Entre nós: educação permanente em saúde como parte do processo de trabalho dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica

Josiane Moreira Germano Ricardo Burg Ceccim André Souza dos Santos Alba Benemérita Alves Vilela Sobre os autores

Resumo

O artigo apresenta uma pesquisa cujo objetivo foi analisar o processo de trabalho de um Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), sob as perguntas de quem apoia o apoiador matricial e como esses profissionais aprendem/apreendem seu fazer. A pesquisa estudou o processo de trabalho com os próprios apoiadores de NASF-AB e, articulado às perspectivas da servidão e liberdade em Baruch Spinoza, problematizou como sentem e como agem, evocando o pensamento-afecção e o pensamento-ação. As escolhas metodológicas envolveram a cartografia e o pesquisar-com. Foi possível identificar um comportamento de equipe, promotor da educação permanente em saúde e do necessário coletivo de enunciação que o NASF-AB deve representar. Compreendeu-se que o “apoio aos apoiadores” objetivamente se expressa pelos processos de autoanálise (institucional), providências de educação permanente em saúde (entre pares) e esforço por exaurir medo e esperança para que os afetos apareçam genuínos e encontros vicejem (liberdade). A ação entre pares, no interior do próprio NASF-AB para aprender, apreender e exercer o matriciamento levou à compreensão de que se trata de algo que acontece como um “entre nós” (os próprios apoiadores), investida a perseverança da liberdade ante a servidão.

Palavras-chave:
Educação Permanente em Saúde; Educação em serviço; Apoio matricial; Atenção Primária em Saúde; Apoio aos apoiadores.

Com o intuito de promover a expansão da resposta das ações de atenção básica às necessidades sociais em saúde, em 2008, foi lançada, pelo Ministério da Saúde, a proposta de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). As Equipes de Saúde da Família (eSF), a partir desses Núcleos, receberiam suporte técnico e pedagógico de modo a qualificar a sua intervenção profissional sem recurso ao encaminhamento para outros serviços da rede assistencial, recebendo sustentação “de apoio”. Após a aprovação e publicação pelo Ministério da Saúde da Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017, no entanto, a proposta de NASF sofre um revés em relação ao financiamento, processo de trabalho e composição das equipes profissionais. Pela nova versão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), passam a Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), extraindo-se do texto da política, a figura do “apoio” como objeto de análise.

Em 2019, por meio do Programa Previne Brasil, sobrevém uma nova inflexão e o esvaziamento no financiamento da atenção básica para a proposta e processo de trabalho de apoio e suporte sob a forma de núcleos à Estratégia Saúde da Família/Atenção Básica (MOROSINI; FONSECA; BAPTISTA, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública, v.36, n. 9, e00040220, 2020. ; REIS; MENESES, 2020REIS, S.; MENESES, S. Novo financiamento da atenção básica: possíveis impactos sobre o Nasf-AB. 2020. Disponível em:Disponível em:http://cebes.org.br/2020/02/novo-financiamento-da-atencao-basica-impactos-sobre-o-nasf-ab/ . Acesso em: 12 abr.2020.
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). As mudanças na política nacional destinada à Atenção Básica, incluindo a destituição da virada linguística representada pela terminologia Atenção Básica, quando o governo federal repropõe a terminologia Atenção Primária em Saúde, anterior à Reforma Sanitária brasileira, apresentam, como suposto de qualidade, a gestão da clínica com centro nos adoecimentos prevalentes e sensíveis ao cuidado em território e o impacto no perfil de adoecimentos e mortes, segundo sua redução estatística, como o equivalente geral do cuidado. Contudo, é possível admitir que nas muitas experiências em distintos sistemas locais de saúde, encontram-se arranjos que disputam, o tempo todo, os sentidos para o trabalho de assistência e cuidado, referindo a escuta e o acompanhamento. Nesse sentido, em meio ao retorno da racionalidade médico-disciplinar ou sanitário-hegemônica da “nova PNAB” (anulação da virada linguística e seus efeitos discursivos e pragmáticos), a fabricação de uma atenção básica sensível às interações sociais vividas em equipes locais de saúde e articulada à diversidade da vida em suas redes afetivas demanda por apoio, suporte e sustentação. O presente estudo, realizado em um município do interior do nordeste brasileiro, se reporta ao foco e enfoques de um núcleo para o suporte técnico-pedagógico matricial de “equipes ampliadas” para “equipes de referência” (ou “equipes mínimas”). Apenas nesse sentido vale a nomenclatura núcleo “ampliado”, pois que em lugar de núcleo “especializado”, inscrevendo a Estratégia Saúde da Família (ESF) nos desafios de uma Atenção Básica (AB) desdobramento original da Reforma Sanitária brasileira ou dos estudos da Saúde Coletiva também originais à “invenção da saúde coletiva” (CECCIM, 2007CECCIM, R. B. Invenção da saúde coletiva e do controle social em saúde no Brasil: nova educação na saúde e novos contornos e potencialidades à cidadania. Revista de Estudos Universitários - REU, Sorocaba, v. 33, n. 1, p. 29-48 2007.).

Portanto, tendo em vista a introdução, pela PNAB, do modelo de suporte técnico-pedagógico, suporte matricial, sustentação de uma equipe ampliada (de retaguarda formativa) para uma equipe de referência (do vínculo longitudinal) para aumentar, com base no apoio, a resolutividade das equipes da Estratégia Saúde da Família e dos serviços que integram e “costuram” a rede de Atenção Básica, entendeu-se procedente a pergunta sobre como se apoiam (entre si/uns aos outros) ou como são apoiados aqueles cuja tarefa é apoiar, isto é: como são apoiados aqueles que apoiam? Partiu-se do suposto de que, de forma geral, a formação básica dos profissionais de saúde delineados pela Política para compor as equipes de NASF-AB não inclui formação para atuar como “apoiador” e uma formação específica nunca foi requisito à incorporação aos Núcleos. Há mesmo uma polêmica no campo sobre o apoio se resumir à educação em serviço, ao atendimento de retaguarda especializada ou incluir ambas as modalidades, donde a pergunta sobre a extensão do apoio no tocante à resolutividade. Para a implementação do apoio previsto pelo modelo matricial, é preciso que seus integrantes desenvolvam apropriação das ferramentas e tarefas técnico-pedagógicas, algo não intrínseco à formação dos profissionais previstos à incorporação pelo modelo, uma vez que competência não constante das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) das várias categorias profissionais elencadas e nem do perfil de especialista das várias especialidades médicas arroladas. Foi diante desse “desassossego” que uma pesquisa qualitativa foi delineada em busca dos processos coletivos e formativos mobilizados no interior do trabalho dos apoiadores contratados à atuação em equipamentos designados como “Núcleo de Apoio” ou “Núcleo Ampliado” para o suporte e sustentação de equipes locais.

Buscou-se “explorar” esse cenário com as linhas segmentares da “liberdade” e da “servidão”, introduzidas pela perspectiva ética de Baruch Spinoza relativamente ao predomínio da potência ou da impotência (SPINOZA, 2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) na ação de promover conhecimentos, desenvolver práticas, criar e expandir as sensibilidades em “encontros de aprendizagem” (DALLEGRAVE; CECCIM, 2018DALLEGRAVE, D.; CECCIM, R. B. Encontros de aprendizagem e projetos pedagógicos singulares nas residências em saúde. Interface (Botucatu), v. 22, n. 66, p. 877-887, set. 2018.). Assim, no que concerne à relevância desta temática quando se discute o trabalho em saúde no âmbito da PNAB, compreendeu-se que há uma “formação em ato” que é própria aos agenciamentos de equipe (“entre nós”) que se dão entre os trabalhadores convocados a um trabalho para o qual não possuem experiência prévia, pelo menos na maioria das vezes. Esses “agenciamentos” não são o resultado espontâneo de um colegiado de trabalhadores, mas a emergência do compartilhar uma proposta de trabalho, ela própria mobilizada (agenciada) na condução do trabalho. O que se verificou é que no correr do trabalho em um município de pequeno porte, onde os papéis esperados não podem ser diluídos com facilidade na rede diversificada de serviços e instâncias de gestão (como nas grandes cidades), há uma mistura de afetos nas múltiplas relações, cuja gestão por meio da Educação Permanente em Saúde (EPS) pode ser determinante de práticas de sustentação e, nesses termos, práticas de fortalecimento da coordenação do cuidado.

A pesquisa de base problematizou o apoio no processo de trabalho de uma equipe de NASF-AB no nordeste brasileiro, região sul do Estado da Bahia, um município da faixa dos “até 25 mil habitantes”, considerado na gestão do Sistema Único de Saúde como de pequeno porte (CALVO ., 2016CALVO, M. C. M. et al. Estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho em saúde. Epidemiologia e serviços de saúde, v. 24, n. 4, p. 767-776, dez. 2016.). Observou-se que aquele que apoia também experimenta sua própria necessidade de apoio. A construção do apoiar e ser apoiado entre pares e a busca por atendimento de apoio pelas instâncias de gestão da política local de saúde e intersetorial, além da requisição de apoio às próprias eSF às quais se presta apoio configuram uma aprendizagem em ato. Esses pedidos não são necessariamente formalizados, verbalizados ou documentados de alguma forma, pertencem às práticas em desdobramento nas interações e isto deve ser importante reconhecimento pelos gestores, a fim de que protejam a emergência autônoma dessa relação. Se a criatividade é algo designado como intrínseco ao trabalho em saúde, se são infinitos os agenciamentos que incidem no trabalho e se a EPS pode ser parte do processo laborativo, as lentes segmentares da liberdade e da servidão puderam ser localizadas na análise dos NASF-AB. Compreendeu-se que o “apoio” contempla em sua função técnico-pedagógica uma “educação em ato” e uma “gestão em ato” do trabalho “de território” empreendido pelo sistema de saúde, naquilo que concerne à Estratégia Saúde da Família/Atenção Básica.

Muitas interrogações sobre o processo de trabalho

Para fins de estudo da avaliação de desempenho da gestão em saúde, o município de pequeno porte tem particular contribuição. Os esforços pela desfragmentação do cuidado, pauta primordial da Atenção Básica, exigem redes em construção compartilhada; relações horizontais entre serviços; suporte na construção de projetos terapêuticos singulares; equipes de referência local capazes de acolhimento, vínculo e resolutividade; equipes de suporte especializado, capazes de apoio, interconsulta e atendimento complementar; matriciamento com compartilhamento e negociação de estratégias de cuidado; supervisão de práticas e educação em equipe; elaboração de propostas mediante análise de situação de saúde e outras tantas coisas de difícil organização e articulação, a consideração em município de pequeno porte configura laboratório de vivências à interpretação e posterior extrapolação e transposição.

Quando se pensa nas práticas de saúde, sabe-se que muitas interrogações são feitas sobre o processo de trabalho e, então, se percebe o quanto é necessário conhecer em profundidade processos de subjetivação e agenciar interações que escapem à perspectiva curativista, protocolar e de imposição biopolítica. É com a centralidade no trabalho vivo que os trabalhadores são capazes de fabricar dispositivos para enfrentar as capturas do cotidiano, pois se reconhece que um dos principais atributos do trabalho vivo é a liberdade, o que coloca os trabalhadores não apenas como agentes de mudança (FRANCO; MERHY, 2013FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec, 2013.), mas menos reféns da gestão. Porém, se nos movimentos dos trabalhadores emerge mudança, também emerge conservação. O imaginário liberal-privatista, no mais das vezes, é transferido nos processos de formação das várias profissões (CECCIM ., 2008CECCIM, R. B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Ciência & saúde coletiva, v. 13, n. 5, p. 1567-1578, out. 2008.), afirmando a qualidade segundo as forças do modelo biomédico, com a hierarquia entre as profissões e com a subordinação dos usuários aos saberes técnicos. Indagou-se, então, os encontros tecidos no cotidiano como liberdade e servidão, segmentos que jogam em cena, cuja vitória de um polo ou de outro não é definitiva. A vigência mais forte dos segmentos é aquela inserida nas práticas de gestão e em “campos de possível” que se instauram por entre as práticas do trabalho.

De acordo com a PNAB, a composição das equipes de NASF-AB abrange as categorias profissionais de arte-educador (bacharel ou licenciado), assistente social, educador físico (bacharel ou licenciado), farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, psicólogo, sanitarista (bacharel ou especialista), terapeuta ocupacional e médico veterinário. Engloba, também, médicos especialistas: ginecologista/obstetra, pediatra, internista, psiquiatra, geriatra, do trabalho, homeopata e acupunturista. Com isso, notamos tanto a baixa familiaridade com a AB dentre os profissionais da retaguarda, como baixa familiaridade com o apoio matricial. No caso dos médicos, ainda que a familiaridade com a AB seja obrigatória, decorrência do escopo das DCN, não se pode esperar sua prontidão após uma especialidade adquirida com jornadas intensivas em ambiente hospitalar e sob preceptoria monoprofissional (de especialista médico para residente médico). Nas demais profissões, a exceção se fará quando a formação por das residências se fizer na modalidade multiprofissional em saúde da família/atenção básica. Contudo, a residência multiprofissional em atenção básica não tem a mais remota possibilidade de acesso universal, considerada a atualmente exígua distribuição de programas e vagas.

Considerando que o trabalho em saúde é relacional e que se dá na base do encontro, pode-se pensar nos agenciamentos que incidem sobre o fazer dos trabalhadores no cotidiano; por isso, se pode pensar na multiplicidade dos encontros que são produzidos e na sua capacidade de provocar movimentos de desterritorialização na subjetividade, nos imaginários e nos instituídos. Acerca deste movimento, compreende-se a EPS como ativação, de um lado, e guarida, de outro, à construção de outros modos de significar e produzir o trabalho, abrindo “campo de possível”, isto é, viabilizando uma espécie de perspectiva que torne factível o trânsito da servidão à liberdade. A própria política do trabalho e do fazer da AB constitui campo de possível se permissoras ou intercessoras de trabalho vivo, criativo, implicado com o território.

A Estratégia Saúde da Família tem apostado, ao longo dos anos, em mudanças na assistência, mas tem sido fortemente atravessada por agenciamentos mercadológicos, higienistas e médico-hegemônicos que têm servido como dispositivo de captura do processo de trabalho: do território à clínica centrada nas doenças de interesse à saúde pública. Atravessada por esses agenciamentos, verifica-se, na ESF, a lógica da atenção gerenciada por uma espécie de carteira de serviços, que se estrutura pelo ato prescritivo, pelo consumo de procedimentos diagnósticos e pela terapêutica medicamentosa (MERHY ., 2019MERHY, E. E. et al. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde em Debate, v.43, (número especial 6), p. 70-83, dez. 2019.). Podemos aludir que as grandes transformações no trabalho em saúde permitiram avanços no conhecimento profissional, nas técnicas de intervenção, na precisão dos exames e na especialização dos saberes específicos, mas também conduziram à fragmentação do ser humano e de suas necessidades de saúde (BRITO; MENDES; SANTOS, 2018BRITO, G. E. G.; MENDES, A. C. G.; SANTOS NETO, P. M. O objeto de trabalho na Estratégia Saúde da Família. Interface (Botucatu), v. 22. n. 64, p. 77-86, mar. 2018.), como se os eventos biológicos pudessem ser dissociados de sua experiência pulsante na existência mesma do viver.

Observamos que o desafio se faz no cotidiano dos trabalhadores em superar a influência dos modelos protocolares e normativos, buscando, justamente do apoiador especializado, a supervisão e aprendizagem que desconstrua o imaginário especialista e construa a abordagem compreensiva. Nota-se, por conseguinte, que o profissional apoiador deve ser aquele que, ao obter relevante reconhecimento como especialista, se torna uma presença virtual mesclada à presença do profissional de referência primária. A depender do encontro, profissionais do conhecimento especializado remetem às linhas normativas e protocolares ou podem abrir linhas de fuga para outros (e criativos) arranjos do/no cuidado em território. Não se está aqui designando por “especialistas” os profissionais do NASF-AB, uma vez que apenas os médicos, nesse equipamento técnico-pedagógico, são detentores de uma especialidade profissional; os demais podem ser especialistas, mas seu critério de incorporação é a habilitação profissional básica (graduação) em carreiras diversas da enfermagem, medicina e odontologia, incorporadas à ESF como carreiras de referência primária (profissionais do vínculo longitudinal), preferencialmente especialistas, eles mesmos, mas em Saúde da Família e Comunidade.

Nesse contexto, deve-se lembrar que o trabalho em saúde tem como particularidade a natureza coletiva (MALTA; MERHY, 2003MALTA, D.C.; MERHY, E.E. A micropolítica do processo de trabalho em saúde: revendo alguns conceitos. REME - Revista Mineira de Enfermagem, v. 7, n. 1, p. 56-60, jan-jul. 2003.), porém, o processo de trabalho organizado pela fragmentação dos atos conduz ao entendimento de que a atenção precisaria ser “ampliada”. A própria captura do trabalho centrado em procedimentos acaba limitando a capacidade criativa e remetendo a noção de desfragmentação à ampliação da clínica pela incorporação de profissões e tecnologias duras ou leve-duras. Santos, Mishima e Merhy (2018SANTOS, D. S; MISHIMA, S. M.; MERHY, E. E. Processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família: potencialidades da subjetividade do cuidado para reconfiguração do modelo de atenção. Ciência & saúde coletiva, n. 23, v. 3, p. 861-870, mar. 2018.) afirmam que a lógica de produção por procedimentos e a agenda orientada para os programas nacionais de saúde pública terminam como exemplos de captura do “trabalho vivo” pelo “trabalho morto” (já traçado com antecedência ao encontro em ato, segundo a aplicação do plano de formulação diagnóstica e terapêutica embasada em evidências prevalentes). Destarte, a proposta de pesquisa foi “habitar um território”, conhecer as trocas intraequipe no NASF-AB e interequipes na ação de apoio matricial especializado às esquipes de referência.

Ao habitar um território, não se fica distanciado e observador, colocamo-nos “afetivamente” em interação, deixamos que os afetos nos toquem, nos convoquem, nos envolvam. Com isso, se não nos mantemos em distância, podemos sentir-com (FORTUNA; GATTO JUNIOR; SILVA, 2018FORTUNA, C. M.; GATTO JUNIOR, J. R; SILVA, S. S. Pesquisar-Com. In: CECCIM, R. B. et al. (Org.). EnSiQlopedia das residências em saúde. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2018. p. 201-205.), compondo-nos ao processo de trabalho sob pesquisa e percebendo, a partir das afecções disparadas nos encontros, o desenvolvimento do cotidiano, suas travas, os sentimentos despertados e as redes de perguntas, interpretações, respostas e reações. Foi marcante o “nós” na equipe do NASF-AB: uma equipe que prepara abordagens, discute casos de intervenção, troca informação sobre o território, sobre seus saberes profissionais, sobre fontes de informação, sobre colaboração interprofissional e sobre suporte em consultas e interconsultas. Na operação desse “entre nós”, nasce um coletivo que se vê em conquistas, mas se vê, sistematicamente, em dificuldades no seu trabalho, na sua ação de/em equipe e na sua ação com as equipes locais.

A cartografia como intercessor metodológico

A construção deste estudo se deu por meio da cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 1996DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: 34, 1996. v.1) e do pesquisar-com (FORTUNA; GATTO JUNIOR; SILVA, 2018FORTUNA, C. M.; GATTO JUNIOR, J. R; SILVA, S. S. Pesquisar-Com. In: CECCIM, R. B. et al. (Org.). EnSiQlopedia das residências em saúde. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2018. p. 201-205.). A cartografia agrega potência para descrever estados e não coisas, interessa o movente, não as representações. O pesquisar-com pressupõe um maior tempo de permanência no campo e uma produção “com” os sujeitos da pesquisa de uma forma compartilhada. Ambas as perspectivas reconhecem os saberes do cotidiano a partir das experiências e experimentações. Por meio das pistas que vão sendo recolhidas no cotidiano, o desenho metodológico vai se armando. Romagnoli (2009ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & sociedade, v. 21, n. 2, p. 166-173, ago. 2009.) explica que cartografar é se permitir mergulhar nos afetos que permeiam as relações, viabilizando que o pesquisador seja inserido na pesquisa, sendo modificado por ela. Sujeito e objeto se misturam no processo de pesquisar, constrói-se um mapa móvel das paisagens psicossociais (ROLNIK, 2016ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2016.).

A pergunta de inserção no campo foi: como tem sido o processo de trabalho do apoio para a resolutividade da ESF? Compreendendo as possibilidades existentes para a construção do conhecimento e reconhecimento dos dados, o estudo foi organizado sob a perspectiva da “Oficinaula”, proposta criada por Elisandro Rodrigues em sua dissertação de mestrado e apresentada pela revista Interface na seção dedicada às relações saúde-arte-educação. Rodrigues e seu orientador mostram que é possível pesquisar em arranjo de espaços coletivos embebidos por dinâmicas de grupo, pinturas, desenhos, colagens, murais, rodas de conversa e cirandas, modalidades de educação que operam por encontro (RODRIGUES; DAMICO, 2015RODRIGUES, E.; DAMICO, J. G. S. Dispositivos pedagógicos de educação em Saúde Coletiva. Interface (Botucatu), v. 22, n. 64, p. 285-294, mar. 2018.). As “Oficinaulas” não são oficinas, na medida em que não há a meta de um produto, e nem são aulas, na medida em que não há meta de transferência de conteúdo, são espaços de encontro em que se opera com atividades e construtivismo do conhecimento. A produção em ato resulta em um “saber-com”.

O trabalho é múltiplo em si e o trabalhador em seu processo de trabalho é afetado o tempo todo pelos encontros que acontecem no cotidiano. O trabalhador, em meio aos atravessamentos, disputa o espaço de ser/estar com procedimentos, fluxos, rotinas, exames, saberes e equipes; ou seja, o trabalhador está inserido em tramas complexas de atos (CECÍLIO; MERHY, 2003CECÍLIO, L. C. O.; MERHY, E. E. A integralidade do cuidado como eixo da gestão hospitalar. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Abrasco, 2003. p. 197-210.). Por conseguinte, além das Oficinaulas, foi buscada a participação em outros momentos: rodadas de Atenção Básica, visitas domiciliares, reuniões de equipe do NASF-AB e grupos de atividade física. Também foram momentos de interação/interlocução os cafés e andanças pelo território com trabalhadores do NASF-AB ou residentes. Anotações em diários de campo, desenhos, rabiscos, intuições e a construção de poemas nos acompanharam neste processo no qual a produção e análise se fez em concomitância.

Rolnik (2016ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2016.) afirma que a prática do cartógrafo diz respeito, fundamentalmente, às formações do desejo no campo social. Desse modo, assumiu-se o compromisso de ultrapassar os limites do visível e participar dos processos que compunham o trabalho do NASF-AB com as eSF. A autora sugere que o pesquisador cartógrafo “leva no bolso um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações” (p. 65). O desassossego é a bússola do cartógrafo, por isso vai definindo e redefinindo para si mesmo, constantemente, as preocupações relevantes ao pesquisar-com. A equipe NASF-AB em causa era composta por nove trabalhadores, entre cinco categorias profissionais: educação física (2), farmácia (1), fisioterapia (4), nutrição (1) e psicologia (1). A turma de residência era composta por cinco residentes, um de cada categoria: serviço social, educação física, nutrição, odontologia e psicologia. Participaram desta pesquisa todos os profissionais do NASF-AB, todos os residentes em Saúde da Família e dois pesquisadores discentes do mestrado e doutorado em Enfermagem e Saúde, uma fisioterapeuta e um enfermeiro, totalizando 16 participantes, o que correspondeu à totalidade da inclusão prevista: quem atua(va) no NASF-AB, quem está(va) em formação e quem forma(va) em ato para o apoio matricial.

A pesquisa é parte de um percurso de mestrado que aconteceu em um município localizado na região sul do Estado da Bahia, no nordeste brasileiro. A população estimada para 2019 era de 20.491 habitantes, tendo oscilado em dados populacionais de 21.081 habitantes no censo de 2010 a 27.007 no Wikidata para 2012. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, tendo atendido às diretrizes dispostas na Resolução n° 466, de 12 de setembro de 2012, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, relativamente às pesquisas envolvendo seres humanos. Para a realização da pesquisa, após o esclarecimento dos riscos e benefícios do estudo, todos os envolvidos assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aceitando participar da pesquisa, integrando-a. A imersão no campo aconteceu de agosto de 2017 a setembro de 2018. “Oficinaulas foram realizadas na Secretaria de Municipal de Saúde e, também, em Unidades Básicas de Saúde do município; tiveram uma duração média de 3h30min cada uma, totalizando aproximadamente 15 horas de gravação em áudio, com posterior transcrição.

Sendo o encontro espaço rico para a produção do cuidado e para a educação na saúde, a Oficinaula se mostrou interessante à compreensão “viva” do trabalho do NASF-AB, em intimidade forte com seus agentes. A aproximação com o cenário, sob essa forma, foi levada em quatro eixos significativos: Conversando sobre o trabalho; De repente, somos NASF-AB; Educação em ato em nosso cotidiano; e Ferramentas do NASF-AB para a produção do cuidado. Reverberaram as seguintes narrativas de sentido: ESF/eSF, Redes de Atenção à Saúde, DCN, Residências, Apoio Matricial, Clínica Ampliada, Projeto Terapêutico Singular, Trabalho de/em Grupo e Educação Permanente em Saúde. Participaram das Oficinaulas os profissionais do NASF-AB, os residentes das Residências Multiprofissionais em Saúde da Família e os dois pesquisadores pós-graduandos, colaboradores no auxílio à relatoria. O concatenamento de processos afetivos e cognitivos foi construído por meio da formulação de “excertos narrativos”, uma emissão daquilo que era sensível à experiência e experimentação no mundo das práticas (ROMAGNOLI, 2009ROMAGNOLI, R. C. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicologia & sociedade, v. 21, n. 2, p. 166-173, ago. 2009.). Os dados analisados foram extraídos de um corpus constituído por discursos, comunicações e expressões, onde a seleção de excertos narrativos deveria ser significativa da experiência situada. Os excertos “selecionados” expressavam a respectiva comunidade de prática e problematizavam a realidade.

Resultados e Discussão

Sendo o trabalho em saúde centrado em relações, os profissionais operam em fluxos, muitas vezes tensos, nos quais a multiplicidade de fatores que incidem sobre a subjetividade dos profissionais dificulta o trabalho coletivo, pois cada trabalhador significa o trabalho e o cuidado a partir das suas experiências e visões de mundo. Então, sobre essas relações, Oliveira, Baduy e Melchior (2019OLIVEIRA, K. S.; BADUY, R. S.; MELCHIOR, R. O encontro entre Núcleo de Apoio à Saúde da Família e as equipes de Saúde da Família: a produção de um coletivo cuidador. Physis, v. 29, n. 4, e290403, 2019., p. 16) chamam atenção para os encontros intercessores “onde os saberes, tantos os técnicos como os da vida, sejam compartilhados e os conflitos sejam enfrentados para que se produza um cuidado centrado no usuário, ampliando, com isso, suas possibilidades de apoiá-lo no seu modo de andar a vida”. Mediante andanças pelo território, pode-se acompanhar os atravessamentos no trabalho do NASF-AB: de um lado, obstáculos à implementação de projetos com as eSF, marcados por burocracias e protocolos; de outro lado, ações criativas e potencialmente inovadoras, alguma coisa como “improvisação” (FRANCO, 2015FRANCO, T. B. Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos conceitos de servidão e liberdade. Saúde e sociedade, v. 24, supl. 1, p. 102-114, jun. 2015.). Percebemos que os profissionais instauram possibilidades de acessar as eSF, construindo um processo de trabalho original:

Um momento que seja oportuno, chego lá e de repente tem uma brechinha, a gente propõe e já senta, a gente faz sempre isso, é de repente que surge. (Trabalhador do NASF-AB).

Pelo caráter multiprofissional e territorial, o âmbito da AB é um espaço de múltiplos fazeres e, com isso, lugar de tensões permanentes na medida em que ocorre a disputa de ideias, vontades e projetos entre trabalhadores, usuários, gestores, Estado e mercado. Verificamos a disputa da equipe entre si e com as eSF sobre os modos de condução das consultas, de organização das reuniões de equipe, do planejamento e cumprimento de agendas. De certa forma, apesar dos entraves, nota-se a plasticidade em torno das práticas que permitem operar sob a lógica da “produção do cuidado” (MERHY, 2002MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec , 2002.). Ainda assim, segundo nossa perspectiva, o trabalhador não é livre, porque servidão e liberdade são linhas de realização da subjetividade, dos processos coletivos e dos movimentos institucionais.

Franco (2015FRANCO, T. B. Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos conceitos de servidão e liberdade. Saúde e sociedade, v. 24, supl. 1, p. 102-114, jun. 2015.) nos ajuda a pensar em algumas linhas de subjetivação que incidem sobre os indivíduos e que se fazem importantes para discutir as tensões entre servidão e liberdade no processo de trabalho em saúde: subjetivação capitalística, que impõe imagens sobre os modos de trabalhar, aprender, ensinar, amar, falar etc., fabricando normas para o padrão de relações do homem com o mundo; ordenamento moral, que, a partir de preceitos hegemônicos da sociedade, estabelece regras e condutas do bem viver; e disposições da ciência, frequentemente caracterizada pelo olhar biológico para o processo saúde-doença. O autor diz que o dilema humano é o viver entre servidão e liberdade, aprisionados ou libertos em algumas dessas linhas. Então, discorre que a opção por determinada prática no trabalho e o modo como os trabalhadores se relacionam com os usuários pode ser dado pelos agenciamentos coletivos que transcorrem em ato. Os processos dos quais os profissionais tomam parte podem levar aos limites do conhecimento técnico ou ir além desta perspectiva, abrindo possibilidades para repensar o trabalho, operando um cuidado centrado em relações ou a partir da força do próprio encontro. Em relação a plasticidade, fica a tensão entre conservação e mudança, ambas em operação pela manutenção dos instituídos ou em disposição de uma transformação instituinte.

Servidão: os entraves do processo de trabalho

Spinoza (2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.) compreende o homem afeito às paixões e ações. Na medida em que seus corpos são afetados, pode sofrer variações em sua potência de agir. Para Spinoza, os afetos são “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (p. 98). Quando agimos apenas pelo efeito de causas exteriores, estamos em condição de servidão, pois estamos submetidos às paixões, assim, a produção de vida não opera sob sua própria vontade. Portanto, servidão é "a impotência humana para moderar e refrear os afetos” (p. 155).

Trazendo para a cena alguns excertos narrativos dos profissionais do NASF-AB, produzidos nas Oficinaulas, se pode conhecer bons e maus encontros no cotidiano do processo de trabalho:

Eu participei de uma reunião da equipe [de determinada área], e uma colega propôs que fosse implantado o acolhimento, segundo o Caderno de AB nº 39. Ninguém quis estudar. Você não tem noção do rebuliço que deu aquela reunião, a médica levantou, falou horrores, que iria mudar o processo de trabalho... Nem tentaram, ela não conseguiu nem terminar de explanar a realidade que ela viu, era uma coisa que seria muito simples e que apenas iria dinamizar o serviço, não era uma coisa restrita à técnica em enfermagem tal, à enfermeira tal, era implantar dentro do serviço e eu, enquanto profissional do NASF, poderia fazer esse acolhimento. A técnica em enfermagem poderia fazer, então, assim. Ela propôs um serviço e não foi ouvida, não conseguiu nem concluir o raciocínio dela, todo mundo foi em cima.

Eu fui para uma reunião da equipe [de determinada área] que eu pedi licença para retirar minha equipe de lá.

Observou-se a dificuldade que a equipe NASF-AB enfrenta ao participar junto aos espaços coletivos das eSF, mas vale ressaltar que as equipes apresentam características distintas em composição e, também, em sua história na AB. Se, de um lado, há eSF apostando no descentramento da perspectiva médico-centrada, outras giram em torno do médico. Assim, sob disputas, o NASF-AB tem o desafio de matriciar equipes mais ou equipes menos experientes na tentativa de dissolver os núcleos duros das profissões e acentuar a colaboração interprofissional, inclusive com os trabalhadores do nível médio e Agentes Comunitários de Saúde.

As afecções disparadas sobre os corpos dos trabalhadores resultam em bons ou maus encontros, ampliando ou reduzindo suas possibilidades. Para Deleuze (2002DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.) quando nosso corpo se encontra com um corpo que não nos convém, sua potência se opõe à nossa, opera uma subtração ou anulação, sendo diminuída ou eliminada a nossa potência para agir. Assim, experimentamos as paixões tristes, sentimo-nos impotentes. Em um “encontro” no qual os profissionais do NASF-AB têm diminuída sua vitalidade, a paixão triste conduz à condição de impotência. Para não permanecer neste estado de “perfeição menor”, é preciso estabelecer relações de composição com outros elementos de forma que aumente a potência de agir e pensar. Ao aumentá-la, acumulamos possibilidades de afetar e sermos afetados e, por isso, adquirimos novas possibilidades com o mundo do qual fazemos parte (MARQUES, 2012MARQUES, M. R. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. Winnicott. 2012. 135f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.), mas sequer estamos disponíveis:

Eu, uma vez lá na Unidade... Foi complicado, aguardando um paciente sair e outro entrar, eu me apresentei para o médico, avisando que gostaria de fazer uma consulta compartilhada com ele, ele olhou para a minha cara e disse: “consulta?” Eu disse que era fisioterapeuta do NASF, e que podia lhe ajudar, com alguma coisa, qualquer coisa eu estaria ali para lhe ajudar, então eu sentei na sala e fiquei durante a consulta. Ele encontrou demandas para mim e começou a falar: “sobre isso aí, ela lhe orienta”. Aí comecei. Uma semana depois na hora que eu fui entrar na sala novamente ele disse “hoje não, porque eu vou fazer consulta rápida”. Quando saí da primeira consulta, na semana passada, eu achava que ele tinha gostado e que tinha sido proveitoso, o que realmente foi, eu e ele dentro da sala, mas também foi a primeira e a última consulta. Hoje, não consigo nem visita domiciliar compartilhada. (Oficinaula).

Para a profissional do NASF-AB, uma paixão alegre veio produzir a vontade de compartilhar outras consultas, de compor o trabalho com as ferramentas do apoio técnico-pedagógico quando presente naquela equipe. Quando ela se depara com a rejeição do profissional, a decepção tende à obstrução da vontade de produzir junto. Emoções e pensamentos influenciam o corpo. A mente humana, conforme a proposição spinozana, “não conhece o próprio corpo humano e não sabe que ele existe senão por meio das ideias das afecções pelas quais o corpo é afetado" (SPINOZA, 2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 70). A mente é a ideia, o próprio conhecimento do corpo humano. Essa ideia é adequada à potência quando age pelas forças de vida, de composição de mais encontro, saindo da passividade para a atividade. Já a ideia inadequada é quando a mente possui a imagem do que é produzido por outros corpos em relação ao seu, impedindo-o de experiência. As ideias inadequadas não são falsas em si mesmas, são confusas e parciais na medida em que não as conhecemos na experiência viva, não agimos pelo agenciamento das nossas próprias forças. Não obstante, a possibilidade da passagem das ideias inadequadas para as adequadas encontra-se na própria afetividade, abertura aos afetos, ao saber mais.

Para que esses afetos não sejam ideias inadequadas, produzidas por paixões tristes, faz-se necessário que os trabalhadores compreendam os efeitos destes encontros. Observa-se a dificuldade na aceitação de outras possibilidades de trabalho, de utilização de ferramentas técnico-pedagógicas inerentes ao NASF-AB para a construção compartilhada do cuidado. Se, nos encontros em quaisquer atividades, os profissionais mantiveram o processo de trabalho longe de afetos atuais (de abertura ao atual/em ato), o trabalho estará submetido às imagens, mas não às afecções e opera em servidão. As Oficinaulas trouxeram essas emoções:

Porque a gente tem que obedecer. E, assim, a gente obedece a hierarquias.

Eu quero dizer que nosso papel hoje tem que ser formalizado, justamente isso que eu ia falar, eu entendo que nada deve ser tão burocrático, sei que temos que romper com essa burocracia, sim, até para seguirmos em frente, mas quem vai nos amparar? Se não for o papel, se não for algo formal, burocrático?!

Eu penso que esta burocratização do serviço atrapalha muito, reflete negativamente, porque hoje é assim, você tem que atender um número tal de hipertensos e diabéticos, é preciso atender, se o atendimento vai ser bom ou ruim eu não sei, mas eu tenho lá o registro.

E se gente não documenta, não põe no papel, algumas coisas parece que a gente não fez.

Se as coisas não estão seguindo conforme as normas que trabalhamos e temos que trabalhar, que façam um documento, digam que as condutas não estão colaborando para a assertividade do seu trabalho, porque eu gosto de trabalhar com documento. Então, eu poderia levar o documento à minha coordenação para que esta pudesse estar ciente.

Essas emoções favorecem o aprisionamento dos trabalhadores em determinados protocolos que acabam sendo o “encontro mais importante”, o encontro com o papel, o que denota a captura do trabalho. Spinoza (2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 144) fala dos sentimentos de medo e esperança, colocando o medo como “uma tristeza instável surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida” e a esperança como “uma alegria instável surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”. É assim que o cumprimento de metas e a imposição de documentos formais, obedecer, formalizar e burocratizar passam às ideias inadequadas, gerando sofrimento e angústia, além da dicotomia entre trabalho prescrito e trabalho real.

Além de capturar o trabalho criativo, a atuação pautada nas “imagens do pensamento”, não nas “emoções do pensamento”, ainda vem carregada das “máscaras de super-heróis” que a uns serve à subordinação (aguentar sua carga inexpugnável) e a outros à superposição (tomar decisão sem poder falhar). Pela dificuldade de problematizar o processo de trabalho, de estabelecer relações de apoio compartilhado, de ensejar a reflexão ativa sobre os nós que se fazem no cotidiano, em lugar de perseverar na existência, de afirmar a vida e compor a potência, surge o desejo de um “governamento” pelas punições. Por exemplo:

Eu acho que a responsabilização tem que ser individualmente. A começar por aí a autoavaliação, mas eu acho assim, o profissional tem que se responsabilizar pelo trabalho dele, enquanto ele não fizer isso, ele não vai trabalhar em equipe, porque ficará esse jogo de empurra, não é? Enquanto as equipes não se estruturarem, mas para se estruturarem enquanto equipe, cada profissional precisa se ressignificar, ele tem que entender qual é o papel dele ou ser punido. É punição, não fez, puniu, mexe lá no salário, entendeu? (Oficinaula).

Percebemos que estas posturas podem fortalecer ainda mais o hiato existente entre paixão e ação, ideias inadequadas e ideias adequadas, razão das imagens e razão afectiva, inviabilizando o diálogo, perpetuando a produção individualizada e fragmentada. Quando o que se produz na mente é a ideia inadequada sobre determinadas condutas, pelo desconhecimento das forças internas aos encontros, os trabalhadores passam a agir sob o efeito das paixões, ou seja, padecem na servidão. Ao contrário, quando eles agem por forças do encontro, a partir de ideias que têm origem ali, se deixa a paixão pela ação (FRANCO, 2015FRANCO, T. B. Trabalho criativo e cuidado em saúde: um debate a partir dos conceitos de servidão e liberdade. Saúde e sociedade, v. 24, supl. 1, p. 102-114, jun. 2015.). Nas Oficinaulas, notou-se que é a partir do colecionamento de paixões tristes, dado os encontros que não elevam a potência das equipes, que os profissionais do NASF-AB são levados ao sentimento da frustração:

Eu desejo, eu quero, a gente propõe, todas as reuniões mensais são propostas, mas quando chega ao final do mês, você vê que aquela sua proposta foi reprimida.

Chega a ser frustrante quando a gente quer muito uma coisa e a gente não consegue chegar lá.

Essa frustração faz com que o NASF-AB atue em atividades coletivas organizadas pela própria equipe, na tentativa de valorizar o seu trabalho. Ao participar das reuniões de equipe do NASF-AB, observamos o cuidado para acolher os colegas das eSF, organizando as agendas para realização de visitas domiciliares ou consultas compartilhadas entre si. Trabalhadores do NASF-AB fazem o matriciamento de sua própria equipe, discutem casos e recorrem às eSF, sempre que necessário. Se pode interpretar que o NASF-AB se recolhe a si próprio, apresentando essa expressão em um excerto narrativo:

Na verdade, a gente faz entre a gente mesmo, por exemplo, quando vamos fazer uma consulta compartilhada entre nós do NASF. Se a gente vai fazer uma visita domiciliar, estamos matriciando entre nós mesmos. Para se conseguir fazer uma orientação de nutrição, orientação básica de farmácia, alguma coisa assim.

Para a ideia de compor o trabalho com os corpos que aumentam as suas potências, Spinoza ajuda a reconhecer que o conatus não é permanecer na tristeza, mas em ações. Ferreira (2009FERREIRA, A. Introdução à filosofia de Spinoza. São Paulo: Quebra Nozes, 2009. Disponível em: Disponível em: https://ensaiosflutuantes.files.wordpress.com/2016/03/introducao-a-filosofia-de-spino-amauri-ferreira.pdf . Acesso em: 26 fev. 2020.
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) disserta que, quando estamos sob o domínio da tristeza, desejamos acusar, encontrar culpados, nos vingar. Eis o ponto fundamental que caracteriza o homem que está na servidão, nega a vida e o acaso, sentindo-se injustiçado por supostos prejuízos.

Liberdade: caminho da potência dos encontros

A liberdade, para Spinoza (2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 218), acontece quando conseguimos controlar os efeitos dos afetos aos quais estamos expostos, o autor nos diz que “à medida que a mente compreende as coisas como necessárias, ela tem um poder maior sobre os seus afetos, ou seja, deles padece menos”. Ao compreender-se o acontecimento das coisas, ideias adequadas são formadas e, portanto, é possível ser livre. A vontade é como a força que vem de dentro da pessoa e age como uma energia propulsora que a move na produção da vida e do mundo.

O NASF-AB, pela sua inserção em relações, experimenta necessariamente afetos que decorrem de seu fazer em apoio às eSF. Devem ser capacidades as de afetar e de ser afetado. Para que um mesmo profissional possa agir de formas diferentes, estas variações se dão por conta dos afetos pelos quais eles são tomados, os profissionais ora rompem com as lógicas instituídas e ora as instituem. Observou-se, pois, o fato de que para não permanecer sob o afeto de tristeza, os profissionais do NASF-AB buscam ressignificar a realidade, desviando suas práticas na busca por paixões alegres. Para fortalecer a sua vitalidade, eles compõem o trabalho entre si.

No homem livre, conforme Spinoza (2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 201), “a firmeza em fugir a tempo é tão grande quanto a que o leva à luta; ou seja, o homem livre escolhe a fuga com a mesma firmeza ou com a mesma coragem com que escolhe o combate”. Estar certo de um caminho não é saber exatamente onde ele vai dar. Não se acaba totalmente com o medo ou com a esperança como se fosse possível alcançar a mais plena clareza do que e como fazer. A certeza se faz em um processo aberto, na medida em que a experimentamos como um sentido e não como um destino. É com o sentido que vamos em frente e aumentamos nossa potência de agir. Ferreira (2009FERREIRA, A. Introdução à filosofia de Spinoza. São Paulo: Quebra Nozes, 2009. Disponível em: Disponível em: https://ensaiosflutuantes.files.wordpress.com/2016/03/introducao-a-filosofia-de-spino-amauri-ferreira.pdf . Acesso em: 26 fev. 2020.
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) elucida os três gêneros do conhecimento em Spinoza: um homem livre não se reduz ao primeiro gênero do conhecimento (imaginativo), mas conquista a potência de pensar, não só pelo conhecimento do segundo gênero (racional), mas pelo terceiro gênero, que é denominado ciência intuitiva. Quem conhece as coisas por meio desse gênero passa à suprema perfeição humana e consequentemente é afetado pela alegria, “quanto mais uma coisa tem perfeição, tanto mais age e tanto menos padece e, inversamente, quanto mais age, tanto mais ela é perfeita” (SPINOZA, 2017SPINOZA B. Ética. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2017., p. 236). A liberdade é a capacidade de refrear os afetos a partir do conhecimento.

Os profissionais do NASF-AB, em suas reuniões, buscavam criar estratégias para que fossem compreendidos no âmbito do trabalho. Com a participação nesses momentos, verificou-se - por meio das observações e pelas anotações do diário de campo - que estruturar a própria equipe pode ser uma das válvulas de escape para o fortalecimento do papel do NASF-AB diante das eSF. O NASF-AB tem a pretensão de mostrar o seu papel em espaços denominados Rodadas de Atenção Básica, organizados pelo Núcleo de Educação Permanente em Saúde da gestão municipal, dos quais participam várias equipes de saúde do município:

A proposta é fazer uma rodada novamente do NASF, mas de uma forma mais lúdica, mais dinâmica, mudar a dinâmica, ser de forma mais objetiva e não chegar e falar, o NASF faz isso, é trazer de uma forma dinâmica para que eles possam entender. Eu pensei em usar TBL [Team Based Learning], usar espiral.

Hoje é só uma proposta, é uma ideia, por exemplo, um caso clínico que a gente apresente, por exemplo, vocês [a eSF], enquanto NASF, o que fariam? Colocá-los em nosso lugar, é uma ideia.

Experimentar outras possibilidades de acessar as eSF pode disparar a compreensão do trabalho do NASF-AB e, assim, desdobrar em maiores aproximações e em discussões diretas com os profissionais. Os nós que atam o trabalho, a partir do entendimento do que se passa nos serviços e das particularidades de cada equipe, podem desatar em outros modos de fazer a gestão e a educação nos serviços de saúde. Ações pedagógicas com as equipes podem favorecer caminhos à liberdade aqui enunciada. Esse é o grande desafio da EPS no contexto da AB. A Educação, colocando à prova o próprio fazer, pode provocar autoanálise simultânea. Baremblitt (1992BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992., p. 165) explica que é um “processo de produção e reapropriação, por parte dos coletivos autogestionários, de um saber acerca de si mesmo, suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e limites”. Esses movimentos podem produzir outras intervenções na realidade, ou seja, possibilitam que os profissionais retomem a capacidade de produzir em meio aos aprisionamentos que a normatização do mundo do trabalho impõe:

Deveria ser um momento de reflexão das ações, de você raciocinar: um surto disso, por que ocorreu? Não buscar culpados e sim fragilidades, para tentar melhorar e não ocorrer novamente. Então eu acho que a EPS é uma coisa muito importante, quando a gente traz para o campo da reflexão, no que podemos fazer para melhorar.

A EPS deve impactar como eu vejo o outro, tem que haver mudança de paradigma, é você ir à contramão do que está sendo proposto, que é manter as práticas. Estudos mostram que hoje esse é o caminho.

Um trabalho que se abre à reflexão e ação pode ser o produto dessa intervenção. A partir do conhecimento das causas dos nós que travam o serviço, ideias adequadas produzirão criatividade nas estratégias, encontro e modos de organizar um serviço frente a um surto, por exemplo, ou como disparar a sensibilidade na qualificação das consultas compartilhadas com o NASF-AB. No contexto do NASF-AB, angariado pela potência de constituir-se em coletivo, os processos de subjetivação serão capazes de produzir novos modos de conduzir o trabalho. Sob outros pensamentos e outros caminhos, sairemos da servidão para a liberdade.

Considerações finais

O estudo lidou como o apoio matricial do apoiador matricial, buscou a complexidade do trabalho do NASF-AB naquilo que concerne ao interior de seu processo de trabalho, saber como o pessoal de NASF-AB experimenta a sua própria complexidade em um solo de complexidades, incertezas e até de oposição ao modelo. O estudo finalizou em uma etapa inicial, exploratória, na medida em que lidou com limites de tempo, parte dele implicado com a delimitação e reorganização de sua pergunta investigativa. Não resta dúvida de que o estudo ensejado pode prosperar em outras análises, cenários e circunscrições. Todavia, foi possível identificar um comportamento de equipe, promotor tanto da educação permanente em saúde como do necessário coletivo de enunciação que a pesquisa reconheceu: entre nós. Foi perceptível que essas equipes, em decorrência dos encontros com as eSF, precisam perseverar em um desenho de equipe como a almejada para o outro, podem fazer uso da recíproca em pedir e receber apoio e devem operar sob perspectivas mais participativas e articuladas com as equipes em território, estabelecendo laços de território.

Foram trazidas as noções de servidão e liberdade em Spinoza, visto que lógicas fortemente atravessadas pelo caráter burocrático e normalizador padronizam o processo de trabalho, limitando a vazão para a criatividade. Elencou-se que a liberdade no processo de trabalho em saúde pode ser pensada como o terceiro gênero de conhecimento pensando por Spinoza, ou seja, a força interna dos encontros e o seu produto em causa para as ações. Somos influenciados pela força dos afetos para construirmos a liberdade. Portanto, aludiu-se que o processo de trabalho em saúde, pela sua potência de produzir movimentos instituintes no cotidiano dos serviços de saúde, pode, a partir da EPS, como dispositivo, proporcionar afecção e ação aos trabalhadores de NASF-AB em seu processo de resistir e criar. Compreendeu-se que o “apoio aos apoiadores” objetivamente se expressa pelos processos de autoanálise (institucional), providências de EPS (entre pares) e esforço por exaurir medo e esperança para que os afetos apareçam genuínos e encontros vicejem.11J. M. Germano: pesquisa de campo, sistematização e interpretação inicial da informação, preparação do manuscrito e elaboração do artigo. R. B. Ceccim: avaliação do relatório de pesquisa, sua revisão e versão final, a revisão do manuscrito e revisões do artigo. A. S. Santos: revisão crítica da análise da informação de campo, do relatório de pesquisa e do manuscrito. A. B. A. Vilela: supervisão da pesquisa de campo, interpretação inicial da informação e sua sistematização, preparação do manuscrito e revisão da versão final do artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2020
  • Revisado
    11 Mar 2021
  • Aceito
    19 Abr 2021
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