidas pelo mito da boa mãe (NEVES; CABRAL, 2008NEVES, E. T.; CABRAL, I. E. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto & Contexto - Enfermagem, v. 17, n. 3, p. 552-560, set. 2008.), que colabora para que as desigualdades sejam justificadas e naturalizadas. Elas precisam assim ser reconhecidas - boas mães - e para isto tendem a suprimir todas as suas outras identidades em prol da identidade materna, tendo seu tempo concentrado no cuidado da família (BIROLI, 2015; NEVES; CABRAL, 2008). Consequentemente, diminuem suas possibilidades de acesso ao trabalho remunerado assim como às oportunidades de autodesenvolvimento, estudo, profissionalização e engajamento na vida política (BIROLI, 2015; NEVES; CABRAL, 2008). A abordagem de gênero se faz importante na análise das atuais formas do cuidado. Porém, não se pode deixar de considerar, num cuidado cuja perspectiva é privatizada e mercantilizada, que as desigualdades de gênero se conectam com as de raça e classe, vulnerabilizando mais as mulheres, negras e pobres (BIROLI, 2015).

Vividos também como borramento entre fronteiras, nos IT as famílias negociavam com os aspectos híbridos e paradoxais de suas vidas, numa constante construção do que são.

"Eu só tenho um laudo na minha mão que ela tem hidroanencefalia e meningite...eles falam que ela praticamente não tem o cérebro...Eu olho pra ela não vejo isso, porque ela é bem ativa...” (M6)

Estas negociações tiveram suporte em seus corpos, expressando a complexidade do cuidado que tornava suas vidas possíveis. Elas, com suas ostomias - orifícios feitos cirurgicamente em diversos órgãos que comunicam o órgão interno com o exterior, por vários motivos, cuja finalidade é a promoção da vida - foram, conforme defende Haraway (HARAWAY et al., 2013HARAWAY, D. J. et al. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autentica, 2013.), prova viva de que os opostos são indistintos. Com elas, ficou claro que o que é de fora está dentro, e o que é de dentro, está fora. Não só nas suas ostomias e feridas, através dos quais entramos em contato com seus órgãos e secreções, mas também quando as crianças que antes só sobreviviam nos hospitais passam a ir para suas casas. E lá, elas crescem e adolescem. O mundo externo delas invade o interior dos hospitais e elas levam o hospital para suas casas e para dentro de seus corpos. Essas crianças e seus cuidadores estão em constante produção do que são, através das relações entre si, com outras pessoas e com a tecnologia. Elas negociam, num cenário de dependências, o que é “ser humano”. Neste contexto, os sujeitos estão à busca não somente de diagnósticos, meramente individuais, mas sim espaços de negociações e encontros entre as pessoas e a sociedade onde, para essas crianças e seus familiares existirem, elas precisam sair do privado para o público e negociar.

Nestas novas experiências de adoecimento, a objetivação do sofrimento levou à garantia de direitos, onde lutar para ser reconhecido doente passava pelo conhecimento técnico a respeito da própria condição de saúde e pelos laudos médicos, que surgem como novos atores. Observamos uma grande movimentação relacionada aos direitos: laudos que asseguram a esses sujeitos o Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social, medicações, materiais para manuseio dos dispositivos, declarações para abonar falta no trabalho e na escola. Percebemos também o esforço por inclusão, expresso principalmente nas batalhas travadas em torno do direito de seus filhos frequentarem a escola e das dificuldades de transporte. Todas as mães se empenhavam no tratamento médico de suas crianças, acompanhando com vários especialistas, em lugares diferentes, as necessidades de internações, cirurgias e os múltiplos cuidados em casa, incluindo os cuidados diários de uma criança dependente, o manuseio das tecnologias e suas complicações, e as terapias direcionadas às crianças.

É importante pontuar que, apesar de termos abordado separadamente diagnóstico e IT, na prática, eles se correlacionaram e apresentaram aspectos em comum. Observamos que tanto os diagnósticos quanto os IT, influenciaram e foram influenciados pelas identidades dos sujeitos neles envolvidos. Entendemos identidade (DUBAR, 1997DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Portugal: Porto, 1997.) como processo dinâmico, tempo e espaço dependente, resultante de uma negociação entre como o sujeito se vê e como ele é visto pela sociedade, que pode ou não ser concordante com suas identidades de pertencimento e atribuição. Diagnósticos e IT foram performados (MOL, 2002MOL, A. The body multiple: ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002.) através de fluxos de negociação espaço e tempo dependentes, entre os diversos atores humanos e não humanos envolvidos (LATOUR, 2012LATOUR, B. Reagregando o social. Salvador: Edufba, 2012.). Os atores não-humanos foram importantes, pois interferiram nas definições clínicas e caminhos em busca de cuidado, levando a ações que constituíram tanto os diagnósticos quanto os IT.

Todas essas negociações transversalizaram com a luta em prol da garantia de existência dessas crianças, onde os familiares incorporavam vários papeis, em constante construção no tempo e espaços por eles percorridos. Nessa luta, eles negociavam com o acesso a tratamentos e serviços, com o aprendizado no cuidado de suas crianças, com sua subsistência, com a discriminação de suas crianças e com o manuseio das tecnologias e suas complicações.

Conclusão

As marcas da condição de saúde das crianças observadas, que diziam respeito tanto aos seus diagnósticos quanto às tecnologias as quais elas tinham dependência, influenciaram as negociações relativas aos seus diagnósticos, assim como influenciaram as negociações observadas nos IT. As negociações no Cuidado dessas crianças ocorreram entre os diversos atores humanos e não humanos envolvidos. Este processo foi constituído assim como constituiu as identidades das pessoas relacionadas, uma vez que as negociações dependeram de onde e quando se deram as interações entre os atores, e dependendo dos espaços e tempos de interação, os sujeitos assumiam diversas identidades nesta negociação. O Cuidado, portanto, foi construído através de redes de negociação envolvendo uma organização da vida das pessoas relacionadas a ele, onde as negociações se relacionavam às incertezas inerentes à condição de saúde e às possibilidades de viver com aquele diagnóstico.

Sendo assim, as negociações presentes no Cuidado prestado a essas crianças denotaram construção de possibilidades dentro de um cenário posto de sofrimento e incertezas. As crianças e adolescentes se constituíram através de seus diagnósticos e IT, porém, não se limitando a eles, abrindo espaço para criatividade deste viver, onde os atores negociavam entre si, com eles mesmos e com a sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2019
  • Aceito
    15 Mar 2020
  • Revisado
    13 Out 2021
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